Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
373/04.6TBVFR.P2.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: LOPES DO REGO
Descritores: PROPRIEDADE HORIZONTAL
TÍTULO CONSTITUTIVO
USO LEGÍTIMO DA FRACÇÃO
ESTABELECIMENTO COMERCIAL
EMISSÃO DE FUMOS
EMISSÃO DE CHEIROS
RUÍDO
Data do Acordão: 02/13/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - RELAÇÕES JURÍDICAS / FACTOS JURÍDICOS / NEGÓCIOS JURÍDICOS - DIREITOS REAIS / DIREITO DE PROPRIEDADE / PROPRIEDADE HORIZONTAL.
DIREITO COMERCIAL - ESTABELECIMENTO COMERCIAL.
DIREITO CONSTITUCIONAL - DIREITOS E DEVERES ECONÓMICOS.
Doutrina:
- SANDRA PASSINHAS, A Assembleia de Condóminos e o Administrador na Propriedade Horizontal, p. 67.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 236.º, 238.º, 1422.º, N.º2, AL.C).
CÓDIGO COMERCIAL (CCOM): - ARTIGO 230.º.
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA (CRP): - ARTIGOS 58.º, 61.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 22.11.1995 CJ STJ, III, 123, DE 09.12.1999, CJ STJ VII, III, 136, DE 04.12.2008 – PROC. 08B1350- WWW.DGSI.PT ; DE 15.05.2008 – PROC. 08B779 – WWW.DGSI.PT .
-DE 15.5.2008, PROCESSO N.º 08B779, EM WWW.DGSI.PT ;
-DE 30.6.2011, PROCESSO N.º 734/06.6TBA, EM WWW.DGSI.PT .
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ACÓRDÃOS DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO LISBOA:
-DE 01.03.2011, CJ XXXVI, II, 83;
-DE 31.05.2011, CJ XXXVI, III, 109.
Sumário :
1. A expressão estabelecimento comercial, constante do título constitutivo da propriedade horizontal, e definidora do uso legítimo de certa fracção deve ser interpretada conforme o uso corrente da expressão actividade comercial, de mediação e troca de bens e serviços, com exclusão das actividades transformadoras, de cariz industrial, normalmente dotadas de um acrescido impacto ambiental negativo - não abrangendo, em princípio, a actividade de restauração, envolvendo preparação e confecção de refeições para número significativo de clientes, geradora de relevante emissão de cheiros e ruídos, perceptíveis nas demais fracções habitacionais.

2. Na interpretação de tal expressão, delimitadora do tipo de actividades empresariais que é possível exercitar licitamente no imóvel, tem identicamente de se ponderar as condições objectivas da fracção para suportar, sem alterações estruturais no prédio ( sujeitas a indispensável aprovação da assembleia de condóminos) e sem lesão inadmissível dos direitos subjectivos dos restantes condóminos, o seu efeito potencialmente nocivo quanto à normal fruição das restantes fracções autónomas.
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

1 AA, BB e mulher, CC, DD e mulher, EE, FF e GG intentaram contra HH e mulher, II, acção de condenação, na forma ordinária, em que pedem a condenação dos Réus a afectar a fracção de que são proprietários (fracção A) ao fim a que a mesma é destinada – comércio –, cessando a actividade de restauração que nela exercem, abstendo-se de emitir fumos, cheiros e ruídos.

            Alegam para tanto, e em síntese, que o prédio sito na Urbanização ..., em ..., ... está constituído em propriedade horizontal, desde 05/06/1996.

            Na sua fracção ( A) os réus têm a funcionar um estabelecimento de café, snack-bar e restaurante, onde confeccionam refeições. Ora, no título constitutivo da propriedade horizontal consta que a fracção A é destinada a “estabelecimento comercial», pelo que os réus lhe deram um “uso diverso do fim a que é destinada”, o que lhes está legalmente vedado. Ademais, a confecção de tais refeições origina fumos e cheiros intensos, sentidos pelos demais condóminos,  ocorrendo ainda ruídos, barulhos, e até zaragatas, que incomodam os autores.

            Citados, os Réus contestaram, defendendo-se por excepção e por impugnação.

            Por excepção, suscitam a sua ilegitimidade passiva, invocando para tal que o estabelecimento instalado na fracção está a ser explorado por JJ, desde 02/10/2002, na sequência da celebração de “contrato promessa de arrendamento comercial».

            Impugnam ainda grande parte dos factos alegados pelos autores, sustentando que adquiriram, em 22 de Junho de 1998, a fracção “A” à sociedade KK, Lda.. Sempre demonstraram à vendedora que pretendiam instalar na fracção um estabelecimento comercial de café e snack-bar, erigindo inclusivamente essa condição em essencial à concretização do negócio.

            A própria fracção possuía e possui as condições regulamentares para essa instalação, nomeadamente chaminé de saída de cheiros e odores e dois WC - factos esses do conhecimento de todos os adquirentes das fracções autónomas que compõem esse prédio.

            Após a outorga da escritura de compra e venda, foi concedido aos réus, em 24.01.2011, o respectivo alvará de licença de utilização para serviços de restauração ou de bebidas.

            Na fracção, funciona apenas um estabelecimento de café e snack-bar, onde são vendidos produtos do seu comércio. A confecção das refeições ligeiras, servidas no local, não origina fumos ou cheiros, muito menos intensos. O funcionamento do estabelecimento não incomoda os autores, nem os outros condóminos. Não foi dado, sustentam os réus, à fracção “A” fim diferente daquele a que estava destinada no título constitutivo.

            Quanto aos barulhos e ruídos, a admitir-se a sua existência, teriam de ser averiguados por referência aos limites legais – o que não ocorreu.

            Replicaram os autores, respondendo à matéria da excepção da ilegitimidade e suscitando o incidente de intervenção principal provocada, como associado dos réus, de Francisco JJ.

            Foi admitida a intervenção principal provocada deste interessado, o qual apresentou articulado, pugnando pela improcedência da acção, com todas as consequências legais.

            Foi proferido despacho saneador, tendo sido concretamente apreciada a excepção da ilegitimidade dos réus, que foi julgada improcedente.

            O autor GG desistiu do pedido por si formulado, desistência essa que foi judicialmente homologada, tendo sido os réus, nessa parte, absolvidos do pedido.

            Realizou-se a audiência de julgamento, no decurso da qual foi julgada extinta a instância, por inutilidade superveniente da lide, relativamente ao interveniente JJ .

            Os Réus apresentaram articulado superveniente, o qual foi admitido e objecto do contraditório - sendo proferido despacho em que foi determinado o aditamento de novos factos à factualidade assente e à base instrutória .

            Finda a audiência, foi proferida sentença do seguinte teor:

 “ Nestes termos, julgo procedente a presente acção e, por via disso, condeno os réus HH e mulher II a cessarem a actividade que é exercida na fracção urbana de que são proprietários (fracção “A”, do prédio sito na Urbanização ..., …, ..., ..., inscrito na matriz sob o art. …º e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º …) e, por consequência, a absterem-se de emitir fumos, cheiros, barulhos e ruídos decorrentes dessa actividade, bem como os condeno a, em utilizando a fracção ou em permitindo a sua utilização, a afectarem ao fim a que é destinada (comércio).

            2. Inconformados, os RR apelaram, tendo entretanto o A. FF desistido do pedido.

    A Relação julgou o recurso improcedente, começando por fixar a seguinte matéria de facto:

                        1. Os 1º, 2º, 3º, 4º e 5º autores são donos das fracções autónomas identificadas pelas letras “…”, “…”, “…”, “…” e “…”, respectivamente, do prédio sito na Urbanização ..., …, freguesia de ..., concelho de ... ..., inscrito na matriz sob o art. …º e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º …. (A)

                        2. Os réus são donos da fracção autónoma designada pela letra “A” do prédio descrito em A). (B)

                        3. Por escritura pública celebrada em 05/06/1996, no 1º Cartório Notarial de ..., foi o prédio descrito em A) constituído em propriedade horizontal (documento de fls. 41 a 49, que se dá por reproduzido). (C)

                        4. Na escritura referida em C) foi declarado que a fracção autónoma identificada pela letra “A” era composta por estabelecimento comercial. (D)

                        5. Os Réus, aquando da compra da fracção referida em B), demonstraram à vendedora que pretendiam instalar na mesma um estabelecimento de café e snack-bar e estabeleceram tal instalação como condição essencial para a concretização da compra. (E)

                        6. A fracção referida em B) possui chaminé e dois quartos de banho. (F)

                        7. Os factos referidos em E) e F) eram do conhecimento dos Autores. (G)

                        8. Em 24/01/2001 a Câmara Municipal de ... concedeu ao Réu marido alvará de licença de utilização para serviços de restauração ou de bebidas (documento de fls. 120 que se dá por reproduzido). (H)

                        9. Por acordo escrito datado de 02/10/2002, os Réus prometeram ceder ao interveniente, que prometeu aceitar, o gozo da fracção referida em B) e do recheio da mesma, para o exercício da actividade de café e restauração, pelo prazo de um ano e mediante o pagamento da quantia mensal de 500 euros (documento de fls. 121 a 123 que se dá por reproduzido). (I)

                        10. No estabelecimento instalado na fracção referida em B) confeccionam-se tostas mistas, hamburgers, cachorros, francesinhas e sanduíches. (J)

                        11. Na fracção descrita em B) os Réus têm a funcionar um estabelecimento de café, snack-bar e restaurante. (1º)

                        12. Nesse estabelecimento os réus vendem diariamente produtos confeccionados no estabelecimento. (2º)

                        13. Aí confeccionam feijoada, assados, arroz de cabidela e papas de sarrabulho. (3º)

                        14. A confecção de tais refeições origina cheiros e fumos intensos, sendo aqueles cheiros sentidos, pelo menos, na fracção D. (4º)

                        15. A actividade desenvolvida na fracção A provoca barulhos. (5º)

                        16. Os cheiros e ruídos causam incómodo na fracção D, propriedade de AA. (7º)

                        17. A fracção referida em B) está equipada com sistema de exaustão de fumos e chaminé. (9º)

                        18. O interveniente JJ que, até 15 de Agosto de 2010, explorou o estabelecimento, denunciou o contrato de arrendamento existente com o ora Réu, tendo entregue o estabelecimento nessa data. (ponto 1º do art. superv., considerado assente a fls. 403 e 404)

                        19. À data da inspecção ao local (06/07/2010) quem se encontrava a explorar o estabelecimento era o interveniente e não o Réu. (ponto 3º do art. superv., considerado assente a fls. 403 e 404)

                        20. Por força dessa denúncia do contrato, até então existente, o estabelecimento passou a ser explorado, desde o dia 01 de Setembro de 2010, por outra(s) pessoa(s), que não JJ. (12º)

                        21. Com a mudança na exploração do estabelecimento, houve melhoria na higiene do mesmo. (13º)

                        22. O Réu propôs, quer em assembleia de condóminos, quer posteriormente por carta enviada à administração do condomínio, a colocação de um tubo de exaustão no exterior do edifício. (ponto 6º do art. superveniente., considerado assente a fls. 403 e 404)

                        23. Em virtude da impossibilidade de colocação desse tubo no interior da chaminé. (ponto 7º do art. superveniente., considerado assente a fls. 403 e 404).


-

            3. Passando a apreciar o mérito da apelação, considerou a Relação no acórdão recorrido:

                        No caso concreto, resulta dos factos provados que o título constitutivo da propriedade horizontal prevê o fim a que se destina a fracção “A“ : estabelecimento comercial ( ponto 1, 2, 3, 4 dos factos provados ).

                        A eficácia real do título constitutivo, no caso concreto, na parte referente ao fim a que se encontra afecta a fracção está condicionada ao conceito de “ estabelecimento comercial “, sem concretização de qualquer actividade, mas desde que se possa enquadrar no âmbito daquele conceito.

                        Nas conclusões de recurso, sob os pontos 1 a 6, os apelantes discordam do critério seguido na sentença para interpretar o conceito de “estabelecimento comercial”, por defenderem o conceito de comércio do ponto de vista normativo, por apelo ao critério do art. 230º do Código Comercial.

                        Neste contexto, cumpre apurar o significado que deve ser atribuído ao conceito “ estabelecimento comercial “, contido no título constitutivo da propriedade horizontal.

                        A doutrina[1] e a jurisprudência[2] têm defendido que o título constitutivo da propriedade horizontal deve ser interpretado de acordo com o significado corrente das expressões nele usadas, para um declaratário normal e de acordo com o sentido normal e económico do conceito – art. 236º e 238º CC

                        Nos casos em que do título constitutivo da propriedade horizontal consta que uma fracção está afecta a “ estabelecimento comercial “, a declaração tem de valer com um sentido que tenha um mínimo de correspondência no texto do respectivo documento e na falta de outro elemento deve interpretar-se a expressão “ estabelecimento comercial “ com o sentido normal e económico[3].  

                        Com efeito, o conceito de actividade comercial pode ser entendido num duplo sentido: jurídico e económico.

                        Em sentido jurídico englobar-se-ão todos os actos ou actividades objectivamente comerciais, ou seja, considerados como tal pela lei comercial – art. 230º Cod. Comercial ( intermediação nas trocas, revendas, prestação de serviços, actividades industrial-transformadoras, operações de bancos seguros ).

                        A noção económica e vulgar de comércio baseia-se na permuta, embora indirecta e restrita à aquisição de mercadorias e à sua revenda com intuito especulativo, ou seja, à função de intermediário entre a produção e o consumo.

                        Como contraponto surge a actividade industrial, actividade criadora, de produção extractiva ou de transformação, destinada à produção de riqueza.

                        A noção de comércio não abrange a actividade industrial, de produção e transformação de mercadorias.

                        A jurisprudência tem afastado a aplicação de outros critérios para interpretar o conceito, como se anota na sentença recorrida, como sejam as classificações das actividades económicas ou a atribuição de licenças camarárias para o exercício da actividade, porque tais critérios visam a tutela de interesses diferentes, que não estão relacionados com a tutela do direito de propriedade

                        A sentença recorrida seguiu este critério de interpretação, afastando a aplicação do critério previsto no art. 230º Código Comercial, o que não merece censura.

                        Os apelantes defendem, nas conclusões de recurso sob os pontos 7 a 10, que mesmo utilizando o conceito normal e corrente de comércio, tratando-se o prédio, em causa, de um edifício com fracções afectas a habitação nos andares superiores, ao utilizar-se o termo “Estabelecimento Comercial” para os andares inferiores, pretende-se somente diferenciar os dois tipos de afectação (habitação/comércio) e não restringir de forma específica o uso dessas fracções à mera troca de bens e serviços.

                        A interpretação do título constitutivo sugerida pelos apelantes não tem qualquer suporte no texto, sendo esse um dos critérios a atender, como resulta do disposto no art. 238º/1 CC. Acresce que os apelantes não alegaram que no acto de celebração da escritura pública de constituição da propriedade horizontal foi esse o sentido interpretativo atribuído à expressão, motivo pelo qual não se fez prova de tal matéria e por isso, não se pode atender a tal argumento na interpretação do conceito.

                        Consideram, ainda, os apelantes que não foi dado à fracção um fim distinto daquele que está previsto no título.

                         Como se referiu no Ac. STJ 04.12.2008 “ o fim a que uma fracção autónoma (...) é destinada deve aferir-se pelo declarado expressamente no título constitutivo da propriedade horizontal; na falta de tal declaração afere-se das características internas da fracção autónoma, das características do prédio de que a fracção faz parte e das características da zona urbana em que o prédio se situa “ ( Proc. 08B1350 – www.dgsi.pt )

                        Como resulta dos factos provados, a actividade desenvolvida na fracção “A“ – actividade de restauração - não se enquadra no conceito de exercício da actividade comercial, pois não representa uma actividade baseada na permuta e restrita à aquisição de mercadorias e à sua revenda tendo em vista o lucro. Os bens transaccionados, por norma, não são objecto de revenda no estado em que foram adquiridos, pois as refeições servidas, são confeccionadas no próprio estabelecimento, sendo certo que acresce à prestação o serviço executado ( pontos 10, 12 e 13 dos factos provados ).

                        O uso que se faz do espaço associa-se mais a um espaço de restauração, lazer e lúdico, de prestação de serviços, no qual se confeccionam refeições, transformando os alimentos e se servem refeições, ou se confeccionam refeições mais ligeiras e se presta o serviço inerente, actividade esta que abrange a produção e transformação de mercadorias e por isso, representa uma actividade industrial.

                        As características físicas do espaço – dispõe de uma chaminé e de duas casas de banho -, a que se reportam os apelantes no ponto 11 das conclusões de recurso, não permitem concluir pela aptidão do espaço para o exercício da actividade de restauração.  

                        Desde logo, provou-se que a actividade exercida no espaço origina cheiros e fumos intensos, que se sentem pelo menos na fracção D, o que revela que apesar de dispor de uma chaminé, tal obra não foi concebida para garantir o funcionamento do espaço em condições de salubridade, como café, snack-bar ou restaurante ( ponto 6 ). 

                         A fracção “A “ não estava preparada para tal tipo de actividade, o que levou os apelantes a realizarem obras ( sendo certo que não se apurou a natureza das obras realizadas ), pois só assim, se compreende que se encontre instalado um restaurante, quando a fracção não dispõe de cozinha, copa, despensa ou armazém.

                        Alguém que quisesse contratar o uso da fracção “A “, sempre saberia que ela não comportava manifestamente o destino que, no caso, lhe foi dado, porque o espaço físico não está preparado para o exercício dessa actividade, nem consta que o condomínio tenha autorizado a realização de obras estruturais na fracção.

                        Resulta do título constitutivo da propriedade horizontal que a fracção integra-se num prédio, com fracções para habitação, facto que os apelantes não ignoravam e que necessariamente causa restrições acrescidas no uso das fracções que não se destinam a habitação.

                        Os apelantes referem, ainda, que resulta provado que aquando da aquisição da fracção estabeleceram como condição essencial do negócio, a instalação na mesma de um estabelecimento de café, snack-bar, o que tudo releva para integrar o conceito de “ estabelecimento comercial “ que consta do título constitutivo da propriedade horizontal ( ponto 5 dos factos provados ).

                        Contudo, este argumento não releva, na medida em que os Autores figuram como terceiros na relação contratual estabelecida entre os apelantes e vendedor da fracção e por isso, não são oponíveis aos condóminos as circunstâncias em que foi celebrado o contrato. Os apelantes apenas podem exigir junto do vendedor a responsabilidade por eventuais vícios na celebração do contrato.

(…)

                        A eficácia real do título constitutivo, no caso concreto, na parte referente ao fim a que se encontra afecta a fracção está condicionada ao conceito de “ estabelecimento comercial “, sem concretização de qualquer actividade, mas desde que se possa enquadrar no âmbito daquele conceito.

                        O regime especifico da propriedade horizontal e razões de ordem pública impõem a observância pelos condóminos do fim a que estão afectas as diversas fracções e por isso, não é indiferente o uso que os condóminos façam da fracção que lhes pertence em propriedade, não podem de forma indiscriminada e de acordo com os seus interesses individuais afectar o uso das fracções a actividades distintas daquelas que se mostram previstas no título constitutivo da propriedade horizontal.

                        O facto dos apelantes disporem de licença camarária para o exercício da actividade, como se observa no ponto 18 das conclusões de recurso, não justifica o uso da fracção para fim distinto do previsto no título.

                        Desde logo, como se começou por observar, é o título constitutivo da propriedade horizontal que estabelece o fim a que se destina a fracção.

                        O licenciamento administrativo pela autoridade competente para o exercício de determinada actividade apenas significa que pode ser exercida em determinado local e período temporal, pautando-se por critérios que visam a prossecução de interesses públicos. O licenciamento dos estabelecimentos comerciais constitui um condicionamento administrativo ao exercício da actividade comercial e visa garantir as condições mínimas do seu funcionamento, em ordem a salvaguardar os interesses dos particulares.

                        Esta formalidade pauta-se por critérios que não visam a tutela dos direitos de propriedade, em que assenta o regime da propriedade horizontal e por isso, a atribuição de licença camarária não justifica a utilização da fracção para fim diferente do previsto no título constitutivo de propriedade horizontal.

                        Neste contexto, para um declaratário normal a expressão “ estabelecimento comercial “ utilizada no título constitutivo da propriedade horizontal, apenas podia ter o sentido vulgar e corrente apontado - actividade baseada na permuta e restrita à aquisição de mercadorias e à sua revenda tendo em vista o lucro e por isso, não engloba a actividade de restauração.

                        Conclui-se, assim, que a actividade exercida na fracção “A“ não está contemplada no título constitutivo da propriedade horizontal, por não revestir a natureza de actividade comercial, única que se integra no conceito amplo de “ estabelecimento comercial.”

                        Desta forma, a sentença não merece censura, quando concluiu que foi dado à fracção um fim diverso daquele que consta do título, com fundamento no art. 1422º / 2 c) CC.


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                        Nas conclusões de recurso sob os pontos 20 a 24 insurgem-se os apelantes contra a decisão, no segmento que determinou a cessação da actividade e por consequência a absterem-se de emitir fumos, cheiros, barulhos e ruídos decorrentes dessa actividade. Alegam para o efeito, que estão impedidos, por oposição dos condóminos, de realizar obras que permitam proceder à extracção de fumos e cheiros e os barulhos e ruídos não podem ser tidos em conta, porque não resulta provado que ultrapassam os limites legalmente permitidos.

                        Analisados os factos provados verifica-se que se provou que o réu propôs, quer em assembleia de condóminos, quer posteriormente por carta enviada à administração do condomínio, a colocação de um tubo de exaustão no exterior do edifício em virtude da impossibilidade de colocação desse tubo no interior da chaminé ( pontos 22 e 23 dos factos provados ).

                        Não se provou qual foi o resultado destas propostas e sobretudo, não se provou que os Autores tomaram qualquer posição em relação a esta questão, motivo pelo qual não se pode afirmar que os apelantes não executaram as obras por oposição dos Autores ou demais condóminos.

                        Acresce referir que a questão nuclear da acção não reside na eliminação dos fumos e cheiros, mas na cessação da actividade que causa esses fumos e cheiros, porque consubstancia o uso da fracção para fim distinto daquele que resulta do título. Os fumos e cheiros são uma consequência dessa actividade, como aliás se observou na sentença em recurso.

                        No que concerne à questão do ruído, resulta dos factos provados que a actividade desenvolvida na fracção “A” provoca barulhos e os cheiros e ruídos causam incómodos na fracção “D”, propriedade de AA ( pontos 15 e 16 dos factos provados ).

                        Verifica-se, com efeito, que no âmbito do processo não foi realizada qualquer perícia com o objecto de apurar o nível de ruído, porque nenhuma das partes o solicitou. De todo o modo, recaía sobre os apelantes o ónus de alegação e prova, enquanto factos impeditivos do direito dos Autores, ou seja, que os ruídos ou barulho existentes na fracção “A”, não ultrapassavam os limites previstos na lei, factos que os apelantes não alegaram e como tal não provaram ( art. 342º/2 CC ).

                        Contudo, os argumentos já expostos nos parágrafos anteriores a respeito do uso da fracção, são de igual modo válidos para esta questão, na medida em que os ruídos são uma consequência do uso indevido da fracção e por isso, se determinou na sentença a cessação da actividade e como consequência os ruídos ou barulhos que ali se produzem.

                        Desta forma, independentemente de se apurar se o nível de ruído está em conformidade com os parâmetros da lei, o que está em causa é o uso indevido da fracção, que não respeita o fim previsto no título e por esse motivo, se justifica a limitação imposta.

                        Conclui-se, assim, que a sentença não merece censura quando reconheceu o direito dos Autores à cessação da actividade desenvolvida pelos apelantes, na fracção “ A “ e em sua consequência à cessação da emissão dos fumos, cheiros e ruídos, porque o seu uso não se mostra conforme com o fim previsto no título constitutivo da propriedade horizontal.

            4. Novamente inconformados, interpuseram os RR. a presente revista, que encerram com as seguintes conclusões, que lhe definem o objecto:

1º.

Em Acórdão datado de 03 de Junho de 2013, acordaram os Juízes Desembargadores do Tribunal da Relação do Porto em julgar improcedente a Apelação intentada pelos Recorrentes, confirmando a Sentença proferida pelo Tribunal Judicial de ....

2º.

No Acórdão supra mencionado os Juízes Desembargadores sufragam também o entendimento de que o que está em causa nos Autos é o uso indevido da fracção, que contraria o constante no título constitutivo da propriedade horizontal: "estabelecimento comercial".

3º.

Porém, os Recorrentes não se podem conformar com este entendimento que segundo crêem parte de uma interpretação restritiva do conceito de "estabelecimento comercial".

4º.

Os Recorrentes aceitam que o termo é dotado de polissemia quer na linguagem corrente quer no próprio direito;

5º.

Todavia, pensam que a expressão "estabelecimento comercial" deve ser interpretada da forma mais ampla e genérica possível e nesse sentido, entendem que o critério que melhor responde a essas exigências é o critério jurídico/normativo.

6°.

O facto de no título constitutivo de propriedade horizontal indicar que o fim a que se destina a fracção dos Recorrentes é "estabelecimento comercial" não significa que a somente a actividade comercial está contemplada.

7°.

Aliás, tal interpretação para além de não encontrar correspondência no artigo 230° do Código Comercial afasta em certa medida o entendimento acolhido na sentença e no acórdão que se recorre.

8º.

Isto porque, por diversas vezes é habitual usar-se a expressão "estabelecimento comercial" para designar uma loja, uma fábrica, um armazém, uma padaria, um restaurante, um café ou um escritório.

9°.

Ora, se o título constitutivo de propriedade horizontal deve ser interpretado de acordo com o significado corrente das expressões nele usadas, para um declaratário normal e de acordo com o sentido normal e económico próprio conceito não se concebe como a expressão "estabelecimento comercial" se limite à mera troca de bens e serviços,

10°.

porque isso não corresponde ao entendimento de um declaratário normal.

11°.

Assim, é de censurar o afastamento da aplicação do critério constante do artigo 230° do Código Comercial.

12°.

Que é o único critério que permite abranger os vários actos ou actividades objectivamente comerciais além de respeitar o preceituado nos artigos 236° e 238° do Código Civil.

13°.

Mais,

14°.

na sentença proferida pelo Tribunal Judicial de ... foram os Recorrentes condenados a cessar a actividade de café, snack-bar e restaurante.

15°.

Sucede que tal condenação viola os artigos 58° e 61° da CRP, isto é, os direitos à iniciativa económica privada e ao trabalho dos Recorrentes.

16°.

Assim, a decisão recorrida viola o disposto nos Artigos 230° do Código Comerciai e os artigos 58° e 61° da Constituição da República Portuguesa,

17°.

pelo que se impõe a procedência do presente Recurso e a revogação da sentença da recorrida.

            5. Saliente-se, desde logo., que é manifestamente improcedente a invocação pelos recorrentes da pretensa violação dos direitos de livre iniciativa económica e do direito ao trabalho, em consequência de as instâncias terem decretado o termo da actividade empresarial de restauração que – na interpretação que fizeram do título constitutivo da propriedade horizontal - era ilegalmente levada a efeito na respectiva fracção, envolvendo prejuízo substancial para os demais condóminos: na verdade, tais direitos de natureza económica e social, constitucionalmente tutelados, não significam que a actividade empresarial e o direito ao trabalho possam ser exercitados irrestritamente em qualquer local, sem nenhuma limitação imposta, quer para defesa do interesse público e ambiental, quer para tutela dos direitos – reais ou de personalidade - dos demais cidadãos.

   A circunstância de, por força, quer das limitações resultantes do título constitutivo da propriedade horizontal, quer da tutela dos direitos de personalidade e vizinhança dos demais proprietários do imóvel, estar vedada a realização, no local, das específicas actividades empresariais lesivas de tais direitos subjectivos em nada afecta aqueles direitos constitucionalmente tutelados. Na verdade, estes podem naturalmente efectivar-se de modo pleno, desde que em local adequado, tendo de se adaptar e moldar aos quadros legalmente definidos – não envolvendo manifestamente tais direitos uma faculdade  absoluta e irrestrita de exercício de quaisquer actividades empresariais ou profissionais em todo e qualquer local , com desconsideração pelos constrangimentos justificáveis e proporcionais, decorrentes da necessidade de harmonizar tais direitos com o respeito pelos direitos subjectivos de terceiros e pelos relevantes interesses públicos envolvidos, nomeadamente no âmbito do ambiente, urbanismo  e salubridade.

   A questão a dirimir na presente revista circunscreve-se, pois, à da correcta interpretação da expressão estabelecimento comercial, utilizada no título constitutivo da propriedade horizontal para delimitar o uso possível da fracção A, pertencente e fruída pelos RR.

   Deverá interpretar-se tal expressão como significando estar legitimado o exercício, em tal fracção, de qualquer actividade empresarial, independentemente da sua natureza, aí cabendo – no dizer dos recorrentes – uma qualquer loja, fábrica, armazém, padaria, restaurante, café ou escritório?

   Ou, pelo contrário, estará correcta a interpretação restritiva seguida pelas instâncias, implicando que – perante a correcta densificação de tal conceito relativamente indeterminado – apenas seria lícito o exercício de actividades económicas ligadas à mera comercialização ( sem envolver transformação industrial) de bens ou serviços?

   Considera-se que a decisão constante do acórdão recorrido não merece, atentos os contornos do caso concreto, qualquer censura.

   Desde logo, pode afirmar-se – como o faz este STJ, por exemplo,  no Ac. de 15/5/08, proferido no P. 08B779, que:

Por comércio tem de entender-se, não o sentido normativo defendido pelo recorrente, mas o sentido vulgar e corrente de mediação nas trocas, coincidente com o seu sentido económico, aquele que um declaratário normal deduz, não sendo relevante para a determinação do destino daquela fracção o facto de se localizar em zona balnear, com maior movimento em férias e fins de semana, bem como a instalação noutra fracção de um café-bar.
II - Assim, naquela fracção do réu pode ser exercitada a actividade de comércio e não qualquer actividade industrial; ora, ao exercer a actividade de restauração, o réu faz da sua fracção um uso indevido, um uso diverso do fim a que se destina, um uso não normal da fracção por contrário ao do título constitutivo de propriedade horizontal - 1422.º, n.º 2, al. c), do CC.
 

   Tal como se afirma também  no Ac. de 30/6/11, proferido pelo STJ no P. 734/06.6TBA:

O conceito de comércio integra a actividade de mediação nas trocas e o de restauração envolve o de produção e de transformação de mercadorias (indústria).

A actividade de restauração deve, assim, ser considerada como uma actividade industrial e não comercial.

Bem se compreendendo a importância da distinção entre prédios (ou fracções) destinados ao exercício da actividade comercial e ao exercício da actividade industrial, no âmbito do direito do urbanismo e da edificação, uma vez que os pressupostos para a utilização de uma e outra finalidade são bem diferentes, designadamente, ao nível da segurança das estruturas ou da protecção ambiental.

O sentido vulgar e normal da expressão “estabelecimento comercial”, constante de um título constitutivo de propriedade horizontal, é o de que a fracção se destina exclusivamente a local de exposição e venda ao público, em geral, de mercadorias, ou seja, ao exercício do comércio..

   A interpretação corrente, previsível e razoável, de tal expressão estabelecimento comercial não é, pois, a proposta pelos recorrentes, facultando irrestritamente o exercício de todas as actividades empresariais na fracção – independentemente da sua provável vocação poluidora e lesiva da vizinhança – mas apenas, conforme decorre do sentido normal e corrente daquele termo ou expressão, a realização de actividades na área da transacção de bens e serviços, geradoras, em regra, de um impacto ambiental negativo muito mais reduzido do que o emergente de actividades de natureza industrial ou de transformação de bens.

   Depois, é ainda necessário e essencial, para interpretar adequadamente aquela expressão utilizada no título, ter em consideração a exacta natureza e dimensão da actividade empresarial exercitada e as condições objectivas da fracção para suportarem, sem alterações estruturais no prédio ( sujeitas a indispensável aprovação da assembleia de condóminos) e sem lesão inadmissível dos direitos subjectivos dos restantes condóminos, o seu efeito potencialmente nocivo quanto à normal fruição das restantes fracções autónomas.

   Ora, no caso dos autos, perante a matéria de facto provada, é manifesto que as características estruturais da fracção dos RR. não permitem adequadamente o exercício de uma actividade de restauração com a amplitude e dimensão da por eles levada a cabo no local, sem que o respectivo e inevitável impacto ambiental negativo, quer no plano do ruído, quer da emissão de cheiros e fumos, perturbe, de forma relevante e inadmissível, os direitos dos demais condóminos, residentes no prédio.

   Na verdade, estamos confrontados com estabelecimento de restauração – café , snack bar e restaurantelicenciado para a capacidade máxima de 105 lugares sentados e 158 de pé ( fls. 101), - onde se confeccionam diariamente refeições elaboradas ( feijoada, assados, arroz de cabidela e papas de sarrabulho), cuja confecção origina natural e inevitavelmente cheiros e fumos intensos que – perante a manifesta insuficiência do sistema de ventilação e exaustão – são sentidos nas fracções habitacionais contíguas, perturbando de modo relevante a sua fruição.

    Ou seja: apesar de a fracção A estar equipada com sistema de exaustão de fumos e chaminé, é manifesta a sua insuficiência para responder adequadamente ao tipo e intensidade da actividade empresarial efectuada no local – facto aliás reconhecido pelos RR. ao proporem aos condóminos a realização de uma inovação estrutural, consistente no colocação de tubo de exaustão no exterior do edifício, pretensão que não terá merecido aprovação da assembleia do condomínio.

    Por outro lado, a dimensão do estabelecimento - e a provável ausência de eficaz isolamento acústico – gera barulhos e ruídos que reforçam a incomodidade nas fracções habitacionais contíguas.

   De toda esta factualidade pode, pois, concluir-se com segurança que a fracção A não está manifestamente dotada das condições estruturais que permitam o exercício de uma actividade de restauração no local, com o âmbito e dimensão da que vem sendo realizada – não sendo os condóminos obrigados a consentir nas inovações construtivas estruturais que tornariam eventualmente mais atenuado o impacto ambiental negativo da actividade empresarial dos RR. E daí que tenha de se interpretar a expressão estabelecimento comercial como envolvendo efectivamente a exclusão do exercício de uma actividade de restauração, envolvendo confecção de refeições, por as condições técnicas e de isolamento e exaustão da fracção não serem conciliáveis – sem lesão dos direitos subjectivos de terceiros – com tal tipo de actividade económica.

            6. Nestes termos e pelos fundamentos apontados nega-se provimento à revista, confirmando inteiramente o acórdão recorrido.

    Custas pelos recorrentes.

Lisboa, 13 de Fevereiro de 2014

Lopes do Rego (Relator)

Orlando Afonso

Távora Victor

__________________________

[1] SANDRA PASSINHAS  A Assembleia de Condóminos e o Administrador na Propriedade Horizontal, ob. cit., pag. 67.
[2] Cfr. Ac. STJ 22.11.1995 CJ STJ, III, 123, Ac. STJ 09.12.1999, CJ STJ VII, III, 136, Ac. STJ 04.12.2008 – Proc. 08B1350- www.dgsi.pt; Ac. STJ 15.05.2008 – Proc. 08B779 – www.dgsi.pt .

[3] Cfr. Ac. STJ 22.11.1995 CJ STJ, III, 123, Ac. STJ 09.12.1999, CJ STJ VII, III, 136, Ac. STJ 04.12.2008 – Proc. 08B1350- www.dgsi.pt; Ac. STJ 15.05.2008 – Proc. 08B779 – www.dgsi.pt, Ac. Rel. Lisboa 01.03.2011, CJ XXXVI, II, 83 e Ac. Rel. Lisboa 31.05.2011, CJ XXXVI, III, 109.