Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
187/12.0TBMGD.G1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: OLINDO GERALDES
Descritores: ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA
PAGAMENTO INDEVIDO
CUMPRIMENTO
CESSÃO DE CRÉDITOS
REPETIÇÃO DO INDEVIDO
Data do Acordão: 01/19/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / FONTES DAS OBRIGAÇÕES / ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA / TRANSMISSÃO DE CRÉDITOS / CESSÃO DE CRÉDITOS.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - PROCESSO DE DECLARAÇÃO / RECURSOS / ÓNUS DO RECORRENTE.
Doutrina:
- ALMEIDA COSTA, Direito das Obrigações, 3.ª edição, 1979, 335.
- ANTUNES VARELA, Das Obrigações em Geral, I, 10.ª edição, 2004, 480 e ss..
- L. MENEZES LEITÃO, O Enriquecimento sem Causa no Direito Civil, 1996, 494.
- MENEZES CORDEIRO, Direito das Obrigações, 2.º, 2001, 45, 55.
- PEREIRA COELHO, O Enriquecimento e o Dano, 2.ª reimpressão, 2003, 36.
- PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, “Código Civil” Anotado, Volume I, 2.ª edição, 1979, 407.
- RODRIGUES BASTOS, Das Obrigações em Geral, II, 1972, 13.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 473.º, 474.º, 476.º, 583.º, N.º1.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGO 639.º, N.º 2, ALÍNEAS B) E C), E N.º3.
Sumário :
I - A ação de enriquecimento sem causa tem por fim remover o enriquecimento do património do enriquecido, transferindo-o para o património do empobrecido.

II - O pagamento indevido (condictio indebiti), previsto no art. 476.º do CC, constitui um caso particular da figura geral do enriquecimento sem causa e onde cabe o cumprimento da obrigação feito a terceiro sem eficácia liberatória.

III - Perante a inexistência da obrigação do devedor, por efeito da cessão de créditos, no momento do pagamento, este redunda numa prestação feita a terceiros, e sem efeito liberatório.

IV - Sendo indevida a prestação, pode ser repetida nos termos do art. 476.º, n.º 2, do CC.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

I – RELATÓRIO

O Município de ..... instaurou, em 20 de julho de 2012, na então Comarca do Mogadouro (Juízo de Competência Genérica do Mogadouro, Comarca de Bragança), contra AA, Lda., ação declarativa, sob a forma de processo ordinário, pedindo que a Ré fosse condenada a restituir-lhe a quantia de € 42 891,98, acrescida de juros, à taxa legal, desde 1 de maio de 2012 até integral restituição.

Para tanto, alegou, em síntese, que, por efeito de uma empreitada, ficou devedora de BB, Lda., tendo esta, em 12 de julho de 2011, comunicado a cessão de créditos a favor de CC – Instituição Financeira de Crédito, S.A., que o Banco confirmou; no âmbito da execução comum n.º 47/12.4TBMGD, movida pela R. contra AA, Lda., o A. foi notificado da penhora do crédito a favor da AA, Lda., até ao montante de € 42 891,98; por lapso dos seus serviços, e não se apercebendo que o crédito já não era da AA, Lda., pagou à Exequente a quantia de € 42 891,98; depois de se aperceber que o crédito pertencia já ao CC, diligenciou pela sua devolução, embora sem sucesso.

Contestou a R., por exceção e impugnação, concluindo pela improcedência da ação.

Replicou o A., concluindo como na petição inicial.

Foi proferido despacho saneador, julgando-se improcedentes as alegadas exceções, e identificado o objeto do litígio e enunciado os temas da prova.

Realizada a audiência de discussão e julgamento, foi proferida, em 24 de março de 2015, sentença, a julgar a ação totalmente improcedente.

Inconformado com a sentença, o Autor apelou para o Tribunal da Relação de Guimarães, que, por acórdão de 2 de junho de 2016, dando provimento ao recurso, condenou a Ré a restituir ao Autor a quantia de € 42 891,92, acrescida de juros à taxa legal, a contar de 1 de maio de 2012 até integral restituição.

Inconformada, a Ré recorreu para o Supremo Tribunal de Justiça e, tendo alegado, formulou essencialmente as conclusões:

a) Não se verificam os requisitos consignados no art. 473.º do CC.

b) A R. não se locupletou à custa do património do A., que na ótica da R. era devido.

c) O A. tinha conhecimento da cessão e não obstante efetuou o pagamento e tal situação não o desculpabiliza.

d) Por má interpretação, de lei e direito, o acórdão recorrido violou o disposto nos arts. 473.º, 474.º e 476.º do CC.

Com a revista, a Recorrente pretende a revogação do acórdão recorrido e sua absolvição do pedido.

Contra-alegou o A., no sentido de ser negado provimento ao recurso.

Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

Neste recurso, está apenas em discussão a verificação do enriquecimento sem causa, por pagamento indevido da prestação.

II – FUNDAMENTAÇÃO

2.1. Pelas instâncias, foram dados como provados, designadamente, os seguintes factos:

1. BB, Lda., dedica-se à atividade de construção civil.

2. No âmbito dessa atividade, prestou serviços, ao A., na obra do Centro .....de ......

3. Essa obra foi a única na qual prestou serviços ao A.

4. Os únicos créditos a receber do A. eram relativos à obra.

5. AA, Lda., emitiu as faturas do preço a receber.

6. Em 12 de julho de 2011, AA, Lda., dirigiu ao A. uma carta, na qual comunicou que, a partir da mesma data, havia cedido ao CC – Instituição Financeira de Crédito, S.A., “o direito de gestão e cobrança de toda” a sua faturação com o A.

7. Nesta missiva, constava ainda que todos os créditos deveriam passar a conter a “cláusula de quitação sub-rogativa: este documento só será considerado liquidado se o seu pagamento for efectuado a CC – Instituição Financeira de Crédito, S.A., que o adquiriu ao abrigo de um Contrato de Factoring. Avenida da ..............., ....–...., Apartado ....., 4104-801 Porto. Tel. ...... Conta bancária: NIB – ................”

8. Na mesma missiva constava também que: a) “Fica entendido que o pagamento de todos os nossos créditos sobre a Vossa Firma, relativa a obra “Centro .....de .....” deverá ser efetuado diretamente àquela Instituição Financeira, ficando a mesma autorizada a proceder à emissão dos respetivos recibos”; b) “Realçamos ainda, que as faturas emitidas a partir de 13.05.2011, conforme listagem em anexo, devem ser desde já ser liquidadas á Instituição atrás mencionada”; c) “De igual modo, todas as questões relacionadas com a regularização de tais documentos ficarão a cargo da CC. Caso exista alguma reclamação a opor à validade ou legitimidade dos créditos por nós emitidos, deverão (…) comunicá-la à CC no prazo de 8 dias”; d) “Estas instruções vigorarão por tempo indeterminado, sendo apenas anuláveis por carta subscrita pela CC e pela nossa Empresa.”

9. Por carta registada, com aviso de receção, de 13 de julho de 2011, a CC comunicou ao A., com referência ao aderente: BB, Lda.: “a) Nesse sentido, entendeu o V. fornecedor acima referido celebrar um contrato de factoring com a CC – Instituição Financeira de Crédito, S.A., nos termos da “Notificação de cessão de créditos” que junto se anexa. b) Conforme resulta da lei e do contrato de factoring, todos os créditos emitidos sobre a V. empresa deverão conter a seguinte cláusula de quitação sub-rogativa: “Este documento só será considerado liquidado se o seu pagamento for efetuado à CC, S.A., que o adquiriu ao abrigo de um contrato de factoring”. c) Assim todos os pagamentos deverão ser-nos feitos diretamente, sendo esta companhia a única entidade legalmente habilitada a proceder à emissão dos respetivos recibos. É neste ponto fundamental a colaboração de V. Ex.ª s, de forma que os objetivos que levaram o vosso fornecedor a recorrer ao serviço de factoring possam ser alcançados”.

10.  O A. aceitou a transmissão da totalidade dos créditos da AA, Lda., para a CC, tendo efetuado alguns pagamentos.

11. A R. foi Exequente na execução comum n.º 47/12.4 TBMGD, que corre termos no Tribunal Judicial do Mogadouro, em que é Executada BB, Lda.

12.  No âmbito dessa execução, o A. foi notificado, em 22/02/2012, pela Solicitadora de Execução, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 856.º do CPC, para a penhora de créditos, presentes e futuros, vencidos e não vencidos, de que fosse devedora à Executada, até ao montante de € 42 891,98, resultante de eventuais créditos, e para, no prazo de dez dias, declarar se o crédito existia, quais as garantias que o acompanhavam, a data do vencimento e bem assim quaisquer outras circunstâncias que pudessem interessar à execução.

13.  Desta notificação constavam ainda as advertências: a) que se nada dissesse, se entendia que reconhecia a existência do crédito nos termos indicados e que este já se encontrava vencido; b) que se faltasse conscientemente à verdade incorria na responsabilidade do litigante de má fé; c) o devedor que não haja contestado é obrigado a depositar a respetiva importância em instituição de crédito à ordem do agente de execução (ver quadro “pagamento”); d) nos termos do n.º 3 do art. 860.º do CPC “não sendo cumprida a obrigação, pode o exequente ou o adquirente exigir a prestação, servindo de título executivo a declaração de reconhecimento do devedor, a notificação efectuada e a falta de declaração ou o título de aquisição do crédito”.

14.  Por lapso dos serviços do A., foi considerado erradamente que, por via da penhora e face aos termos da notificação, esta prevalecia sobre tudo o anteriormente ocorrido entre a AA, Lda., e a CC, por se tratar de uma ordem vinda do Tribunal ou emitida no âmbito de um processo judicial.

15. Os serviços do A. vieram a responder à Solicitadora de Execução, por ofício de 23/02/2012, acusando a existência de quatro faturas da AA, Lda., e a solicitar instruções sobre a forma de proceder à regularização das mesmas.

16. Nessa sequência, a Solicitadora de Execução, por notificação de 05/03/2012, comunicou: “a) Tendo V. Ex.ª reconhecido a existência do crédito resultante da notificação para a penhora (…) e encontrando-se este vencido, ficam pela presente notificados para, no prazo de 10 dias, proceder ao pagamento do valor de € 42.891,98; b) A pedido da Exequente junto envio o NIB para onde poderá efetuar os pagamentos referentes à ordem de penhora: NIB ...............; c) Mais se adverte que nos termos do n.º 3 do art. 860.º do CPC “não sendo cumprida a obrigação, pode o Exequente ou o adquirente exigir a prestação, servindo de título executivo a declaração de reconhecimento do devedor, a notificação efetuada e a falta de declaração ou o título de aquisição do crédito”.

17.  Os serviços do A. efetuaram em 15/03/2012, por transferência bancária, o pagamento da quantia de € 42 891,98, tendo efetuado tal pagamento para a conta indicada pela Solicitadora de Execução, conta que se revelou, mais tarde, ser da Exequente.

18.  Após o pagamento, o A. foi interpelado, por diversas vezes, pelo CC e pela sua representante G....., para os pagamentos que lhe seriam devidos pela cessão de créditos.

19.  Só após estas interpelações, o A. se apercebeu que o pagamento não era devido à R.

20.  Logo após se ter dado conta do engano, o A. efetuou, em 24/04/2012, um requerimento ao processo de execução, no qual explicou a prévia cedência do crédito da Executada AA, Lda., ao CC, juntando cópias das comunicações recebidas relativas à cessão dos créditos e concluindo que o pagamento efetuado havia sido indevido, por o crédito não existir, e requereu a devolução da quantia paga (ainda desconhecendo que a conta para a qual havia efetuado o pagamento não era a conta cliente mas a conta da Exequente).

21.  Por cartas registadas, com aviso de receção de 24/04/2012, o A. deu conhecimento desse requerimento à Solicitadora de Execução, à Exequente e sua mandatária.

22.  A R. não devolveu ao processo de execução a quantia entregue pelo A., assim como não a devolveu diretamente ao A.

23.  A R. era credora de AA, Lda., no referido processo executivo, quando foi realizada a transferência bancária.


***

2.2. Delimitada a matéria de facto, expurgada de redundâncias, importa conhecer do objeto do recurso, definido pelas suas conclusões, e que respeita à questão do enriquecimento sem causa.

Antes, porém, impõe-se observar, como questão prévia, que não existe fundamento legal a obstar ao conhecimento do recurso, nomeadamente por efeito do disposto no art. 639.º, n.º 3, do Código de Processo Civil (CPC), como alega o Recorrido.

Na verdade, as conclusões do recurso, constantes de fls. 369, correspondem, genericamente, às especificações exigidas pelo disposto no art. 639.º, n.º 2, do CPC, nomeadamente nas suas alíneas b) e c), compreendendo-se bem o sentido normativo que a Recorrente entendeu conferir.

De resto, por não ser caso de aplicação do disposto no art. 639.º, n.º 3, do CPC, designadamente por deficiência, nem sequer se sentiu a necessidade do convite ao aperfeiçoamento das conclusões, sendo certo que só o seu incumprimento pode determinar o não conhecimento do recurso na parte afetada.

2.3. O acórdão recorrido, divergindo da sentença, que foi absolutória, concluiu pelo enriquecimento sem causa, condenando a Recorrente a restituir o correspondente valor ao Recorrido, acrescido dos juros de mora legais.

A Recorrente, porém, insurge-se contra tal veredicto, argumentando essencialmente que não se encontra preenchido qualquer um dos requisitos do enriquecimento sem causa e, por consequência, pugnando pela sua absolvição do pedido na ação.

A ação tem por fundamento ou causa de pedir o enriquecimento sem causa, resultante do pagamento de um crédito emergente de faturas, não devido por efeito de uma anterior cessão de créditos.

O art. 473.º do Código Civil (CC), aproveitando o reconhecimento feito pela jurisprudência, consagrou como fonte autónoma de obrigações, o enriquecimento sem causa, o enriquecimento injusto ou de locupletamento à custa alheia. A obrigação de restituir aquilo que se adquiriu sem causa corresponde a uma necessidade moral e social, com vista ao restabelecimento do equilíbrio injustamente quebrado entre patrimónios e que, de outro modo, não era possível obter-se (RODRIGUES BASTOS, Das Obrigações em Geral, II, 1972, pág. 13, e MENEZES CORDEIRO, Direito das Obrigações, 2.º, 2001, pág. 45). Por isso, se atribui à ação de enriquecimento sem causa o fim de remover o enriquecimento do património do enriquecido, transferindo-o ou deslocando-o para o património do empobrecido (PEREIRA COELHO, O Enriquecimento e o Dano, 2.ª reimpressão, 2003, pág. 36).

A obrigação de restituir, fundada no enriquecimento injusto, pressupõe, nos termos do disposto no art. 473.º, n.º 1, do CC, a verificação cumulativa de três requisitos: o enriquecimento de alguém, o enriquecimento sem causa justificativa e ter sido obtido à custa de quem requer a restituição (ANTUNES VARELA, Das Obrigações em Geral, I, 10.ª edição, 2004, págs. 480 e segs.).

Destes requisitos o que levanta mais dificuldades é, sem dúvida, o segundo, sendo certo que a lei não chegou a definir a causa do enriquecimento, embora tenha estabelecido um critério de orientação, nomeadamente no n.º 2 do art. 473.º do CC, prescrevendo que “a obrigação de restituir, por enriquecimento sem causa, tem de modo especial por objeto o que for indevidamente recebido, ou o que for recebido por virtude de uma causa que deixou de existir ou em vista de um efeito que não se verificou”.

A causa do enriquecimento pode resultar do fim imediato da prestação e do fim típico do negócio. Por isso, se a obrigação não existiu ou se o fim do negócio falhou, deixou de haver causa para a prestação e a obrigação resultante do negócio. Por outro lado, carece também de causa a deslocação patrimonial, sempre que a ordenação substancial dos bens aprovada pelo direito a atribua a outro, isto é, que seja substancialmente ilegítima ou injusta (ANTUNES VARELA, ibidem, pág. 487, ALMEIDA COSTA, Direito das Obrigações, 3.ª edição, 1979, pág. 335, e MENEZES CORDEIRO, ibidem, pág. 55).

A falta de causa justificativa pode decorrer da circunstância de nunca ter existido ou, tendo existido, entretanto, se ter perdido.

Esta situação, do desaparecimento posterior da causa, corresponde à tradicional condictio ob causam finitam, tipificada no n.º 2 do art. 473.º do CC, que se caracteriza por alguém ter recebido uma prestação em virtude de uma causa que, entretanto, deixou de existir.

Acresce ainda que o enriquecimento sem causa tem natureza subsidiária (art. 474.º do CC), de modo a poder ser só invocado quando a lei não faculta ao empobrecido qualquer outro meio de compensação ou restituição.

Por outro lado, interessa ainda relevar, no âmbito normativo, o “pagamento indevido” (condictio indebiti) previsto no art. 476.º do CC, considerado como “mero caso particular da figura geral do enriquecimento sem causa” (PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, Volume I, 2.ª edição, 1979, pág. 407).

Uma das hipóteses do “pagamento indevido”, contemplada no art. 476.º, n.º 2, do CC, é o cumprimento da obrigação feito a terceiro sem eficácia liberatória (indevido subjetivo ex latere accipientis), onde se estabelece “uma equiparação entre a situação do indevido objetivo e a situação do indevido subjetivo ex latere accipientis”, sem necessidade de verificação de erro desculpável (L. MENEZES LEITÃO, O Enriquecimento sem Causa no Direito Civil, 1996, pág. 494).

Desenhado o quadro normativo que interessa à boa compreensão do caso, impõe-se confrontar as suas circunstâncias, de modo a verificar da existência, ou não, da situação de enriquecimento sem causa, por pagamento indevido, e, na afirmativa, justificativa da obrigação de restituir.

Já vimos que as instâncias tiveram um entendimento distinto.

Na verdade, resulta dos factos provados que o Recorrido, depois de notificado da penhora do direito de crédito de que BB, Lda., dispunha sobre si e sob as instruções da Agente de Execução, realizou, em 15 de março de 2012, o pagamento da quantia de € 42 891,98, a favor da Recorrente, então Exequente.

Sendo certo que fora constituído um direito de crédito a favor da BB, Lda., por efeito de um contrato de empreitada, no entanto, antes da penhora, nomeadamente em julho de 2011, o Recorrido foi notificado da cessão de créditos, celebrada entre a referida AA, Lda., e CC – Instituição Financeira de Crédito, S.A., cessão de créditos que aceitou.

Tendo o Recorrido, devedor, sido notificado da cessão de créditos, que também aceitou, a mesma produziu efeitos na sua esfera jurídica e, desse modo, passou a ser devedor do cessionário, deixando de ser da cedente (art. 583.º, n.º 1, do CC).

Neste contexto, quando o Recorrido foi notificado da penhora do direito de crédito, na execução movida contra a cedente, nos termos do disposto no art. 856.º do CPC/1961 (correspondente ao 773.º do atual CPC), o direito de crédito, a favor da cedente, já tinha deixado de existir, por antes ter sido transmitido ao cessionário, com eficácia quanto ao devedor.

Podia, é certo, o Recorrido, ao ser notificado da penhora, ter declarado, no prazo legal concedido para o efeito, que o crédito a favor da cedente não existia, nos termos do disposto no art. 856.º do CPC/1961. Mas essa omissão, independentemente da sua causa, não altera que o pagamento feito pelo Recorrido, na sequência da notificação da penhora, tivesse sido indevido, sem com isso, evidentemente, se questionar a reconhecida qualidade de credora da Recorrente, no âmbito da execução. O que releva é, no momento do pagamento, a cedente já não ser credora do Recorrido, independentemente da validade dos trâmites formais seguidos no processo de execução, a coberto dos quais se realizou o pagamento.

Assim, perante a inexistência da obrigação do devedor, por efeito da cessão de créditos, no momento do pagamento, este acabou por redundar numa prestação feita a terceiros, e sem efeito liberatório.   

Nestas circunstâncias, sendo indevida tal prestação, pode ser repetida nos termos do art. 476.º, n.º 2, do CC, sem necessidade da prova do erro desculpável, porque inexigível no caso.

Com esta evidência, é imperativo concluir que, face ao pagamento indevido, que constituiu o depósito da quantia de € 49 891,98, feito pelo Recorrido a favor da Recorrente, estão reunidos todos os pressupostos legais da constituição da obrigação de restituir, designadamente nos termos do disposto nos arts. 473.º e 476.º, n.º 2, do CC.

O Recorrente está, pois, obrigado à restituição, tal como se decidiu no acórdão recorrido.

Consequentemente, conclui-se pela negação da revista.

2.3. Em conclusão, pode extrair-se de mais relevante:

 

I. A ação de enriquecimento sem causa tem por fim remover o enriquecimento do património do enriquecido, transferindo-o para o património do empobrecido.

II. O pagamento indevido (condictio indebiti), previsto no art. 476.º do CC, constitui um caso particular da figura geral do enriquecimento sem causa e onde cabe o cumprimento da obrigação feito a terceiro sem eficácia liberatória.

III. Perante a inexistência da obrigação do devedor, por efeito da cessão de créditos, no momento do pagamento, este redunda numa prestação feita a terceiros, e sem efeito liberatório.

IV. Sendo indevida a prestação, pode ser repetida nos termos do art. 476.º, n.º 2, do Código Civil.

2.4. A Recorrente, ao ficar vencida por decaimento, é responsável pelo pagamento das custas, em conformidade com a regra da causalidade consagrada no art. 527.º, n.º s 1 e 2, do CPC.

III – DECISÃO

Pelo exposto, decide-se:

1) Negar a revista.

2) Condenar a Recorrente (Ré) no pagamento das custas.



Lisboa, 19 de Janeiro de 2017

Olindo Geraldes (Relator)

Nunes Ribeiro

Maria dos Prazeres Pizarro Beleza