Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
21/19.0T8VFX.L1.S1
Nº Convencional: 4.ª SECÇÃO
Relator: JÚLIO GOMES
Descritores: ACIDENTE DE TRABALHO
Data do Acordão: 10/13/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO.
Sumário :

Mesmo que o sinistrado tivesse à data do acidente um contrato de trabalho para o exercício de funções públicas, estando já em vigor nessa data as alterações introduzidas pela Lei n.º 59/2008, de 11/09, ao Decreto-Lei 503/99 de 20/11 (que regula o regime dos acidentes em serviço), é necessário para que o referido acidente seja qualificado como um acidente de serviço que o trabalhador estivesse ao serviço da administração direta ou indireta do Estado ou em uma das situações previstas nos números 2 e 3 do artigo 2.º do referido Decreto-Lei, sendo que aos trabalhadores que exerçam funções em outras entidades é aplicável o regime do acidente de trabalho, como resulta do n.º 4 desse artigo 2.º.

Decisão Texto Integral:


Processo n.º 21/19.0T8VFX.L1.S1

Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça,

Relatório
AA instaurou a presente ação declarativa contra o Estado Português e “Lusitânia, Companhia de Seguros, S.A”, pedindo que os RR. sejam condenados, na proporção das correspondentes responsabilidades, a pagar à A.:
- uma pensão anual e vitalícia no montante de € 2.357,33 (dois mil trezentos e cinquenta e sete euros e trinta e três cêntimos), subsídio de férias e subsídio de Natal, com início no dia 04/05/2010, sem prejuízo do seu aumento em razão da idade e de legais atualizações;
- subsídio por morte no montante de € 5.533,68 (cinco mil quinhentos e trinta e três euros e sessenta e oito cêntimos);
- as despesas de funeral no montante de € 3.422,13 (três mil quatrocentos e vinte e dois euros e treze cêntimos):
- uma indemnização por danos não patrimoniais no valor de € 65.000,00 (sessenta e cinco mil euros);
- juros de mora, à taxa legal, sobre todas as quantias peticionadas, contabilizados desde o vencimento até integral e efetivo pagamento.

Para fundamentar a competência do Tribunal e a demanda do Réu Estado, alegou a Autora:

- No dia 03/05/2010, BB, quando trabalhava sob as ordens, direção e fiscalização da Fundação Alter Real (adiante designada apenas FAR) sofreu um acidente do qual lhe resultou a morte, ocorrida nesse mesmo dia;
- Nessa sequência, no dia 21/05/2010, a R. Lusitânia, Companhia de Seguros, Lda. participou tal acidente ao extinto Tribunal do Trabalho de Portalegre que remeteu a participação de acidente mortal ao extinto Tribunal do Trabalho de Santarém;
- Devido a tal sinistro, correram termos no extinto Tribunal do Trabalho de Santarém uns autos de acidente de trabalho - morte (fase conciliatória) com o n° 86/10……..;
- Em 09/01/2013, o extinto Tribunal do Trabalho de Santarém por decisão, transitada em julgado em 04/02/2013, declarou-se incompetente em razão da matéria, por considerar tratar-se de um acidente de serviço e ordenou o arquivamento dos autos;
- Na sequência desse arquivamento, em 08/03/2013, a Autora, na qualidade de viúva do sinistrado, intentou no Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa contra a R. Lusitânia e a FAR ação administrativa comum, que deu origem ao processo n° 851/13.6BELSB e no qual pediu a condenação destas no pagamento do valor global de € 68.422,13, a título de indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais, decorrentes da morte do sinistrado;
- Todavia, por decisão proferida em 10/04/2013, o Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa considerou que ao caso é aplicável o regime dos acidentes de trabalho previsto no Código do Trabalho e declarou-se materialmente incompetente para conhecer da ação, declarando para o efeito competente a jurisdição comum;
- No seguimento desta decisão, a Autora exerceu a faculdade prevista no artigo 14. ° n.º 2, do CPTA e o processo foi remetido para o extinto Tribunal Judicial do Cartaxo - processo 619/13……. - e transitou posteriormente, por efeito da reforma do Mapa Judiciário entretanto operada, para o Juízo Central Cível do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Norte;
- Todavia, por decisão de 03/06/2016, o Juízo Central Cível declarou-se incompetente em razão da matéria para conhecer da ação e declarou competente para o efeito, a Secção de Trabalho da Instância Central do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Norte;
- Pelo que a Autora veio intentar a presente ação no Juízo do Trabalho do Tribunal Judicial da Comarca  ..... ....;
- O falecido, BB, era funcionário do Serviço Nacional Coudélico (adiante designado apenas SNC) e transitou para a FAR com a criação desta e a extinção daquele, através do Decreto-Lei n° 48/2007, de 27/02;
- Os funcionários do SNC ao transitarem para a FAR poderiam manter o seu vínculo à Administração Pública (o SNC era um serviço central do Ministério da Agricultura, do Desenvolvimento Rural e das Pescas) ou optarem pela passagem ao regime do contrato individual de trabalho;
- O falecido, BB, não optou pelo regime do contrato individual de trabalho e manteve o vínculo de funcionário público, passando, dessa forma, a ser titular de uma relação de trabalho titulada por contrato de trabalho em funções públicas;
- A FAR era uma pessoa coletiva de direito privado - artigo 4o n° 1 do Decreto-Lei n° 48/2007 e artigo 1.º do Estatuto da FAR, anexo a este diploma;
- Pelo que, nos termos do n° 4 do artigo 2o do Decreto-Lei n° 503/99, de 20/11, a BB era aplicado o regime de acidentes de trabalho previsto no Código do Trabalho, pois exercia funções (ao abrigo de contrato de trabalho em funções públicas) numa pessoa coletiva de direito privado;
- A FAR foi extinta pelo Decreto-Lei n.°109/2013, de 01/08;
- Nos termos do artigo 7o do Decreto-Lei n.°109/2013, na redação dada pelo Decreto-Lei n.°107/2014, o Estado sucede automaticamente na posição da FAR nas ações em que esta seja parte.

A Ré, “Lusitânia, Companhia de Seguros, S.A” contestou, por impugnação e por exceção, tendo invocado na sua defesa por exceção a incompetência do Tribunal em razão da matéria.
O Centro Nacional de Pensões peticionou a condenação dos RR. no pagamento do subsídio por morte e das pensões pagas aos familiares da vítima, a título de pensões de sobrevivência.
Por despacho datado de 05.01.2021, a Juíza decidiu pela verificação da exceção de incompetência material dos tribunais de trabalho por considerar que o sinistrado à data do acidente era ainda um funcionário público e que o acidente ocorrido era um acidente de serviço, tendo, em conformidade, absolvido da instância a Ré “Lusitânia, Companhia de Seguros, S.A.”.

Inconformada a Autora recorreu.

O Tribunal da Relação decidiu-se pela procedência do recurso, e, em consequência, revogou a decisão recorrida e declarou competente em razão da matéria o Tribunal do Trabalho.

Inconformada a Ré “Lusitânia, Companhia de Seguros, S.A” recorreu apresentando o seu recurso de revista as seguintes Conclusões:
1. Não concorda a Recorrente com o tribunal a quo quanto ao facto de no presente caso não estão reunidos os pressupostos de aplicação do regime jurídico de acidentes em serviço, pelo que o Tribunal do Trabalho ............., tem competência material para conhecer da questão dos autos.
2. Pugna a Recorrente pela manutenção na integra do teor do despacho proferido na audiência previa de 5.01.21 que declarou a incompetência material da jurisdição comum, absolvendo-se, então, a recorrente da instância.
3. Não teve em conta o juiz a quo no Acórdão as normas transitórias garantisticas constantes do diploma Decreto-lei 48/2007, de 27 de fevereiro, nomeadamente os seus artigos 10 e 11, que assegurou a manutenção dos regimes jurídicos então vigentes e aplicáveis ao pessoal da empresa pública Serviço Nacional Coudélico, sendo que esse normativo legal não foi até ao momento objeto de qualquer revogação, expressa ou tácita.
4. O falecido não optou pelo regime de contrato individual de trabalho, tendo escolhido manter-se com o vínculo de funcionário publico que detinha desde o início da relação com o Serviço Nacional Coudélico.
5. Resulta dos artigos 10 e 11 do DL 48/2007 de 27.02, que o legislador pretendeu expressamente que os aludidos trabalhadores do Serviço Nacional Coudélico continuassem sujeitos aos regimes jurídicos então em vigor para os mesmos, entre que disciplinava a responsabilidade do Estado pelos acidentes em serviço dos seus servidores civis subscritores na Caixa Geral de Aposentações.
6. Por via dos artigos 10 e 11 do DL 48/2007 de 27.02 e enquanto o mesmo se mantiver em vigor, ficou assente que os acidentes sofridos pelos então trabalhadores do Serviço Nacional Coudélico ao serviço dessa empresa devem ser sujeitos ao regime jurídico próprio dos acidentes em serviço no âmbito da Administração Pública.
7. Importa concluir que o acidente a que os autos se reportam deve ser qualificado como acidente de serviço.
8. No sentido de entenderem como acidente de serviço, em situações similares á dos autos, atente-se ao teor do Acórdão da Relação do Porto de 17-11-2009 relativo ao processo nº 2271/06.0TBGDM.P1 e Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 01-02-2016, relativo ao processo nº 288/15.2T8VFR.P1, publicados no site www.dgsi.pt.
9. O falecido exercia funções publicas, sendo que, nos termos do artigo 7 do DL 48/2007 de 27.02 à Fundação é reconhecido o estatuto de utilidade pública, com os benefícios a esse estatuto inerentes.
10.  No âmbito do contrato de seguro em causa, que não garante Incapacidades Permanentes nem Morte e danos morais, a responsabilidade destas prestações cabe à Caixa Geral de Aposentações.

Fundamentação

De Facto

Os factos relevantes para a decisão constam do Relatório.

De Direito

A única questão colocada no presente recurso é a de saber se os tribunais de trabalho são, ou não, materialmente competentes para conhecer do acidente que vitimou mortalmente o marido da Autora.

A este respeito convirá começar por transcrever o essencial da motivação do Acórdão recorrido:

“Após esta alteração legislativa [a realizada pela Lei n.º 59/2008, de 11/09], o Dec. Lei 503/99 (que regula o regime dos acidentes em serviço), de 20/11, passou a ter a seguinte redação:
1. - O disposto no presente decreto-lei é aplicável a todos os trabalhadores que exercem funções públicas, nas modalidades de nomeação ou de contrato de trabalho em funções públicas, nos serviços da administração direta e indireta do Estado.
2. - O disposto no presente decreto-lei é também aplicável aos trabalhadores que exercem funções públicas nos serviços das administrações regionais e autárquicas e nos órgãos e serviços de apoio do Presidente da República, da Assembleia da República, dos tribunais e do Ministério Público e respetivos órgãos de gestão e de outros órgãos independentes.
3. - O disposto no presente decreto-lei é ainda aplicável aos membros dos gabinetes de apoio quer dos membros do Governo quer dos titulares dos órgãos referidos no número anterior.
4. - Aos trabalhadores que exerçam funções em entidades públicas empresariais ou noutras entidades não abrangidas pelo disposto nos números anteriores é aplicável o regime de acidentes de trabalho previsto no Código do Trabalho, aprovado pela Lei n.° 99/2003, de 27 de agosto, devendo as respetivas entidades empregadoras transferir a responsabilidade pela reparação dos danos emergentes de acidentes de trabalho nos termos previstos naquele Código.
5.  - O disposto nos números anteriores não prejudica a aplicação do regime de proteção social na eventualidade de doença profissional aos trabalhadores inscritos nas instituições de segurança social.
6.  - As referências legais feitas a acidentes em serviço consideram-se feitas a acidentes de trabalho.»

Como o Acórdão recorrido bem sublinha, depois de fazer o cotejo com a redação anterior da norma, é esta a redação da norma em vigor aquando da data da ocorrência do acidente e, por conseguinte, é à luz desta norma que cumpre decidir se o acidente é um acidente de trabalho ou, antes, um acidente de serviço. À data do acidente de que resultou a sua morte, 3 de maio de 2010, o trabalhador estava sob as ordens e direção de uma pessoa coletiva de direito privado que não integrava nem a administração direta, nem a administração indireta do Estado. O facto de nessa data ser ainda funcionário público não é decisivo para o efeito.

Ao contrário do que pretende o Recorrente a circunstância de o sinistrado não ter optado pelo regime do contrato de trabalho de direito privado e o facto de as normas transitórias preverem a “salvaguarda dos direitos inerentes ao seu lugar de origem” não altera esta conclusão. Com efeito, todos os trabalhadores têm direito à tutela infortunística como resulta, desde logo, da Constituição da República Portuguesa, mas tal não significa que se possa falar de um direito à qualificação do acidente como acidente de serviço e não como acidente de trabalho.

Assim, e na esteira do decidido pelo Acórdão do Tribunal dos Conflitos proferido a 11/01/2017, no processo n.º 016/16 (SÃO PEDRO), “são competentes os tribunais judiciais para a tramitação processual relativa à reparação dos danos emergentes de um acidente sofrido por um trabalhador dos B........, SA, numa ocasião em que já estava em vigor o Dec. Lei 503/99, de 20/11, com a redação introduzida pela Lei 59/2008, de 11/9, uma vez que o sinistrado, não se incluía no universo dos trabalhadores por ela abrangidos pois (i) não exercia funções públicas; (ii) não prestava serviço na administração direta ou indireta do Estado; (iii) nem exercia funções nos serviços das administrações regionais, autárquicas, ou em qualquer das entidades referidas no n.º 2 do artigo 2.º do Dec. Lei 503/99, de 20/11, na redação da Lei 59/2008, de 11/9”.

Decisão: Acorda-se em negar a revista e manter o Acórdão recorrido.

Custas do recurso pela Recorrente.

Lisboa, 13 de outubro de 2021

Júlio Manuel Vieira Gomes (Relator)

Joaquim António Chambel Mourisco

Maria Paula Sá Fernandes