Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
110/14.7JASTB.E1.S1
Nº Convencional: 5ª SECÇÃO
Relator: HELENA MONIZ
Descritores: CRIME DE TRATO SUCESSIVO
ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS
ABUSO SEXUAL DE MENORES DEPENDENTES
VÍCIOS DO ARTº 410 CPP
CRIME CONTINUADO
REENVIO DO PROCESSO
QUALIFICAÇÃO JURÍDICA
CRIME EXAURIDO
Data do Acordão: 05/04/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: REENVIADO PARA NOVO JULGAMENTO.
Área Temática:
DIREITO PENAL – FACTO / FORMAS DO CRIME / EXTINÇÃO DA RESPONSABILIDADE CRIMINAL / PRESCRIÇÃO DO PROCEDIMENTO CRIMINAL – CRIMES EM ESPECIAL / CRIMES CONTRA A LIBERDADE E AUTODETERMINAÇÃO SEXUAL.
DIREITO PROCESSUAL PENAL – RECURSOS / RECURSOS ORDINÁRIOS / COMPETÊNCIA PARA NOVO JULGAMENTO.
Doutrina:
-Eduardo Correia, Direito Criminal, II, Almedina, 1993, reimpressão, 209 e 211;
-Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, Coimbra Editora, 2.ª edição, 2007, 43/ § 37, 43/ § 47, 43/ § 44 e 45, 11/ § 55 e 989;
-Lobo Moutinho, Da unidade à pluralidade dos crimes no direito penal português, UCP, 2005, 620;
-Maria da Conceição Valdágua, As alterações ao Código Penal de 1995, Propostas no anteprojecto de revisão do Código Penal, RPCC, 2006, 538;
-Roxin, Derecho Penal. Parte General, Tomo II, Civitas, 2014, § 33, 256 e ss., 260 e 269.
Legislação Nacional:
CÓDIGO PENAL (CP): - ARTIGOS 30.º, N.ºS 1, 2 E 3, 119.º, N.º 2, ALÍNEA B), 171.º, N.º 2 E 172.º, N.º 1.
CÓDIGO DE PROCESSO PENAL (CPP): - ARTIGOS 409.º, 410.º, N.º 2, ALÍNEA A), 426.º, N.º 1 E 426.º-A.
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA (CRP): - ARTIGO 29.º, N.º 1.
CÓDIGO DE REGISTO PREDIAL (CRP): - ARTIGO 34.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 09-10-2003, PROCESSO N.º 03P2851, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 29-11-2012, PROCESSO N.º 862/11.6TAPFR.S1;
- DE 17-09-2014, PROCESSO N.º 595/12.6TASLV.E1.S1;
- DE 22-04-2015, PROCESSO N.º 45/13.0JASTB.L1.S1;
- DE 27-04-2017, PROCESSO N.º 41/13.8GGVNG-B.S1;
- ACÓRDÃO DE FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA N.º 4/95, DE 7 DE JUNHO, IN DR, I SÉRIE-A, DE 06-07-1995, 4298 E 4299.
Sumário :

I - Pronunciando-se sobre se “o STJ poderá ou não alterar oficiosamente a qualificação jurídico-penal dos factos recolhidos na instância recorrida e sobre os quais esta erigiu a decisão que, uma vez proferida, subiu em recurso à instância superior”, entendendo que o que “está em debate é a admissibilidade ou não da qualificação jurídica dos factos feita na instância em caso de recurso, quando a mesma qualificação não esteja em debate, ou seja, não constitua objecto de impugnação”, concluiu o STJ, e fixou jurisprudência, no acórdão 4/95, no sentido de poder conhecer oficiosamente da qualificação jurídico-penal dos factos. Por isto, entendemos que este STJ pode analisar, e eventualmente alterar, a qualificação jurídica dada aos factos provados, ainda que sempre com respeito pelo princípio da reformatio in pejus.
II - No acórdão recorrido, considerou-se expressamente que terá havido uma pluralidade de resoluções criminosas, concluindo-se, no entanto, pela punição de apenas um crime de abuso sexual de criança e um crime de abuso sexual de menor dependente, com o argumento de que não foi possível proceder à quantificação do número de vezes que ocorreram os atos de abuso, ou seja, considerou-se que não havendo prova do número exato de atos realizados, apenas se condena por um, isto apesar de ter sido dado como provado que o “arguido manteve as descritas práticas sexuais com o ofendido RC, reiteradamente, ao longo dos anos, várias vezes por semana, mesmo depois do mesmo ter atingido a maioridade, mais concretamente, até ao dia ...05/2014” (facto provado 7).
III - Tratando-se no presente caso de crimes contra bem jurídico eminentemente pessoal, como é o bem jurídico da autodeterminação sexual da criança e do menor dependente logo por força do disposto no art. 30.º, n.º 3, do CP, bem andou o acórdão recorrido que considerou não ser o caso dos autos subsumível à figura do crime continuado, ainda que o argumento utlizado para chegar a esta conclusão tenha sido tão-só o da existência de uma pluralidade de resoluções criminosas.
IV - Devemos concluir que houve uma pluralidade sucessiva de crimes contra a autodeterminação sexual do ofendido praticados ao longo de um período excessivamente longo de tempo, cerca de mais de 10 anos — entre 2002/2003 (cf. facto provado 3) e até ....05.2014 (cf. facto provado 7).
V - Porém, é com base nesta ideia de sucessão de crimes idênticos contra a mesma vítima, e num certo e delimitado período temporal, que o Supremo Tribunal de Justiça tem considerado que estamos perante o que vem designando de “crime de trato sucessivo”, e por isso o acórdão recorrido acabou por condenar o arguido em apenas um crime de abuso sexual de criança e um crime de abuso sexual de menor dependente. Ou seja, a jurisprudência portuguesa, acaba por unificar, à margem da lei, várias condutas numa única, considerando que há uma unidade de resolução (que abarca todas as resoluções parcelares que ocorrem aquando da prática de cada sucessivo ato integrador de um tipo legal de crime), mas em que, à medida que se prolonga no tempo, produz uma agravação da culpa do agente.
VI - É esta conduta prolongada, protraída, no tempo que levou à sua designação como crime prolongado, embora a caracterização do crime como prolongado dependa de a conduta legal e tipicamente descrita se poder considerar como sendo uma conduta prolongada — ora, a conduta, por exemplo, do crime de abuso sexual de criança, ainda que este seja repetido inúmeras vezes, está limitada temporalmente; os atos consubstanciadores daquele abuso, isto é, a prática de “acto sexual de relevo” (cf. arts. 171.º e 172.º, ambos do CP) ocorrem num certo período e quando sucessivamente repetidos, tem entendido alguma jurisprudência, como integrando um mesmo crime de abuso sexual.
VII - Porém, ideia de sucessão de condutas que parece querer-se atingir com a designação de “trato sucessivo” implica necessariamente que haja uma sucessão de tipos legais de crime preenchidos e, portanto, segundo a lei, uma punição em sede de concurso de crimes. A unificação de todos os crimes praticados em apenas um crime, quando o tipo legal de crime impõe a punição pela prática de cada ato sexual de relevo, e sem que legalmente esteja prevista qualquer figura legal que permita agregar todos estes crimes, constitui uma punição contra a lei, desde logo, por não aplicação do regime do concurso de crimes. Isto é, não podendo unificar-se a prática de todos aqueles atos no crime continuado, previsto no art. 30.º, n.º 2, do CP, por força do disposto no art. 30.º, n.º 3, do CP, então apenas nos resta aplicar o disposto no art. 30.º, n.º 1, do CP. Entender que tendo sido o mesmo tipo legal de crime preenchido diversas vezes pela conduta do arguido, ainda assim devemos entender como estando apenas perante um único crime, será decidir contra legem.
VIII - Além do mais, a designação de “trato sucessivo” constitui uma designação com um significado juridicamente muito preciso e decorrente do Código de Registo Predial (cf. art. 34.º) pretendendo-se documentar o trato, a traditio da coisa, sucessivamente; ora, num crime sexual não há traditio.
IX - E crime exaurido ou consumido dá a ideia de que logo no primeiro ato se consuma, tornando irrelevantes os atos sucessivos. Ora, o exaurimento do crime assume importância em todos aqueles casos em que, após a consumação, ocorre a terminação do crime, sendo relevante a desistência da tentativa entre um e outro momento. Mas a prática de um crime sexual seguida da de outros crimes sexuais não impede a consumação de um crime sexual em cada um dos atos.
X - O “crime de trato sucessivo” tal como tem sido caracterizado pela jurisprudência corresponde ao crime habitual, ou seja, “aqueles em que a realização do tipo incriminador supõe que o agente pratique determinado comportamento de uma forma reiterada, até ao ponto de ela poder dizer-se habitual” (Figueiredo Dias). No entanto, o entendimento de um crime como sendo crime habitual tem necessariamente que decorrer, atento o princípio constitucional da legalidade criminal (art. 29.º, n.º 1, da CRP), do tipo legal de crime previsto na lei.
XI - A punição de uma certa conduta a partir da reiteração, sem possibilidade de análise individual de cada ato, apenas decorre da lei, ou dito de outro modo, do tipo legal de crime. Ora, unificar diversos comportamentos individuais que têm subjacente uma resolução distinta sem que a lei tenha procedido a essa unificação constitui uma clara violação do princípio da legalidade, e, portanto, uma interpretação inconstitucional do disposto nos arts. 171.º e 172.º, ambos do CP.
XII - Em parte alguma os tipos legais de crime de abuso sexual de criança e de abuso sexual de menor dependente permitem que se possa entender apenas como um único crime a prática repetida em diversos dias, ao longo de vários anos — mais de 10 —, em momentos temporalmente distintos, e fundada em sucessivas resoluções criminosas, de diversos atos sexuais de relevo.
XIII - Casos há em que não é possível apurar o número exato de condutas praticadas pelo arguido. Ou seja, sobra a pergunta: tendo conseguido a prova dos atos de abuso sexual, mas sem prova precisa do número de vezes e do momento temporal, o arguido deve ser absolvido dos crimes que praticou? Ou quantos crimes devem ser-lhe imputados? Enquanto se mantiver a legislação que temos, cabe fazer a prova do maior número possível de atos individuais, devendo ser excluídos, em nome do princípio in dubio pro reo, aqueles cuja prova se não consegue obter de forma segura.
XIV - Considerando a inconstitucionalidade, por violação do princípio da legalidade, subjacente ao entendimento de redução da prática de vários atos integradores de per si de vários crimes contra a autodeterminação sexual em um só crime, concluímos não ter matéria de facto provada suficiente para a decisão. Dado que do texto da decisão recorrida resulta a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, nos termos do art. 410.º, n.º 2, al. a), do CPP, determina-se o reenvio do processo para novo julgamento.

04-05-2017
Proc. n.º 110/14.7JASTB.E1.S1 – 5.ª Secção
Decisão Texto Integral:

Acordam, em conferência, no Supremo Tribunal de Justiça:


I

Relatório


1. No Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal (Inst. Central — Secção Criminal), o arguido AA foi condenado, em concurso real, pela prática:

- de um crime de abuso sexual de crianças, previsto e punido pelo art. 171.º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal (CP), na pena de prisão de 5 (cinco) anos e 6 (seis) meses, e

- de um crime abuso sexual de menores dependentes, previsto e punido pelos arts. 172.º, n.º 1, do CP, na pena de prisão de 3 (três) anos e 6 (seis) meses.

- e, em cúmulo jurídico da penas parcelares aplicadas, na pena única de 7 (sete) anos de prisão.

Foi determinada a recolha de amostra biológica e inserção do perfil de ADN, obtido a partir daquela, na base de dados de perfis de ADN para fins de identificação civil e criminal, ao abrigo do disposto na Lei n.º 5/2008, de 12.02.

2. Inconformado com a decisão proferida, o arguido interpôs recurso direto para o Supremo Tribunal de Justiça, ao abrigo do disposto no art. 432.º, n.º 1, al. c), do CPP, tendo apresentado as seguintes conclusões:

«1. O ora recorrente vinha acusado como autor material, na forma consumada e em concurso real de um crime de abuso sexual de crianças agravado, p. p. pelos artigos 171º, n.ºs 1 e 2 e 177º, n.º 1, alíneas a) do Código Penal, um crime de abuso sexual de menor dependente agravado, p. p. pelos artigos 172º, n.º 1 e  177º, n.º 1, alíneas a) do Código Penal e um crime de violação p. e p. pelo artigo 164º, n.º 2, alínea a), do C.Penal.

2. Pelo acórdão de que ora se recorre foi o arguido, ora recorrente condenado pela prática em autoria material, e em concurso efectivo de um crime de abuso sexual de crianças, p. p. pelos artigos 171º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal e um crime de abuso sexual de menores dependentes, p. p. pelos artigos 172º, n.º 1 n do Código Penal, nas penas de prisão, respectivamente de cinco anos e seis meses e de três anos e seis meses e, em cúmulo jurídico de tais penas parcelares, condenar ao arguido na pena única de 7 (sete) anos de prisão.

3. O ora recorrente não pode conformar-se com o Douto Acórdão do Tribunal a quo no tocante à fixação do quantum das penas parcelares, considerando as mesmas manifestamente excessivas, assim como a medida da pena única concretamente aplicada, de modo a permitir a suspensão da pena aplicada, sujeita a regime de prova e acompanhamento psicológico ou psiquiátrico do arguido.

4. O mui douto Tribunal a quo menciona no Aresto a necessidade de aplicação do dispositivo legal inserto no art.º 71º do C.P. para a determinação da medida concreta da pena, considerando o grau de ilicitude do facto, a intensidade do dolo, as necessidades de prevenção geral e especial no caso concreto, mas acabou por, aquando da aplicação da medida concreta da pena dar pouca importância dar a estas últimas (prevenção especial), a limitar-se a dar como reproduzidas as condições pessoais do arguido e a sua situação económica, sem as valorizar, e a desvalorizar o facto do arguido não ter antecedentes criminais.

5. Tal como decorre dos factos provados, da fundamentação do acórdão e do relatório social, o arguido não tem quaisquer antecedentes criminais, é pessoa social, profissional e familiarmente inserido, não lhe são conhecidos comportamentos de natureza idêntica em data posterior aos factos constantes da acusação (sobre os quais já decorreram cerca de dois anos), reconhece o impacto do abuso sexual na vida das crianças e mesmo não tendo lhe tendo sido identificado qualquer tipo de desajuste relativamente ao seu desenvolvimento e orientação sexual, manifestou disponibilidade para se sujeitar a acompanhamento psiquiátrico ou psicológico.

6. Tais circunstâncias deveriam ter sido valoradas, na determinação da medida da pena a seu favor, o que não aconteceu!

7. É certo que o julgador se deve orientar na determinação da medida concreta da pena, pela culpa do agente, que impõe uma retribuição justa; pelas exigências decorrentes do fim preventivo geral, ligadas à contenção da criminalidade e à defesa da sociedade, mas não poderá olvidar as exigências decorrentes do fim preventivo especial ligadas à reinserção social do delinquente.

8. Sendo a concretização da sanção resultado do jogo de todos os referidos factores, embora não podendo esquecer-se que a função primordial da pena consiste na protecção dos bens jurídicos (prevenção geral positiva), entendida como tutela e confiança da comunidade na sua ordem jurídico-penal, respeitado que seja o princípio da culpa, segundo o qual, a medida da pena nunca pode ultrapassar a medida da culpa, e que a sanção concreta há-de corresponder às expectativas comunitárias na validade da norma violada, não poderia o tribunal a quo deixar de olvidar que “deve fixar-se em princípio a pena no ponto de escala correspondente à culpa que melhor sirva as exigências de prevenção especial”.

9. Com efeito, “A sociedade não é apenas responsável pela protecção dos seus membros perante o criminoso, tem também uma responsabilidade perante este último, de contribuir para a sua possível recuperação”, nem que para isso se torne necessário desistir de uma parte da pena correspondente à culpa para respeitar a norma legal que impõe que se tenha em conta a prevenção especial.

10. Atendendo a que o arguido não tem antecedentes criminais, está integrado social, profissionalmente familiarmente e não será a convivência com o mundo prisional que resolverá os eventuais distúrbios de personalidade apresentados pelo arguido e que conduziram à eventual prática dos factos descritos no Acórdão, mas sim o acompanhamento e tratamento médico especializado, tais factos deveriam ter sido determinantes na determinação da medida da pena.

11. A determinação da medida concreta da pena há-de ter presente a necessidade de satisfazer as finalidades de protecção do bem jurídico afectado e de reintegração do delinquente na sociedade, sem ultrapassar a medida da culpa, e, dentro dos limites da moldura estabelecida na lei, há-de fixar-se, em função da culpa e das exigências de prevenção, ponderando todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depõem favor do arguido ou contra ele, nomeadamente, o grau de ilicitude do facto, o modo de execução e a gravidade das suas consequências, a intensidade do dolo, o motivos do crime, as condições pessoais e a situação económica, bem como a sua conduta anterior e posterior.

12. A pena, situada entre um máximo ditado pela culpa e um mínimo exigido pela prevenção geral positiva, resultará da ponderação das funções que o pensamento de prevenção especial realiza.

13. Ponderando todas as referidas circunstâncias, e tal qual se mostra a prova, afigura-se-nos que a punição ajustada à satisfação das finalidades consignadas no artigo 40.º do Código Penal, impõe a aplicação de penas parcelares mais próximas do mínimo legal previsto por lei, e bem assim numa pena única, nunca superior a 5 anos de prisão.

14. Tais penas realizariam de forma adequada e suficiente o objectivo de prevenir a prática de futuros crimes da mesma natureza pelo arguido.

15. Nos termos do art.º 50º, n.º 1 do C. Penal “O Tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a 5 anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”.

16. A suspensão da execução da pena  insere-se num conjunto de medidas não institucionais que, não determinando a perda da liberdade física, importam sempre uma intromissão mais ou menos profunda na condução da vida dos delinquentes, pelo que, embora funcionem como medidas de substituição, não podem ser vistas como formas de clemência legislativa, pois constituem autenticas medidas de tratamento bem definido com uma variedade de regimes aptos a dar adequada resposta a problemas específicos a suspensão da execução da pena, com ou sem regime de prova, é substitutivo particularmente adequado das penas privativas da liberdade que importa tornar maleável na sua utilização, libertando-a, na medida do possível, de limites formais, de modo a com ele cobrir uma apreciável gama de infracções puníveis com pena de prisão.

17. Esta medida de carácter pedagógico e reeducativo deve ser decretada quando se concluir que, em face da personalidade do agente, das condições da sua vida e outras circunstâncias, é uma medida adequada a afastar o delinquente da criminalidade, por se entender que a simples censura do facto e a ameaça da pena bastarão para realizar as finalidades da punição, por existir um juízo de prognose social favorável ao mesmo, e “In casu”, e tendo em conta o já expendido supra, o comportamento do arguido posterior à prática dos factos, a sua situação pessoal descrita no relatório social junto aos autos, bem como a sua aceitação expressa da sujeição a tratamento médico especializado, tudo indica que, agora, a simples censura do facto e a ameaça da pena bastarão para satisfazer as finalidades da punição, desde que acompanhado da aplicação de um regime de prova em ordem a permitir o acompanhamento psicológico ou psiquiátrico do arguido, já aceite pelo mesmo.

18. Assim, ao não decidir pela condenação em duas penas parcelares fixadas muito próximo do mínimo das respectivas molduras penais, cuja pena única (resultante do cúmulo jurídico), se situe nos 5 anos de prisão, e seja suspensa na sua execução com regime de prova e acompanhamento/tratamento psicológico ou psiquiátrico, o Douto Tribunal ora recorrido violou os dispositivos insertos nos art.ºs n.ºs 40º, 50º, 70º, 71º, 73º, 74º do C. Penal e foi bastante além do necessário, quer para punir, quer para prevenir.

19. Afastada a violação de tais normativos, não poderia ser aplicada ao arguido pena superior a cinco anos de prisão, suspensa na sua execução sujeita a regime de prova e sujeição do arguido a acompanhamento psiquiátrico ou psicológico, o que se requer.

TERMOS EM QUE

Deve o presente recurso obter provimento, por provado, e em consequência o mui douto acórdão revogado, e substituído por outro que condene o arguido em penas parcelares muito próximas do limite mínimo previsto pela moldura penal de cada uma destas, e bem assim numa pena única, nunca superior a 5 anos de prisão, suspensa na sua execução, sujeita a regime de prova e acompanhamento/tratamento psicológico ou psiquiátrico do arguido.»

3. A Procuradora da República no Tribunal da Comarca de ... (Instância Central – Secção Criminal — ...) apresentou resposta (cf. fls. 315 e ss) ao recurso interposto pelo arguido, concluindo:

«1 - O arguido foi condenado pela prática de um crime de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo artigo 171.º, n.ºs 1 e 2 do Código Penal e um crime de abuso sexual de menores dependentes, p. e p. pelo artigo 172.º, n.º 1, nas penas parcelares de 5 (cinco) anos e 6 meses, e 3 (três) anos e 6 (seis) meses, por cada um deles, e, em cúmulo jurídico, na pena global de 7 (sete) anos de prisão;

2 - No tipo legal de crime em referência, visa-se proteger «a autodeterminação sexual (…) face a condutas de natureza sexual que, em consideração da pouca idade da vítima, podem, mesmo sem coacção, prejudicar gravemente o livre desenvolvimento da sua personalidade, presumindo a lei que a prática de actos sexuais com menor, em menor ou por menor de certa idade prejudica o seu desenvolvimento», tratando-se de «um crime de perigo abstracto, na medida em que a possibilidade de um perigo concreto para o desenvolvimento livre, físico ou psíquico, do menor ou o dano correspondente podem vir a não ter lugar, sem que com isto a integração pela conduta do tipo objectivo de ilícito fique afastada» (Comentário Conimbricense, págs. 541 e 542).

3 - O dolo é intenso, porque preenche a modalidade mais gravosa – directo.

4 – O arguido confessou parcialmente os factos, procurando assumir apenas o que não lhe acarretaria responsabilidade penal, ou mitigando a mesma, não denotando arrependimento nem valoração crítica da conduta;

5 – A ilicitude é elevada, não só pela idade da vítima, a qual tinha 7/8 anos à data das primeiras carícias, mas ainda pelo facto de se encontrar à sua guarda, devendo-lhe carinho e protecção, mas ainda pelo período em que as práticas sexuais se mantiveram (até à idade adulta).     

6 – São fortes as exigências de prevenção geral, sendo de aplicar a este caso e semelhantes, penas concretas bem acima dos níveis mínimos da penalidade, a fim de se sensibilizar a comunidade para este tipo de ilícitos, na medida do possível, mas também uma crescente necessidade de protecção dos jovens, em relação a estes actos, tendo em conta as consequências de tais condutas no sentimento de segurança das crianças e da sociedade.

7 - Quanto às necessidades de prevenção especial, as mesmas são elevadas, uma vez que o arguido se encontra já a viver no agregado familiar com a mulher, a filha e a própria vítima.

8 – O facto de o arguido estar inserido social e familiarmente, bem como não ter antecedentes criminais, não mitiga a ilicitude e culpa acentuadas, pelo que tem um fraco pendor atenuativo.

9 - Assim sendo, parece-nos correcta a disometria aplicada aos crimes de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo artº 171º, nº1 do Código Penal, bem como a pena aplicada ao abuso sexual de menores dependentes, p. e p. pelo artº 172º, nº1 do Código Pena, sendo igualmente justa e adequada, a pena única aplicada.

10 – Não foram violadas quaisquer normas jurídicas.

11 – Pelo que se entende que o acórdão recorrido não merece reparo e deve ser mantido.»

4. Os autos subiram ao Tribunal da Relação de Évora, onde foi proferido parecer pelo Procurador-Geral Adjunto aderindo aos argumentos apresentados pela Senhora Procuradora da República na 1.º instância e concluindo que “o acórdão recorrido deve ser mantido na íntegra” (cf. fls. 334).

5. Por decisão sumária (cf. fls. 338 e ss) no Tribunal da Relação de Évora foi declarada a incompetência do Tribunal para conhecer do recurso, dado tratar-se de um recurso exclusivamente em matéria de direito, e ordenada a remessa dos autos para o Supremo Tribunal de Justiça.

6. Subidos os autos ao Supremo Tribunal de Justiça, a Senhora Procuradora-Geral-Adjunta, usando a faculdade prevista no n.º 1 do art. 416.º do CPP, emitiu parecer no sentido de não ser concedido provimento ao recurso.

7. Notificado deste parecer, de harmonia com o disposto no art. 417.º, n.º 2, do CPP, o arguido nada disse.

 8. Colhidos os vistos em simultâneo, e não tendo sido requerida a audiência de discussão e julgamento, o processo foi presente à conferência para decisão.


II

Fundamentação


A. Matéria de facto provada:

1. Matéria de facto dada como provada pela 1.ª instância:
«1. BB nasceu em ..., tendo sido adotado pelo arguido e sua mulher, CC, tendo essa adoção plena sido decretada por sentença proferida em 30 de Outubro de 2009, após confiança judicial decretada em 9 de Janeiro de 2008.
2. BB passou a viver permanentemente com o casal constituído pelo arguido e mulher, em Setembro de 2002, quando tinha 7 anos e após uma situação de acolhimento institucional, desde 12/6/2000, na “...”, sita em ....
3. A partir de data não concretamente apurada, tendo, então, BB 7-8 anos de idade, sendo que a primeira vez aconteceu numa casa sita numa Quinta localizada em ... o arguido passou a acariciar o pénis do, então, menor BB;
4. Tal prática aconteceu, por diversas vezes e repetidamente, em ocasiões, em que estavam sozinhos, em casa.
5. Posteriormente, a partir de data não concretamente apurada, tendo o menor BBidade inferior a 12 anos, o arguido além das carícias, começou a manipular o pénis do menor, ao mesmo tempo que fazia com que este também manipulasse o seu.
6. Em momento posterior, não concretamente apurado, mas, pelo menos, a partir da altura em que o menor BB atingiu os 12 anos de idade, o arguido passou a introduzir o seu pénis no ânus do menor, friccionando-o até à ejaculação, introduzindo também o arguido o pénis de BB na sua boca e a introduzindo o seu próprio pénis na boca de BB;
7. O arguido manteve as descritas práticas sexuais com o ofendido BB, reiteradamente, ao longo dos anos, várias vezes por semana, mesmo depois do mesmo ter atingido a maioridade, mais concretamente, até ao dia 19/05/2014.
8. Os atos sexuais referenciados nos pontos 6 e 7 tiveram lugar, normalmente, no estabelecimento comercial de minimercado que, a partir de 2007, passou a ser explorado pelo arguido e mulher, sendo que o ofendido BB acompanhava sempre o ora arguido, pela manhã, nos preparativos tendentes à abertura do estabelecimento e no final do dia, na altura, do seu encerramento, mantendo o arguido com o ofendido BB, as práticas de sexo anal e oral, logo pela manhã, antes de a mulher chegar ao estabelecimento ou, no final do dia, após aquela sair do estabelecimento. Tais atos aconteciam umas vezes numa marquesa existente no estabelecimento e outras junto das prateleiras sitas na zona da charcutaria.
9. Ao longo dos anos, o ofendido BB nunca contou a ninguém a descrita conduta assumida pelo arguido, para consigo, por sentir receio de ser rejeitado e de ter de voltar para a instituição de onde tinha vindo, sendo que, em determinadas alturas, o arguido dizia ao ofendido “… voltas para o sítio de onde vieste e nenhuma família te vai querer!”, “se não fores meu não és de mais ninguém” e “eu para ficar contigo sou capaz de tudo … até de matar!”.
10. Aos 17 anos de idade, o ofendido BB deixou de estudar e passou a trabalhar assiduamente no estabelecimento de minimercado, na altura, explorado pelo arguido e mulher, sendo que o arguido fazia por estar sempre presente na abertura e no fecho do estabelecimento, de modo que os atos sexuais descritos supra acontecessem, nessas ocasiões e sempre quando a mulher do arguido, estava ausente, em casa.
11. O arguido manteve as descritas práticas sexuais, consubstanciadas, inicialmente, a partir dos 7-8 anos de idade do ofendido, em carícias nos genitais, evoluindo depois para a manipulação do respetivo pénis e, posteriormente, pelo menos, a partir dos 12 anos de idade do ofendido, para atos de sexo oral e de sexo anal, de modo ininterrupto e reiterado, mesmo depois de seu filho ter atingido a maioridade;
12. O arguido conhecia a idade do menor, ofendido, que lhe foi confiado, quando tinha 7 anos de idade e cuja adoção plena veio a ser decretada quando tinha 14 anos de idade, e tinha perfeito conhecimento da ascendência que sobre ele detinha, decorrente dessa situação, sabendo que ao atuar da forma que acima se descreveu, perturbava e prejudicava, de forma grave e séria, o desenvolvimento da personalidade do menor e que ofendia os seus sentimentos de criança e de adolescente e punha em causa o são desenvolvimento psicológico, afetivo e da consciência sexual do menor, aproveitando-se da imaturidade, ingenuidade e fragilidade do mesmo.
13. Ao agir da forma descrita, o arguido atuou com a intenção concretizada de dar satisfação aos seus instintos lascivos e libidinosos, utilizando, para tanto, o menor, que lhe foi judicialmente confiado e que veio a adotar, indiferente à sua idade e às consequências de tal atuação sobre o mesmo.
14. O arguido atuou do modo referenciado supra, com perfeito conhecimento de que o ofendido receava ser rejeitado, não desconhecendo as suas origens e inicio de vida difícil, bem sabendo o arguido que, utilizando os argumentos referidos, o mantinha em silêncio e subjugado às suas vontades e caprichos.
15. O arguido agiu de forma livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que a sua descrita conduta era proibida e punida por lei penal.
Provou-se, ainda, que:
16. No dia 14 de Maio de 2014, o ofendido BB não aguentando mais a situação vivenciada e manifestando receio de que o arguido pudesse vir a adotar para com a irmã, filha biológica do arguido e da mulher, nascida em setembro de 2006, comportamentos idênticos aos assumidos para consigo, acabou por confidenciar ao tio (irmão da mãe adotiva) e padrinho, ..., agente da PSP, a referenciada conduta do arguido, vindo o mesmo a apresentar denúncia à P.J., em 18/05/2014, que foi depois também apresentada pelo ofendido.
17. Na sequência de tal denúncia, os pais do ofendido, o ora arguido e mulher, separaram-se, retomando a vida em comum, dois meses depois da separação, tendo o ofendido BB ficado a viver em casa dos avós maternos;
18. Em meados do ano de 2015, o ofendido BB voltou a viver com os pais, ora arguido e mulher, e com a irmã, situação que se mantém. 
Factos atinentes à personalidade e às condições pessoais do arguido:
19. O arguido cresceu no mesmo local onde reside presentemente, um bairro maioritariamente habitado por pessoas ligadas ao setor fabril, de estrato socioeconómico baixo ou médio-baixo.
20. Os pais do arguido eram operários fabris, vindo mais tarde, com o encerramento da fábrica onde ambos trabalhavam e com a indemnização auferida, a investir num negócio por conta própria na área do comércio de pescado. A situação financeira da família foi sempre estável e permissível à satisfação das necessidades do agregado.
21. O arguido é o mais novo de cinco filhos, sendo o ambiente e dinâmica familiar ajustados, assumindo os pais adequada supervisão do comportamento dos filhos e num registo de coesão entre o casal. Sendo o mais novo dos irmãos, o arguido foi o mais protegido pela mãe, mantendo ao longo do seu percurso uma forte ligação a esta figura, baseada num registo de afetividade mútua. O pai era a figura que impunha a autoridade e estabelecia as regras, mas num contexto sentido como justo e adequado, onde os valores e as regras sociais foram valorizados, tendo seu desenvolvimento decorrido dentro dos padrões normais.
22. Ambos os progenitores do arguido são já falecidos: o pai faleceu em 2002 e a mãe no ano transato, já após a instauração do presente processo.
23. O percurso escolar do arguido foi limitado, tendo abandonado a escola aos 11 anos de idade, tendo apenas concluído o 4º ano de escolaridade, contra a vontade dos progenitores.
24. O arguido iniciou precocemente a atividade laboral, como ajudante numa taberna, fazendo posteriormente o seu percurso profissional, ligado sobretudo ao setor da restauração, como empregado de mesa e balcão, atividade que desempenhou regularmente até aos 30 anos de idade. Posteriormente passou a trabalhar na construção civil, tendo trabalhado até aos 40 anos na mesma empresa. Por último trabalhou com a esposa num, estabelecimento de minimercado.
25. O arguido conheceu a mulher quando ambos trabalhavam próximo, tinham então 19 anos de idade e 20 anos, respetivamente. O casamento ocorreu após 4 anos de namoro, quando o arguido terminou o serviço militar obrigatório.
26. Após casarem, fixaram morada em ..., Setúbal, em casa pertença dos pais da mulher, onde viveram até à instauração do presente processo, em Maio de 2014, sendo o agregado familiar constituído pelo casal e os sogros, habitando numa moradia de dois pisos. A situação financeira do casal manteve um quadro genericamente frágil apesar do trabalho de ambos, uma vez que os salários eram baixos.
27. O arguido tem centrado o seu modo de vida entre o trabalho e a vida familiar. Apesar de ter muitos conhecidos e amigos, convive apenas de modo residual com estes e sai de casa também, pontualmente, sendo genericamente também assim o estilo de vida do casal, que tem privilegiado o convívio com os familiares.
28. O arguido e a mulher confrontaram-se com dificuldades em gerar filhos. Apesar de terem recorrido a tratamentos de fertilização, estes revelaram-se ineficazes, tendo uma das gestações evoluído favoravelmente até quase o final da gravidez, tendo resultado num nado morto, acontecimento que teve impacto significativo no casal, ultrapassando esta situação com o apoio mútuo.
29. O casal veio entretanto a decidir adotar uma criança, processo que inicialmente não obteve consenso da família alargada, sendo uma situação posteriormente ultrapassada, vindo o ora ofendido BB a integrar a família com 7 anos de idade, em 2002, culminando, posteriormente, na adoção plena.
30. BB aparentemente adaptou-se à família, embora, no âmbito escolar, tivesse apresentado sempre problemas de comportamento e aprendizagem, mantendo até cerca dos 16 anos de idade acompanhamento por parte da equipa de psicólogos da instituição onde estava antes de ter sido adotado (“Casa dos Rapazes”, sita em Barreiro). Em virtude dos alegados comportamentos desajustados de BB, o casal ponderou, algumas vezes, retroceder no processo de adoção.
31. Numa altura em que já não previam vir a ser pais biológicos, em 2006 ocorreu a gravidez e nascimento de uma filha do casal, quando BB tinha 11 anos de idade.
32. Há exceção de um período de cerca dois anos (2007-2009), em que trabalhou exclusivamente com o cônjuge no mencionado estabelecimento de minimercado, o arguido trabalhou sempre por conta de outrem, trabalhando desde 2009 numa empresa de distribuição de produtos alimentares, onde aufere 800€ mensais. No entanto e até Maio de 2014, coadjuvou a esposa no referido estabelecimento comercial.
33. Com a instauração do presente processo e a proibição de contactar com o ofendido, o arguido mudou-se para a morada indicada supra, na identificação, tratando-se de um apartamento arrendado de cinco assoalhadas, onde decorreu o seu processo de desenvolvimento. Dois meses após esta mudança, a mulher mudou-se também para esta casa, sendo o agregado composto pelo casal, a filha e um irmão, mais novo, do arguido (..., 52 anos).
34. Com o encerramento do estabelecimento comercial e a doença da mulher, o arguido é o único elemento ativo da família, a nível laboral.
35. Os factos que deram origem a este processo terão sido do conhecimento generalizado da população na zona onde o arguido vivia à data. Assim, e embora a imagem social do arguido fosse conotada de modo positivo, verificou-se um afastamento dos clientes do estabelecimento comercial que a família explorava, levando ao encerramento do mesmo.
36. O arguido deu a conhecer aos familiares mais próximos (progenitora e irmãos) assim como ao patrão, a sua constituição como arguido neste processo. Se por um lado se verifica apoio e suporte por parte dos seus familiares, já por outro a família da mulher mostra-se revoltada. A mulher do arguido, optou por apoiá-lo ficando ao seu lado neste processo, apesar de manifestar estranheza perante os comportamentos que o arguido admite.
37. A sua constituição como arguido no âmbito dos presentes autos tem tido impacto no próprio, a nível emocional, revelando-se tenso e ansioso, e o desgaste provocado por esta situação tem-se revelado também em termos da perda de peso (perdeu cerca de 20 kg) e em dificuldades em conciliar o sono.
38. O arguido não tem antecedentes criminais.»

            B. Matéria de direito

1. A partir das conclusões apresentadas aquando da interposição do recurso pelo arguido AA, verificamos que apenas recorre da medida das penas parcelares aplicadas a cada um dos crimes em que vem condenado, e da medida da pena única, considerando que esta não deve ultrapassar os 5 anos, permitindo assim a aplicação da pena de substituição de suspensão da execução da pena de prisão.

Tendo em conta a fixação de jurisprudência prolatada a 27.04.2017 no âmbito do processo n.º 41/13.8GGVNG-B.S1, não assiste qualquer dúvida quanto à competência do STJ para conhecimento do recurso interposto, bem como para conhecimento das questões apresentadas pelo arguido.

2.1. Todavia, consideramos que cabe ainda a este Supremo Tribunal de Justiça uma palavra sobre a qualificação jurídica dos factos.

Neste âmbito, assume particular importância o acórdão de fixação de jurisprudência n.º 4/95, de 7 de junho (DR, I série-A, de 06.07.1995, p. 4298).

Pronunciando-se sobre se “o Supremo Tribunal de Justiça poderá ou não alterar oficiosamente a qualificação jurídico-penal dos factos recolhidos na instância recorrida e sobre os quais esta erigiu a decisão que, uma vez proferida, subiu em recurso à instância superior” (acórdão cit., p. 4298-9), entendendo que o que “está em debate é a admissibilidade ou não da qualificação jurídica dos factos feita na instância em caso de recurso, quando a mesma qualificação não esteja em debate, ou seja, não constitua objecto de impugnação” (acórdão cit., p. 4299), concluiu, e fixou jurisprudência, este Supremo Tribunal no sentido de que

“O tribunal superior pode, em recurso, alterar oficiosamente a qualificação jurídico-penal efetuada pelo tribunal recorrido, mesmo que para crime mais grave, sem prejuízo, porém, da proibição da reformatio in pejus”.

Por isto, entendemos que este Supremo Tribunal pode analisar, e eventualmente alterar, a qualificação jurídica dada aos factos provados, ainda que sempre com respeito pelo princípio da reformatio in pejus.

Vejamos.

2.2. O arguido foi condenado pela prática de um crime de abuso sexual de crianças e um crime de abuso sexual de menor dependente (Do crime de violação por que vinha acusado foi absolvido por falta de prova quanto a possíveis ameaças ou violência usada durante a prática dos atos sexuais — cf. acórdão recorrido a fls. 256-7), sendo que foi questionado se os factos apurados “integra[riam] um único crime de abuso sexual de crianças e um único crime de abuso sexual de menores dependentes, uma pluralidade de crimes de cada uma das enunciadas modalidades típicas, ou, como vem defendendo certo sector da jurisprudência do STJ, no âmbito dos crimes sexuais, dois crimes de trato sucessivo ou exaurido, sendo um de abuso sexual de crianças e outro de abuso sexual de menores dependentes.” (cf. acórdão recorrido a fls. 257-8). E começando-se, no acórdão recorrido, por se fazer uma referência ao crime continuado, acaba-se referindo que tem constituído jurisprudência dos Tribunais superiores “a subsunção [de casos idênticos ao dos autos]  ao crime de trato sucessivo, tratando-se esta de uma figura que não vem contemplada na lei, sendo caracterizada pela jurisprudência dos nossos Tribunais Superiores como sendo um crime habitual, cuja consumação se prolonga no tempo por força da prática de uma multiplicidade de atos reiterados e sucessivos, cuja contagem não se mostra possível efetuar” (cf. acórdão recorrido a fls. 259-260).

 A partir daqui, considerou-se expressamente que terá havido uma pluralidade de resoluções criminosas (“Tendo presentes as considerações que se deixam vertidas e volvendo ao caso dos autos, em face da factualidade que ficou provada, afigura-se-nos que o arguido, ao adotar as condutas que resultaram apuradas em relação ao, então, menor BB e que concluímos serem subsumíveis, com referência à atuação desenvolvida pelo arguido, sobre o ofendido, ao longo da faixa etária deste compreendida entre os 7-8 anos e até completar os 14 anos, ao crime de abuso sexual de crianças p. e p. pelo artigo 171º, nº. 2, do C.P. e com referência à atuação empreendida pelo arguido para com o ofendido, seu filho adotivo, ao longo da faixa etária deste compreendida entre os 14 anos e até completar os 18 anos, ao crime de abuso sexual de menores dependentes p. e p. pelo artigo 172º, nº.1, do C.P., atuou no âmbito de uma pluralidade de resoluções criminosas.”, acórdão recorrido a fls. 261, itálico nosso), concluindo-se, no entanto, pela punição de apenas um crime de abuso sexual de criança e um crime de abuso sexual de menor dependente (“Sucede que, ficando demonstrado que o arguido praticou para com o, então, menor, BB e levou a que esta praticasse consigo, ao longo de mais de 10 anos, reiteradamente, várias vezes por semana, totalizando um número de vezes não concretamente apurado, «atos sexuais de relevo», designadamente, pelo menos, a partir dos 12 anos de idade do ofendido, atos de coito oral e de coito anal, subsumíveis à previsão do nº. 2 do artigo 171º e a partir dos 14 anos de idade do ofendido à previsão do nº. 1 do artigo 172º, sem que seja possível, proceder à quantificação do número de vezes em que o arguido praticou tal tipo de atos, tornando-se, nessa situação, qualquer contagem do número de atos praticados, ainda que por defeito, meramente arbitrária, entendemos ser de concluir pela existência de dois crimes «prolongado ou de trato sucessivo», sendo um de abuso sexual de crianças p. e p. pelo artº. 171º, nº. 2 e outro de abuso sexual de menores dependentes p. e p. pelo artº. 172º, nº. 1, em concurso efetivo.”, cf. acórdão recorrido a fls. 262), com o argumento de que não foi possível proceder à quantificação do número de vezes que ocorreram os atos de abuso, ou seja, não havendo prova do número exato de atos realizados, apenas se condena por um, apesar de ter sido dado como provado que o “arguido manteve as descritas práticas sexuais com o ofendido BB, reiteradamente, ao longo dos anos, várias vezes por semana, mesmo depois do mesmo ter atingido a maioridade, mais concretamente, até ao dia 19/05/2014” (facto provado 7).

Poderemos subsumir num único crime, ou em dois tendo em conta a idade do ofendido, aquilo que foi provado como sendo a prática de atos sexuais contra criança e contra menor dependente “ao longo dos anos, várias vezes por semana”? Poderemos reduzir o que constitui a prática de vários atos subsumíveis a tipos legais de crime, onde não se transforma a prática reiterada de vários atos em um só crime, a um só ato relevante criminalmente? Poderemos considerar que apenas há um crime quando o tipo legal de crime entende como sendo cada ato um crime, ou seja, vários atos, vários crimes?

A unificação de diversas condutas num só crime poderia levar-nos a questionar se seria aplicável a figura do crime continuado — porém será esta aplicável aos factos provados nos presentes autos?

Vejamos.

2.3.1. O crime continuado, previsto no art. 30.º, n.º 2, do CP, é caracterizado por uma “realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico, executada por forma essencialmente homogénea e no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente”; porém, esta figura criada pelo legislador não deve, nos termos do n.º 3 do mesmo dispositivo, abarcar “os crimes praticados contra bens eminentemente pessoais”.

Na verdade, o crime continuado integra uma situação que revela uma “gravidade diminuída” (Eduardo Correia) relativamente aos casos de concurso de crimes, pois apesar de abarcar “actividades que preenchem o mesmo tipo legal de crime — ou mesmo diversos tipos legais de crime, mas que fundamentalmente  protegem o mesmo bem jurídico —, e às quais presidiu uma pluralidade de resoluções criminosas (...), todavia devem ser aglutinadas numa só infracção, na medida em que revelam uma considerável diminuição da culpa do agente” (Eduardo Correia, Direito Criminal, II, Almedina, 1993, reimpressão, p. 209). E deve desde já salientar-se que mesmo no crime continuado há uma pluralidade de resoluções criminosas que, todavia, são normativamente aglutinadas numa só. Esta junção ocorre porque se entende que a situação exterior “facilitou a repetição da actividade criminosa, tornando cada vez menos exigível ao agente que se comporte de maneira diferente, isto é, de acordo com o direito” (idem).

Mas, já Eduardo Correia afirmava: “Sem esquecer que de o mesmo bem jurídico se não pode falar quando se esteja perante tipos legais que protejam bens iminentemente pessoais; caso em que, havendo um preenchimento plúrimo de um tipo legal desta natureza, estará excluída toda a possibilidade de se falar em continuação criminosa” (idem, p. 211). Situações que deverão então ser subsumidas à figura do concurso efetivo de crimes.

Na verdade, o crime continuado não é mais do que “um concurso de crimes efectivo no quadro da unidade criminosa, de uma “unidade criminosa” normativamente (legalmente) construída” (Figueiredo Dias, Direito PenalParte Geral, t. I, Coimbra Editora, 2.ª ed., 2007, 43/ § 37), considerando-se que estamos perante situações em que há uma “diminuição da culpa, em nome de uma exigibilidade sensivelmente diminuída” (idem, 43/ § 47).Trata-se, pois, de situações em que ocorre ou um dolo conjunto ou continuado,  ou onde se verifica uma pluralidade de resoluções criminosas (cf. também neste sentido, Figueiredo Dias, ob. cit., 43/ § 44 e 45), todavia legalmente unificadas de modo a construir uma unidade criminosa.

Mas, não podemos deixar de referir que a figura do crime continuado, que entre nós tem consagração legal, teve origem jurisprudencial (no séc. XIX, na Alemanha), mas acabou por ser rejeitada pela jurisprudência e pela doutrina (cf., Roxin, Derecho Penal. Parte General, t. II, Civitas, 2014, § 33, nm. 256 e ss). E esta posição crítica também aparece na doutrina portuguesa — “não pode esquecer-se que figura do crime continuado, na medida em que dispensa o Tribunal de determinar o número exacto de actos singulares abrangidos pela continuação criminosa e bem assim de aplicar uma pena a cada um desses actos (...) frequentemente estimula uma falta de rigor na averiguação, comprovação e valoração jurídico-penal dos factos relevantes para o respectivo processo.” (Maria da Conceição Valdágua, As alterações ao Código Penal de 1995, relativas ao crime continuado. Propostas no anteprojecto de revisão do Código Penal, RPCC, 2006, p. 538).

Na verdade, tem sido considerado que a figura do crime continuado privilegia injustamente os agentes de um crime continuado, relativamente aos que praticam um concurso efetivo de crimes, e desde logo tendo em conta o efeito de caso jugado que abarca todos os atos integrados na continuação ainda que não tenham feito parte do objeto do processo (Roxin, ob. e loc citado). Mas produz igualmente prejuízos para o condenado, não só porque pode conduzir a um exame superficial dos factos praticados, como prolonga no tempo o início do prazo de prescrição do procedimento criminal, dado que esta apenas se inicia com o último facto praticado (cf. art. 119.º, n.º 2, al. b), do CP).

Ora, tratando-se no presente caso de crimes contra bem jurídico eminentemente pessoal, como é o bem jurídico da autodeterminação sexual da criança e do menor dependente logo por força do disposto no art. 30.º, n.º 3, do CP, bem andou o acórdão recorrido que considerou não ser o caso dos autos subsumível à figura do crime continuado, ainda que o argumento utlizado para chegar a esta conclusão tenha sido tão-só o da existência de uma pluralidade de resoluções criminosas.

Devemos assim concluir que houve uma pluralidade sucessiva de crimes contra a autodeterminação sexual do ofendido praticados ao longo de um período excessivamente longo de tempo, cerca de mais de 10 anos — entre 2002/2003 (cf. facto provado 3) e até 19.05.2014 (cf. facto provado 7).

2.3.2. Mas é com base nesta ideia de sucessão de crimes idênticos contra a mesma vítima, e num certo e delimitado período temporal, que o Supremo Tribunal de Justiça tem considerado que estamos perante o que vem designando de “crime de trato sucessivo”, e por isso o acórdão recorrido acabou por condenar o arguido em apenas um crime de abuso sexual de criança e um crime de abuso sexual de menor dependente.

Na verdade, alguma jurisprudência deste Supremo Tribunal, partindo da ideia de que quando ocorre uma execução repetida ao longo de um período de tempo se torna “arbitrária qualquer contagem”, tem considerado que estamos perante “crimes prolongados, protelados, protraídos, exauridos ou de trato sucessivo, em que se convenciona que há só um crime — apesar de se desdobrar em várias condutas que, se isoladas, constituiriam um crime — tanto mais grave [no quadro da sua moldura penal] quanto mais repetido”. E nestes “crimes prolongados não há uma diminuição considerável da culpa, mas, antes em regra, um seu progressivo agravamento à medida que se reitera a conduta”.

Para que este “crime prolongado ou de trato sucessivo” exista, exige a jurisprudência “uma «unidade resolutiva», realidade que se não deve confundir com «uma única resolução»” —  “deverá haver uma homogeneidade na conduta do agente que se prolonga no tempo, em que os tipos de ilícito, individualmente considerados são os mesmos, ou, se diferentes, protegem essencialmente um bem jurídico semelhante, sendo que, no caso dos crimes contra as pessoas, a vítima tem de ser a mesma” (transcrições do acórdão do STJ, de 29.11.2012, proc. n.º 862/11.6TAPFR.S1, relator: Cons. Santos Carvalho).

Ou seja, a jurisprudência portuguesa, seguindo as pisadas da jurisprudência alemã que construiu o crime continuado por dificuldade de prova, acaba por unificar, à margem da lei, várias condutas numa única, considerando que há uma unidade de resolução (que abarca todas as resoluções parcelares que ocorrem aquando da prática de cada sucessivo ato integrador de um tipo legal de crime), mas em que, à medida que se prolonga no tempo, produz uma agravação da culpa do agente.

É esta conduta prolongada, protraída, no tempo que levou à sua designação como crime prolongado, embora a caracterização do crime como prolongado dependa de a conduta legal e tipicamente descrita se poder considerar como sendo uma conduta prolongada — ora, a conduta, por exemplo, do crime de abuso sexual de criança, ainda que este seja repetidos inúmeras vezes, está limitada temporalmente; os atos consubstanciadores daquele abuso, isto é, a prática de “acto sexual de relevo” (cf. arts. 171.º e 172.º, ambos do CP) ocorrem num certo período e quando sucessivamente repetidos constituem um mesmo crime de abuso sexual.

Porém, ideia de sucessão de condutas que parece querer-se atingir com a designação de “trato sucessivo” implica necessariamente que haja uma sucessão de tipos legais de crime preenchidos e, portanto, segundo a lei, uma punição em sede de concurso de crimes. A unificação de todos os crimes praticados em apenas um crime, quando o tipo legal de crime impõe a punição pela prática de cada ato sexual de relevo, e sem que legalmente esteja prevista qualquer figura legal que permita agregar todos estes crimes, constitui uma punição contra a lei, desde logo, por não aplicação do regime do concurso de crimes.  Isto é, não podendo unificar-se a prática de todos aqueles atos no crime continuado, previsto no art. 30.º, n.º 2, do CP, por força do disposto no art. 30.º, n.º 3, do CP, então apenas nos resta aplicar o disposto no art. 30.º, n.º 1, do CP, segundo o qual “[o] número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente.” Entender que tendo sido o mesmo tipo legal de crime preenchido diversas vezes pela conduta do arguido, ainda assim devemos entender como estando apenas perante um único crime, será decidir contra legem.

Além do mais, a designação de “trato sucessivo” constitui uma designação com um significado juridicamente muito preciso e decorrente do Código de Registo Predial (cf. art. 34.º) pretendendo-se documentar o trato, a traditio da coisa, sucessivamente; ora, num crime sexual não há traditio.

E crime exaurido ou consumido dá a ideia de que logo no primeiro ato se consuma, tornando irrelevantes os atos sucessivos. Ora, o exaurimento do crime assume importância em todos aqueles casos em que, após a consumação, ocorre a terminação do crime, sendo relevante a desistência da tentativa entre um e outro momento. Mas a prática de um crime sexual seguida da de outros crimes sexuais não impede a consumação de um crime sexual em cada um dos atos.

Porém, o que se pretendeu — tal como se afirma no voto de vencido do Cons. Manuel Braz ao acórdão supra citado,  e seguindo Lobo Moutinho (Da unidade à pluralidade dos crimes no direito penal português, UCP, 2005, p. 620, nota 1854) —, foi acentuar a reiteração da conduta criminosa — o “crime de trato sucessivo” assim caracterizado corresponde ao crime habitual, ou seja, “aqueles em que a realização do tipo incriminador supõe que o agente pratique determinado comportamento de uma forma reiterada, até ao ponto de ela poder dizer-se habitual” (Figueiredo Dias, ob. cit. supra, 11/ § 55).

No entanto, o entendimento de um crime como sendo crime habitual tem necessariamente que decorrer, atento o princípio constitucional da legalidade criminal (art. 29.º, n.º 1, da CRP), do tipo legal de crime previsto na legislação.

E nenhum crime sexual é previsto na legislação como crime habitual (é exemplo de um crime habitual expressamente previsto no CP o crime de lenocínio).

Unificar jurisprudencialmente várias condutas integradoras de tipos legais de crimes sexuais num único crime constitui uma clara violação do princípio da legalidade. Na verdade, ainda que as condutas criminosas estejam próximas temporalmente, ou sejam sucessivas, não podemos considerar estarmos perante um único crime. A punição de uma certa conduta a partir da reiteração, sem possibilidade de análise individual de cada ato, apenas decorre da lei, ou dito de outro modo, do tipo legal de crime. Ora, unificar diversos comportamentos individuais que têm subjacente uma resolução distinta sem que a lei tenha procedido a essa unificação constitui uma clara violação do princípio da legalidade, e, portanto, uma interpretação inconstitucional do disposto nos arts. 171.º e 172.º, ambos do CP.

Em parte alguma os tipos legais de crime de abuso sexual de criança e de abuso sexual de menor dependente permitem que se possa entender apenas como um único crime a prática repetida em diversos dias, ao longo de vários anos — mais de 10 —, em momentos temporalmente distintos, e fundada em sucessivas resoluções criminosas, de diversos atos sexuais de relevo.

Poder-se-á ainda assim perguntar: e se for um abuso sexual de manhã e outro à noite, ainda assim estamos perante dois crimes de abuso sexual?

Estaremos sempre perante um crime de abuso sexual sempre que se ofenda o bem jurídico da autodeterminação sexual, sempre que o novo ato constitua um novo constrangimento da vítima, sempre que se a vítima tenha sido novamente obrigada, novamente abusada.

Alguma vez a jurisprudência veio dizer que uma facada de manhã e uma facada à tarde constituía o mesmo crime de violação da integridade física? Ou que uma facada hoje e outro amanhã, e outra na semana passada... se tratava de um mesmo crime de "trato sucessivo"(??), prolongado, exaurido, considerando que o agente tinha tido uma “unidade resolutiva”?

A jurisprudência ao subsumir num único comportamento global, baseado numa “unidade resolutiva”, as diversas ações integradoras — cada uma individualmente — de um crime de abuso sexual viola claramente o tipo legal de crime, unificando num único crime, aquilo que consubstancia a prática de diversos crimes.

Porém, casos há em que não é possível apurar o número exato de condutas praticadas pelo arguido. Ou seja, sobra a pergunta: tendo conseguido a prova dos atos de abuso sexual, mas sem prova precisa do número de vezes e do momento temporal, o arguido deve ser absolvido dos crimes que praticou? Ou quantos crimes devem ser-lhe imputados?

Tantos quantos se consiga averiguar.

De outra forma estaremos também aqui a dispensar a investigação de determinar o número exato de atos singulares que foram praticados, abrindo mão do necessário rigor na investigação, e impedindo a valoração jurídico-penal de cada facto relevante praticado pelo arguido. Pode sempre argumentar-se com a necessidade de encontrar uma solução que permita ultrapassar a dificuldade de prova do exato número de factos ilícitos praticados. Consideramos, no entanto, que se trata apenas de uma situação de direito a constituir, dado que não está previsto na lei, pelo que qualquer solução que nesta não esteja prevista não cumpre o princípio nuclear em matéria de direito penal — o princípio da legalidade.

Enquanto se mantiver a legislação que temos, cabe fazer a prova do maior número possível de atos individuais, devendo ser excluídos, em nome do princípio in dubio pro reo, aqueles cuja prova se não consegue obter de forma segura (em sentido idêntico, Roxin, Derecho Penal. Parte General, t. II, Civitas, 2014, §33, nm. 269).

Além disto, pode sempre dizer-se, tal como a jurisprudência alemã argumenta contra a figura do crime continuado (sem expressão legal no Código Penal alemão), que a unificação das várias condutas numa análise global prejudica o arguido — «Ainda que cada facto individual deva ser constatado e provado, a circunstância de as numerosas realizações dos crimes ficarem “fundidas” em um facto total e sem que se imponham penas individuais para cada um deles, conduz frequentemente apenas a um exame superficial dos factos. “(...) [T]em induzido também em não poucas ocasiões a “comprovações” demasiado globais, que têm impedido um exame da realização do tipo e do grau de culpa pelo tribunal de revista, dando lugar a consideráveis restrições das possibilidades de defesa do acusado e têm suscitado a preocupação de que o juiz se deixou levar por uma impressão de conjunto, confusa nos seus limites, e não pela convicção da realização do tipo em cada caso concreto” (BGHSt 40, 147)” (Roxin, ob. cit., § 33/ nm. 260).

Acompanhamos, pois, de perto o que já este Supremo Tribunal disse. Assim:

- acórdão de 17.09.2014, proc. n.º 595/12.6TASLV.E1.S1 (Relator: Cons. Pires da Graça):
«Não há aqui qualquer dúvida, é abertamente referida a pluralidade de crimes como pressuposto da aplicação do crime de trato sucessivo (…).
Na impossível transposição das citadas regras psicológicas e de senso comum, assume-se abertamente a existência de pluralidade de infracções, tal como no crime continuado, mas dispensando o também dificilmente verificável requisito da diminuição da culpa, chega-se à mesma conclusão: unidade criminosa, benefício alegadamente temperado com a graduação mais intensa da pena, nos moldes já expostos e que são, ultimamente, invariáveis, isto é, as penas são idênticas às equivalentes ao crime único.
 Em suma, onde se verificam vários crimes ficciona-se que apenas houve um.
Mas como a lei, insofismavelmente, contrapõe ao crime continuado a punição por cada crime perpetrado, no campo para que evoluiu a figura do crime de trato sucessivo (da consideração, em concreto, de aparente unidade de resolução e para o tornar em sucedâneo do agora inutilizável crime continuado) este surge como solução claramente “contra legem” e por isso de rejeitar liminarmente.
 Em casos como o que nos ocupa, poderemos falar sem sobressalto de resoluções criminosas idênticas. Mas isso não equivale à sua unificação. De cada vez que se impôs à sua enteada teve, para o que nos ocupa, de tomar uma daquelas resoluções, tal como o agente que decide esfaquear outrem em dias distintos, assaltar determinada pessoa em várias ocasiões ou violar certo indivíduo em diversas alturas.
 São exemplos pacíficos de pluralidade de resolução, a que equivale a pluralidade de infracções e que no essencial não divergem dos casos de abuso sexual de crianças prolongado no tempo sem que se saiba o número exacto de ocasiões.
Se as razões do recurso à unificação criminosa, porventura, radicam na desproporcionalidade das punições segundo os critérios legais vigentes, para quem assim entenda, mais não há do que desaplicá-los, por inconstitucionalidade fundada na violação do princípio da proporcionalidade.
 Mais uma vez, a figura do trato sucessivo não tem, em boas contas e salvo o devido respeito por diversa opinião, qualquer utilidade.
No campo das categorias abstractas de crimes a conclusão é idêntica, pois, invariavelmente acaba por surgir como equivalente a categorias já existentes, em nada adiantando à dogmática penal. Pelo contrário, só irá servir para confundir conceitos.
 Assim, de nada adianta equipará-la à noção de crime permanente, já existente (ou crime duradouro – por todos Prof. Figueiredo Dias, em Direito Penal, parte geral, tomo I, Coimbra Editora, pág. 295 e seguintes) e que curiosamente até se contrapõe a crime instantâneo (de que o abuso sexual de criança constitui exemplo claro).
 Menos ainda a crime de empreendimento, pois estes caracterizam-se pela equiparação típica entre tentativa e consumação.
 Sequer com crime exaurido, já que este se caracteriza pela circunstância de que “o primeiro passo dado pelo agente na senda do «iter criminis» já constitui o preenchimento do tipo”, segundo o Ac. do STJ de 9.10.2003 (Procº 03P2851).
 Conclui-se portanto pela total irrelevância da figura do crime de trato sucessivo e pela mesma crítica da comunidade à indevida utilização da figura do crime continuado em casos de abuso sexual de crianças.» (in www. dgsi.pt)

- acórdão de 22.04.2015, proc. n.º 45/13.0JASTB.L1.S1, Relator: Cons. Sousa Fonte:
« Discordamos da qualificação dos plúrimos abusos sexuais sobre o mesmo ofendido como constitutivos de um crime de trato sucessivo.
Não desconhecemos que o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29.11.2012, Pº nº 862/11.6TAPFR.S1, citado no acórdão recorrido, tirado com o voto de vencido do primitivo Relator, num caso em que o aí Arguido foi condenado, na 1ª Instância, pela autoria, em concurso real, de diversos crimes de natureza sexual, decidiu que se estava aí perante crimes de trato sucessivo. (…)
Parece claro que tanto os tipos de crime de abuso sexual de crianças e de abuso sexual de menores dependentes como o de violação não contemplam aquela «multiplicidade de actos semelhantes» que está implicada no crime habitual nem, por isso, a sua realização supõe um comportamento reiterado.
Cada um dos vários actos do arguido foi levado a cabo num diverso contexto situacional, necessariamente comandado por uma diversa resolução e traduziu-se numa autónoma lesão do bem jurídico protegido. Cada um desses actos não constituiu um momento ou parcela de um todo projectado nem um acto em que se tenha desdobrado uma actividade suposta no tipo, mas um “todo”, em si mesmo, um autónomo facto punível. Deve por isso entender-se que, referentemente a cada grupo de actos, existe, usando palavras de Figueiredo Dias, «pluralidade de sentidos de ilicitude típica» e, portanto, de crimes (ob. cit., página 989)».» (in www.dgsi.pt).
Assim sendo, nos presentes autos ficou provado que o arguido manteve as práticas sexuais contra o ofendido até aos 12 anos de idade e para além dos 12 anos de idade e até 19.05.2014 (altura em que o ofendido tinha 18 anos de idade) “reiteradamente, ao longo dos anos, várias vezes por semana” (facto provado 7).         
Ora, ainda que se diga que não é possível apurar o número de vezes em cada semana em que tais práticas foram realizadas, no mínimo, caberia fazer prova se teriam sido realizadas todas as semanas. Isto porque, e segundo a fundamentação da matéria de facto, o tribunal atendeu ao depoimento de uma das testemunhas que considerou como “deixando transparecer segurança, consistência e isenção” (cf. acórdão recorrido a fls. 242, itálico nosso) e que terá afirmado que a vítima “lhe confirmou, por altura da apresentação da denúncia, os atos sexuais praticados pelo pai, ora arguido, sobre si e que era obrigado, manifestando-lhe que tinha medo, verbalizando-lhe o ofendido a propósito da atuação sexual do arguido para consigo “… é todos os dias … constantemente … ao fim de pouco tempo de estar lá em casa … isto já não é de agora … já vem muito para trás …” e descrevendo os atos de sexo anal a que o arguido o sujeitava” (idem). Sendo certo, todavia, que tendo sido dado como não provado que a prática dos atos fosse diária [facto não provado c)], nada foi dito quanto a uma possível prática semanal.
Além do mais, considerando a inconstitucionalidade, por violação do princípio da legalidade, subjacente ao entendimento de redução da prática de vários atos integradores de per si de vários crimes contra a autodeterminação sexual em um só crime, concluímos não ter matéria de facto provada suficiente para a decisão.
Isto é, sabendo que foi dado como provado que os atos de abuso sexual ocorreram desde que o ofendido tinha 7/8 anos (facto provado 3), sabendo que tais práticas ocorreram várias vezes por semana ao longo dos anos até ao dia 19.05.2014 (facto provado 7), o que significa que, na dúvida, ocorreram apenas duas vezes por semana  (dado que uma vez por semana não corresponde ao provado “várias vezes por semana”), e sabendo que não foi possível provar que tivessem ocorrido diariamente [facto não provado c)], apenas nos resta saber se ocorreram todas as semanas. E por isso se determina o reenvio dos autos apenas para apurar este facto, e devendo ser proferida nova decisão em consonância com o que vier a ser provado.
E não se diga que a provar-se, por exemplo, que as práticas de ato sexual de relevo ocorreram todas as semanas ao longo daqueles anos, com isto se verifica uma alteração substancial dos factos relativamente ao que consta da acusação. Pois desta, apesar de os factos ali descritos terem sido qualificados juridicamente apenas como um crime de abuso sexual de criança e um crime de abuso sexual de menor, o certo é que se apresentavam já os seguintes factos:
“(...) No ano de 2003, entre os meses de Outubro e Novembro, quando o ... tinha 8 anos e se encontrava deitado a dormir a sesta, em casa da avó materna, sita numa Quinta localizada nas ..., o arguido foi ter com ele e começou a acariciar-lhe o pénis e as nádegas, por cima da roupa, dizendo-lhe que era normal os pais tocarem assim nos filhos
Tal prática aconteceu por diversas vezes, sempre que estavam sozinhos em casa, com uma frequência de duas a três vezes por semana e durante cerca de um ano. (...)
Quando o menor atingiu os 12 anos de idade, o arguido passou a introduzir o seu pénis no ânus do menor, friccionando-o até à ejaculação, prática que manteve diariamente até ao dia 19/05/2014.(...)
O arguido manteve contactos sexuais consubstanciados em carícias, sexo oral e anal com o próprio filho, de modo ininterrupto e reiterado, desde que este tinha 8 anos de idade até aos 17 anos. ” (itálicos nossos).
Ou seja, qualquer prova, por exemplo, da prática em todas as semanas é ainda algo que se enquadra nos factos por que vinha acusado — de prática duas a três vezes por semana até aos 9 anos do ofendido, e prática diária a partir dos 12 anos de idade do ofendido —, sem que se possa dizer que há alteração substancial dos factos.



 Assim sendo, e dado que do texto da decisão recorrida resulta a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, nos termos do art. 410.º, n.º 2, al. a), do CPP, determina-se o reenvio do processo para novo julgamento quanto ao referido.
3. Com isto fica prejudica o conhecimento das outras questões apresentadas pelo recorrente.


III

Conclusão

                                                                                                                                       


            Nos termos acima expostos, acordam em conferência na secção criminal do Supremo Tribunal de Justiça, em reenviar o processo para novo julgamento ao abrigo do disposto no art. 426.º, n.º 1, do CPP, e sem prejuízo do disposto no art. 426.º-A, do CPP e do princípio da proibição da reformatio in pejus (art. 409.º, do CPP), apenas para que, em novo julgamento, e tendo em conta que “o arguido manteve as descritas práticas sexuais com o ofendido BB, reiteradamente, ao longo dos anos, várias vezes por semana (...) até ao dia 19/05/2014” (facto provado 7), se determine se os atos realizados no período referido nos factos provados 3, 6 e 7, ocorreram todas as semanas.

            Não são devidas custas.

Supremo Tribunal de Justiça, 4 de maio de 2017

Os Juízes Conselheiros,

Helena Moniz (relatora) *
Nuno Gomes da Silva