Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1878/17.4T8BRG.G1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: OLINDO GERALDES
Descritores: COOPERATIVA AGRÍCOLA
DELIBERAÇÃO DA ASSEMBLEIA GERAL
NULIDADE
ESTATUTOS
DIREITO DE VOTO
REPRESENTAÇÃO
Data do Acordão: 03/28/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL – LEIS, INTERPRETAÇÃO E APLICAÇÃO / VIGÊNCIA, INTERPRETAÇÃO E APLICAÇÃO DAS LEIS / INTERPRETAÇÃO DA LEI.
Doutrina:
- JOSÉ A. RODRIGUES, Código Cooperativo Anotado e Comentado, 4.ª edição, 2011, p. 153 e 154.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 9.º, N.º 3.
CÓDIGO COOPERATIVO (CCOOP): - ARTIGO 43.º.
Sumário :
I. Das normas constitucionais resulta a afirmação clara da livre constituição, com obediência aos princípios cooperativos, e funcionamento das cooperativas, conferindo uma ampla autonomia aos interessados.

II. O princípio da gestão democrática das cooperativas deve ser obrigatoriamente observado como um princípio fundamental, na constituição e funcionamento de qualquer tipo de cooperativa.

III. As assembleias setoriais e a representação dos cooperadores na assembleia geral da cooperativa por delegados eleitos são compatíveis com a essência do princípio da gestão democrática.

IV. A admissibilidade do voto por representação, em termos amplos, está expressamente admitida pelo art. 43.º do Código Cooperativo.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:




I – RELATÓRIO


AA instaurou, em 10 de abril de 2017, no Juízo Central …, Comarca de …, contra BB - Cooperativa Agrícola, CRL, ação declarativa, sob a forma de processo comum, pedindo que fosse declarada nula a deliberação da assembleia geral da R. de 14 de junho de 2010, de alteração dos artigos 31.º e 39.º dos Estatutos, e estes fossem declarados nulos.

Para tanto, alegou, em síntese, que a R., com tal deliberação, violou o princípio da gestão democrática, imperativo, não permitindo a participação direta dos cooperadores na assembleia geral e não permitindo a cooperadores, não representados por delegados, fazerem-se representar na assembleia geral por outros cooperadores.

Contestou a Ré, por impugnação, concluindo pela improcedência da ação.

Frustrada a conciliação das partes, foi proferido, em 23 de abril de 2018, despacho saneador-sentença que, julgando a ação parcialmente procedente, declarou nulos os artigos 31.º, n.º 2, e 39.º dos Estatutos.


Inconformada com a sentença, a Ré apelou para o Tribunal da Relação de Guimarães, que, por acórdão de 18 de outubro de 2018, revogou a decisão recorrida e absolveu a Ré do pedido.


Inconformado, o Autor recorreu para o Supremo Tribunal de Justiça e, tendo alegado, formulou as seguintes conclusões:


a) O princípio da gestão democrática é imperativo e respeita à própria substância da cooperativa.

b) Os cooperadores têm direito de participar diretamente na assembleia geral.

c) O art. 39.º dos estatutos viola o princípio consagrado no art. 43.º do CCoop.

d) A atual redação do n.º 2 do art. 31.º dos estatutos é ilegal, por violação dos arts. 3.º, 33.º, n.º 1, alínea a), e 34.º, n.º 2, alínea a), todos do CCoop.

e) Também o seu art. 39.º é ilegal, violando o art. 43.º, n.º 1, do CCoop.


Com a revista, o Recorrente pretende a revogação do acórdão recorrido e a sua substituição pela decisão da 1.ª instância.


Contra-alegou o Autor, no sentido da improcedência do recurso.


Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.


Nesta revista, está essencialmente em discussão a validade de duas normas dos estatutos de cooperativa agrícola.


II – FUNDAMENTAÇÃO


2.1. No acórdão recorrido, foram dados como provados, designadamente, os seguintes factos:


1. No dia 14 de junho de 2010, teve lugar a assembleia geral ordinária da Ré, a qual contemplava, na ordem de trabalhos, a “discussão e votação da proposta da Direção para uma nova redação dos artigos 31.º, 32.º, 35.º, 38.º e 39.º dos estatutos da BB”.

2. Foi apresentada, pela Direção e por intermédio do seu presidente, uma “proposta de alteração estatutária”.

3. Esta proposta principiava por uma nota justificativa, da qual constavam os considerandos, constando que as alterações propostas justificavam-se em virtude da natureza polivalente da cooperativa, de muitas das disposições contidas nos estatutos e regulamento interno se encontrarem repetidas e da possibilidade de existirem dúvidas interpretativas no articulado vigente.

4. Mais se referia que “após consulta a especialistas no Código Cooperativo, foram os mesmos unânimes na verificação da conformidade dos estatutos atuais ao normativo legal, sugerindo-se, no entanto, a conveniência de uma redação mais esclarecedora”.

5. Nesse sentido, propunham-se as alterações aos aludidos artigos estatutários, correspondente às “assembleias gerais e setoriais”.

6. O artigo 31.º, de epígrafe “definição e composição”, tinha antes a seguinte redação: “1 – A assembleia geral é o órgão supremo da Cooperativa e as suas deliberações, tomadas nos termos legais e estatutários, são obrigatórias para os restantes órgãos da Cooperativa e para todos os membros desta. 2 – A assembleia geral é constituída pelos cooperadores que estejam no pleno gozo dos seus direitos. 3 – Em cada secção funcionará uma assembleia geral, na qual participam todos os cooperados inscritos nessa secção, que será dirigida por uma mesa composta por três membros com mandato cuja duração será igual à prevista para os órgãos sociais da Cooperativa. 4 – A cada assembleia setorial compete: a) Pronunciar-se acerca das atividades, contas e rendibilidade de cada secção a apresentar à assembleia geral da Cooperativa; b) Tomar conhecimento do relatório e contas a apresentar à assembleia geral da Cooperativa. 5 – No regulamento interno será indicado o número de delegados das secções às assembleias gerais da Cooperativa”.

7. O artigo 31.º passaria a apresentar a seguinte redação: “1 – (…). 2 – A assembleia geral é constituída pelos delegados dos cooperadores eleitos nas secções da Cooperativa. 3 – (…). 4 – A cada assembleia setorial compete: a) Eleger a mesa da assembleia setorial; b) Eleger os delegados que representam a secção na assembleia geral da Cooperativa; c) Pronunciar-se sobre o orçamento e o plano de atividades anuais e submeter à aprovação da assembleia geral; d) Pronunciar-se sobre o balanço, o relatório e as contas anuais, a submeter à aprovação da assembleia geral; e) Pronunciar-se sobre as atividades e a rentabilidade da secção; j) Pronunciar-se sobre quaisquer propostas de alteração dos estatutos e do regulamento interno da Cooperativa, a submeter à aprovação da assembleia geral; h) Pronunciar-se sobre quaisquer outros assuntos que lhe sejam submetidos pela direção da Cooperativa. 5 – O regulamento interno fixa o número de delegados das secções às assembleias gerais da Cooperativa, em função do número de cooperadores inscritos em cada secção”.

8. Artigo 39.º, de epígrafe “voto de representação”, tinha antes a seguinte redação: “1 – É admitido o voto por representação, devendo o mandato atribuído a outro cooperador ou a familiar maior do mandante que com ele coabite constar de documento escrito e dirigido ao presidente da mesa da assembleia-geral, devidamente assinado. 2 – Cada cooperador não poderá representar mais do que um membro da cooperativa”.

9. Artigo 39.º passaria a apresentar a seguinte redação: “1 – É admitido o voto por representação, devendo o mandato atribuído a outro delegado constar de documento escrito e assinado, dirigido ao presidente da mesa da assembleia-geral. 2 – Cada delegado não pode representar mais de um outro delegado à assembleia geral”.

10. Na assembleia geral da R. de 14 de junho de 2010 foram prestados todos os esclarecimentos solicitados, não tendo mais ninguém pedido a palavra para se pronunciar contra as alterações propostas.

11. O ponto III, relativo à “discussão e votação da proposta da direção para uma nova redação dos artigos (…), 32.º (…) e 39.º dos Estatutos da BB”, foi submetido a votação, tendo sido aprovadas as alterações por maioria, com treze votos a favor, um voto contra e sem abstenções.



***


2.2. Delimitada a matéria de facto, importa conhecer do objeto do recurso, definido pelas suas conclusões, especialmente sobre a validade de algumas normas estatutárias de cooperativa agrícola.

A questão jurídica controvertida nestes autos, limita-se, nesta sede, à validade dos artigos 31.º, n.º 2, e 39.º dos estatutos da Recorrida, cuja redação atual foi aprovada na assembleia geral ordinária de 14 de junho de 2010. Em relação às restantes normas estatutárias impugnadas na ação, há já decisão transitada em julgado, decisão no sentido da sua validade.

Como se relatou, as instâncias divergiram no julgamento, pois enquanto o acórdão recorrido julgou válidas tais normas estatutárias, a 1.ª instância concluiu no sentido da sua invalidade.

Identificada, sumariamente, a questão jurídica em discussão, interessa então saber o direito aplicável.


No âmbito dos direitos e deveres económicos, sociais e culturais, encontra-se consagrado na Constituição o direito à livre constituição de cooperativas, desde que observados os princípios cooperativos (art. 61.º, n.º 2).

Por outro lado, as cooperativas desenvolvem livremente as suas atividades no quadro da lei, podendo agrupar-se em uniões, federações e confederações e em outras formas de organização legalmente previstas (art. 61.º, n.º 3).

Dessas normas constitucionais resulta a afirmação clara da livre constituição, com obediência aos princípios cooperativos, e funcionamento das cooperativas, conferindo uma ampla autonomia aos interessados.

Através do Código Cooperativo (estando atualmente em vigor o aprovado pela Lei n.º 119/2015, de 31 de agosto, que revogou o aprovado pela Lei n.º 51/96, de 7 de setembro), procedeu-se à regulação normativa do regime aplicável às cooperativas, designadamente quanto aos seus princípios, na sua constituição e funcionamento, e às suas formas de organização.

Entre os sete princípios cooperativos estabelecidos no art. 3.º do Código Cooperativo (CCoop) releva, em particular para a decisão, o 2.º princípio, relativo à “gestão democrática pelos membros”, onde nomeadamente se dispõe:

As cooperativas são organizações democráticas geridas pelos seus membros, os quais participam ativamente na formulação das suas políticas e na tomada de decisões. Os homens e as mulheres que exerçam funções como representantes eleitos são responsáveis perante o conjunto dos membros que os elegeram. Nas cooperativas do primeiro grau, os membros têm iguais direitos de voto (um membro, um voto), estando as cooperativas de outros graus organizadas também de um forma democrática”.

Assim, a constituição e funcionamento das cooperativas, em conformidade com a Constituição, obedecem, designadamente, ao princípio da gestão democrática, nos termos do qual os seus membros, democraticamente, participam ativamente na formulação das políticas das cooperativas e na tomada das suas deliberações, para além de que os representantes das cooperativas são responsáveis perante o conjunto dos membros que os elegeram.

Deste modo, a natureza democrática das cooperativas encontra-se claramente afirmada na lei, o que, perante o direito subsidiário aplicável, designadamente o Código das Sociedades Comerciais (art. 9.º do CCoop.), não pode deixar de constituir um importante e indispensável elemento de interpretação, já que só pode recorrer-se a tais normas subsidiárias “na medida em que se não desrespeitem os princípios cooperativos” (art. 9.º do CCoop.).


O artigo 31.º, n.º 2, dos estatutos que regem a Recorrida tem a seguinte redação:


A assembleia geral é constituída pelos delegados dos cooperadores eleitos nas secções da Cooperativa”.

  

Entende o Recorrente que esta norma estatutária, aprovada na assembleia geral de 14 de junho de 2010, põe em causa o princípio da gestão democrática, ao excluir a participação direta dos membros das cooperativas, violando, desse modo, o disposto nos arts. 3.º, n.º 2, 21.º, n.º 1, alínea b), 22.º, n.º 2, alínea a), 33.º, n.º 2, e 38.º, todos do CCoop.

Não pode haver qualquer dúvida de que o princípio da gestão democrática das cooperativas deve ser obrigatoriamente observado como um princípio fundamental, na constituição e funcionamento de qualquer tipo de cooperativa, inserido, aliás, no âmbito do Estado de direito democrático consagrado na Constituição da República Portuguesa (art. 2.º).

A expressão democrática pode manifestar-se de diversas formas, não se restringindo apenas à modalidade de democracia direta. Esta, podendo embora ser a forma mais genuína, não consegue, no entanto, por múltiplas razões, responder adequadamente à maior complexidade de certo tipo de organização, pública ou privada, com vista a assegurar, com eficácia, os seus fins. Por isso, desde há muito se evoluiu para um certo tipo de democracia representativa, que, além de garantir a legitimidade originária, permite a representação dos membros integrantes da respetiva organização. A complexidade referida tanto se verifica em organizações mais vastas, como os Estados, como noutras mais reduzidas, as organizações sociais e económicas criadas pela sociedade.

Por isso, o exercício da democracia não se restringe ao conceito de democracia direta, englobando também o conceito de democracia representativa, em que os membros integrantes de uma comunidade elegem alguém como seu representante institucional.

Esclarecido que o conceito de gestão democrática vai para além do conceito de democracia direta, é preciso considerar que as cooperativas, podendo desenvolver diversos tipos de atividades e estender a sua ação geograficamente, podem ter vantagens, de modo a conferir maior eficácia e melhor participação aos seus membros, na criação estatutária de assembleias setoriais e na concessão de poderes de representação aos delegados eleitos, para a assembleia geral, órgão supremo da cooperativa (M. CANAVEIRA DE CAMPOS, citado por JOSÉ A. RODRIGUES, Código Cooperativo Anotado e Comentado, 4.ª edição, 2011, pág. 153). Participando os seus membros nas assembleias setoriais e podendo eleger ou ser eleito delegado à assembleia geral, está devidamente assegurada a realização do princípio da gestão democrática da cooperativa.

De resto, no domínio das cooperativas agrícolas, há muito que se admitiu a realização de assembleias setoriais (arts. 16.º e 17.º do DL n.º 394/82, de 21 de setembro).

No âmbito do Código Cooperativo, tal possibilidade de realização de assembleias setoriais nasceu com a Lei n.º 51/96, de 7 de setembro, mediante a consagração da norma do art. 54.º, e manteve-se no atual Código Cooperativo, aprovado pela Lei n.º 119/2015, de 31 de agosto (art. 44.º, com a redação atualizada pela Lei n.º 66/2017, de 9 de agosto).

Esta consagração normativa é bem demonstrativa de que a situação das assembleias setoriais e da representação dos cooperadores na assembleia geral da cooperativa por delegados eleitos é compatível com a essência do princípio da gestão democrática próprio das cooperativas.

De resto, o Recorrente nem sequer alegou e demonstrou a falta do pressuposto para a formação das assembleias setoriais, como as atividades da cooperativa ou a sua área geográfica (art. 44.º, n.º 1, do CCoop).

Estando, com a organização da cooperativa em secções, salvaguardado o princípio da gestão democrática, não há qualquer fundamento legal para declarar a nulidade peticionada na ação.


 O artigo 39.º dos estatutos dispõe:

 

“ 1 – É admitido o voto por representação, devendo o mandato atribuído a outro delegado constar de documento escrito e assinado, dirigido ao presidente da mesa da assembleia-geral.

2 – Cada delegado não pode representar mais de um outro delegado à assembleia geral”.


Manifesta-se o Recorrente contrário à validade do voto por representação, nomeadamente por os delegados à assembleia geral serem sempre eleitos.

Desde logo, o Código Cooperativo não proíbe o voto por representação na assembleia geral da cooperativa, constituída exclusivamente por delegados, que, por isso, tem de ser endereçado num delegado.

Com efeito, a admissibilidade do voto por representação, em termos amplos, está expressamente admitida pelo art. 43.º do CCoop.

Por outro lado, com a remissão prevista no n.º 4 do art.º 44.º do CCoop., nos termos da qual se aplicam às assembleias setoriais, o disposto nos arts. 33.º a 43.º, com as necessárias adaptações, admitiu-se o voto por representação em delegado à assembleia geral da cooperativa. Se assim não fosse, não faria qualquer sentido a remissão também para o art. 43.º do CCoop., e sendo de presumir que o legislador consagrou normativamente as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados (art. 9.º, n.º 3, do Código Civil).

Acresce ainda que a eleição do delegado à assembleia geral da cooperativa pode vir adicionada da vinculação quanto ao sentido de voto, estabelecendo-se um mandato (JOSÉ A. RODRIGUES, ibidem, pág. 154). Nestas circunstâncias, existindo também um mandato claro para a assembleia-geral, não se vislumbra motivo justificativo que obste ao voto por representação noutro delegado, desde que não ultrapasse o limite máximo de representação previsto nos estatutos.

Nesta perspetiva, o art. 39.º dos estatutos da Recorrida não padece de qualquer invalidade, carecendo de fundamento a declaração da sua nulidade, como foi pedido na ação.


Assim, não tendo o acórdão recorrido violado qualquer norma legal, nomeadamente as especificadas pelo Recorrente, é de negar a pretendida revista e confirmar a decisão recorrida.    



2.4. O Recorrente, ao ficar vencido por decaimento, é responsável pelo pagamento das custas, em conformidade com a regra da causalidade consagrada no art. 527.º, n.º s 1 e 2, do Código de Processo Civil.


III – DECISÃO


Pelo exposto, decide-se:


1) Negar a revista e confirmar a decisão recorrida.


2) Condenar o Recorrente (Autor) no pagamento das custas.


Lisboa, 28 de março de 2019


Olindo Geraldes (Relator)

Maria do Rosário Morgado

José Sousa Lameira