Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
70/13.1TYLSB-E.L1.S1
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: MARIA OLINDA GARCIA
Descritores: INSOLVÊNCIA
ADMINISTRADOR DE INSOLVÊNCIA
RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
COMPETÊNCIA MATERIAL
TRIBUNAL DE COMÉRCIO
TRIBUNAL DE COMPETÊNCIA GENÉRICA
Data do Acordão: 03/08/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO FALIMENTAR – MASSA INSOLVENTE E INTERVENIENTES NO PROCESSO / ÓRGÃOS DA INSOLVÊNCIA / ADMINISTRADOR DA INSOLVÊNCIA / EFEITOS DA DECLARAÇÃO DE INSOLVÊNCIA / EFEITOS SOBRE O DEVEDOR E OUTRAS PESSOAS.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DA INSOLVÊNCIA E DA RECUPERAÇÃO DE EMPRESAS (CIRE): - ARTIGOS 59.º E 82.º, N.º 5.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


-DE 16-06-2017, PROCESSO N.º 4559/14.7T8CBR-E.S1.


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-ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES:


-DE 29-11-2011, RELATOR JORGE TEIXEIRA, IN WWW.DGSI.PT.
Sumário :

I. O processo de insolvência apresenta especificidades, quer quanto à sua estrutura quer quanto à sua dinâmica (nomeadamente a diversidade tipológica dos intervenientes processuais e a sua natureza urgente), que justificam a intervenção de um juízo especializado, o qual trará um ganho de eficiência técnica e de harmonização decisória (em casos idênticos), que se traduzem numa melhor administração da justiça (por confronto com um hipotético juízo de competência genérica). Todavia, não deverá bastar uma qualquer conexão temática com a matéria da insolvência para que o juízo de comércio seja chamado a decidir.

II. Numa ação de apreciação da responsabilidade do administrador (por não ter pago as rendas devidas pela arrendatária insolvente), embora a factualidade relevante respeite ao incumprimento de deveres próprios da sua função (nos termos do art.59º do CIRE), a procedência da pretensão indemnizatória depende também da verificação de outros requisitos (os da responsabilidade civil), que não são especificamente de natureza insolvencial, mas sim de direito civil em geral. Compreende-se, assim, que a solução específica estabelecida no art.82º, n.5 do CIRE não possa ser estendida às demais hipóteses de responsabilização do administrador da insolvência, as quais deverão correr nos juízos de competência genérica (onde poderão ser apresentados todos os meios de prova que poderiam ser invocados caso as ações corressem por apenso no juízo de comércio).

Decisão Texto Integral:

Acordam na 6ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça

 

Processo n.70/13.1TYLSB-E.L1

I. RELATÓRIO

1. “AA – Unipessoal, Lda” e BB (sócio único da primeira) intentaram, em 14/1/2016, acção declarativa de condenação contra CC, Administrador de Insolvência, fazendo-o por apenso aos autos de insolvência que correm termos no Tribunal da Comarca de Lisboa – Instância Central de Lisboa – 1.ª Secção do Comércio – J5.

Pediram a condenação do Réu a pagar-lhes a quantia de € 21.923,39, acrescida dos respetivos juros de mora que se vençam, desde 31/12/2015 até efetivo e integral pagamento.

          Alegaram para o efeito que no dia 21/01/2013 foi proferida sentença de declaração de insolvência da sociedade Autora, no processo n.º 70/13.1TYLSB, no qual o aqui R. foi nomeado como Administrador da Insolvência, e que, na sequência da omissão pelo mesmo, no exercício das suas funções, da entrega e pagamento de rendas de um imóvel objeto de contrato de arrendamento de que a insolvente, aqui 1ª Autora, era arrendatária e o 2º Autor, fiador, ambos os AA sofreram danos correspondentes ao valor das rendas que se venceram, acrescido de juros moratórios.

            2. O tribunal de 1ª instância entendeu existir “excepção dilatória de incompetência material e, consequentemente, absolver o réu da instância no que respeita aos pedidos formulados na petição inicial (arts.99º n. 1, 100º, 576º n.2, 577º n.1 do Código de Processo Civil)”.

           3. Não se conformando com a decisão, os AA interpuseram recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa.

           

            4. O Recorrido não apresentou contra-alegações.

          5. A segunda instância decidiu: “julgar improcedente a apelação e confirmar o despacho recorrido”.

            Nesta decisão entendeu-se que a secção de comércio não era competente porque:

- “A ação em apreço não se pode confundir com um incidente do processo de insolvência, tão pouco com um apenso desta ação”.

- “Não se crê tão pouco que se possa argumentar no sentido da competência do tribunal da insolvência para a ação em apreço em função da norma do art.96º/1 CPC [antigo] [corresponde ao atual art.91º] (…)”

- “(…) se se atentar em todas essas manifestações da competência por conexão - e correlativas manifestações do fenómeno de extensão de competência - estando em causa, (operada a correspondência entre os acima referidos preceitos do aCPC e os do nCPC), as disposições do arts 37º/1, 555º/1 93º/1 e 91º/2, há nelas um denominador comum, que não pode ser indiferente para a questão em apreço nos autos: o de que em todas essas situações o tribunal em que as mesmas se revelem tem que ser competente em razão da matéria.

Por outro lado, relativamente a uma situação que de algum modo se pode ter como paralela relativamente à que está em causa na presente ação, a da ação de honorários, há muito que se tornou largamente maioritário o entendimento dessa ação não poder correr por apenso a uma ação principal que corre ou correu termos num tribunal de competência especializada, em virtude de tal colidir com a atribuição de competência em razão da matéria”.

- “Ora, se para a ação de honorários, em que está em causa a, quase sempre melindrosa apreciação e valoração de condutas do mandatário, e em que, não obstante o texto do art 73º (correspondente ao art.76º no aCPC), a opinião doutrinária e jurisprudencial dominante é a acima referida - de que tal ação só correrá por apenso ao processo onde foram prestados os serviços, quando esse tribunal seja materialmente competente tanto para a ação onde foram prestados esses serviços como para a de honorários - paralelo entendimento se haverá de ter na situação dos autos: também aqui se deverá entender que a

ação a que se reporta o art.59 º do CIRE, apesar de implicar a apreciação da ilicitude que se traduza na inobservância culposa dos deveres que incumbiam ao administrador no âmbito do processo para o qual foi nomeado, só deverá correr por apenso a esse processo, quando esse tribunal, sendo materialmente competente para essa cção (de insolvência), o seja também, segundo as regras gerais, para aquela de efetuação de responsabilidade civil”.

“Esta solução é a que se parece impor, do nosso ponto de vista, em função das acima referidas manifestações de competência por conexão, em que o legislador revela que, pese embora as óbvias vantagens de economia processual implicadas na solução contrária, não pretende que sejam postergadas as regras de competência material”.

 

           6. Contra aquela decisão, os AA interpuseram (a fls. 150) recurso de Revista, que qualificaram como excecional, nos termos do art.672, n.1, al. c) do CPC com fundamento em oposição de acórdãos, mas que foi admitido, pelo Tribunal da Relação de Lisboa (por despacho de folhas 260), como Revista (normal).

           Nas suas alegações os Recorrentes apresentam as conclusões que se transcrevem:

1. Vem o presente recurso interposto do Acórdão que decidiu "Julgar improcedente a apelação e confirmar o despacho recorrido” na medida em que nos termos do art.672º n.1 c) "O Acórdão da Relação esteja em contradição com outro, transitado em julgado, proferido por qualquer Relação ou Supremo Tribunal de Justiça no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito...".

2. Porquanto, a decisão de que aqui se recorre, está em clara contradição com o decidido pelo Tribunal da Relação de Guimarães, no âmbito do Acórdão de 29.11.2011, processo nº 6319/17.2TBBRG-N.G1, disponível em dgsi.pt, e que se juntou como Documento n.º 2, com o presente.

3. Veja-se que os Autores intentaram uma ação de condenação contra o Sr. Administrador de Insolvência, por fruto da responsabilidade civil extracontratual, e intentaram tal ação, obviamente, por apenso ao processo de insolvência, de onde decorreram tais danos e onde o Sr. Administrador de Insolvência exerceu funções que deu origem a tais danos. Pois que, a causa de pedir dos Autores prende-se com factos praticados, ou omissos, ­pelo Sr. Administrador de Insolvência, e, portanto, realizados no âmbito do processo de insolvência a que os Autores, aqui Recorrentes, requereram a apensação.

4. O tribunal de primeira instância decidiu não aplicar, sufragando que a mesma deveria ser uma ação independente, ao invés de apensa ao respetivo processo de insolvência onde ocorreu o exercício de funções causa dos danos - decisão da qual, então - e como se referiu os Autores recorreram para a Relação de Lisboa.

5. O Tribunal da Relação de Lisboa manteve, com os mesmos fundamentos que a primeira instância; decidindo que, apesar de o entendimento sufragado pelos Autores ser o "secundado pela Relação de Guimarães no Ac 29/11/2011 ", "não é porém o entendimento deste Tribunal"; vide páginas 15 e 16 do Acórdão de que se recorre; continuando que "a acção em apreço não se pode confundir com um incidente do processo de insolvência, tão pouco com um apenso desta ação”.

6. Esta decisão é notoriamente contrária à proferida pela Relação de Guimarães, que decidiu, exatamente o contrário: "I - A responsabilidade do administrador da massa insolvente pela inobservância dos deveres que lhe incumbem depende da verificação dos mesmos pressupostos exigidos para a responsabilidade aquiliana, sendo evidente a sua legitimidade passiva, sempre que se verifiquem esses requisitos. II- O processos para efectivação de responsabilidade do administrador da massa insolvente, bem como, desta última, correm por apenso ao processo de falência”.

7. Que decidiu que "A este propósito escrevem Carvalho Fernandes e João Labareda Cfr. Carvalho Fernandes e João Labareda, ob. cit., pg. 274, o seguinte: "O Código não resolveu a questão relativa à competência jurisdicional para o exercício da acção de responsabilidade nem ao processamento respectivo. Decorre, entretanto, do n. 3, do artigo 7, que o tribunal competente para o processo é igualmente para todos os seus incidentes e apensos. Acontece, porém, não existir nenhuma disposição que, por si só, sustente a conclusão de a acção de responsabilidade constituir um incidente ou um apenso do processo. Isto dito, há que convir em que a responsabilidade do administrador, resultando da violação funcional dos deveres que lhe incumbem, é originada no próprio devir processual e constitui, por isso, uma questão inteiramente conexionada com a insolvência. Neste contexto, cremos que o tribunal do processo será ainda competente para a acção de responsabilidade que, então, deve ser autuada por apenso. Esta solução é, de resto, não só a que melhor se ajusta aos princípios da economia processual, como também a que melhor permite um adequado julgamento. E é suportada pelo sentido geral do art.96, nº 1, do C. P. C. ", onde expressamente se prescreve que "o tribunal competente para a acção é também competente para conhecer dos incidentes que nela se levantam”.

8. É mais que clara a contrariedade existente entre ambos os Acórdãos, sendo que aquele de que se recorre diz expressamente existir essa contrariedade, ao afirmar que a Relação de Guimarães entende da forma já aqui exposta, mas que a Relação de Lisboa não tem esse mesmo entendimento.

9. E é justamente esse facto (posições diferentes entre as Relações quanto à apensação ou não da ação de condenação contra o Administrador de Insolvência ao respetivo processo de insolvência) que o Acórdão do qual aqui se recorre entra em contradição com outro já proferido no Tribunal da Relação de Guimarães e que dá razão de ser à presente revista excecional nos termos do art.672º nº 1 c) do CPC.

10. Verificando-se, pois, que a decisão do Tribunal da Relação de Lisboa contradiz a sentença do Tribunal da Relação de Guimarães na medida em que aquela não permite a apensação da ação de condenação contra o Administrador de Insolvência ao respetivo processo de insolvência, por alegada falta de competência material - ao contrário do que sufraga, como se viu, o Tribunal da Relação de Guimarães.

11. Pelo que, deve ser dado provimento ao presente recurso, alterando-se a decisão do Tribunal da Relação de Lisboa que confirmou a decisão proferida em primeira instância pelo Tribunal Judicial de Lisboa, e substituída por outra que, tal como o Tribunal da Relação de Guimarães, decida pela apensação da ação intentada pelos Autores, contra o Administrador de Insolvência, ao respetivo processo de insolvência onde ocorreu a atuação danosa daquele, prosseguindo os autos os seus ulteriores trâmites legais.

II. ANÁLISE DO RECURSO E FUNDAMENTAÇÃO

a) Questão prévia da admissibilidade do recurso:

           Os Recorrentes qualificaram o recurso como revista excecional, nos termos do art.672º, n.1, al. c) do CPC, por entenderem existir contradição entre o Acórdão recorrido e o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 29.11.2011; mas simultaneamente invocaram também o art.14º do CIRE (vd. requerimento de fls.150).

          O despacho do Tribunal da Relação de Lisboa (a fls. 260) qualificou como Revista normal com base no art.629º, n.2 e no art.671º, n.3 al. c).

           A referência feita à alínea c) do n.3 do art.671º, naquele despacho, é certamente um lapso de escrita, dado que este número não tem alíneas. Assim:

           Sendo o valor da ação inferior a €30.000, o recurso de Revista só é admissível com base no art.671º, n.1 e n.3 primeira parte, conjugado com o art.629º, n.2 al. a).

            Não estando em causa um recurso sobre uma decisão proferida num processo de insolvência (mas sim uma questão sobre a eventual competência material do Juízo de Comércio) não se aplica o art.14º do CIRE.

b) Objeto do recurso

           Sendo o objeto do recurso delimitado pelas alegações dos Recorrentes, cabe apreciar o seguinte:

 - Saber se a ação destinada a apurar a eventual responsabilidade civil do administrador de insolvência (da 1ª Recorrente) pelo não pagamento das rendas, respeitantes ao contrato de arrendamento no qual a sociedade insolvente era arrendatário, deve correr por apenso ao processo de insolvência, no juízo de comércio, ou autonomamente no tribunal cível de competência genérica.

c) Parecer do Ministério Público:

           Dado que o art.101º, n.1 do CPC determina que o Ministério Público deve ser ouvido neste tipo de questões, o Digno Magistrado do Ministério Público junto do STJ deu parecer (a fls. 271-275 dos autos) no sentido de a competência pertencer ao Juízo Local Cível de Lisboa do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa.

d) Factualidade relevante:

           Dado que a decisão recorrida não respeita ao mérito da causa, mas sim à competência do tribunal (pelo que ainda não se procedeu à produção de prova), a factualidade relevante para o conhecimento do presente recurso é a que emerge das alegações dos Recorrentes. 

e) O direito:

           1. Como supra mencionado, o Acórdão recorrido (que confirmou a decisão do juízo de comércio, sem voto de vencido e com fundamentação de sentido coincidente) considerou o juízo de comércio incompetente, em razão da matéria, para apreciar a ação que

 os AA (agora Recorrentes) propuseram, por apenso ao processo de insolvência, destinada a apurar a eventual responsabilidade civil do administrador da insolvência, com base no alegado incumprimento de deveres respeitantes ao contrato de arrendamento no qual a insolvente, 1ª Autora, era arrendatária e o 2º Autor seu fiador. 

            Considerando-se, segundo as alegações dos Recorrentes, que o senhorio exige o pagamento das rendas (e juros) tanto à 1ª Recorrente (sociedade declarada insolvente) como ao 2º Recorrente (único sócio da 1ª e fiador no contrato de arrendamento), caberá apurar (no momento da apreciação do mérito da causa) se o Réu-Recorrido, administrador da insolvência, pode ser responsabilizado, perante os Recorrentes, pelo facto de, em consequência da sua alegada omissão, estes terem de proceder àquele pagamento.

            Delimitada, nestes termos, a pretensão de tutela processual dos Autores-Recorrentes, vejamos se a competência para apreciar a ação deve pertencer ao juízo de comércio (correndo por apenso ao processo de insolvência) ou ao tribunal de competência genérica.

            A dúvida interpretativa é teoricamente justificável.

            2. Dispõe o art.128º, da Lei n.62/2013 (Lei de Organização do Sistema Judiciário), no seu n.1 que: “Compete aos juízos de comércio preparar e julgar: a) Os processos de insolvência e os processos especiais de revitalização”.

            E acrescenta-se, no seu n. 3: “A competência a que se refere o n.1 abrange os respetivos incidentes e apensos, bem como a execução das decisões”.

           Assim, caso se conclua que a ação destinada a fazer valer a responsabilidade do administrador da insolvência constitui um incidente ou um apenso do processo de insolvência, também se concluirá que o juízo de comércio é competente para apreciar essa ação.

            Vejamos que resposta nos fornece o Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE).

           Entre os efeitos que a declaração de insolvência produz, nos termos do art.81º do CIRE, encontra-se a transferência, para o administrador da insolvência, dos poderes de administração dos bens patrimoniais que passam a integrar a massa insolvente. 

           Sobre a responsabilidade do administrador da insolvência, o CIRE, no seu art.59º, n.1, determina que: “O administrador da insolvência responde pelos danos causados ao devedor e aos credores da insolvência e da massa insolvente pela inobservância culposa dos deveres que lhe incumbem; a culpa é apreciada pela diligência de um administrador da insolvência criterioso e ordenado”.

           3. Constatando-se que a sociedade declarada insolvente tinha a qualidade de arrendatária (num contrato de arrendamento para fim não habitacional), e considerando, segundo o alegado pelos Recorrentes, que o administrador da insolvência não teria procedido à imediata extinção do contrato, nos termos do n.1 do art.108º[1] do CIRE, caberia à massa insolvente pagar as rendas respeitantes à vigência desse contrato, dado que o art.51º, al. f) determina que é dívida da massa insolvente: “Qualquer dívida resultante de contrato bilateral cujo cumprimento não seja recusado pelo administrador da insolvência”.

           Todavia, a ação em causa não foi proposta contra a massa insolvente (a qual correria por apenso ao processo e insolvência, como determina o art.89º, n.2), mas apenas contra o administrador da insolvência. 

           4. No CIRE não se encontram normas que definam qual o tribunal competente, em razão da matéria, para conhecer das ações respeitantes à responsabilidade civil do administrador (baseadas no art.59º). E também não existe regra que determine que esse tipo de ações corre por apenso ao processo de insolvência.

            Divergindo desta omissão normativa, prevê o n.5 do art.82º que: “toda a ação dirigida contra o administrador da insolvência com a finalidade prevista na alínea b) do n.º 3 apenas pode ser intentada por administrador que lhe suceda”. E o n.6 deste artigo acrescenta que esta ação “corre por apenso ao processo de insolvência”. A al. b) do n.3 respeita a: “acções destinadas à indemnização dos prejuízos causados à generalidade dos credores da insolvência pela diminuição do património integrante da massa insolvente”.

           Ora, as particularidades desta hipótese, quer quanto à legitimidade ativa para propor a ação, quer quanto à dimensão coletiva dos interesses afetados, não permitem

generalizar aquela solução às demais hipóteses de responsabilidade civil do administrador da insolvência. Se a regra fosse a de acionar a responsabilidade do administrador por apenso ao processo de insolvência, certamente que o legislador não teria sentido a necessidade de ter formulado o n.6 do art.82º.

           Assim, no caso decidendo, não estando em causa a hipótese prevista no art.82º, n.5, não existe fundamento para concluir que a ação destinada a responsabilizar o administrador possa correr por apenso ao processo de insolvência. A competência, em razão da matéria deverá, assim, caber ao tribunal cível de competência genérica (dada a competência residual desta categoria de tribunais).

            5. A posição da jurisprudência:

          O Supremo Tribunal de Justiça já se pronunciou, num caso bastante próximo do caso sub judice, pela incompetência material do juízo de comércio para apreciar uma ação respeitante à responsabilidade civil do administrador da insolvência.

           Assim, no Acórdão do STJ, de 16.06.2017 (relator Salazar Casanova), no Proc. n.4559/14.7T8CBR-E.S1, no qual se discutia se a competência para apreciar a pretensão indemnizatória formulada pelo senhorio contra o administrador da insolvência (pelo não pagamento de rendas devidas pela insolvente arrendatária), entendeu-se que essa competência pertencia ao Julgado de Paz, onde a ação havia sido proposta (mas que se havia declarado incompetente, entendendo que a competência pertencia ao juízo de comércio) e não ao juízo de comércio (que também se havia declarado incompetente).   Afirma-se neste acórdão: “Não se vê, assim, razão para uma interpretação que considere que devem ser apensadas ao processo de insolvência as ações de responsabilidade civil por atos ilícitos do administrador quando o interessado que se considerou lesado imputa ao administrador responsabilidade exclusivamente pessoal pelos danos emergentes desses atos ilícitos; a lei da insolvência fixou o quadro dos procedimentos que devem ser autuados por apenso, designadamente as ações propostas contra o administrador da insolvência a que alude o artigo 82º/5 do CIRE e, embora prescrevendo no artigo 59º do CIRE regras próprias sobre a responsabilidade do administrador, assumiu opções, que não se pode ter por fruto de lapso, omitindo qualquer determinação no sentido de aquelas outras ações serem apensadas ao processo de insolvência”.

           Anteriormente a esta decisão do STJ, havia sido publicado, em sentido diferente, o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 29.11.2011 (relator Jorge Teixeira), [invocado nos presentes autos pelos Recorrentes] no qual se entendeu que “o tribunal do processo será ainda competente para a acção de responsabilidade que, então, deve ser autuada por apenso. Esta solução é, de resto, não só a que melhor se ajusta aos princípios da economia processual, como também a que melhor permite um adequado julgamento”[2].

           Deve notar-se, porém, que nesse caso a ação de insolvência tinha corrido nos juízos cíveis [e não num juízo de competência especializada comercial], pelo que o entendimento de que a ação de responsabilidade civil devia correr por apenso tem, aqui, um alcance relativamente diferente daquele que terá quando o argumento se dirige à competência do juízo de comércio.

           6. Embora o argumento da economia processual [como invocado pelos recorrentes] possa, em certa medida, sustentar o entendimento nos termos do qual a ação respeitante à responsabilidade civil do administrador deve correr por apenso ao processo de insolvência, tal argumento deverá ser confrontado com as particularidades deste processo.

            O processo de insolvência apresenta especificidades quer quanto à sua estrutura quer quanto à sua dinâmica (nomeadamente a diversidade tipológica dos intervenientes processuais e a sua natureza urgente) que justificam a intervenção de um juízo especializado, o qual trará um ganho de eficiência técnica e de harmonização decisória (em casos idênticos), que se traduzem numa melhor administração da justiça (por confronto com um hipotético juízo de competência genérica). Todavia, não deverá bastar uma qualquer conexão temática com a matéria da insolvência para que o juízo de comércio seja chamado a decidir.

           Se, por exemplo, numa insolvência com dezenas de credores, todos decidirem, individualmente, e com fundamentos diversos, mover processos de responsabilidade civil ao

administrador, correndo tais processos por apenso ao processo de insolvência, a eventual vantagem de economia processual que os autores pudessem alcançar, acabaria, provavelmente, por não compensar a perda de celeridade e a consequente redução de eficácia geral na administração da justiça especializada que cabe aos juízos de comércio.

           7. Numa ação de apreciação da responsabilidade do administrador (por não ter pago as rendas devidas pela arrendatária insolvente) embora a factualidade relevante respeite ao incumprimento de deveres próprios da sua função (nos termos do art.59º do CIRE), a procedência da pretensão indemnizatória depende também da verificação de outros requisitos (os da responsabilidade civil), que não são especificamente de natureza insolvencial, mas sim de direito civil em geral. Compreende-se, assim, que a solução específica estabelecida no art.82º, n.5 do CIRE não possa ser estendida às demais hipóteses de responsabilização do administrador da insolvência, as quais deverão correr nos juízos de competência genérica (onde poderão ser apresentados todos os meios de prova que poderiam ser invocados caso as ações corressem por apenso no juízo de comércio).

8. Em resumo, entende-se, assim, que não cabe ao Juízo de Comércio a competência para apreciar a ação destinada a apurar a eventual responsabilidade civil do administrador da insolvência pelo não pagamento das rendas, respeitantes ao contrato de arrendamento no qual a sociedade insolvente era arrendatária. Tal competência cabe, em concreto, ao Juízo Local Cível de Lisboa do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa.

III. DECISÃO

Pelo exposto, julga-se improcedente o recurso e confirma-se o acórdão recorrido.

Custas: pelos recorrentes.

Lisboa, 8 de março de 2018

Maria Olinda Garcia (Relatora)

Salreta Pereira

João Camilo

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[1] Determina o n.1 do art.108º do CIRE: “A declaração de insolvência não suspende o contrato de locação em que o insolvente seja locatário, mas o administrador da insolvência pode sempre denunciá-lo com um pré-aviso de 60 dias, se nos termos da lei ou do contrato não for suficiente um pré-aviso inferior”.
[2] O acórdão encontra-se publicado no site: http://www.dgsi.pt/jtrg.nsf/86c25a698e4e7cb7802579ec004d3832/9fcb2ba00774962580257972004b7b2e?OpenDocument