Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
29/04.0JDLSB-O.S1
Nº Convencional: 5º SECÇÃO
Relator: ISABEL PAIS MARTINS
Descritores: FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
Data do Acordão: 10/20/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
Decisão: FIXADA JURISPRUDÊNCIA
Área Temática: DIREITO PENAL - ESCOLHA E MEDIDA DA PENA - DESCONTO (MEDIDAS PROCESSUAIS)
Doutrina: - Actas e projecto da Comissão de Revisão, Rei dos Livros, Acta n.º 9, de 30 de Maio de 1989, pp. 85-86; Acta n.º 16, de 21 de Setembro de 1989, p. 161; Acta da 29.ª, de 20 de Abril de 1964; Acta n.º 42, de 30 de Outubro de 1990, p. 478.
- António João Latas, «O novo quadro sancionatório das pessoas singulares», A Reforma do Sistema Penal de 2007, Garantias e Eficácia, Coimbra Editora, 2008, pp. 118, 119.
- Germano Marques da Silva, Direito Penal Português, Parte Geral, III, Verbo, 1999, p. 178.
- Gonzalo Rodriguez Mourullo et alli, Comentarios al Codigo Penal, Editorial Civitas, S. A., em anotação ao artigo 58.º, pp. 245-247.
- Hans-Heinrich Jescheck, Tratado de Derecho Penal, Parte Geral, tradução e adições de Direito espanhol por S. Mir Puig e F. Muñoz Conde, volume segundo, Bosch, Casa Editorial, S. A., justamente, p. 1223, 1227.
- João Baptista Machado, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, 12.ª reimpressão, Almedina, p. 182.
- Jorge Baptista Gonçalves, «A revisão do Código Penal: Alterações ao sistema sancionatório relativo às pessoas singulares», Revista do Cej, Jornadas sobre a revisão do Código Penal, 1.º Semestre 2008, Número 8 (Especial), pp. 15-40.
- Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, Editorial Notícias, 1993, pp. 297-299.
- Maia Gonçalves, Código Penal Português, Anotado e Comentado, 18.ª edição, Almedina, anotação 2 ao artigo 80.º, pp. 317-318.
- Maria Inmaculada Sánchez Barrios, «La prisión provisional em España. Especial referencia a su procedimiento», Liber Discipolorum para Jorge de Figueiredo Dias, Coimbra Editora, 2003, pp. 1502-1503.
- Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal, 2.ª edição actualizada, Universidade Católica Editora, anotação 7. ao artigo 80.º, pp. 292-293; anotação 11. ao artigo 80.º, p. 293; anotação ao artigo 477.º, p. 1241.
- Vives Antón, «El processo penal de la presunción de inocência», Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais, Almedina, p. 27 e ss., concretamente, pp. 30-31.
Legislação Nacional: CÓDIGO PENAL (CP), NA REDACÇÃO DA LEI N.º 59/2007, DE 4 DE SETEMBRO: - ARTIGO 80.º, N.º1.
Jurisprudência Nacional: ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES:
-DE 11/06/2008, PUBLICADO NA COLECTÂNEA DE JURISPRUDÊNCIA, TOMO III/208, PP. 294-296.
Sumário :
Verificada a condição do segmento final do artigo 80.º, n.º 1, do Código Penal – de o facto por que o arguido for condenado em pena de prisão num processo ser anterior à decisão final de outro processo, no âmbito do qual o arguido foi sujeito a detenção, a prisão preventiva ou a obrigação de permanência na habitação –, o desconto dessas medidas no cumprimento da pena deve ser ordenado sem aguardar que, no processo no âmbito do qual as medidas foram aplicadas, seja proferida decisão final ou esta se torne definitiva.
Decisão Texto Integral:

Acordam no Pleno das Secções Criminais do Supremo Tribunal de Justiça

I
            1. AA, arguido no processo n.º 29/04.0JDLSB, do 2.º juízo de competência criminal do Tribunal Judicial de Oeiras, interpôs, ao abrigo do artigo 437.º do Código de Processo Penal, recurso extraordinário para uniformização de jurisprudência, do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa (9.ª secção), proferido, no âmbito daquele processo (na relação com o n.º 29/04.0JDLSB-M.L1), em 27/05/2010, por se encontrar em oposição com o acórdão, do Tribunal da Relação de Lisboa (5.ª secção), proferido, no mesmo processo (na relação com o n.º 29/04.0JDLSB-N.L1), em 04/05/2010.
            2. Realizada a conferência a que se refere o artigo 441.º do Código de Processo Penal, por acórdão de 05/05/2011, foi decidido verificarem-se todos os pressupostos de admissibilidade do recurso, nomeadamente, a oposição de julgados sobre a mesma questão de direito, e ordenado o prosseguimento do recurso.
         3. Foram os sujeitos processuais notificados para alegar, nos termos e para os efeitos do n.º 1 do artigo 442.º do Código de Processo Penal.
            4. Alegaram o recorrente e o Ministério Público.
            4.1. O recorrente AA concluiu, como segue, as suas alegações:
«1º Neste recurso de uniformização de jurisprudência o que está em causa é a interpretação a dar à expressão "decisão final" constante no nº 1 do artigo 80º do CP.
«2º Isto porque existe jurisprudência, nomeadamente do Tribunal da Relação de Lisboa, que considera que a expressão "decisão final" significa a decisão final transitada em julgado.
«3º Como também existe jurisprudência, cada vez de forma mais maioritária, que a expressão "decisão final", não implica o trânsito em julgado dessa decisão, mas tão somente a decisão proferida em 1ª instância.
«4º Na realidade, a anterior redacção do artigo 80º, criava situações inaceitáveis, na medida em que existiam arguidos que acabavam por cumprir mais tempo de prisão do que aquela a que haviam sido efectivamente condenados.
«5º E foi exactamente a verificação de tais situações que levou à alteração legal operada pela Lei nº 59/2007 de 04 de Setembro.
«6º Assim, ao interpretar a expressão "decisão final" constante no nº1 do artigo 80º do CP, como sendo a decisão transitada em julgado, não se mostra afastada a verificação de situações inaceitáveis de cumprimento excessivo de pena por parte de determinados arguidos.
«7º Na verdade, o processo no âmbito do qual foi aplicado a medida de coacção de prisão preventiva ao arguido, viu agora o acórdão proferido em 1ª instância ser anulado pelo Tribunal da Relação de Lisboa. Não se vislumbrando de momento, quando é que poderá existir o efectivo trânsito em julgado, ou mesmo se o recorrente vai ser condenado nesse processo, onde esteve detido preventivamente cerca de 14 meses.
«8º O que de facto o preceito normativo diz é que: " a detenção, a prisão preventiva e a obrigação de permanência na habitação sofridas pelo arguido são descontadas por inteiro no cumprimento da pena de prisão, ainda que tenham sido aplicadas em processo diferente daquele em que vier a ser condenado, quando o facto porque foi condenado tenha sido praticado anteriormente à decisão final do processo no âmbito do qual as medidas foram aplicadas."
«9º Ora, se o legislador pretendesse referir-se ao trânsito em julgado da decisão, teria sem sombra de dúvida incluindo essa expressão no preceito normativo.
«10º Mesmo, na proposta de lei, onde se explicitam os motivos da alteração legal, nada é referido quanto a isso, admitindo-se somente e de modo expresso que o desconto de tempo das medidas de coacção sofridas pelo arguido, possam ter sido aplicadas em processo diferente.
«11º Atendendo a algumas objecções apresentadas por determinados autores, que salientavam a necessidade de estabelecer limites ao desconto de medidas de coacção privativas da liberdade, estabeleceu-se a restrição operada na parte final do nº 1 do artigo 80º do CP.
«12º Esta restrição clarifica que esse desconto só poderá ser efectuado "quando o facto por que for condenado tenha sido praticado anteriormente à decisão final no processo no âmbito do qual as medidas foram aplicadas."
«13º O que resolveu a possibilidade de um arguido preso preventivamente 18 meses por um crime pelo qual tivesse sido condenado a 1 ano, pudesse eventualmente cometer outro crime, porque sabia que os restantes seis meses seriam descontados.
«14º Em suma, não se vê qualquer razão para fazer depender do trânsito o limite temporal estabelecido por lei com o fim de não levar o agente a cometer novos crimes por pensar que a prisão preventiva poderá ser descontada na nova pena, pois a partir do momento em que o agente é condenado, já não se pode proceder ao desconto da prisão preventiva.
«15º Esperar pelo trânsito, seria dizer que, até ao trânsito, esta intenção da lei não valeria. O que não tem sentido. Resolvida essa questão, não se vislumbra qualquer entrave para aplicar o preceito normativo, tal como ele se encontra redigido.
«16º De facto, ao fazer depender o desconto do tempo de prisão preventiva sofrida pelo arguido do trânsito em julgado, poderá verificar-se situações que esse trânsito poderá somente ocorrer depois de cumprido todo o tempo de prisão efectiva no processo a que o arguido foi condenado e se eventualmente vier em recurso a ser absolvido no processo no qual sofreu a prisão preventiva esse desconto já não poderá ser efectuado.
«17º Desta forma, o melhor entendimento da lei é aceitar que quando ela escreveu decisão final, era mesmo decisão final que queria escrever, e não trânsito em julgado, pois que a interpretação contrária não tem sentido na lógica daquilo que a lei quis evitar.»
            4.2. O Ministério Público terminou as suas alegações com a formulação das seguintes conclusões:
«1. No nosso sistema penal, o instituto do desconto surge relativamente a medidas processuais, que se traduzam em restrições ou limitações de liberdade, e ainda quanto a penas anteriores e a medidas processuais ou penas sofridas no estrangeiro.
«2. São razões que se radicam em imperativos de justiça material que justificam que as restrições de liberdade, impostas apenas por exigências processuais — que não devem ser consideradas como antecipação do cumprimento de uma pena e que podem consubstanciar-se numa detenção, numa imposição de obrigação de permanência na habitação, numa prisão preventiva —, sejam descontadas no cumprimento da pena que, a final, venha a ser aplicada.
«3. Uma resposta, radicada num ideal de justiça material, revela-se premente quando àquelas restrições de liberdade ― que podem ser impostas mesmo antes do trânsito em julgado de uma decisão condenatória ― subjazam os factos, ou parte dos factos, que integram, integraram ou poderiam/deveriam ter integrado o processo, pelos quais o arguido vem a ser condenado.
«4. Ideal de justiça material a prosseguir igualmente quando as aludidas restrições de liberdade tenham sido impostas durante a tramitação de um processo que venha a terminar por um despacho, prolatado pelo Ministério Público ou pelo Juiz de Instrução, ou por uma decisão absolutória, que conheça, ou não, do mérito da causa.
«5. As exigências de justiça material, que justificam o respectivo desconto, sobrepõem-se às decorrentes das finalidades de aplicação de uma pena, sejam elas de prevenção geral ou de prevenção especial.
«6. Prevista no artigo 202.º do Código de Processo Penal, porque aplicada a presumido inocente ― e pelas, sobejamente conhecidas, implicações negativas, a nível pessoal, familiar, laboral, social, que a imposição de uma prisão preventiva tem na vida de um qualquer cidadão, que nunca se apagam ainda que venha a ser absolvido ― a prisão preventiva é informada dos princípios da excepcionalidade, subsidiariedade, proporcionalidade e precariedade.
«7. Por isso também o Código de Processo Penal, logo na sua versão original, previu, no artigo 214.º, n.º 2, a sua imediata extinção, sempre que a duração da pena de prisão imposta fosse superior à duração da prisão preventiva já sofrida, e ainda que da decisão condenatória tivesse sido interposto recurso.
«8. Já anteriormente à vigência do Código Penal de 1982 se optara pela não exigência de identidade entre o crime determinante da condenação e o crime que justificara a imposição de prisão preventiva.
«9. A evolução do instituto do desconto no nosso sistema penal foi no sentido de, por um lado, considerar abrangido pelo desconto o tempo de duração de outras medidas privativas/restritivas de liberdade, que não apenas a prisão preventiva, e, por outro lado, permitir que tal ocorra mesmo que as referidas medidas tenham sido impostas no âmbito de outros processos, assim se densificando a garantia de desconto do período de privação/limi­tação de liberdade imposto a presumido inocente.
«10. A norma constante do artigo 80.º, n.º 1, do Código Penal, na redacção introduzida pela Lei n.º 59/2007, de 04/09, ao prever o desconto da duração da prisão preventiva [1] no cumprimento da pena de prisão, veio apenas prescindir da exigência de a prisão preventiva ter sido imposta no mesmo processo em que o arguido foi condenado.
«11. Com a aludida alteração, logo ficaram abrangidas pelo desconto as situações integradoras de crimes concorrentes, que implicariam, caso ocorresse condenação, a imposição de uma pena única, assim se acautelando que, em caso de absolvição no processo em que fora imposta prisão preventiva, o condenado não venha a ser prejudicado em virtude de os crimes terem sido conhecidos em processos distintos, como especificamente recomendado pelo Provedor de Justiça.
«12. As razões de justiça material que fundamentam o instituto do desconto e justificam as regras da sua aplicação estão na verdade presentes naqueles casos em que, estando em causa situações integradoras de crimes concorrentes, conhecidos em processos distintos, não tenha, contudo, havido condenação, em virtude de estar-se, por exemplo, perante processo em que:
«- o arguido veio a ser absolvido;
«- o Ministério Público determinou o arquivamento do inquérito;
«- o Juiz de instrução determinou o arquivamento da instrução;
«- tenha havido concordância do arguido e do ofendido, em audiência de julgamento, sem dano ilegítimo de terceiro, extinguindo-se assim a responsabilidade criminal;
«- face a desistência do titular do direito de queixa, o procedimento criminal não prosseguiu, não podendo assim o Tribunal conhecer do mérito da causa.
«13. Por isso também, a lei não utilizou a expressão decisão transitada em julgado, mas antes decisão final, por esta abranger não só as decisões judiciais consolidadas, por trânsito em julgado, mas também os despachos do Ministério Público ― como, nomeadamente, os previstos nas normas dos artigos 277.º, 280.º e 281.º, todos do Código de Processo Penal ― que, embora consolidados, não transitam em julgado.
«14. A decisão final a que se alude na 2.ª parte do n.º 1 do artigo 80.º do Código Penal é assim uma decisão consolidada, seja ela uma sentença/acórdão ou despacho judicial, com trânsito em julgado, ou constitua um despacho, já consolidado, do Ministério Público.
«15. Mas daqui não decorre que seja pressuposto de aplicação da norma do n.º 1 do artigo 80.º do Código Penal haver já uma decisão final no processo em que foi imposta a prisão preventiva. A ocorrência da decisão final no processo em que foi imposta a prisão preventiva é apenas o termo ad quem relativamente ao momento da prática de crime cuja pena pretende­-se executar, para que o condenado possa beneficiar do desconto da prisão preventiva sofrida no processo em que esta foi imposta.
«16. E não pode proceder o argumento segundo o qual a não consideração da existência de decisão final, como pressuposto de aplicação do desconto, envolveria o risco de o arguido poder sentir-se tentado a cometer novo crime cuja pena ficasse coberta pelo desconto da prisão preventiva já sofrida. Na verdade, até à referida decisão final não pode o arguido, objectivamente, representar com segurança o referido benefício do desconto, considerando a objectiva incerteza do sentido dessa decisão.
«17. Desde que seja seguro que a prática dos factos integradores do crime por que se mostra condenado é anterior a decisão final no processo onde foi imposta a prisão preventiva, impõe-se proceder ao desconto do tempo de duração daquela logo no momento em que seja de executar a pena aplicada.
«18. Pois só assim se garantirá o objectivo de justiça material informador do instituto do desconto, uma vez que não se verifica a única limitação ao seu funcionamento, imposta na parte final da norma do referido artigo 80.º, n.º 1, e considerando que a não efectivação imediata do desconto poderá implicar a impossibilidade, total ou parcial, de concretização desse desconto, em virtude da relação duração da pena imposta/duração da privação cautelar de liberdade e do possível desfasamento entre a decisão final no processo onde foi aplicada a prisão preventiva e a data do início da execução da pena de prisão.
«19. O desconto deve efectivar-se desde que se conclua que a data da prática dos factos integradores do crime cuja pena de prisão vai ser executada é anterior a decisão final, proferida ou a proferir, no processo onde foi imposta a prisão preventiva. Conclusão que, como é evidente, se torna certa independentemente de, à data daquele início de execução, haver, ou não, a aludida decisão final.
«20. Não é, pois, necessário que, no processo em que foi imposta a prisão preventiva estejam definitivamente estabilizados os factos constitutivos do crime e sua qualificação jurídica, à semelhança do que ocorre na situação prevista no aludido artigo 214.º, n.º 2, em que, ainda sem estar consolidada a decisão condenatória, a prisão preventiva e a obrigação de permanência na habitação extinguem-se de imediato se a pena aplicada não for superior à prisão preventiva já sofrida e/ou à duração da obrigação de permanência na habitação.
«21. O que aí releva, e consta sempre dos autos, é a data da detenção e sua duração, bem como o despacho que impõe a prisão preventiva/obrigação de permanência da habitação, a data do seu início e respectiva duração.
«22. A consideração do desconto, no cumprimento de pena de prisão a executar, do tempo de duração da prisão preventiva imposta em processo diferente daquele em que o arguido se mostra condenado, por decisão transitada em julgado, pressupõe apenas a certeza quanto à data da ocorrência do respectivo crime, em ordem a poder afirmar-se que ocorreu antes de ter havido uma decisão final no processo em que foi imposta a prisão preventiva. É este, pois, o único facto cuja comprovação importa acautelar. Mas essa data mostra-se provada, por decisão transitada em julgado, no processo respeitante ao crime cuja pena de prisão pretende-se executar.
«23. Os pressupostos de aplicação da norma constante do artigo 80.º, n.º 1, do Código Penal, verificam-se independentemente de já haver, ou não, no processo em que foi imposta a prisão preventiva, uma decisão final, uma decisão consolidada, com o sentido que deixámos referido.
«24. Os elementos teleológico, sistemático e histórico de interpretação, que salientámos na apreciação que fizemos ao longo da motivação, considerados na sua correlação com a letra da lei, coincidem com sentido natural desta, não apoiando uma interpretação restritiva, que, aliás, só uma fundamentação consistente poderia justificar, considerando estar em causa matéria atinente a direitos fundamentais.
«25. Assim, o artigo 80.º, n.º 1, do Código Penal deve ser interpretado no sentido de que, desde que a data da prática dos factos integradores de crime cuja pena de prisão vai ser executada seja anterior a decisão final em processo diferente, no qual foi imposta detenção, prisão preventiva ou obrigação de permanência na habitação, a duração destas deve ser descontada, por inteiro, no cumprimento daquela pena de prisão, logo no momento em que se proceda ao respectivo cômputo da sua execução, independentemente de existir já, ou não, a referida decisão final.
«É este o sentido em que deve ser fixada jurisprudência.»
5. Foram corridos os vistos e realizou-se o julgamento, com observância do adequado formalismo (artigo 443.º do Código de Processo Penal).
II
1. Uma vez que a decisão tomada na secção criminal sobre a oposição de julgados não vincula o pleno das secções criminais, há que reapreciar essa matéria.
1.1. Na aplicação da norma do n.º 1 do artigo 80.º do Código Penal, na redacção introduzida pela Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro – segundo a qual a detenção, a prisão preventiva e a obrigação de permanência na habitação sofridas pelo arguido são descontadas por inteiro no cumprimento da pena de prisão, ainda que tenham sido aplicadas em processo diferente daquele em que vier a ser condenado, quando o facto por que for condenado tenha sido praticado anteriormente à decisão final do processo no âmbito do qual as medidas foram aplicadas –, a idênticas situações de facto, os acórdãos recorrido e fundamento, ambos do Tribunal da Relação de Lisboa, revelam diferentes entendimentos que se projectam em soluções jurídicas opostas.
1.1.1. Subjacente aos acórdãos recorrido e fundamento, o circunstancialismo que passamos a referir.
O recorrente AA e o co-arguido BB foram condenados no processo n.º 29/04.0JDLSB, do 2.º juízo de competência criminal do Tribunal Judicial de Oeiras, por decisão transitada em julgado, ambos em pena de prisão efectiva.
À data do trânsito dessa decisão, encontravam-se ambos preventivamente presos à ordem de um outro processo – o processo n.º 432/06.0JDLSB do juízo de grande instância criminal da comarca da Grande Lisboa – Noroeste –, desde 06/12/2006, deste sendo desligados e colocados em cumprimento de pena, à ordem do processo n.º 29/04.0JDLSB, no dia 13/02/2008.
Na liquidação do cumprimento das penas efectuada no processo n.º 29/04.0JDLSB, não foi efectuado o desconto da prisão preventiva sofrida pelo recorrente e pelo co-arguido no processo n.º 432/06.0JDLSB.
O recorrente e o co-arguido BB requereram a rectificação da liquidação do cumprimento das penas de modo a que fosse descontado o tempo de prisão preventiva sofrido à ordem do processo n.º 432/06.0JDLSB, embora a decisão neste proferida ainda não estivesse transitada em julgado, por estar pendente de recurso.
Por despacho de 28/01/2010, tal requerimento foi indeferido por, em suma, «a prisão preventiva sofrida pelo arguido dever ser descontada no processo em que vier a ser condenado e não noutro processo», dizendo-se que «os arguidos apenas poderão beneficiar do desconto da prisão preventiva sofrida (de) [em] qualquer outro processo em que foram condenados em caso de cúmulo jurídico e relativamente às penas parcelares englobadas no mesmo».
Desse despacho interpuseram o recorrente e o co-arguido BB recursos para a relação.
Por acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa, de 04/05/2010 (o acórdão fundamento) e de 27/05/2010 (o acórdão recorrido), foi, respectivamente, decidido revogar e manter o despacho recorrido.
1.1.2. No acórdão recorrido sustentou-se que «a interpretação do artº 80º, n.º 1, do Código Penal pressupõe que as sentenças tenham transitado em julgado – pois, só assim, se saberá, em concreto, das penas aplicadas e a relação existente entre essas penas, nomeadamente, a existência ou não de uma situação de absolvição e, em caso de condenação, uma situação de eventual cúmulo de penas ou de cumprimento sucessivo das penas aplicadas – pelo que não deverá proceder-se, por ora, ao desconto da prisão preventiva sofrida pelo arguido no âmbito do processo 432/06.0JDLSB, nos presentes autos, uma vez que a decisão proferida no âmbito daquele processo não transitou em julgado».
O que decorre, em síntese, do entendimento de que «enquanto se mantiver a incerteza sobre o resultado que recairá sobre uma imputação que levou o arguido a ser submetido a julgamento por factos de natureza criminal, situação que se mantém até que seja proferida sentença com trânsito em julgado, não pode o legislador ter pretendido que se tirassem consequências sobre vicissitudes processuais – no caso, medidas de coacção restritivas da liberdade individual – num processo que corre seus termos e cujos factos se encontram sujeitos a comprovação e, consequentemente, com resultado final indefinido».
Assim, na solução do acórdão recorrido, o desconto da detenção, da prisão preventiva e da obrigação de permanência na habitação sofridas pelo arguido em processo diferente daquele em que o arguido for condenado reclama que o facto por que o arguido for condenado tenha sido praticado anteriormente à decisão final do processo no âmbito do qual as medidas foram aplicadas e, ainda, o trânsito em julgado da decisão final proferida no processo no âmbito do qual as medidas foram aplicadas.
No acórdão fundamento, ao invés, sustentou-se que o desconto daquelas medidas aplicadas em processo diferente daquele em que o arguido for condenado reclama tão só que o facto por que o arguido for condenado tenha sido praticado anteriormente à decisão final do processo no âmbito do qual as medidas foram aplicadas, independentemente de se mostrar, ou não, transitada essa decisão final.
1.2. Deve, pois, reconhecer-se, tal como decidiu a secção, que os dois acórdãos – recorrido e fundamento – proferidos no âmbito de situações de facto idênticas, que convocavam a aplicação da norma do n.º 1 do artigo 80.º do Código Penal, na redacção da Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro, manifestam julgamentos contraditórios da mesma questão de direito.
1.3. A questão sobre a qual se reconhece oposição de julgados consiste em saber se, na aplicação da norma do n.º 1 do artigo 80.º do Código Penal, a detenção, a prisão preventiva e a obrigação de permanência na habitação sofridas pelo arguido devem ser descontadas, por inteiro, no cumprimento de pena de prisão em que for condenado, em processo diferente daquele em que essas medidas foram aplicadas e por facto praticado anteriormente à decisão final do processo no âmbito do qual as medidas foram aplicadas, logo no momento em que se proceda ao cômputo da execução da pena de prisão ou só após o trânsito em julgado da decisão final proferida no processo no âmbito do qual as medidas foram aplicadas.
III
            Definida a questão de direito que suscita a fixação de jurisprudência e enunciadas as posições em confronto, cumpre decidir.
                1. O instituto do desconto encontra-se regulado nos artigos 80.º a 82.º do Código Penal, aí se prevendo o desconto, no cumprimento da pena, de medidas processuais privativas de liberdade aplicadas ao arguido (artigo 80.º) e de pena anterior que venha a ser substituída por outra (artigo 81.º), mesmo que as medidas processuais ou a pena anterior, pelo mesmo ou pelos mesmo factos, tenham sido sofridas pelo agente no estrangeiro (artigo 82.º).
                A questão que reclama a fixação de jurisprudência convoca, especialmente, a norma do n.º 1 do artigo 80.º do Código Penal.  
Na versão primitiva do Código Penal (Decreto-Lei n.º 400/82, de 23 de Setembro), estatuía o n.º 1 do artigo 80.º que “a prisão preventiva sofrida pelo arguido no processo em que vier a ser condenado é descontada no cumprimento da pena que lhe for aplicada”.
Na redacção do Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de Março, o n.º 1 do artigo 80.º passou a ter a seguinte redacção:
            “A detenção, a prisão preventiva e a obrigação de permanência na habitação, sofridas pelo arguido no processo em que vier a ser condenado, são descontadas por inteiro no cumprimento da pena de prisão que lhe for aplicada.”
A Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro, conferiu à norma a seguinte redacção:
            “A detenção, a prisão preventiva e a obrigação de permanência na habitação sofridas pelo arguido são descontadas por inteiro no cumprimento da pena de prisão, ainda que tenham sido aplicadas em processo diferente daquele em que vier a ser condenado, quando o facto por que for condenado tenha sido praticado anteriormente à decisão final do processo no âmbito do qual as medidas foram aplicadas.”
            2. Embora na redacção primitiva a norma se referisse apenas à prisão preventiva, já então se sustentava que à prisão preventiva deviam equiparar-se, apesar do silêncio da lei, outras privações de liberdade de carácter processual, como é o caso da detenção e da obrigação de permanência na habitação, na medida em que a justificação do desconto é exactamente a mesma da prisão preventiva e a solução é favorável ao agente, não havendo por isso obstáculos à integração da lacuna por esta via[2].
            Solução que, como vimos, obteve consagração legal, com o Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de Março[3]
            3. Como características comuns às sucessivas regulamentações legais, o desconto obrigatório[4], sem excepções, por inteiro, no cumprimento da pena de prisão, das privações de liberdade de carácter processual, que têm lugar antes do trânsito em julgado da decisão condenatória.
A ruptura com o regime anterior do desconto, introduzida pela Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro, radica na eliminação do pressuposto da unidade processual, com a admissão da extensão do desconto a um processo distinto daquele em que tenha tido lugar a aplicação de medidas de privação de liberdade de carácter processual.
No regime anterior, era descontada na pena a detenção, a prisão preventiva e a obrigação de permanência na habitação sofridas pelo arguido no processo em que viesse a ser condenado. Ou seja, alvo de desconto eram, apenas, as privações de liberdade sofridas pelo facto ou factos que constituíssem o objecto do processo em que o agente viesse a ser condenado.
Decisiva era, pois, a unidade processual, não a unidade do facto[5].
Assim logo se entendeu na Comissão Revisora do Projecto de 1963[6]. Nas palavras de José Osório, a estatuição do preceito (artigo 93.º do Projecto de 1963) “devia valer ainda para o caso em que um indivíduo sofre prisão preventiva por um facto em que não vem a ser condenado, vindo todavia a ser condenado, no mesmo processo, por outro – à semelhança do que faz o Projecto alemão. Lá que a incidência do preceito se não estenda para fora do processo em relação ao qual foi sofrida prisão preventiva, compreende-se, porque então não mais se saberia onde devia parar-se; mas dentro do mesmo processo, parece razoável aplicar-se, mesmo que seja diferente o facto que a determinou e aquele por que o agente vem a ser condenado”. 
            O pressuposto da unidade do processo foi, também, reafirmado na Comissão de Revisão do Anteprojecto de 1987, sendo, então, sublinhado que o que é determinante no domínio do desconto «é o objecto do processo, pois a abandoná-lo a operação nunca mais tem um termo»[7].
            4. Contudo, o pressuposto da unidade do processo foi sendo alvo de contestação, defendendo-se ser o desconto aplicável ainda quando a prisão preventiva tenha sido sofrida em processo distinto daquele em que teve lugar a condenação[8].
Também entre nós.
Pronunciando-se no sentido de que a disciplina do desconto era insuficiente e injusta e anotando incoerência da lei, Germano Marques da Silva[9] chamou a atenção para a seguinte situação:
            «(…) se o arguido for acusado num mesmo processo por dois ou mais crimes e sofrer prisão preventiva nesse processo em razão de um deles (v. g., porque só relativamente a esse a lei admite a prisão preventiva), mesmo que venha a ser absolvido desse crime o tempo de prisão preventiva será descontado na pena aplicada aos restantes. Mas, se forem instaurados processos autónomos e for aplicada a prisão preventiva num dos processos e o arguido vier a ser absolvido nesse processo, o tempo da prisão preventiva não será descontado na pena em que vier a condenado noutro ou noutros.
            «Ora, se ele viesse a ser condenado no processo em que sofreu a prisão preventiva, em função do cúmulo jurídico, o desconto iria ter influência sobre a pena única aplicada a final, mas se for absolvido já não o será.»
Foi, também, a constatação da injustiça da descrita situação que esteve na base do ponto II da Recomendação n.º 3/B/2004, de 5 de Fevereiro de 2004, do Provedor de Justiça, dirigida à, então, Ministra da Justiça, no sentido de «que o Governo tome a iniciativa de propor à Assembleia da República, mais uma vez no âmbito da anunciada revisão da legislação penal, que esta passe a explicitar, na situação de concurso de infracções em que os crimes foram julgados em processos autónomos, que o tempo de prisão preventiva cumprido no âmbito dos processos em que o arguido veio a ser absolvido, possa ser descontado na pena única aplicada no âmbito do cúmulo jurídico que se venha a efectivar relativamente aos crimes pelos quais, nas condições referidas, o mesmo arguido veio afinal a ser condenado», sendo idêntica solução legal recomendada, «por razões de coerência da legislação que enquadra a matéria (v. art.º 80.º do Código Penal), para as medidas processuais correspondentes à detenção e à obrigação de permanência na habitação».
6. Informa a Acta n.º 14, de 6 de Março de 2006, da Unidade de Missão para a Reforma Penal, criada pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 113/2005, de 29 de Julho, com, além de outros, o objectivo de elaborar uma proposta de diploma de reforma do Código Penal, que, no anteprojecto de revisão do Código Penal, o n.º 1 do artigo 80.º foi alterado «de modo a acolher as recomendações apresentadas pelo Provedor de Justiça sobre esta matéria, no sentido de as medidas privativas de liberdade descontarem sempre na prisão em que o arguido for condenado».
Na Proposta de Lei n.º 98/X, que teve por fonte, justamente, os trabalhos daquela Unidade de Missão, o n.º 1 do artigo 80.º tinha a seguinte redacção:
            «1 – A detenção, a prisão preventiva e a obrigação de permanência na habitação sofridas pelo arguido são descontadas por inteiro no cumprimento da pena de prisão, ainda que tenham sido aplicadas em processo diferente daquele em que vier a ser condenado.»
Esclarecendo a exposição de motivos da mesma proposta de lei, a propósito dessa redacção da norma:
            «Estatui-se que todas as medidas privativas da liberdade sofridas antes da condenação são descontadas na pena de prisão. Incluem-se neste cômputo a simples detenção, a prisão preventiva e a obrigação de permanência na habitação. A inovação consiste em prescindir, para efeito de desconto, da exigência de as medidas terem sido aplicadas no mesmo processo, admitindo-se de modo expresso que digam respeito a processo diferente.»
            Na sequência da aprovação na generalidade e baixa à Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias daquela Proposta de Lei n.º 98/X, o artigo 80.º da proposta de lei, incluindo a proposta oral do PS de aditamento de um inciso final ao n.º 1, com o seguinte teor «quando o facto por que for condenado tenha sido praticado anteriormente à decisão final do processo no âmbito do qual as medidas foram aplicadas» foi aprovado, na reunião da Comissão de 11 de Julho de 2007[10]
            7. Vê-se, assim, que a norma do n.º 1 do artigo 80.º do Código Penal, na redacção da Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro, corresponde ao texto da proposta de lei com o aditamento final «quando o facto por que for condenado tenha sido praticado anteriormente à decisão final do processo no âmbito do qual as medidas foram aplicadas», introduzido na Assembleia da República.
            O legislador abandonou a unidade do processo como requisito do desconto, mas não acolheu um sistema ilimitado de desconto em que, afinal, se traduziria a solução da proposta de lei.
            Como refere Jorge Baptista Gonçalves[11], no anteprojecto e na Proposta de Lei n.º 98/X previa-se um sistema «que podemos chamar de conta-corrente de liberdade, em que se lançariam a crédito os tempos de privação da liberdade (por detenção, prisão preventiva e obrigação de permanência na habitação) aplicados em qualquer processo, lançando-se a débito as condenações transitadas em julgado. Como não se estabelecia qualquer limite temporal, a norma permitia, numa interpretação literal, que se guardasse “em carteira” um período de privação da liberdade (sofrido, por exemplo, num processo que findara com uma absolvição) para descontar em penas sofridas por factos praticados em momento posterior, o que colocaria em crise as finalidades preventivas gerais associadas à previsão dos crimes e cominação das penas».
            Sistema este que constituiria um incentivo objectivo à prática de crimes[12].
            Também Maia Gonçalves[13] não deixou de destacar que «a versão da Proposta governamental para o n.º 1 deste artigo [o artigo 80.º] prestava-se a severas críticas, designadamente porque podia fornecer aos arguidos um somatório de antigas medidas processuais de coacção a descontar em futuras condenações que obstariam ao cumprimento de penas que podiam até ser necessárias para a sua integração; e porque seriam tais medidas de difícil inventariação, mormente se muito antigas ou não registadas», alvitrando que «certamente porque atenta às reservas que já se vinham registando, a Assembleia da República alterou a proposta governamental».
            Sobre a razão da alteração introduzida pela Assembleia da República, diz ainda António João Latas[14] que a limitação do «desconto na pena por factos praticados anteriormente à decisão final no processo onde foram aplicadas as medidas processuais privativas da liberdade, dever-se-á ao propósito de evitar que o desconto daquelas medidas a todo o tempo pudesse encorajar a prática de futuros crimes».
            8. No sistema actual – eliminado o requisito da unidade processual –, o desconto pode (deve) ser efectuado em processo diferente daquele em que as medidas processuais privativas de liberdade (detenção, prisão preventiva, obrigação de permanência na habitação) foram aplicadas ao arguido desde que verificado o pressuposto de o facto objecto de condenação ser anterior à prolação da decisão final no processo em que as medidas foram aplicadas.
Nos termos da lei, a condição única para o desconto de medidas processuais privativas de liberdade em processo diferente daquele em que essas medidas foram aplicadas é a anterioridade do facto por que o arguido for condenado relativamente à decisão final do processo no âmbito do qual as medidas foram aplicadas.
            Ou, dito de outro modo, só não se efectuará o desconto da detenção, da prisão preventiva ou da obrigação de permanência na habitação em processo diferente daquele em que o arguido a elas foi sujeito quando o facto por que o arguido for condenado for posterior à decisão final do processo em que essas medidas foram aplicadas.
            Neste requisito da anterioridade do facto objecto de condenação num processo, em relação à decisão final de outro processo, no âmbito do qual as medidas foram aplicadas, esgota-se o inciso final do n.º 1 do artigo 80.º que traduz o objectivo de estabelecer um limite temporal inultrapassável para o desconto na pena de prisão em que o arguido venha a ser condenado num processo, das medidas processuais privativas de liberdade, por ele sofridas, em um outro distinto processo.
            Tal limite temporal é a data da decisão final proferida no processo no âmbito do qual essas medidas foram aplicadas.
            Deste modo, obsta-se a que o arguido que foi sujeito a medidas processuais privativas de liberdade num processo, no âmbito do qual não pôde proceder-se ao desconto das medidas processuais sofridas ou não pôde proceder-se ao desconto, por inteiro, das medidas processuais sofridas, mantenha, a seu favor (em seu benefício), um tempo de privação de liberdade, que lhe possa vir a aproveitar, por via do desconto, na eventual condenação por crime futuro, quer dizer, por crime praticado posteriormente à decisão final do processo em que sofreu tais medidas[15].
            9. A impossibilidade do desconto das medidas processuais privativas de liberdade no âmbito do processo em que elas foram aplicadas pode verificar-se em numerosas e variadas situações processuais. Nomeadamente[16], quando:
            – o Ministério Público profere despacho de arquivamento do inquérito (artigo 277.º do Código de Processo Penal);
            – o Ministério Público, com a concordância do juiz de instrução, ou o juiz de instrução, com a concordância do Ministério Público, decidem-se pelo arquivamento do processo por crime relativamente ao qual se encontre expressamente prevista na lei penal a possibilidade de dispensa de pena (artigo 280.º do Código de Processo Penal);
            – o Ministério Público, com a concordância do juiz de instrução, ou o juiz de instrução com a concordância do Ministério Público, decidem-se pela suspensão provisória do processo (artigos 281.º e 307.º, n.º 2, do Código de Processo Penal);
– o juiz de instrução profere despacho de não pronúncia (artigo 307.º do Código de Processo Penal);
            – a acusação é rejeitada (artigo 311.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal);
            – a responsabilidade criminal extingue-se, nos termos do artigo 206.º, n.º 1, do Código Penal;
            – o procedimento criminal extingue-se, por desistência de queixa, nos termos do artigo 116.º do Código Penal (hipótese especialmente configurável por força do artigo 178.º do Código Penal);
            – o arguido é absolvido;
            – o arguido é condenado em pena de prisão cuja execução é suspensa, não ocorrendo revogação da suspensão (artigo 57.º do Código Penal).
            A impossibilidade de desconto, por inteiro, na pena de prisão das medidas processuais privativas de liberdade sofridas no processo ocorrerá quando o arguido é condenado em pena de medida inferior ao tempo de prisão preventiva ou de permanência na habitação sofridos.   
Todas estas hipóteses determinam a extinção das medidas de coacção da prisão preventiva e da obrigação de permanência na habitação (artigo 214.º do Código de Processo Penal). Dando-se a extinção automática e de imediato com a prolação dos respectivos despachos ou sentenças, ou seja, antes de o despacho do Ministério Público de arquivamento do inquérito, nos termos do artigo 277.º do Código de Processo Penal, ter força de caso decidido – quando ainda não se esgotaram os prazos para requerer a abertura de instrução (artigo 287.º do Código de Processo Penal) ou de intervenção hierárquica, oficiosa ou a requerimento (artigo 278.º do Código de Processo Penal) –, antes de os despachos judiciais de não pronúncia, de rejeição da acusação, de extinção da responsabilidade criminal ou de extinção do procedimento criminal terem transitado em julgado e antes de as sentenças absolutórias ou condenatórias em pena de prisão suspensa ou em pena de medida inferior ao tempo de prisão preventiva ou de obrigação de permanência na habitação sofridos terem transitado em julgado, isto é, quando ainda são passíveis de recurso[17].     
            Estas decisões – e, ainda, a decisão condenatória em pena de prisão, mesmo que não inferior à duração das medidas processuais privativas da liberdade, entretanto, sofridas pelo arguido –, são o marco processual a que se reporta o inciso final do n.º 1 do artigo 80.º, por forma a que uma condenação pela prática de um facto a ele posterior não seja susceptível de beneficiar do desconto das medidas processuais privativas de liberdade aplicadas no âmbito do processo em que ele [esse marco] se verifica.
            A limitação prevista no último inciso do artigo 80.º, n.º 1, de que só se desconte o tempo de privação de liberdade sofrido noutras causas por factos anteriores à decisão final do processo no âmbito do qual o arguido sofreu as medidas processuais privativas da liberdade tem o sentido de evitar o desconto do tempo de privação de liberdade anteriormente sofrido em processos por factos posteriores de forma a não gerar, em quem tivesse a seu favor um tempo de privação de liberdade sobrante, um crédito ou saldo positivo de tempo de privação de liberdade por conta de um futuro crime o que poderia equivaler a uma compensação em pena futura como se de um convite a delinquir se tratasse.
Desta forma, do que se trata é de evitar situações que repugnariam aos fins preventivos das penas.
            10. Esgotando-se nessa finalidade a limitação prevista na parte final do no n.º 1 do artigo 80.º, deve, por outro lado, reconhecer-se que a norma não comporta um critério preferencial de desconto no processo em que as medidas foram aplicadas.
            De modo a que, só na impossibilidade de desconto das medidas processuais privativas de liberdade no âmbito do processo em que elas tivessem sido aplicadas, é que elas pudessem ser descontadas em processo distinto.
Se o legislador pretendesse que as medidas processuais privativas de liberdade aplicadas num processo fossem descontadas preferencialmente no processo no âmbito do qual foram aplicadas teria, seguramente, formulado o preceito com uma clara indicação, nesse sentido.
Que passaria, por exemplo, por lhe conferir a seguinte redacção:
«A detenção, a prisão preventiva e a obrigação de permanência na habitação sofridas pelo arguido são descontadas por inteiro no cumprimento da pena de prisão, ainda que tenham sido aplicadas em processo diferente daquele em que vier a ser condenado, quando o facto por que for condenado tenha sido praticado anteriormente à decisão final do processo no âmbito do qual as medidas foram aplicadas e neste não possa proceder-se ao desconto
             Ou, numa outra hipótese de formulação:
            «A detenção, a prisão preventiva e a obrigação de permanência na habitação, sofridas pelo arguido no processo em que vier a ser condenado, são descontadas por inteiro no cumprimento da pena de prisão que nesse processo lhe for aplicada e, quando isso não for possível, serão descontadas na pena aplicada em processo diferente se o facto por que for condenado tiver sido praticado anteriormente à decisão final do processo no âmbito do qual as medidas foram aplicadas.»
             Não foi, porém, este o caminho seguido pelo legislador.
            Na letra da lei (no seu sentido literal possível) não se encontra apoio para sustentar que o desconto das medidas processuais privativas de liberdade deva, preferencialmente, ser efectuado no processo no qual as medidas foram aplicadas. Ou, na expressão de António João Latas[18], «não resulta da lei que o desconto em processo diferente daquele onde foi aplicada a medida processual tenha natureza subsidiária face ao desconto a que haverá lugar no próprio processo».
            Na verdade, ao texto ou letra da lei – o ponto de partida da interpretação – cabe-lhe, desde logo, uma função negativa: a de eliminar aqueles sentidos que não tenham qualquer apoio, ou pelo menos uma qualquer correspondência ou ressonância nas palavras da lei[19].
            11. Na falta de consagração legal de um tal critério preferencial de desconto das medidas processuais privativas de liberdade no processo no âmbito do qual as medidas foram aplicadas não há qualquer razão que validamente possa fundamentar o entendimento de que o desconto em processo distinto daquele em que as medidas foram aplicadas só deva ser efectuado após a decisão final proferida no processo no âmbito do qual as medidas foram aplicadas.
            E ainda menos para que se reclame que a decisão final proferida no processo no âmbito do qual as medidas foram aplicadas seja uma decisão definitiva, isto é, ou uma decisão do Ministério Público com força de caso decidido ou uma decisão judicial transitada em julgado.
            Nem as chamadas “fontes da lei”, que inspiraram o legislador, nem os trabalhos preparatórios – tudo, antes, referido –, servem uma interpretação que passe pela rejeição do desconto “imediato” das medidas processuais privativas de liberdade sofridas noutro processo em que ainda não foi proferida decisão final.
            A razão de ser da lei habilita, por outro lado, a determinar que o sentido da norma é, justamente, o de permitir o desconto logo que o arguido deva cumprir pena de prisão em processo distinto do processo no âmbito do qual foi sujeito a medidas processuais privativas de liberdade desde que verificada a condição de o facto por que for condenado ser anterior à decisão final do processo em que foi sujeito a essas medidas. Independentemente, portanto, de no processo no âmbito do qual o arguido foi sujeito a medidas processuais privativas de liberdade já haver ou ainda não haver decisão final.
12. Com efeito, o instituto do desconto, em quaisquer das suas modelações legais, é informado por uma ideia de justiça material.
            Assenta na ideia básica segundo a qual as privações de liberdade de qualquer tipo que o agente tenha já sofrido lhe devem aproveitar, sendo imputadas ou descontadas na pena em que o agente, em virtude de uma condenação já transitada em julgado, deva cumprir[20].
            Todas as medidas de privação de liberdade impostas antes de uma condenação transitada em julgado, fundadas, embora, num princípio de necessidade cautelar, intervêm num momento em que o agente se encontra ainda a coberto da presunção de inocência, justificando-se, por isso, quanto a elas, o desconto no cumprimento da pena[21].
De facto, a prisão preventiva, em sentido estrito, como outras formas processuais de privação de liberdade, supõem a imposição de um mal plenamente equiparável ao das penas privativas de liberdade. O seu conteúdo material coincide com o das penas privativas de liberdade mas recai sobre cidadãos que gozam da presunção de inocência.
Por isso, já se afirmou que «na regulação das medidas limitativas da liberdade reflecte-se, mais do que em qualquer outra instituição penal, a ideologia política que subjaz a um determinado ordenamento jurídico, mais inclusivamente do que na própria pena»[22].
A Constituição da República Portuguesa ressalta a importância da liberdade, como valor superior do ordenamento jurídico, consagrando um reconhecimento genérico do direito à liberdade – com o sentido de liberdade física, direito de não ser de qualquer modo fisicamente confinado a um determinado espaço – como direito fundamental (artigo 27.º, n.º 1) e proclamando o princípio de que «ninguém pode ser total ou parcialmente privado da liberdade, a não ser em consequência de sentença judicial condenatória pela prática de acto punido por lei com pena de prisão ou de aplicação judicial de medida de segurança» (artigo 27.º, n.º 2).
Reconhecendo excepções ao princípio de que a privação da liberdade só é constitucionalmente admissível como efeito de pena criminal ou medida de segurança, a Constituição estabelece a garantia da reserva de lei na regulação dessas excepções, especifica determinadas formas de privação de liberdade, com as condições e garantias por que devem reger-se (artigo 27.º, n.os 3 e 4), particularmente a prisão preventiva, proclamando a natureza excepcional desta (artigo 28.º, n.º 2).
Recolhendo as principais garantias clássicas em matéria de processo criminal, a Constituição afirma a presunção de inocência (artigo 32.º, n.º 2) – «todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação, devendo ser julgado no mais curto prazo compatível com as garantias de defesa».
A presunção de inocência é a expressão abreviada de um conjunto de direitos fundamentais que definem o estatuto jurídico do arguido, estatuto cujo respeito há-de ser o primeiro critério orientador do conteúdo e da estrutura do processo penal. O arguido deve ser tido por inocente (isto é tratado como inocente e julgado inocente) enquanto a sua culpabilidade não resulte provada para além de toda a dúvida razoável. Tem, portanto, um significado duplo: como regra de procedimento e como regra de julgamento.
Neste sentido, como afirma Vives Antón, «deve falar-se de um processo penal da presunção de inocência, como um processo penal que se inspira nela como primeiro postulado, isto é, como momento inicial de uma perspectiva em que os direitos fundamentais do arguido devem ocupar o primeiro plano»[23].
Os direitos fundamentais substantivos adquirem, pois, uma dimensão procedimental; são regras básicas de todos os procedimentos democráticos de modo que nenhum deles pode qualificar-se de constitucionalmente legítimo se não os respeita no seu desenvolvimento. O que é especialmente válido no processo penal. A afirmação da pretensão punitiva do Estado comporta uma ingerência máxima na liberdade do arguido e no núcleo mais sagrado dos seus direitos fundamentais exigindo-se, portanto, que o procedimento para a sua eventual satisfação seja especialmente respeitoso de tais direitos[24].
 As medidas de coacção, particularmente limitativas da liberdade pessoal, conformam um dos mais severos constrangimentos que o Estado pode impor aos cidadãos.
Por isso, no nosso direito processual penal, na concretização dos ditames constitucionais, estão expressamente vinculadas a princípios de legalidade, de necessidade, de adequação e de proporcionalidade, o que significa que a liberdade das pessoas só pode ser limitada, total ou parcialmente, em função de exigências processuais de natureza cautelar, pelas medidas de coacção previstas na lei e que estas medidas devem ser adequadas às exigências do caso e proporcionais à gravidade do crime e às sanções que previsivelmente venham a ser aplicadas (artigos 191.º e 193.º do Código de Processo Penal).
Por outro lado, a prisão preventiva é subsidiária o que significa que só pode aplicar-se nos casos previstos na lei desde que se mostrem inadequadas ou insuficientes as outras medidas de coacção.
Também a medida de obrigação de permanência na habitação supondo o confinamento a um espaço fechado reclama a inadequação ou insuficiência de formas menos gravosas de restrição da liberdade (artigo 201.º do Código de Processo Penal).
Restará dizer que a detenção se caracteriza pela provisoriedade e pelas finalidades específicas que serve (artigo 254.º).
13. Pois bem. É também por um imperativo de justiça material que, verificado o pressuposto da anterioridade do facto por que o arguido deva cumprir pena de prisão num processo, relativamente à decisão final do processo em que foi sujeito a medidas processuais privativas de liberdade, essas medidas processuais devem aproveitar-lhe no cumprimento da pena.
E para que se garanta, da forma mais eficaz possível, que ao arguido aproveitam as medidas processuais privativas da liberdade a que foi sujeito, não se pode sustentar que o desconto de tais medidas no cumprimento da pena só deva ser efectuado depois de proferida decisão final no processo no âmbito do qual foram aplicadas.
O retardamento do desconto até ao momento em que se verifique, no processo em que o arguido a elas foi sujeito, a prolação da decisão final incrementa as situações de “desperdício” do tempo de privação de liberdade, em razão de medidas processuais, quer dizer, de esse tempo não aproveitar ou não aproveitar, por inteiro, ao arguido.
Bastará considerar as hipóteses de, no processo onde o arguido foi sujeito a medidas processuais de privação da liberdade, não haver lugar ao desconto. Esperar pela decisão final, a fim de se comprovar que não há lugar, nesse processo, a qualquer desconto, quando o tempo de privação de liberdade, em razão de medidas processuais, é susceptível de atingir períodos consideráveis (pense-se, por exemplo, nos prazos de prisão preventiva e de obrigação de permanência na habitação que podem decorrer da aplicação do n.º 6 do artigo 215.º do Código de Processo Penal), poderá significar o cumprimento da pena ou o cumprimento de parte muito substancial da pena enquanto se aguarda pela decisão final no processo no âmbito do qual o arguido sofreu medidas processuais de privação de liberdade.
Ou seja, entre o momento em que o arguido é colocado em cumprimento de pena à ordem de um processo e a prolação da decisão final no processo em que foi sujeito a medidas processuais privativas de liberdade pode decorrer um período de tempo tal que, correspondendo por inteiro à pena a cumprir ou a parte da pena a cumprir (restando para cumprir medida inferior ao tempo de privação de liberdade sofrido), determine o não aproveitamento, total ou parcial, do tempo de privação de liberdade, em razão da aplicação de medidas processuais.
Este resultado não satisfaz a ideia de justiça material que inspira o instituto do desconto.
Nem é respeitador da presunção de inocência.
14. Se, como antes se viu, os elementos gramatical e histórico de interpretação, por um lado, levam a rejeitar que o artigo 80.º, n.º 1, comporte um critério preferencial de desconto das medidas processuais privativas da liberdade no processo no âmbito do qual as medidas foram aplicadas, uma interpretação teleológica e sistematicamente fundada, por outro lado, leva a concluir que o sentido da norma é, justamente, o de permitir o desconto logo que o arguido deva cumprir pena de prisão em processo distinto do processo no âmbito do qual foi sujeito a medidas processuais privativas de liberdade desde que verificada a condição de o facto por que for condenado ser anterior à decisão final do processo em que foi sujeito a essas medidas. Independentemente, portanto, de no processo no âmbito do qual o arguido foi sujeito a medidas processuais privativas de liberdade já haver ou ainda não haver decisão final.
Neste mesmo sentido, pronunciou-se Jorge Baptista Gonçalves[25]:
«É legítimo questionar se será necessário, para que o desconto seja efectuado, que já tenha sido proferida, no momento da contagem da pena, a decisão final no processo em que foram aplicadas as medidas de privação da liberdade. Inclino-me no sentido negativo. A detenção, a prisão preventiva e a obrigação de permanência na habitação constituem privações de liberdade de natureza cautelar, que têm lugar antes de haver decisão transitada em julgado, num momento em que o arguido se presume inocente. Parece-me, pois, que o legislador terá pretendido que, a partir do momento em que existe pena de prisão a cumprir por força de sentença transitada em julgado, todos esses períodos de privação de liberdade sejam considerados na respectiva liquidação, desde que os factos da condenação tenham sido praticados antes da de haver decisão final no processo em que tais períodos de privação da liberdade foram sofridos.»
E, ainda, António João Latas[26]:
«(…) pode suceder que o arguido venha a ser condenado numa altura em que ainda se encontre pendente processo em que lhe foi aplicada medida processual, sem que aí tivesse lugar qualquer desconto. Nestes casos deve proceder-se logo ao desconto no processo da condenação do arguido ou terá que aguardar-se decisão definitiva no processo onde lhe foram aplicadas as medidas processuais? Também nos parece nada obstar ao desconto imediato, pois não resulta da lei que o desconto em processo diferente daquele onde foi aplicada a medida processual tenha natureza subsidiária face ao desconto a que haverá lugar no próprio processo. O desconto das medidas processuais nas penas a cumprir deve-se sobretudo a razões de justiça para com o arguido, pelo que prescindindo o legislador do requisito da unidade do processo e do facto, nada parece obstar à aplicação do instituto (…)».
Contra, numa afirmação rotunda, Paulo Pinto de Albuquerque[27]: 
«Não deve proceder-se ao desconto “imediato” da prisão preventiva sofrida noutro processo em que ainda não foi proferida decisão final.»
O único argumento que aduz é o de maioria de razão, louvando-se numa decisão do Tribunal da Relação de Guimarães[28], segundo a qual a prisão preventiva sofrida pelo arguido num processo ainda pendente, onde foi condenado em pena de prisão suspensa na sua execução, não pode ser descontada, durante o período de suspensão, em outro processo onde ao arguido foi aplicada pena de prisão efectiva.
Na base desta decisão – e da posição do Anotador, como se pode inferir – o entendimento de que as medidas processuais privativas de liberdade devem ser descontadas no processo em que foram sofridas pelo arguido, só ficando “livres” para serem descontadas em processo diferente, se nele não houver lugar ao desconto. Daí, a posição de “manter reservada” a privação de liberdade sofrida por um arguido condenado em pena cuja execução foi suspensa durante o decurso da suspensão, prevenindo a hipótese de esta ser revogada e, afinal, haver pena a cumprir no processo.
Esta posição assenta no pressuposto, errado – como decorre do que, antes, já se expôs –, de que a actual formulação legal implica que o desconto seja efectuado no processo no âmbito do qual o arguido sofreu medidas processuais privativas de liberdade e só na impossibilidade de, nesse processo, serem descontadas é que podem/devem ser descontadas em processo distinto.
Entendimento que é, no fim de contas, o subjacente ao acórdão recorrido.   
15. A única condição de que a norma faz depender o desconto das medidas processuais privativas de liberdade sofridas por um arguido em processo distinto daquele em que essas medidas lhe foram aplicadas é que o facto por que tenha pena de prisão a cumprir seja anterior à decisão final do processo no âmbito do qual as medidas foram aplicadas.
A data da prática do facto objecto de condenação em pena de prisão comprova-se pela própria decisão condenatória (pelos factos nela assentes).
Saber se ele é anterior à decisão final do processo no âmbito do qual o arguido sofreu medidas processuais privativas da liberdade verifica-se pela certificação ou da data em que foi proferida a decisão final no processo em que as medidas foram aplicadas ou de que, nesse processo, simplesmente ainda não foi proferida decisão final.
Também é o processo no âmbito do qual o arguido sofreu medidas processuais privativas da liberdade que certificará a duração do tempo de privação de liberdade sofrido pelo arguido, em razão de medidas processuais, e se ele já foi descontado, por inteiro ou parcialmente, nesse processo (o que pressupõe que, nesse processo, já tenha sido proferida decisão final condenatória, transitada) ou se, pelo contrário, não foi objecto de desconto (o que ocorrerá quando, nesse processo, ainda não foi proferida decisão final ou quando, tendo embora já sido proferido decisão final, esta, pela sua natureza, não permitiu o desconto).
E são esses os elementos que possibilitam a decisão sobre o desconto no processo em que o arguido tenha pena de prisão a cumprir por facto anterior à decisão final do processo no âmbito do qual tenha sido sujeito a medidas processuais privativas de liberdade.
Como o desconto só pode ser efectuado uma vez, três hipóteses são configuráveis[29].
Ou o arguido já beneficiou do desconto, por inteiro, no processo no âmbito do qual foi sujeito a medidas processuais privativas de liberdade, nada havendo a descontar no processo distinto.
Ou o arguido apenas beneficiou do desconto parcial, no processo no âmbito do qual foi sujeito a medidas processuais privativas da liberdade, e há a descontar o “tempo sobrante” (o que ainda não foi descontado) no processo distinto.
Ou o arguido não beneficiou do desconto no processo no âmbito do qual foi sujeito a medidas processuais privativas de liberdade – quer porque aí já foi proferida decisão final e não houve lugar ao desconto quer porque o processo se encontra em fase anterior à decisão final – e o desconto deve ser efectuado no processo distinto.
16. Seja qual for a posição que se adopte quanto à natureza jurídica do desconto – caso especial de determinação da pena ou regra legal de execução da pena [30] –, mesmo sendo ele obrigatório e legalmente pré-determinado, justifica-se plenamente o tratamento sistemático do instituto do desconto no quadro da determinação da pena porque o desconto transforma o quantum da pena a cumprir; embora a pena, na sua espécie e gravidade esteja definitivamente fixada antes de o tribunal considerar a questão do desconto, o que é certo é que a gravidade da pena a cumprir é também determinada pela decisão da questão do desconto[31].
Tudo leva, assim, a que o desconto – mesmo quando legalmente pré-determinado – deva ser sempre mencionado na sentença condenatória[32].
Nos casos em que o desconto a efectuar decorra de detenção, prisão preventiva ou obrigação de permanência na habitação sofridas pelo arguido em processo distinto, as, eventuais, dificuldades ou demoras na recolha dos elementos necessários à sua comprovação e determinação, poderão, frequentemente, conduzir a que o desconto não seja mencionado na sentença condenatória.
A ser assim, o desconto deve ser ordenado em decisão judicial posterior, nomeadamente, no momento da homologação do cômputo da pena[33] ou, mesmo, mais tarde, rectificando-se, então, a anterior contagem.

IV
Nestes termos, acorda-se no pleno das secções criminais do Supremo Tribunal de Justiça em, no provimento ao recurso, fixar a seguinte jurisprudência:

 «Verificada a condição do segmento final do artigo 80.º, n.º 1, do Código Penal – de o facto por que o arguido for condenado em pena de prisão num processo ser anterior à decisão final de outro processo, no âmbito do qual o arguido foi sujeito a detenção, a prisão preventiva ou a obrigação de permanência na habitação –, o desconto dessas medidas no cumprimento da pena deve ser ordenado sem aguardar que, no processo no âmbito do qual as medidas foram aplicadas, seja proferida decisão final ou esta se torne definitiva.»
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Em consequência, ordena-se que, oportunamente, o processo seja remetido ao Tribunal da Relação de Lisboa para que profira nova decisão, em conformidade com a jurisprudência fixada – artigo 445.º do Código de Processo Penal.
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Sem tributação.
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Cumpra-se o disposto no artigo 444.º, n.º 1, do Código de Processo Penal.
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Supremo Tribunal de Justiça, 20 de Outubro de 2011

Isabel Pais Martins (Relatora)
Manuel Braz
Pereira Madeira
Carmona da Mota
Santos Carvalho
Henriques Gaspar
Rodrigues da Costa
Santos Monteiro
Arménio Sottomayor
Santos Cabral
Oliveira Mendes
Souto de Moura
Maia Costa
Pires da Graça
Raul Borges
Noronha Nascimento (Presidente)

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«[1] Leia-se aqui também, e igualmente no restante texto destas conclusões, prisão preventiva/detenção/obrigação de permanência na habitação.»
[2] Assim, Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, Editorial Notícias, 1993, p. 299.

[3] Segundo a formulação constante do Anteprojecto de Revisão do Código Penal de 1987, enquanto a prisão preventiva seria descontada por inteiro no cumprimento da pena (n.º 1 do artigo 80.º), estabelecia o n.º 3 do artigo 80.º que “cada período de 2 dias de obrigação de permanência na habitação, sofrida pelo arguido, equivale a 1 dia de prisão preventiva, para efeitos de desconto na pena que lhe for aplicada”. O, então, Procurador-Geral da República manifestou algumas reticências quanto à equivalência estabelecida nesse n.º 3, por contrária à solução do Código de Processo Penal em que 1 dia de obrigação de permanência na habitação equivale a 1 dia de prisão preventiva (artigo 218.º, n.º 3). Face a esta observação, a Comissão de Revisão eliminou o referido n.º 3, passando o n.º 1 a ter a seguinte redacção: “1 – A prisão preventiva e a obrigação de permanência na habitação sofridas pelo arguido no processo em que vier a ser condenado são descontadas no cumprimento da pena que lhe for aplicada.” Neste ponto, cfr. Acta n.º 9, de 30 de Maio de 1989, Actas e projecto da Comissão de Revisão, Rei dos Livros, pp. 85-86.
Tendo em conta a previsão da detenção no Código de Processo Penal, foi proposto que a figura fosse também valorizada no âmbito do artigo 80.º, n.º 1, tendo a Comissão aprovado a seguinte redacção: «1 – A detenção, a prisão preventiva e a obrigação de permanência na habitação sofridas …». Neste ponto, cfr. Acta n.º 16, de 21 de Setembro de 1989, Actas e projecto da Comissão de Revisão, Rei dos Livros, p. 161.
  
[4] Com abandono da solução do Projecto de 1963, do desconto equitativo, prevista no artigo 93.º, segundo o qual, “a prisão preventiva ou outra privação de liberdade sofrida pelo arguido, por causa de um facto por que venha a ser condenado, será tomada em conta na respectiva decisão de forma equitativa, prevendo o respectivo § 1.º que “se a condenação for, porém, em prisão, descontar-se-á nela o tempo que a prisão preventiva ou privação de liberdade sofrida tiver durado, salvo se isto beneficiar de forma injusta o réu”. Solução que, segundo o Autor do Projecto, atendia, por um lado, à situação do delinquente anterior à condenação, mas por outro lado não era rígida, permitindo diminuir a injustiça a que pode dar lugar toda a prisão preventiva, segundo o princípio fundamental de que “qualquer efeito já sofrido pelo delinquente deve ser considerado na sentença posterior não de forma automática, mas de forma equitativa”, destinando-se a ressalva contida na parte final do § 1.º a acautelar os casos em que o desconto beneficiasse de forma injusta o réu, como, por exemplo, os réus que demoram o julgamento (hipótese observada por Maia Gonçalves). Cfr., neste ponto, Acta da 29.ª Sessão da Comissão Revisora do Código Penal, de 20 de Abril de 1964.       
[5] Neste sentido, Figueiredo Dias, ob. e loc. cit.
[6] cfr. Acta da 29.ª Sessão, já anteriormente referida.
[7] Cfr. Acta n.º 42, de 30 de Outubro de 1990, loc. cit, p. 478.
[8] Como se colhe em Figueiredo Dias, ob. cit, na nota 122, p. 299, referindo a posição de Romano, e em Hans-Heinrich Jescheck, Tratado de Derecho Penal, Parte Geral, tradução e adições de Direito espanhol por S. Mir Puig e F. Muñoz Conde, volume segundo, Bosch, Casa Editorial, S. A., justamente nas adições de Direito espanhol ao § 84, p. 1227, destacando-se a posição de Casabó.
[9] Direito Penal Português, Parte Geral, III, Verbo, 1999, p. 178.
[10] Cfr. Diário da Assembleia da República, II Série-A – Número 109, Suplemento, de 12 de Julho de 2007.
[11] «A revisão do Código Penal: Alterações ao sistema sancionatório relativo às pessoas singulares», Revista do Cej, Jornadas sobre a revisão do Código Penal, 1.º Semestre 2008, Número 8 (Especial), pp. 15-40.
[12] Como observa Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal, 2.ª edição actualizada, Universidade Católica Editora, anotação 7. ao artigo 80.º, p. 292.  
[13] Código Penal Português, Anotado e Comentado, 18.ª edição, Almedina, anotação 2 ao artigo 80.º, pp. 317-318.
[14] «O novo quadro sancionatório das pessoas singulares», A Reforma do Sistema Penal de 2007, Garantias e Eficácia, Coimbra Editora, 2008, p. 118.
[15] Salvaguardadas as diferenças de redacção, a mesma razão de ser está subjacente ao limite temporal estabelecido no artigo 58.º, n.º 1, do Código Penal espanhol de 1995, do seguinte teor: «O tempo de privação de liberdade sofrido preventivamente descontar-se-á na sua totalidade no cumprimento da pena ou penas impostas na causa em que dita privação de liberdade tenha sido imposta ou, na sua falta, das que poderiam impor-se contra o réu noutras, sempre que tenham tido por objecto factos anteriores ao ingresso na prisão.» Informam  Gonzalo Rodriguez Mourullo et alli, Comentarios al Codigo Penal, Editorial Civitas, S. A., em anotação ao artigo 58.º, pp. 245-247, que a excepção ou limitação prevista no último inciso do artigo 58.º, n.º 1, de que só se desconte o tempo de privação de liberdade sofrido preventivamente noutras causas por factos anteriores ao ingresso na prisão tem o sentido de evitar o desconto de privação de liberdade anteriormente sofrido em causas posteriores porque isso poderia equivaler a uma compensação em pena futura como se de um convite a delinquir se tratasse. E que, nessa direcção, o Tribunal Supremo de Espanha já havia assinalado que o desconto do tempo de prisão preventiva sofrido noutra causa devia limitar-se a que as causas tivessem estado em coincidente tramitação, de forma a não gerar, a quem tivesse a seu favor um tempo de prisão preventiva sobrante «um crédito ou saldo positivo de dias por conta de um futuro crime, o que repugna à lógica e aos fins preventivos da pena» (vid. SSTS 30.10.92 e 29.6.93).  


[16] Sem preocupação de um elenco esgotante, não consideramos, v. g., a hipótese de amnistia do crime pelo qual o arguido foi sujeito às medidas de coacção.
[17] As decisões de arquivamento em caso de dispensa de pena e as decisões de suspensão provisória do processo não são susceptíveis de impugnação (artigos 280.º, n.º 3, 281.º, n.º 5 e 307.º, n.º 2, do Código de Processo Penal).
[18] Loc. cit.p. 119.
[19] Assim, João Baptista Machado, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, 12.ª reimpressão, Almedina, p. 182.
[20] Assim, Figueiredo Dias, ob. cit, p. 297, na consideração, porém, da unidade processual reclamada, ao tempo, pela lei.
[21] Ibidem.
[22] Maria Inmaculada Sánchez Barrios, «La prisión provisional em España. Especial referencia a su procedimiento», Liber Discipolorum para Jorge de Figueiredo Dias, Coimbra Editora, 2003, pp. 1502-1503.
[23] «El processo penal de la presunción de inocência», Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais, Almedina, p. 27 e ss., concretamente, pp. 30-31.
[24] Ibidem.
[25] Loc. cit, p. 37.
[26] Loc. cit., p. 119, abrindo, porém, um espaço para a concordância do arguido que não nos parece nem legalmente nem materialmente fundado.
[27] Comentário do Código Penal, 2.ª edição, Universidade Católica Editora, anotação ao artigo 80.º, concretamente anotação 7., p. 293.
[28] De 11/06/2008, publicado na Colectânea de Jurisprudência, Tomo III/208, pp. 294-296.
[29] Por facilidade de exposição só consideramos a existência de dois processos: o processo em que o arguido foi sujeito a medidas processuais privativas de liberdade e o processo em que o arguido tenha pena de prisão a cumprir por facto praticado anteriormente à decisão do processo no âmbito do qual as medidas foram aplicadas.
[30] Hans-Heinrich Jescheck, ob. cit., p. 1223, defende que o carácter obrigatório do desconto o converte em regra legal de execução da pena. Figueiredo Dias, ob. cit., pp. 298-299, afasta a hipótese de, entre nós,  se considerar o desconto uma mera regra legal de execução da pena, desde logo, por haver hipóteses em que o juiz fará na pena não o desconto pré-determinado na lei mas aquele que lhe parecer “equitativo”. Com efeito, o desconto equitativo estava previsto no n.º 2 do artigo 80.º do Código Penal, na versão primitiva, para a pena de multa de quantia determinada. Agora, prevenindo-se hipóteses de subsistência de penas de multa de quantia determinada, em legislação extravagante, há que atender à norma do artigo 8.º do Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de Março: «Se for aplicada pena de multa em quantia ou de prisão e multa em quantia e o desconto a que se refere o artigo 80.º do Código Penal dever incidir sobre a pena de multa, efectuar-se-á o desconto que parecer equitativo.»  

[31] Ibidem.
[32] Assim, v. g., Figueiredo Dias, ob. cit., p. 299; Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal cit., anotação 11. ao artigo 80.º, p. 293.
[33] Como, com a redacção do n.º 4 do artigo 477.º do Código de Processo Penal, introduzida pela Lei n.º 115/2009, de 12 de Outubro, foi, definitivamente esclarecido, embora, assim, já antes se devesse entender por a decisão da liquidação da pena, embora promovida pelo Ministério Público, competir ao juiz e só a ele. Neste sentido, v. g., Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário ao Código de Processo Penal cit., anotação ao artigo 477.º, p. 1241.