Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
514/12.0TBBCL.G1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: LOPES DO REGO
Descritores: DIREITO DE SUPERFÍCIE
OBJECTO
PARTE DO SOLO NÃO NECESSÁRIA À IMPLANTAÇÃO DA OBRA
OBRIGAÇÃO DE DESTINAR O PRÉDIO A CERTA FINALIDADE
EXTINÇÃO DO DIREITO DE SUPERFÍCIE
Data do Acordão: 09/29/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADO PROVIMENTO À REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - DIREITOS REAIS / DIREITO DE SUPERFÍCIE.
Doutrina:
- António Pinto Monteiro, Anotação ao Acórdão do S.T.J. de 09/05/2006, na R.L.J., N.º 3943, 234 a 256.
- João de Matos Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Vol. I, 7.ª ed., Almedina, 123 a 127.
- Mário Júlio de Almeida Costa, Direito das Obrigações, 1979, Almedina, 53.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 801.º, N.º2, 1525.º, N.º1, 1536.º, N.º1, AL. A).
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 09/05/2006.
Sumário :
I - Tendo as partes constituído o direito de superfície sobre a totalidade de determinado imóvel, abrangendo tanto a obra que o superficiário se vinculou a edificar como a totalidade do solo, não necessária à implantação do edifício, mas dotada de utilidade para o uso da obra que está na génese da constituição do próprio direito de superfície, o mero incumprimento da obrigação, lateral ou acessória, de destinar o prédio a certa utilização específica é insusceptível de produzir efeitos no plano do direito real, determinando a respectiva extinção parcial, em termos idênticos aos que estão previstos para a não conclusão da obra no prazo de 10 anos.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:



1- AA (Fundação BB) instaurou acção de condenação, sob forma de processo ordinário, contra o Estado Português (Ministério da Agricultura, Desenvolvimento Regional e Pescas), alegando que é dona do prédio misto denominado Quinto CC, situada em …, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº 85… e inscrito na matriz urbana sob o artigo 114.º e na rústica sob o artigo 227.º:

Na sequência de um protocolo que celebrou com o R., cedeu-lhe, em 06/09/1989, o direito de superfície sobre o referido imóvel, pelo prazo de cem anos. Esse contrato ficou subordinado, entre outras, às seguintes condições:

a) Ser pelo R. edificado e instalado no mencionado prédio um Centro de Formação Profissional Agrícola, da responsabilidade da Direcção Regional de Agricultura de entre Douro e Minho;

b) Poder o R. efectuar as obras e edificações urbanas indispensáveis ao funcionamento do fim a que se destinava a tomada de posse efectiva de tais bens, com excepção da alteração da estrutura externa das edificações já existentes.

c) As obras a realizar seriam aquelas que foram incluídas no Programa de Instalação de Centro de Formação Profissional Agrícola para a Região de Entre o Douro e Minho, no âmbito do PEDAP, financiado pela Comunidade Económica Europeia;

d) A título de compensação pela cessão do direito de superfície, o serviço do R. (Direcção Regional) pagaria à A., anualmente, a quantia de cento e vinte mil escudos, com vencimento no dia trinta de Dezembro de cada ano e com actualização de dois em dois anos, de acordo com a taxa de inflação fixada pelo Instituto Nacional de Estatística para cada biénio;

e) O pagamento da contribuição Autárquica (actual IMI) ficou a cargo do R;

f) A cedência à A. de uma sala do edifício para a realização das reuniões normais ou extraordinárias da sua Direcção, bem como a manutenção do Arquivo que estava na denominada casa do Caseiro;

g) O direito da A. a nomear cinco alunos pobres, naturais do concelho de Barcelos, para frequentarem os cursos que se realizassem no Centro Profissional.


O R. tomou posse do prédio, na sua totalidade, e nele construiu, no extremo sul, um edifício destinado ao ensino e formação de agricultores e empresários agrícolas, dotando-o de salas de aula, quartos para internato, refeitório e tudo o mais necessário à função acordada. Aí foram ministrados vários cursos até 1995/1996.

Porém, a partir de então, deixaram de ser ministrados mais cursos de formação agrícola no edifício, deixando de ser utilizado por alunos jovens agricultores, quer o refeitório, quer os quartos de dormir, quer as salas.

O edifício passou a ser utilizado para outras actividades.

Além disso, na restante parte da quinta, que possui mais de 8 hectares, nada mais foi construído destinado ao “Centro de Formação Agrícola”. Apenas, alguns anos mais tarde, sem o seu conhecimento, o R. instalou cavalos na mesma quinta e construiu uns barracões e cavalariças, edificados sem projecto, - construções precárias e sem acabamentos. Nada disto, porém, se destina a servir, sequer de complemento, a qualquer curso agrícola.

Por outro lado, o R. só lhe pagou as compensações anuais até ao ano de 1993.

Assim, entende que o R. violou o citado contrato, porquanto:

- Não lhe pagou, desde o ano de 1994, inclusive, a aludida prestação em dinheiro como compensação do direito de superfície de que goza;

- Realizou no prédio em causa diversas construções, barracões e cavalariças, sem a sua autorização.

- Deixou de ministrar os cursos de formação agrícola no edifício e de o utilizar para fins previstos no contrato.

- Por fim, o R. também violou o contrato ao ocupar, passados que foram os primeiros dez anos, não só o terreno dos barracões e cavalariças como a quase totalidade da quinta, nomeadamente com pastagem dos cavalos, em vez de se limitar a fruir apenas os 2100m2 ocupados pelo edifício e área envolvente ao mesmo.


Embora estas violações justificassem resolução do contrato pela sua parte, pretende que o mesmo seja mantido.

Pede, no entanto, que o R. seja condenado:

a) A reconhecer o seu direito de propriedade sobre a descrita Quinto CC, a demolir as construções não autorizadas, nomeadamente os barracões e cavalariças, e a abster-se de usar os terrenos com pastagem ou outras actividades, bem como os edifícios antigos existentes, e respeitar o seu direito, não o voltando a violar;

b) A fruir o edifício que construiu e terreno envolvente com ocupação apenas da área de 2100m2 incluindo coberta e descoberta e destiná-lo exclusivamente à efectiva actividade regular de ensino e formação agrícola para enriquecimento e desenvolvimento da Agricultura, Pecuária ou Florestal;

c) A pagar-lhe a quantia de 23.153,62€, relativa às prestações em divida a que se obrigou contratualmente;

d) A dar cumprimento a todos esses actos no prazo de noventa dias.

Contestou o R., excepcionando prescrição dos cânones superficiários relativos aos anos de 1994 a 2007, tendo, ademais, impugnado a matéria invocada pelo A.

O A. replicou, concluindo, em suma, como na petição inicial.

Findos os articulados, afirmou-se a regularidade da instância e julgou-se imediatamente procedente a excepção de prescrição invocada pelo R.

Teve lugar a audiência final, após a qual foi proferida sentença, que termina com o seguinte dispositivo:

“Pelo exposto, julgo a presente acção parcialmente procedente, por provada apenas em parte e, consequentemente:

a) Declaro o autor AA (Fundação BB) proprietário do prédio misto denominado Quinto CC, composto de casa de dois pavimentos e junto terreno de lavradio e mato, com dependências agrícolas, descrito na Conservatória do Registo Predial de Barcelos sob o n° 85…/Barcelinhos e inscrito na matriz urbana sob o art.° 114 e na rústica sob o art. ° 227.º;

b) Condeno o réu Estado Português (Ministério da Agricultura, Desenvolvimento Regional e Pescas) a limitar a sua fruição do prédio referido em a) ao edifício que construiu e ao terreno envolvente, com ocupação de apenas 2.100m2 incluindo coberta e descoberta, assim como a destiná-lo exclusivamente à efectiva actividade regular de ensino e formação agrícola.

c) Condeno o réu Estado Português (Ministério da Agricultura, Desenvolvimento Regional e Pescas) a demolir as construções não autorizadas - barracões e cavalariças - e a abster-se de usar os terrenos com pastagem ou outras actividades, assim como os edifícios antigos existentes;

d) Condeno o réu Estado Português (Ministério da Agricultura, Desenvolvimento Regional e Pescas) a pagar ao autor AA (Fundação BB) a quantia de 2. 697.87€ (dois mil seiscentos e noventa e sete euros e oitenta e sete euros), a título de cânones superficiários relativos aos anos de 2008 a 2011, bem como os vincendos após a propositura da acção;

e) Absolvo o réu do demais peticionado.


2.- Inconformado com a sentença, dela apelou o R., tendo a Relação fixado o seguinte quadro factual, subjacente ao litígio:

1- A Autora é dona do prédio misto denominado Quinto CC, composto de casa de dois pavimentos e junto terreno de lavradio e mato, com dependências agrícolas, descrito na Conservatória do Registo Predial de Barcelos sob o n° 85…/Barcelinhos, e inscrito na matriz urbana sob o art.º 114.° e na rústica sob o art.º 227.°.

2- A Autora adquiriu o referido prédio por compra que fez, em 22 de Junho de 1931, a DD e mulher.

3- Desde essa data, que a autora passou a exercer a exploração e uso do prédio, e construiu, ainda nos anos 30 do século XX, novas instalações agrícolas, eira, habitação de feitor e anexos, cedeu também a terceiros a fruição agrícola, temporariamente, mediante o recebimento de prestações em dinheiro, ou rendas.

4- A vista de toda a gente, sem oposição de ninguém, sem interrupção, há mais de setenta anos, com a consciência de exercer o direito próprio de dono.

5- Encontra-se a aquisição do referido direito de propriedade registada na Conservatória do Registo Predial de Barcelos a favor da autora, através da inscrição n.º 21.446.

6- Na sequência de um protocolo, reduzido a escrito particular, de 14 de Novembro de 1988, celebrado entre a autora e réu, foi outorgado em 06 de Setembro de 1989, sob escritura pública, um contrato entre ambos, intitulado de “Constituição de Direito de Superfície” sobre a referida Quinto CC, pelo prazo de 100 anos, constante de fls. 17 a 21 e que aqui se dá por reproduzido.

7- Esse contrato ficou subordinado, entre outras, às seguintes condições:

a) Ser pelo réu edificado e instalado no mencionado prédio um Centro de Formação Profissional Agrícola, da responsabilidade da Direcção Regional de Agricultura de Entre Douro e Minho.

b) Poder o réu efectuar as obras e edificações urbanas indispensáveis ao funcionamento do fim a que se destina a tomada de posse efectiva de tais bens, com excepção da alteração da estrutura externa das edificações existentes obrigando-se a manter tais estruturas tal como se encontram.

c) As obras a realizar serem aquelas que foram incluídas no Programa de Instalação de Centro de Formação Profissional Agrícola para a Região de Entre o Douro e Minho, no âmbito do PEDAP, financiado pela Comunidade Económica Europeia;

d) A título de compensação pelo direito de superfície, o serviço do Réu (Direcção Regional) pagar à autora anualmente a quantia de cento e vinte mil escudos, com vencimento no dia trinta de Dezembro de cada ano e com actualização de dois em dois anos, de acordo com a taxa de inflação fixada pelo Instituto Nacional de Estatística.

e) O pagamento da contribuição autárquica (actuai IMI) ficar a cargo do réu.

f) A cedência à autora de uma sala disponível do edifício a construir sob o direito de superfície, para a realização das reuniões normais ou extraordinárias da sua direcção, bem como a manutenção do arquivo que estava na denominada casa do caseiro.

g) O direito da autora nomear cinco alunos pobres, naturais do concelho de Barcelos, para frequentarem os cursos que se realizarem no Centro de Formação Profissional.

8 - O réu usou o prédio na sua totalidade.

9 - Iniciou e concluiu as obras de construção de um edifício destinado ao ensino e formação de agricultores e empresários agrícolas, dotando-o de salas de aula, quartos para internato, refeitório e tudo o mais necessário à função acordada.

10 - Na entrada, foi afixado um letreiro, que se mantém, com os dizeres “DRAP Norte - Direcção Regional de Agricultura e Pescas do Norte - Delegação Regional do Cávado”.

11 - O edifício serviu de alojamento à selecção de andebol de Angola.

12 - Foi ministrado no edifício um curso de formação promovido pelo Centro de Emprego do Ministério da Solidariedade Social.

13 - O edifício construído situa-se num extremo sul da Quinto CC, ocupando, com o terreno envolvente, cerca de 2100 m2, considerando a frente com 70 metros e a profundidade de 35 metros.

14 - O edifício foi concluído entre 1992 e 1993.

15 - Até terem decorrido dez anos da data do contrato de constituição do direito de superfície (6 de Setembro de 199), o réu não construiu mais nada, nem na parte rústica nem na urbana, mantendo-se os edifícios existentes com os pisos e áreas que sempre tiveram.

16 - O réu não entregou à autora a parte do prédio, sobrante dos 2.100 m2 ocupados pelo edifício por ele construído.

17 - O réu pagou à autora o valor das compensações anuais até ao ano de 1993 inclusive.

18 - A partir de meados da década de noventa, o réu manifestou à autora o desejo de rectificar a escritura de constituição do Direito de Superfície, sob a alegação de dever constar nela, como identificação do superficiário, o termo «Estado» e não apenas o termo “Direcção Regional de Agricultura do Entre Douro e Minho”.

19 - A Direcção Regional de Agricultura é um serviço do réu e o contrato foi efectuado sob homologação prévia do Secretário de Estado da Agricultura, em 17 de Novembro de 1988, ratificado por Despacho do Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais de 08 de Outubro de 1991.

20 - As solicitações do réu, para a rectificação da escritura, chegaram a ser efectuadas através de vários dos seus serviços, nomeadamente pela Direcção Regional da Agricultura, pela Repartição de Finanças, pela Direcção Geral do Património do Estado, e pela Direcção Geral do Tesouro.

21 - A Autora mantinha, e mantém, o interesse no cumprimento do contrato por parte do Estado Réu.

22 - Já no ano de 2007, a autora recebeu do réu, um pedido de informação ainda sob a pretensão deste da rectificação da escritura.

23 - A autora em resposta enviou ao réu uma carta.

24 - A essa carta, o réu respondeu à autora, com data de 24 de Outubro de 2007, a informar terem sido pedidos esclarecimentos à Direcção Regional de Agricultura e Pescas do Norte e, logo que as mesmas fossem fornecidas, a autora seria contactada para os efeitos tidos por convenientes;

25 - Após os anos de 1995 e 1996, a autora deixou de ser convidada para indicar os cinco alunos de que detinha o direito correspondente.

26 - Após o ano de 1996, foram realizadas as seguintes acções de formação profissional, no Centro de Formação profissional de Barcelinhos:

a) 2.ª Fase do «Curso de Empresários Agrícolas (CEA117), decorrida entre 20 de Junho de 1995 e 22 de Janeiro de 1996, organizado pela Cooperativa Agrícola de Barcelos;

b) Curso «Base de Agricultura (CBA 28)», decorrido entre 19 de Agosto de 1996 e 12 de Fevereiro de 1997, organizado pela Cooperativa Agrícola de Barcelos;

c) Curso «Produção Integrada da Vinha (PROIV0202)», decorrido entre 18 de Março de 2002 e 18 de Abril de 2002, organizado pela Associação A EE, e;

d) Curso «Produção Integrada de milho, arroz e cereais de Out/Inv (PINT0602)», decorrido entre 01 a 10 de Outubro de 2006, organizado pela Associação FF.

27 - O refeitório, os quartos de dormir e as salas do edifício referido em 9) deixaram de ser utilizados por alunos jovens agricultores.

28 - O edifício passou a ser utilizado na realização esporádica de reuniões, seminários, ou conferências.

29 - Parte do edifício chegou a encontrar-se com salas e quartos vazios.

30 - Parte do edifício chegou a ser utilizado para dormidas, contra o pagamento de quantia não apurada, por funcionários do Ministério da Agricultura.

31 - O refeitório chegou a ser utilizado para servir refeições a funcionários públicos de outras repartições, contra o pagamento de uma quantia não apurada.

32 - Parte do edifício encontra-se ocupada por funcionários da Direcção dos Serviços Pecuários.

33 - Na restante parte da Quinta, com cerca de 8 hectares, nada mais foi construído destinado ao “Centro de Formação Agrícola”.

34 - Em data não apurada, sem o conhecimento ou autorização da autora, o réu acolheu cavalos na Quinta.

35 - Construiu ou permitiu a construção de uns barracões e umas cavalariças, edificados sem projecto, nem qualquer plano, constituindo construções precárias e sem acabamentos.

36 - Os animais e construções referidos em 34) e 35) não se destinam a servir qualquer curso de formação agrícola, ministrado pelo Centro de Formação Profissional.

37 - A autora dispôs-se a satisfazer a vontade do réu em rectificar a escritura.

38 - O réu, através da Direcção Regional de Agricultura do Norte, juntamente com o Município de Barcelos e com a Fundação Alter Real, estabeleceram contactos com a autora que determinaram o desenvolvimento de negociações com vista à criação de uma nova parceria.

39 - Dessas negociações a autora chegou a aceitar ceder ao Município os três edifícios, fronteiros ao construído pelo réu, e cerca de 03 hectares de terreno, em regime de arrendamento, para a locatária poder ceder, tudo ou parte, à Fundação Alter, ou a outras instituições que se dedicassem à promoção, desenvolvimento e fomento de actividades agrícolas, pecuárias ou florestais.

40 - A autora aceitou e continua a aceitar, ceder à Fundação Alter, sob regime de direito de superfície, a área onde foram construídas as cavalariças e os barracões, sob a condição de serem feitas reconstruções com qualidade integradas urbanisticamente.

41 - A autora dispôs-se a aceitar regularizar o contrato inicial com o réu, no sentido do edifício construído por este ser utilizado para actividades de ensino promovidas pela Fundação Alter Real.

42 - Ao celebrarem o contrato de constituição do direito de superfície sobre a Quinto CC, autora e réu quiseram constituir tal direito sobre todo o prédio misto denominado Quinto CC e não apenas sobre a área ocupada pelas construções.

43 - Desde a celebração do contrato, o réu tomou posse do prédio na sua totalidade.


3. De seguida, passando a abordar as questões que integravam o objecto da apelação, considerou, nomeadamente, a Relação no acórdão recorrido:

Começa por estar em causas no presente recurso, como vimos, a questão de saber se a sentença recorrida é nula por excesso de pronúncia e por ter condenado o R. em objecto diverso do pedido.

(…)

Ora, começando por comparar aquilo que foi pedido pela A. e o que foi decidido na sentença recorrida, na parte impugnada neste recurso, verificamos que não há qualquer desfasamento substancial.


A A. pediu a condenação do R. “a demolir as construções não autorizadas, nomeadamente os barracões e cavalariças, e a abster-se de usar os terrenos com pastagem ou outras actividades, bem como os edifícios antigos existentes, e respeitar o seu direito, não o voltando a violar”;

Pediu também que o R. fosse condenado a “a fruir o edifício que construiu e terreno envolvente com ocupação apenas da área de 2100m2 incluindo coberta e descoberta e destiná-lo exclusivamente à efectiva actividade regular de ensino e formação agrícola para enriquecimento e desenvolvimento da Agricultura, Pecuária ou Florestal”

E na sentença recorrida, o R. foi condenado a “a demolir as construções não autorizadas - barracões e cavalariças - e a abster-se de usar os terrenos com pastagem ou outras actividades, assim como os edifícios antigos existentes; tal como a “a limitar a sua fruição do prédio referido em a) ao edifício que construiu e ao terreno envolvente, com ocupação de apenas 2.100m2 incluindo coberta e descoberta, assim como a destiná-lo exclusivamente à efectiva actividade regular de ensino e formação agrícola”.

Não há, pois, qualquer condenação qualitativamente diferente da pretensão da A.

Já em relação ao excesso de pronúncia, cremos que a conclusão deve ser a contrária; ou seja, o tribunal recorrido, para limitar a fruição do R. aos 2.100 m2, baseou-se num fundamento diferente daquele que fora alegado para chegar a esta mesma condenação.

Efetivamente, a A. tinha alegado que o R. devia ser condenado a limitar a sua fruição à parte do prédio já indicado porque, em relação à restante parte desse mesmo prédio, não a tinha usado para a finalidade que fora convencionada; ou seja, para a instalação e desenvolvimento de um Centro de Formação Profissional Agrícola.

Mas, ao contrário do que se decidiu na sentença recorrida, a A. não disse pretender a extinção do direito de superfície sobre essa parte restante. Pelo contrário, afirmou, claramente, que queria que o contrato que celebrou com o R. fosse cumprido. O que aliás, se provou (ponto 1.21).

Por conseguinte, ao limitar a fruição da parte do prédio que excede os 2.100 m2, com base num pressuposto diverso daquele que foi sustentado pela A., o tribunal recorrido actuou para além dos limites que a lei lhe permitia.

Repare-se que não estamos apenas perante uma situação em que o tribunal diverge de qualificação jurídica adoptada pelas partes. Nesse domínio, como é sabido e resulta da lei, o tribunal é soberano (artigo 5.º, n.º 3, do Código de Processo Civil). Mas, não é esse o caso. O tribunal recorrido foi mais além. Partindo da factualidade alegada pela A., o tribunal retirou dessa factualidade um efeito jurídico que aquela não queria; contrário, portanto, à sua vontade e aos seus interesses.

É certo que, no dispositivo chegou ao mesmo resultado aparentemente. Mas, mesmo só aparentemente. É que, por detrás dessa decisão está a consideração de que o direito de superfície do R. se extinguiu em relação à restante parte do prédio e, esse era, como já dissemos, um efeito que a A. não queria que se produzisse.

Por conseguinte, só podemos concluir que a sentença recorrida, neste segmento, é nula.


Tal nulidade, porém, como resulta do disposto no artigo 665.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, não desonera a presente instância de conhecer do objecto da Apelação. E, como tal, é essa a tarefa que se impõe, de imediato, empreender.

Do que se trata de saber, em primeiro lugar, é se a A. tem o direito a confinar o exercício do direito de superfície do R. ao edifício que o mesmo construiu e terreno que o envolve, tudo numa área de apenas 2.100m2.

Pois bem, do nosso ponto de vista, não pode. Para mais querendo, como quer, que o contrato que celebrou com o R. seja executado.

O referido contrato, na verdade, foi celebrado em relação à Quinto CC, no seu todo. Como se provou, “[a]o celebrarem o contrato de constituição do direito de superfície sobre a Quinto CC, autora e réu quiseram constituir tal direito sobre todo o prédio misto denominado Quinto CC e não apenas sobre a área ocupada pelas construções”. O que, aliás, levou a que, “[d]esde a celebração do contrato, o réu tomou posse do prédio na sua totalidade”.

Ora, tendo esta abrangência, não pode a A., neste momento, unilateralmente, pretender limitá-la; sob pena de grave incumprimento, da sua parte, do referido contrato.

O que pode é exigir que o referido prédio seja destinado, na íntegra, à finalidade convencionada; ou seja, à instalação e desenvolvimento de um Centro de Formação Profissional Agrícola, uma vez que foi com esse escopo que foi celebrado o contrato de constituição do direito de superfície e a A. tem o direito de exigir que o mesmo não seja desvirtuado.

Não se trata, note-se, de um problema de direitos reais. O direito de superfície que foi constituído respeitou, na íntegra, o figurino legal; ou seja, destinou-se a legitimar a construção de edificações novas pelo R., bem como a facultar-lhe o uso das já existentes e o terreno sobrante, ao longo de um período de cem anos. Assim, mostra-se integralmente respeitado o disposto nos artigos 1524.º e 1525.º, n.º 1, do Código Civil.

Mas, dentro da liberdade que a lei lhes confere (artigo 405.º do Código Civil), as partes podem, a par dos deveres principais, estabelecer outras normas de conduta que igualmente as vinculam. Referimo-nos aos deveres secundários ou acidentais de prestação, que, embora não façam parte do núcleo essencial da relação obrigacional, ainda assim desempenham um papel importante, na medida em que asseguram a perfeita execução da prestação[1]. São, por conseguinte, instrumentais em relação ao cumprimento da obrigação principal, encontrando-se a esta ligados funcionalmente[2].


Ora, no caso presente, foi justamente isso que sucedeu. As partes expressamente estipularam que a constituição do direito de superfície sobre o prédio da A. teria uma finalidade específica; isto é, destinar-se-ia à instalação do Centro de Formação Profissional Agrícola.

E é, justamente, sobre a execução do estipulado nesta cláusula que surge o presente conflito. Não é sobre a existência do direito de superfície, que nenhuma das partes sequer questiona.

Ora, sendo esta a perspectiva que se impõe, não faz sentido limitar o exercício do direito de superfície do R. apenas a uma parte do prédio sobre o qual incide esse direito.

O que faz sentido, sob o ponto de vista jurídico, é exigir o cumprimento da obrigação decorrente para o R. da referida cláusula[3]; tal como, de resto, a A. exigiu e a sentença recorrida determinou ao condenar o R. a destinar o edifício pelo mesmo construído, exclusivamente, à efectiva actividade regular de ensino e formação agrícola, bem como “a demolir as construções não autorizadas - barracões e cavalariças”. Até porque estas últimas, como se provou, não se destinam a servir qualquer curso de formação agrícola, ministrado no Centro de Formação Profissional”. Há, portanto, nesta parte, um incumprimento contratual nítido da parte do R.

Ora, quando assim é, ou seja, quando o devedor não se dispõe voluntariamente a cumprir as suas obrigações contratuais, o credor, como resulta do disposto no artigo 817.º do Código Civil, tem o direito de exigir judicialmente esse cumprimento. Daí que, quer a demolição das obras já referenciadas, quer a limitação da fruição do edifício construído pelo R. à efectiva actividade regular de ensino e formação agrícola, devam ser decretadas.

Mas já não se podem manter as demais limitações à fruição do prédio pelo R., impostas na sentença recorrida, pressupondo, naturalmente, que essa fruição se destina ao fim que foi convencionado


E – em consonância com estes pressupostos – o acórdão recorrido. concedeu provimento parcial ao presente recurso e, consequentemente, revogou a sentença recorrida na parte em que condenou o R. a limitar a sua fruição ao edifício que construiu e ao terreno envolvente, com ocupação de apenas 2.100m2 incluindo coberta e descoberta, bem como a abster-se de usar os terrenos com pastagem ou outras actividades, assim como os edifícios antigos existentes - mantendo, no mais, a sentença recorrida.


4. Inconformada, interpôs a A. a presente revista, que encerra com as seguintes conclusões:

1 - Na definição do objecto do Recurso de Apelação o "Acórdão recorrido" delimita-o cingindo-o à questão de saber se a Sentença recorrida é nula por excesso de pronúncia ou por ter condenado em objecto diverso do pedido e, na afirmativa, quais as respectivas consequências Jurídicas quanto à parte impugnada dessa Sentença.

2 - Depois transcreve o teor dos pedidos e da parte condenatória da Sentença reconhecendo não haver qualquer desfasamento substancial "entre os pedidos e a condenação". E de facto a identidade entre os pedidos e a condenação é manifesta.

Ora se assim é, e é, não podia o Acórdão concluir que a condenação é superior ao que se pediu.

3 - Por isso, e desde logo tanto basta para não se verificar a nulidade prevista nas alíneas d) e e) do Art. 615º do CPC que o Acórdão declarou, pelo que a Revista deve ser julgada procedente, revogado o Acórdão Recorrido e mantida na integra a Sentença da 1ª Instância.

Sem prescindir,

4 - O Acórdão sob a errada justificação da invocada nulidade, acaba por enveredar por caminhos que nada têm a ver com condenações superiores aos pedidos (ou excesso de pronúncia), e que por isso também não cabem nos limites da Apelação e do Acórdão recorrido, violando assim os Arts. 608º, nº 2, 635º nº 4 e 639º do C. Processo Civil.

De facto,

5 - O Acórdão, diferentemente, elege matéria fora desses limites, e partindo da afirmação de que o contrato de constituição do Direito de Superfície incidiu sobre a totalidade da Quinta, o que foi verdade, conclui que a Autora, como não pediu a resolução do contrato, mas antes pediu o seu cumprimento, a Sentença teria que reconhecer ao Réu o direito de fruir toda a Quinta incluindo o seu solo de vários Hectares onde nada foi construído, e não apenas o Edifício que ele sim construiu.

6 - Ora, o Acórdão à semelhança do alegado pelo ora recorrido em sede das suas alegações da Apelação, confunde o conceito e regime do Direito de Superfície, que para o Superficiário é o uso e fruição de coisa própria implantada em solo alheio (ou sobre edifício alheio), com os de outras figuras e Institutos Jurídicos, nomeadamente com o Direito Real de Usufruto que consiste no uso e fruição de coisa alheia.

7 - A recorrente confirma e reitera e dá por reproduzido aqui todo o teor das suas contra alegações deduzidas na Apelação.

8 - O Réu tomou posse da Quinta, conforme as cláusulas do contrato 1º,4º e 5º, para Edificar, e efectuar obras e Edificações Urbanas para instalar um Centro de Formação Profissional, cujas obras foram, no Programa de Instalação de Centros de Formação Profissional Agrícola para a Região do Douro e Minho no âmbito do PEDAP, financiadas pela C.E.E.

9 - O Réu tomou posse da Quinta para construir e Edificar dentro desse programa os Edifícios que nele coubessem com a dimensão e no local da Quinta que entendesse,

10 - mas não tomou posse, nem contratou com a Autora o uso e fruição do solo sobrante das novas construções, nem o uso dos Edifícios existentes no estado em que se encontravam... (e se encontram hoje quase em ruinas).

11 - "O direito de superfície desdobra-se numa dupla face, uma vez que o Superficiário é, ou virá a ser, proprietário da obra, sendo seu elemento fundamental, a relação do Superficiário com o solo.- A

propriedade superficiária não existe enquanto a obra não se constrói, mas torna-se um direito autónomo logo que tal obra esteja concluída. No direito de superfície, que pode ter por objecto qualquer tipo de obra ou construção, o direito do Superficiário incide sobre a obra e o do fundeiro sobre o solo (R.G., 9-2-2005; CJ, 2005, lº - 228º, e Proc. 1888/04.2.dgsi.net)"

12 - Das referidas duas faces a primeira traduz-se tão só no direito de construir: "o direito de superfície, entendido em sentido estrito, como o poder de construir em solo alheio, não se confunde com a propriedade da obra superficiária, (isto é, da construção concluída - que é a outra face), pois que (aquela) lhe é logicamente anterior, sendo em certa medida um direito prodrómico que pode existir sem que exista (ainda) a propriedade superficiária" - A. Ribeiro Mendes, o Direito de Superfície, em R.O.A., 1972,1,41.

13 - Deverá dizer-se que mesmo depois de concluído o Edifício em 1993, o Réu continuou a gozar garantidamente do referido direito prodrómico, o direito de construir ou de implante, até perfazerem os dez anos em 09/09/1999, uma vez que o contrato foi celebrado em 09/09/1989 (alínea a) do nº 1 do Artº 1536º do C. Civil).

14 - Só passado esse período de dez anos é que a Autora ora recorrente podia impedir o Réu ora recorrido de construir mais obras, invocando a extinção desse direito de implante, e portanto reassumiria como assumiu o direito da posse plena do seu direito de propriedade sem as limitações previstas no Art. 1532º do C. Civil.

15 - Extinto o direito de construir, mantem-se o direito de propriedade superficiária do Edifício já construído, direito que pertence por inteiro ao Réu, pelo menos enquanto a Autora não o ponha em causa.

E sendo certo que na presente acção a Autora não pôs esse direito em causa em termos de resolução ou extinção, antes o que pediu, e o Réu foi condenado, foi o cumprimento da obrigação de destinar o Edifício exclusivamente à efectiva actividade regular de ensino e formação agrícola, este pedido da Autora incidiu sobre a totalidade da propriedade superficiária pertencente ao Reu, direito esse que é o único que possuí e pode exercer, fruir ou gozar.

16 - Dir-se-á também, ou até, que o Réu nem logrou fazer prova - mesmo tida por irrelevante em termos de direito de Superfície - da matéria que alegou por excepção e levada a questionário sob os quesitos 30º e 31º, que foi dada como não provada, nomeadamente "que a restante parte do prédio, além dos 2 100m2, seria essencial à formação agrícola na sua vertente prática, ou que essa parte restante sempre seria usada pelo Réu em apoio às actividades educativas e profissionais na área de formação profissional vocacionada para o mundo Agrícola", matéria esta referida na Sentença nos "factos não provados" sob os itens G e H.

17 - O Acórdão recorrido violou, assim, pelo menos os Arts. 608º nº 2, 635º nº 4, 615 alíneas a) e e) do CPC, e 1524º, 1525º n 1º in fine e 1536º, nº 1 alínea a) do C. Civil.


TERMOS EM QUE DEVE SER DADO PROVIMENTO À REVISTA,

REVOGADO O ACÓRDÃO DA RELAÇÃO, E MANTIDA A

SENTENÇA PROFERIDA DA 1° INSTANCIA.


O R. pugna pela improcedência do recurso.


5. Começa a recorrente por se insurgir contra o decretamento da nulidade da sentença por excesso de pronúncia, em consequência de a sentença apelada ter decretado a extinção parcial do direito de superfície – limitando-o consequentemente à área edificada, com exclusão da restante área rústica da Quinto CC – sem que a A. tivesse formulado pedido alicerçado nesse específico fundamento normativo, envolvendo parcial caducidade do direito de superfície originariamente constituído, por acordo das partes, quanto à totalidade do imóvel.

Efectivamente, ao formular o pedido de confinamento da fruição do R. ao imóvel construído e terreno envolvente, apenas com a área de 2100 m2, não é a A. perfeitamente clara quanto ao exacto fundamento jurídico normativo desta sua pretensãonão deduzindo, ao menos de modo explícito, um pedido de extinção parcial do direito de superfície, na parte que excedesse os referidos 2100 m2: pode, todavia, considerar-se implícita na pretensão deduzida a produção desse específico efeito extintivo parcial, que aliás parece resultar da invocação, a fls. 11 da petição, do regime constante do art. 1536º, nº1, al. a) do CC ( precisamente a norma que comina a dita extinção por caducidade do direito de superfície, por não ser erigida, no prazo de 10 anos, a construção que originou a constituição desse direito real na titularidade do superficiário).

Ou seja: interpretando adequadamente os termos em que vem formulada a petição inicial, pode concluir-se que a formulação do pedido de confinamento do direito do superficiário aos referidos 2100 m2 tem implícito o pedido de reconhecimento da extinção de tal direito quanto à área remanescente do prédio, em consequência de o R./ superficiário nada ali ter construído, ao fim de 10 anos, e não dar a esse terreno remanescente destino conexionado com os fins que, na vontade manifestada pelos contraentes, estavam subjacentes à própria constituição do direito de superfície. E, nesta interpretação dos termos e fundamentos da petição inicial e da pretensão nela formulada, não pode concluir-se que – ao atribuir à A. o exacto efeito prático jurídico pretendido (o confinamento do direito do superficiário à área construída de 2100 m2) com base numa melhor explicitação do fundamento jurídico da extinção parcial do direito que estava implícito ou subjacente à mesma petição (o regime de caducidade que consta da al. a) do art. 1536º do CC )– a sentença possa ter-se por ferida pelo vício de nulidade por excesso de pronúncia.

Deste modo, a resolução do litígio quanto a este elemento fulcral – a subsistência ou não do direito de superfície quanto à área do imóvel em que o superficiário nada construiu, não a afectando ainda às específicas finalidades previstas contratualmente pelas partes – decorrerá, não da existência de quaisquer vícios procedimentais na sentença, mas da própria solução de mérito da questão controvertida: a não afectação de parte do imóvel sobre que incide o direito de superfície à específica finalidade convencionada pelas partes será susceptível de conduzir à extinção parcial do direito de superfície, por virtude da caducidade estabelecida no art. 1536º, nº1, al. a), do CC para os casos de não conclusão pelo superficiário da obra, ao longo de 10 anos?


Importa começar por interpretar adequadamente, face à teoria da impressão do destinatário, as cláusulas do negócio jurídico constitutivo do direito de superfície.

Assim, as partes instituíram direito de superfície a favor do Estado/Direcção Regional da Agricultura sobre a totalidade do imóvel que integrava a Quinto CC, abrangendo, pois, inquestionavelmente tal direito real, não apenas a específica parcela de implantação da construção a que o superficiário se havia vinculado e que estava na base da constituição do direito de superfície – o edifício destinado ao centro de formação profissional e agrícola – mas toda a área física da dita quinta, mesmo nos locais em que nada viesse a ser edificado pelo superficiário.

Estamos, deste modo, confrontados manifestamente com a situação prevista no nº1 do art. 1525º do CC, em que, tendo embora o direito de superfície directamente por objecto a construção de uma obra ( no caso, a edificação do referido centro de formação profissional agrícola), tal direito real pode abranger uma parte do solo não necessária à sua implantação, desde que ela tenha utilidade para o uso da obra construída: e foi esta obviamente a perspectiva assumida pelas partes ao considerarem que a totalidade da quinta, nomeadamente a sua parte estritamente rústica e agrícola, tinha utilidade para o uso da construção edificada – o referido centro de formação agrícola, como aliás já se notava na sentença apelada, a fls. 227.

Para além disso, instituíram no referido negócio jurídico, constitutivo do direito de superfície, algumas obrigações a cargo da entidade superficiária – para além da de liquidar, como contrapartida de tal direito, o montante dos cânones devidos pelo superficiário: desde logo, a afectação da quinta à específica finalidade convencionada pelas partes, ou seja, a realização de actividades de ensino e formação de agricultores, abrangendo naturalmente, não apenas a utilização do centro de formação edificado, mas também toda a área da quinta sobre que incidia o direito de superfície, por considerarem que a mesma detinha utilidade para o uso específico e efectivo do edifício que corporizava o dito centro de formação.

Saliente-se que não resultava do aludido negócio jurídico qualquer obrigação construtiva para o superficiário, adicional à edificação do centro de formação efectivamente edificado no local: o que se previa era a obrigação lateral ou acessória de destinar, quer o edifício do centro de formação, quer a restante área rústica da quinta, à específica finalidade pretendida pelas partes, afectando, quer uma, quer outra, á instalação e funcionamento de um centro de formação agrícola.

Por outro lado – e como parece evidente – a efectiva afectação de todo o imóvel, objecto do direito de superfície, à específica utilização prevista pelas partes não constitui propriamente um ónus real – dotado de sequela e prevalência e, portanto necessariamente inscrito no registo predial, sujeito ainda ao princípio da tipicidade que caracteriza os direitos reais e moldando, nessa medida, o concreto regime e conteúdo do direito de superfície - mas antes de uma obrigação ou vinculação pessoal do superficiário, que – consumada a constituição do direito de superfície com a edificação da obra/edifício que o justificava – se vinculou a um dever lateral ou acessório, comprometendo-se a destinar todo o imóvel sobre que incidia o seu direito real a determinada finalidade ou utilização específica, convencionada pelas partes.

Ora, face a esta natureza, estritamente obrigacional, da vinculação assumida pela entidade superficiária, poderá o incumprimento de tal obrigação acessória produzir efeitos modificativos ou extintivos sobre o próprio direito real constituído, amputando nomeadamente o respectivo objecto material, de modo a aplicar-se por analogia o regime de caducidade estabelecido no art. 1536º, nº1, al. a) do CC – em termos de equiparar o efeito previsto para a falta de edificação da obra que justifica o direito de superfície ao não cumprimento da obrigação lateral ou acessória de destinar todo o prédio sobre que recai o direito de superfície a determinada utilização específica?

Considera-se que a resposta a esta questão deve ser negativa, não tendo o incumprimento desse dever lateral virtualidade bastante para produzir efeitos reais, levando nomeadamente à extinção parcial do direito de superfície constituído e consolidado com a edificação do edifício que esteve na sua génese. Na verdade, o incumprimento de tal obrigação acessória apenas pode provocar os típicos efeitos previstos para o incumprimento das obrigações a que o devedor se vinculou, sendo insusceptível, pela sua natureza e funcionalidade, de provocar efeitos no plano do direito real de superfície validamente constituído e consolidado com a construção da obra a que se vinculou o superficiário, - sujeitando apenas o devedor à consequente responsabilidade contratual e possibilitando ao credor o desencadear da acção de cumprimento (uma vez que a A. expressamente renunciou à eventual resolução do contrato, nos termos do art. 801º, nº2, do CC - cfr. art. 39º da p.i.).

E, assim sendo, nenhuma censura merece o decidido no acórdão recorrido, segundo o qual o destino convencionado para o imóvel sobre que recai o direito de superfície configura uma cláusula lateral ou secundária, de cariz estritamente obrigacional, cujo cumprimento pode ser exigido autonomamente, mas Insusceptível de produzir extinção ou amputação da situação jurídica real constituída pelas partes.


6. Nestes termos e pelos fundamentos apontados, confirma-se o decidido no acórdão recorrida, negando provimento à revista.

Custas pela recorrente.


Lisboa, 29 de Setembro de 2016


Lopes do Rego (Relator)

Orlando Afonso

Távora Victor

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[1] Neste sentido se expressa o Prof. Mário Júlio de Almeida Costa, Direito das Obrigações, 1979, Almedina, pag. 53.
[2] Cfr. sobre a distinção igualmente o Prof. João de Matos Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Vol I, 7ª ed., Almedina, pág. 123 a 127.
[3] Cfr. sobre o relevo jurídico da declaração sobre o destino do prédio e o seu tratamento dogmático, o Ac. STJ de 09/05/2006 e a respectiva anotação do Prof. António Pinto Monteiro, na RLJ. N.º 3943, págs. 234 a 256.