Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
168/10.8TTVNG.P3.S1
Nº Convencional: 4ª SECÇÃO
Relator: MELO LIMA
Descritores: CONTRATO DE TRABALHO
ÍNDÍCIOS DE SUBORDINAÇÃO JURÍDICA
CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇO
AVENÇA
MÉDICO
LIBERDADE CONTRATUAL
Data do Acordão: 10/08/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / CONTRATOS EM ESPECIAL.
DIREITO DO TRABALHO - CONTRATO DE TRABALHO.
Doutrina:
- FERNANDES, ANTÓNIO MONTEIRO – DIREITO DO TRABALHO, 16ª Edição, Almedina, 2012, pp.120-121.
- MARTINEZ, PEDRO ROMANO - DIREITO DO TRABALHO, 2013, 6ª Edição, Almedina, pp.287-289, 293, 294, 300-304.
- RAMALHO, MARIA DO ROSÁRIO PALMA – TRATADO DE DIREITO DO TRABALHO / PARTE II – SITUAÇÕES LABORAIS INDIVIDUAIS, 4ª Edição, Almedina, pp.60, 61.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 342.º, N.º1, 1152.º.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (NCPC), APROVADO PELA LEI N.º41/2013, DE 26-6: - ARTIGOS 608.º, N.º2, 663.º, N.º 2, E 679.º.
CÓDIGO DE PROCESSO DO TRABALHO (CPT) /99: - ARTIGOS 1.º, N.º2, AL. B), 81.º, N.º5 E 87.º.
CÓDIGO DE PROCESSO DO TRABALHO (CPT), APROVADO PELO DECRETO-LEI N.º 295/2009, DE 13-10: - ARTIGOS 6.º, 9.º.
CÓDIGO DE TRABALHO (CT), NA REDAÇÃO DA LEI Nº 7/2009, DE 12-07 (ARTIGOS 7.º, N.º1 E 14.º, DA LEI PREAMBULAR).
REGIME JURÍDICO DO CONTRATO INDIVIDUAL DE TRABALHO, [LCT] ANEXO AO DECRETO-LEI N.º 49.408 DE 24 DE NOVEMBRO DE 1969.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 10.12.2009, PROCESSO Nº 6/08.1TTPTG.S1
-DE 10.11.2010, PROCESSO 3074/07.0TTLSB.L1.S1
Sumário :
1. Na sua conformação prática, o contrato de trabalho e o contrato de prestação de serviço – maxime, este sob a formulação de avença -, surgem como contratos afins com difícil marcação de um traço que os diferencie, assumindo valor muito relativo o critério fundado na distinção entre obrigações de meios e obrigações de resultado, face à experienciada dificuldade em definir o que realmente se promete: se a atividade em si, se o seu resultado.

2. Com sentido comum, na doutrina como na jurisprudência, a distinção entre contrato de trabalho e contrato de prestação de serviço encontra, então, a sua pedra angular na subordinação jurídica, a recolher da análise dos diversos índices que normalmente coexistem, sopesando-os não isoladamente – visto o correlato valor significante muito diverso de caso para caso - mas no seu conjunto e no contexto global do caso concreto.

3. Com significativa frequência, o contrato de avença ocorre associado ao desempenho de profissões liberais, em que o trabalho é prestado, em regime de profissão liberal, com grande autonomia técnica e científica – v.g., pelo médico – relevando também aí, para a distinção contrato de trabalho/contrato de prestação de serviço, a posição de autonomia ou de subordinação, neste caso pela integração do trabalhador na organização do credor e sujeição às correspondentes regras disciplinares.

4. Tendo o contrato outorgado entre as partes sido reduzido a escrito, o “nomen juris” que as partes lhe deram e o teor das cláusulas que nele foram inseridas, não podem deixar de assumir relevância para ajuizar da vontade das partes no que diz respeito ao regime jurídico que livremente escolheram para regular a relação entre elas estabelecida.

5. Tendo as partes – o Estado Português, representado por um Estabelecimento Prisional, e um médico, com a especialidade de psiquiatria – outorgado um contrato que denominaram de avença, no qual clausuraram de acordo com o diploma legal a que diretamente se reportaram na fixação das respetivas cláusulas, é de pressupor uma vinculação livre e consciente de ambas as partes, sem intuito de defraudação à lei: o médico, na consideração da sua formação académica e de profissional liberal; o Estado, por virtude da sua vinculação ao princípio da legalidade.

6. Em face do específico circunstancialismo do serviço contratado – prestação dos serviços de médico psiquiatra aos reclusos internados num Estabelecimento Prisional -, perdem significação indiciária de subordinação jurídica o estabelecimento de um horário, o controlo da presença, a prestação do serviço no Estabelecimento.

7. De igual passo, a articulação da atividade do A. – prática do ato médico, deontologicamente preservado – com a inserção funcional decorrente da seriação levada a efeito, em ato prévio, pelo médico responsável pelo serviço clínico no Estabelecimento Prisional – prendendo-se as instruções em causa «com o estabelecimento de prioridades em face de necessidades concretas que ao responsável pelo serviço clínico, e não ao A., competia conhecer, avaliar e definir» - não põe em causa o exercício autonómico da prestação a que o A. estava contratualmente obrigado.

8. O não pagamento de subsídios de férias e de Natal, de par com o facto de nada se ter apurado em matéria disciplinar e em matéria de faltas - da necessidade, ou não, de justificação das mesmas e das eventuais consequências, a nível disciplinar e/ou remuneratório -, corroboram a ausência de indícios de subordinação jurídica.

Decisão Texto Integral:

Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça

I Relatório
1. AA instaurou, aos 08.02.2010, ação declarativa de condenação, com processo comum, contra Estado Português, pedindo:
a) A requalificação como contrato de trabalho subordinado sem termo, de direito privado, do contrato em causa nos presentes autos, de 30.05.1996 com as alterações de 08.08.1996 e 14.07.2005;
b) A condenação do Réu a pagar ao Autor os subsídios de férias e Natal e 11 dias de férias não gozadas, vencidos desde 1996 até à presente data, e não pagos, no montante de € 51.932,59 e
c) A indemnização pelo despedimento ilícito e remunerações devidas a partir do mês anterior ao da instauração da presente ação.

2. Alegou, em síntese:
· Em 30 de maio de 1996, celebrou com o Estabelecimento Prisional do Porto um denominado «contrato de prestação de serviços» (avença), pelo qual se obrigou a prestar os serviços de médico psiquiatra aos reclusos internados no referido estabelecimento prisional, mediante a remuneração mensal de 135.000$00, e pelo período de um ano, sucessivamente renovável, de segunda a sexta-feira, da parte da manhã.
· Em 08.08.1996, o contrato foi objeto de alteração, passando o Autor a auferir a quantia mensal de 270.000$00 e no regime de horário completo.
· Em 14.07.2005, a clª 3ª do mesmo contrato foi alterada, tendo o Autor passado a cumprir um horário de 35 horas semanais.
· Pelo ofício nº..., datado de 15.05.2009, e com efeitos a partir de 30.06.2009, a Direção Geral dos Serviços Prisionais comunicou ao Autor a cessação da sua atividade naquele estabelecimento prisional;
· Tal comunicação configura um despedimento ilícito, por não precedido de procedimento disciplinar, já que a relação estabelecida entre as partes configura um contrato de trabalho subordinado de direito privado.
           
3. O Réu contestou:
· Arguindo a incompetência material do Tribunal do Trabalho;
·  Alegando a inexistência de qualquer relação laboral de direito privado;
·  A entender-se o contrário, então, o mesmo contrato seria nulo atento o disposto nos artigos 15º,18º e 19º do DL nº427/89 de 07/12 e 10º do DL nº184/89 de 02/06, concluindo pela sua absolvição da instância e pela improcedência da ação.

4. Por despacho de 11.06.2010, foi declarada a incompetência do Tribunal do Trabalho, em razão da matéria, para conhecer da ação e absolvido o Réu da instância.
Interposto recurso pelo A., o Tribunal da Relação do Porto, por acórdão de 24.01.2011, ordenou o prosseguimento dos autos.

5. Realizado o julgamento, foi proferida sentença a declarar que o contrato celebrado entre o Autor e o Estabelecimento Prisional do Porto, em 30.05.1996, com as alterações de 08.08.1996 e 14.07.2005, era um contrato de trabalho subordinado sem termo e de direito privado e considerado ilícito o despedimento do Autor. Consequentemente, foi o Réu condenado a pagar ao Autor:
i) € 43.021,08, a título de subsídio de férias e de Natal desde 1996 até à data da cessação do contrato e de férias não gozadas no ano da cessação do mesmo;
ii) € 22.084,01, a título de indemnização por antiguidade;
iii) As retribuições vencidas desde os 30 dias anteriores à propositura da ação até ao trânsito em julgado da sentença, tudo acrescido dos juros de mora a contar da citação, à taxa legal.

           

6. Inconformado, interpôs o R. recurso, no conhecimento do qual, o Tribunal da Relação do Porto determinou a baixa dos autos à 1ª instância para fixação do valor da causa, na sequência do que este foi fixado, por despacho de 02.05.2012, em € 51.932,59.

7. Por acórdão de 17.09.2012, o Tribunal da Relação anulou “o julgamento e atos posteriores”, ordenando a realização, na instância recorrida, de novo julgamento, “apenas e quanto à matéria constante do nº 22, última parte”, com subsequente prolação de decisão.

8. Baixados os autos à 1ª instância, realizada audiência de julgamento tendo como objeto a repetição parcial do mesmo (sobre o facto 22 da sentença anterior) e decidida a matéria de facto em causa nessa repetição, foi proferida sentença decidindo em termos idênticos aos anteriormente decididos (na sentença de 16.01.2012).


9. Inconformado, o R. interpôs recurso de apelação, pretendendo: i) a revogação da sentença recorrida e a sua substituição por outra onde se concluísse que o A. não tinha feito prova de que o contrato que o ligava ao R. revestia a natureza de um contrato de trabalho, com a consequente absolvição do pedido; ii) concluindo-se de outro modo, fosse declarada a nulidade do contrato, sem quaisquer direitos remuneratórios e indemnizatórios devidos pelo R. ao A.

10. No conhecimento do Recurso, o Tribunal da Relação do Porto, por acórdão de 03.02.2014, revogou a sentença recorrida, absolvendo o R. de todos os pedidos formulados pelo A.

11. Inconformado, insurge-se o A. em recurso de revista, retirando da respetiva motivação as seguintes conclusões:

11.1 O douto Acórdão do Tribunal da Relação do Porto violou o disposto nos arts. 1152° e 1154° do Código Civil e arts. 1° e 5° do Decreto-Lei nº 49408, de 24 de Novembro de 1969, ao concluir que o contrato celebrado entre o ora Recorrente e o Estado português é um contrato de prestação de serviços.

11.2 O douto Acórdão do Tribunal a quo é ÚNICO, pois não há precedentes na jurisprudência nacional que qualifique um contrato como de prestação de serviços, não obstante se ter dado como provado que o exercício da atividade do Recorrente constituiu uma obrigação de meios (e não de resultados), não obstante os factos dados como provados revelarem os indícios da remuneração certa em função da disponibilidade e não do resultado, da existência de um período diário de trabalho, do local de trabalho na entidade empregadora, dos instrumentos de trabalho pertencentes à entidade empregadora, da existência de ordens e instruções específicas sobre o modo de prestar a atividade e não sobre o resultado, da existência de um controle de assiduidade transversal a todos os funcionários, da existência de uma avaliação regular de desempenho, da existência de um período de férias remuneradas, de o período de férias não poder ser fixado livremente.

11.3 Perante a evidência do conjunto considerável de indícios reveladores de um contrato de trabalho, o Tribunal a quo desvalorizou sistematicamente os mesmos, sob a fundamentação de que também são compatíveis com um contrato de avença e com a liberdade contratual.

11.4 O "contrato de avença" formalmente celebrado entre as partes (cfr. facto provado 32) não prevê nem estipula o gozo de férias remuneradas, o controle de presença através de pontómetro, a sujeição a um horário de trabalho diário a partir das 8h30, a sujeição a uma avaliação regular de desempenho, a sujeição a ordens e instruções específicas de um "superior hierárquico", pelo que ainda que fossem compatíveis com um contrato de avença, é indesmentível que tais factos, dados como provados nos presentes autos, não foram previstos naquele aparente contrato de avença.

11.5 O que significa que tal omissão foi propositada, com o objetivo de manter uma aparência formal de prestação de serviços, assegurando ao EPP e ao Estado Português uma posição contratual menos onerosa.

11.6 A real vontade contratual das partes extrapolou o aparente contrato de prestação de serviços, na verificação de um conjunto de indícios de subordinação jurídica, conforme resultou dos factos dados como provados.

11.7 Não obstante o Tribunal a quo reconhecer que a atividade do Recorrente consubstanciava uma obrigação de meios, vem subverter completamente o conceito previsto no art. 1154º do Código Civil (prestação de serviços), afirmando que o contrato de avença pode também consistir numa obrigação de meios! O que não corresponde ao entendimento da generalidade da doutrina e jurisprudência.

11.8 O Tribunal a quo, sobre o indício da remuneração certa, omitiu na sua consideração - certamente por lapso - os factos dados como provados nºs 5, 7, 11 e 14, que revelam que o montante auferido pelo Recorrente eram atualizados nos mesmos termos dos funcionários públicos e que a alteração na remuneração do Recorrente foi uma consequência direta do aumento do tempo de trabalho e não dos resultados, o que é totalmente incompatível com um contrato de avença.

11.9 Sobre o indício do período diário de trabalho, o Tribunal a quo sobrevalorizou as 15 horas em regime de chamada ou prevenção e, em contrapartida, desvalorizou incompreensivelmente as 20 horas em regime presencial, para assim poder chegar à conclusão de que o período de trabalho era mais compatível com um contrato de avença, quando o facto provado nº 28 revela que este regime de trabalho era transversal a todos os médicos funcionários públicos do EPP.

11.10 Ao contrário do que entende o Tribunal a quo, os indícios do local da atividade e da utilização dos instrumentos de trabalho pertencentes ao Réu, quando conjugados com os outros indícios, são relevantes no sentido de demonstrar a posição de submissão do Recorrente e a sua forte inserção na estrutura organizativa, o que não é compatível com um contrato de avença.

11.11 Ao contrário do que argumenta o Tribunal a quo, o indício das ordens e instruções resultantes dos factos provados n.ºs 22 e 23 extravasam claramente os poderes do contratante da avença; de facto, ao contrário do que está aparentemente previsto no contrato de avença celebrado entre as partes, o Recorrente não tinha qualquer autonomia para organizar livremente a sua atividade no âmbito da estrutura organizativa do EPP, com exceção da natural autonomia técnica decorrente da sua profissão.

11.12 Quanto ao indício do controlo de assiduidade, e salvo (o) devido respeito, o Tribunal a quo usa de argumentação que o Recorrente não pode aceitar: ao mesmo tempo que o facto provado nº 19 refere que "no EP existia um pontómetro, através do qual era controlada a presença do A. e dos demais funcionários", e considerando tratar-se de um indício de subordinação jurídica, o aresto conclui que "dos factos provados não resulta que tal controlo visasse o controlo de assiduidade do A .... "!!! Ora, estando o Recorrente obrigado a comparecer diariamente às 8h30, tal como os restantes funcionários, não parece possível concluir de outra forma senão que aquele estava sujeito a um rigoroso controlo de assiduidade (e até de pontualidade), o que não é compatível com um contrato de avença.

 11.13 Quanto ao indício da avaliação regular do desempenho, o Tribunal a quo omitiu - certamente por lapso - o facto provado nº 20, o qual refere que "Mensalmente o médico responsável pelo Departamento Clínico emitia uma declaração dirigida ao Diretor do Estabelecimento sobre o desempenho de funções do A."; tal facto revela que o modo de o Recorrente prestar a sua atividade era regularmente fiscalizado pelos seus superiores hierárquicos, o que é totalmente incompatível com o regime de avença; por outro lado, a forma como o Tribunal a quo desvalorizou o facto provado nº 8 simboliza este aresto; na realidade, tal facto demonstra cabalmente que o Recorrente era tratado como se fosse um funcionário do EPP (e não um mero avençado), em que o modo de prestar a sua atividade (e não os seus resultados) era objeto de avaliação, o que apenas é compatível com um contrato de trabalho.

11.14 Ao contrário do que a jurisprudência tem vindo a entender, o Tribunal a quo dá relevância ao nomen iuris, não obstante resultar dos presentes autos a verificação da panóplia de indícios materiais que se sobrepõem à aparência contratual; conforme foi já referido, o contrato de avença não prevê grande parte dos indícios resultantes dos factos provados, o que é cabalmente demonstrativo de que o EPP (Estado Português) quis apenas manter uma aparência formal de prestação de serviços, assegurando uma posição contratual menos onerosa, enquanto desenvolvia paralelamente uma verdadeira relação laboral com o Recorrente.

11.15 Ao mesmo tempo que o Tribunal a quo considera que o indício de gozo de férias remuneradas é um traço característico do contrato de trabalho, conclui que tal é possível de ocorrer no contrato de avença, no âmbito da liberdade contratual; contudo, o contrato de avença concreto (e não hipotético) entre as partes nada prevê sobre o gozo de férias remuneradas, o que vem demonstrar cabalmente que tal acordo era uma aparência formal, a qual escondia um verdadeiro contrato de trabalho que até cumpria materialmente certas obrigações da lei laboral, como é o caso das férias remuneradas.

 11.16 Quanto ao indício da marcação condicionada de férias, tal também não decorre do aparente contrato de avença, pelo que cai por terra o argumento do Tribunal a quo de que tal é concebível, teoricamente, no contrato de avença; é que os indícios não são um exercício retórico - ou existem ou não existem.

11.17 Nesta matéria da qualificação, compete aos tribunais elaborarem um juízo de ponderação ou aproximação tendo por base a factualidade dada como provada.

11.18 O Tribunal a quo não o fez.

11.19 O Tribunal a quo fez um levantamento de cada um dos indícios e, não obstante a evidência da Iaboralidade subjacente aos mesmos, criou uma ambivalência hipotética, com uma retórica de que tais indícios são teoricamente possíveis num contrato de avença - quando nalguns casos nem corresponde à verdade!

11.20 Mas no aparente contrato de avença dos presentes autos tais indícios não estão contratualmente estipulados; pelo que tal retórica ambivalente não pode ser aplicável a um hipotético contrato de avença, que poderia, de facto, prever expressamente tais indícios de laboralidade.

11.21 Apenas a vontade aparente das partes está prevista no contrato de avença dos presentes autos.

11.22 A vontade real das partes está patente nos factos dados como provados, que consubstanciam indícios da existência de uma subordinação jurídica característica de um contrato de trabalho.

11.23 O EPP quis remunerar o Recorrente em função da disponibilidade.

11.24 O EPP quis a disponibilidade de 35 horas e a presença diária do Recorrente, a partir das 8h30.

11.25 O EPP quis que o Recorrente trabalhasse nas suas instalações.

11.26 O EPP quis que o Recorrente utilizasse os instrumentos de trabalho daquele.

11.27 O EPP quis que o Recorrente obedecesse a ordens e instruções de um superior hierárquico, sobre o modo de prestar a sua atividade.

11.28 O EPP quis controlar a assiduidade do Recorrente.

11.29 O EPP quis avaliar regularmente o desempenho do Recorrente ao longo de 13 anos.

11.30 O EPP quis conceder ao Recorrente o direito a férias remuneradas.

11.31 O EPP quis condicionar a marcação de férias ao Recorrente.

11.32 O EPP quis desenvolver uma relação laboral com o Recorrente, sob a aparência de um nomen iuris (contrato de avença).

11.33 Ora, o Tribunal a quo formulou apenas um juízo de ponderação sobre a vontade hipotética das partes, o que de todo não interessa para a qualificação dos contratos.

11.34 O juízo de ponderação sobre a vontade real das partes, expressa nos factos dados como provados, apenas pode concluir pela existência de um verdadeiro contrato de trabalho.

11.35 Termos em que deve ser revogado o Acórdão recorrido, qualificando-se o contrato ora em causa como sendo um verdadeiro contrato de trabalho, devendo os autos baixar à Relação do Porto para apreciação da questão prejudicial a suscitar junto do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias no processo 1834/08.3TTPRT.P3.

12. Em contra-alegação, o R. pugna pela manutenção do acórdão recorrido, dizendo em síntese:

12.1 Cabendo ao A. o ónus da prova da existência do contrato de trabalho (art° 342°, n° 1 Cód. Civil) pois ao caso não se aplica a presunção de laboralidade consagrada no CT/2003 e CT/2009, pelas razões referidas na sentença da 1ª instância, afigura-se-nos não ter o A. feito prova da existência de um contrato de trabalho.

12.2 Caso se venha a concluir que o contrato em causa configura um contrato de trabalho, o que só por mera hipótese académica se equaciona, este carecia de autorização do Ministério das Finanças, o que na sua falta, acarretaria a sua invalidade ao abrigo do DL nº 427/89, de 7 de Dezembro, em vigor à data do contrato, uma vez que a constituição de uma relação jurídica com a Administração Pública só podia ter lugar mediante "nomeação", "contrato administrativo de provimento" e “contrato a termo certo" (art° 14° do citado diploma).

Qualquer destas modalidades assume caráter transitório e o contrato a termo certo, não se converte, em contratos sem termo, sendo nulos. (artigos 15°, 18°, n° 4 e 19º, na redação do DL 218/98 de 17.7)

Pelo que nunca a cessação do contrato de prestação de serviços que vigorou entre a DGSP e o A. pode ser interpretada como um despedimento, não podendo invocar os créditos peticionados.

12.3 Quanto à eventual suspensão da instância recursiva até à apreciação das questões prejudiciais a suscitar junto do tribunal da Justiça das Comunidades Europeias no processo 1834/08.3TTPRT.P3, a que se fez referência no despacho da Relatara de fls. 426, entende-se, tal como o acórdão, ficarem prejudicadas pelo decidido na questão anterior, sendo uma questão nova que não foi suscitada na 1ª instância e não deve ser conhecida.

13. Distribuído o projeto pelos Exm.ºs Juízes Conselheiros, cumpre decidir.

II Quadro Fáctico

No Tribunal recorrido foi considerada provada a seguinte matéria de facto:

1. O Autor é licenciado em Medicina com a especialidade de Psiquiatria (facto 5º da p.i.).

2. Em 30 de maio de 1996, o Autor celebrou com o Estabelecimento Prisional do Porto – devidamente autorizado por despacho do Diretor-Geral dos Serviços Prisionais, de 16.05.1996 – um contrato intitulado de prestação de serviços (avença), conforme teor do documento nº 1 junto com a p.i., que se dá por integralmente reproduzido (facto nº 6 da p.i.).

3. Nos termos do referido contrato, o Autor obrigou-se a prestar serviços de médico psiquiatra aos reclusos internados no Estabelecimento Prisional do Porto em regime de profissão liberal. (facto nº 7 da p.i.).

4. A atividade exercida pelo Autor era prestada nas instalações do próprio Estabelecimento Prisional, em local ali reservado para o efeito (facto nº 8 da p.i.).

5. Como contrapartida do exercício da sua atividade, o Autor auferia a quantia certa e mensal de 135.000$00, quantia essa que seria atualizada sempre que houvesse atualizações dos vencimentos da função pública (facto nº 9 da p.i.).

6. O contrato em causa foi celebrado por um período de um ano, renovável por iguais períodos (facto nº 10 da p.i.).

7. Em 08 de agosto de 1996, foi elaborada uma alteração ao contrato supra referido de 30.05.1996 – devidamente autorizada por despacho de 07.08.1996 do Diretor dos Serviços Prisionais (substituto), conforme teor de doc. nº 3 junto com a p.i., cujo teor se dá por reproduzido – relativamente à cláusula quinta que passou a ter a seguinte redação: “O primeiro outorgante pagará ao 2º outorgante, pelos serviços prestados referidos nas cláusulas anteriores, a quantia mensal de Esc. 270.000$00 (duzentos e setenta mil escudos), através de requisição de fundos e por conta das verbas consignadas na rubrica própria do orçamento de estado, com a classificação económica 01.01.04 com actualizações na percentagem e em termos idênticos aos estabelecidos para a função pública, produzindo efeitos a partir da data do despacho que autoriza o início do pagamento dos respetivos abonos”, conforme teor de doc. nº 2 junto com a p.i., cujo teor se dá por reproduzido (facto nº 12 da p.i.).

8. Em 27 de janeiro de 2003, o então Diretor do Estabelecimento Prisional do Porto emitiu uma declaração, conforme teor do doc. nº 4, que se dá por integralmente reproduzido, declarando que o A. desempenha as funções de Assistente de Psiquiatria desde 05 de Julho de 1996, em horário completo, com qualidade, competência, assiduidade e que as suas funções vêm revelando um grande sentido de responsabilidade, realçando ser importante a sua valorização profissional e progressão em termos de carreira.

9. Em 14 de Julho de 2005, foi alterada a cláusula 3ª do referido contrato de 30.05.1996 – alteração devidamente autorizada por despacho do Ministro da Justiça de 04.07.2005 e formalizada pelo Diretor Geral dos Serviços Prisionais – passando a constar o seguinte: “1. O segundo outorgante, de acordo com as suas habilitações técnicas e profissionais, obriga-se a prestar em regime de profissão liberal, aos reclusos do Estabelecimento Prisional do Porto, os serviços de assistência na área da especialidade de psiquiatria, designadamente, através da realização de consultas, de assistência ao internamento, e da coordenação de programas, como os de substituição de metadona, antagonista e Unidade Livre de Drogas. 2 - O Segundo outorgante obriga-se a prestar uma disponibilidade de 35 horas semanais”, conforme teor de doc. nº 5 junto com a p.i que se dá por integralmente reproduzido. (facto 15º da p.i.)

10. O referido contrato de 30.08.1996 – com as alterações referenciadas supra – foi sendo renovado, anualmente, até Junho de 2009 (facto nº 16 da p.i.).

11. A remuneração do Autor foi sendo atualizada anualmente nos mesmos termos dos funcionários públicos (facto nº 17 da p.i.).

12. No ano de 2008, o Autor auferiu a remuneração de € 1.687,95 que se manteve até Junho de 2009 (facto nº 18 da p.i.).

13. No contrato referido no ponto 2. foi acordado que o Autor prestaria a sua atividade no estabelecimento a tempo parcial – manhãs de Segunda a Sexta- feira, tendo sido na base desse horário que foi estabelecida a remuneração indicada no doc. 1 junto com a p.i. (facto 11º da p.i.).

14. Na sequência da alteração da remuneração indicada no ponto 7, o Autor passou a prestar a sua atividade no Estabelecimento Prisional no regime de horário completo de 35 horas semanais, sendo uma parte do horário cumprida com a presença física permanente do Autor e a parte restante em regime de chamada. (factos 13º e 20º da p.i.).

15. Por conveniência dos serviços médicos e do funcionamento do próprio Estabelecimento Prisional foi acordado com o A. que o mesmo exerceria as suas funções, nomeadamente, serviço de consultas, tratamentos e assistência regular dos presos da parte da manhã, com início às 08.30h.

16. Foi acordado entre os serviços e o Autor que este prestaria 20 horas semanais em presença física e as restantes horas até perfazer as 35 horas semanais em regime de chamada, a qualquer hora ou dia da semana, devendo, nesse caso, deslocar-se ao EPP para assistir a uma urgência ocorrida com um qualquer preso, sendo tal do conhecimento e com o consentimento do próprio EPP.

17. Com o acordo do EPP o Autor gozava um período de descanso de 11 dias úteis em cada ano e sem perda de remuneração (facto 22º da p.i).

18. O período em causa bem como os da restante equipa médica era fixado e ajustado por acordo entre todos os médicos, estando vedado, a qualquer um deles, por imposição do EPP, a dispensa do trabalho, de 15 a 30 de Dezembro.

19. No EPP existia um pontómetro, através do qual era controlada a presença do A. e dos demais funcionários (facto 23º da p.i.).

20. Mensalmente o médico responsável pelo Departamento Clínico emitia uma declaração dirigida ao Diretor do Estabelecimento sobre o desempenho das funções do A. (facto nº 24 da p.i.)

21. Era o Estabelecimento Prisional do Porto que adquiria o receituário e as próprias vinhetas do A. (facto nº 26 da p.i.).

22. O A. recebia ordens e instruções quase diárias do médico responsável pelo Serviço Clínico, Dr. BB no que respeita à consulta de reclusos que este entendia que estariam em condições de dar entrada no programa de metadona ou outro terapêutico; que apresentassem problemas psiquiátricos após a entrada no EP; para avaliação psicológica para cumprimento de pena disciplinar; à realização de relatórios urgentes a pedido do Tribunal e ao momento da realização de tais tarefas (facto 27º da p.i.).

23. A execução de tais tarefas implicavam, por vezes, o re-agendamento das consultas marcadas pelo A. na medida em que, por ordem expressa do diretor de serviço, o A. teria que dar prioridade às mesmas sobre o serviço previamente agendado (facto 27º da p.i.).

24. O Autor geria o acompanhamento clínico dos reclusos que lhe eram dirigidos para seguimento pelo Dr. BB, definindo as consultas de que aqueles no futuro necessitariam (facto 36º da contestação).

25. Todos os instrumentos de trabalho que o Autor utilizava (computador, impressora, material de escritório, medidor de tensões arteriais, bata e processos clínicos) pertenciam ao Estabelecimento Prisional do Porto (facto nº 25º da p.i.).

26. Na vigência do contrato, ao A. nunca foram pagas quaisquer quantias a título de subsídio de férias ou Natal.

27. O A. tinha ainda um consultório privado onde exercia a sua profissão.

28. A testemunha CC, médica do EPP desde 1995, foi contratada para exercer funções de médica nos mesmos termos que o A., embora noutra especialidade, com um horário idêntico de 35 horas semanais, prestado em parte em presença física e noutra à chamada (alternando com outro médico da mesma especialidade), passando a partir de determinada data, a integrar os quadros.

29. O A. era o único médico da especialidade de psiquiatria a exercer funções no EPP.

30. Pelo ofício nº ... de 15.05.2009 e com efeitos a partir de 30 de Junho do mesmo ano, a Direção Geral dos Serviços Prisionais comunicou ao Autor a cessação dos serviços que este vinha prestando ao Estabelecimento Prisional do Porto desde Maio de 1996, conforme teor de documento nº 9 junto com a p.i. e cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

31. Atualmente, as funções que eram exercidas pelo A., são-no por uma empresa de prestação de serviços clínicos, utilizando os médicos o cartão eletrónico nos mesmos moldes em que o fazia o A. e existindo a mesma articulação com o chefe de serviço, Dr. BB, a nível da organização do respetivo serviço.

 32. É o seguinte o teor do documento nº 1 (fls. 18 e 19 dos autos) a que se reporta o nº 2 dos factos provados:


“CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS

Nos termos do disposto no art. 17º do Decreto-Lei nº 41/84, de 3 de Fevereiro com a nova redação dada pelo Decreto-Lei nº 299/85, de 29 de julho, e considerando que não existe no quadro da Direção-Geral dos Serviços Prisionais pessoal qualificado em número suficiente para responder às exigências de profilaxia e tratamento da saúde dos reclusos, foi autorizado por despacho do Senhor Director-Geral dos Serviços Prisionais, de 16.05.96, e celebrado o presente contrato de Avença entre:

- O ESTABELECIMENTO PRISIONAL DO PORTO, (…), na qualidade de PRIMEIRO OUTORGANTE E Lic. AA, (…), na qualidade de SEGUNDO OUTORGANTE.

Que se rege pelas seguintes cláusulas:


PRIMEIRA

O segundo outorgante está habilitado a exercer a atividade profissional de médico especialista em psiquiatria em regime de profissão liberal.

SEGUNDA

O PRIMEIRO OUTROGANTE está obrigado nos termos do artigo 95º do Decreto-Lei nº 265/79, de 1 de Agosto, a dispor, nos Estabelecimentos Prisionais, de um serviço médico na área de psiquiatria que responda às exigências essenciais de profilaxia e tratamento da saúde dos reclusos.

TERCEIRA

O SEGUNDO OUTORGANTE obriga-se a prestar os serviços de médico psiquiatra aos reclusos internados no Estabelecimento Prisional do Porto em regime de profissão liberal.

QUARTA

A prestação de serviço a que se refere a cláusula anterior é exercida nas instalações do Estabelecimento Prisional do Porto, em local reservado para o efeito, obrigando-se o SEGUNDO OUTORGANTE  a respeitar as normas de segurança ali em vigor quer as disposições legais aplicáveis aos reclusos.

QUINTA

O PRIMEIRO OUTORGANTE pagará mensalmente ao SEGUNDO OUTORGANTE pelos serviços prestados nos termos referidos nas cláusulas anteriores, a quantia mensal de esc. 135.000$00 (…), através da requisição de fundos e por conta das verbas consignadas na rubrica própria do orçamento do Estado com as atualizações que se vierem a verificar nos vencimentos da Função Pública.

SEXTA

O presente contrato é válido por um ano, podendo ser prorrogado por idênticos períodos e produz efeitos após a obtenção do Visto do Tribunal de Contas.

SÉTIMA

O presente contrato pode ser feito cessar a todo o tempo, por qualquer das partes com Aviso prévio de sessenta dias e sem direito a qualquer indemnização.

OITAVA

O presente contrato não confere ao SEGUNDO OUTORGANTE a qualidade de funcionário ou agente público”. [[1]]

33. É o seguinte o teor do documento de fls. 22 (“doc. nº 4”) referido no nº 8 dos factos provados:


DECLARAÇÃO

Para os devidos efeitos, declara-se que o Sr. Dr. CC desempenha desde o dia 5 de Julho de 1996 as funções de Assistente de Psiquiatria em horário completo e com as seguintes funções:
    • Consulta de Psiquiatria
    • Acompanhamento de doentes em Internamento em enfermaria
    • Avaliação, do ponto de vista psiquiátrico, de doentes para efeitos de cumprimento de medidas de punição
    • Integração e orientação do ponto de vista psiquiátrico das equipas dos programas terapêuticos no âmbito da toxicodependência
    • Unidade Livre de Drogas
    • Programa de Antagonistas
    • Programa de Substituição com Metadona
    • Grupo de Acompanhamento aos reclusos abstinentes
    • Atendimento de situações de urgência através de horário de presença física e de prevenção.
Desempenha com qualidade, competência e assiduidade as suas funções revelando um grande sentido de responsabilidade.

Apresenta uma excelente integração na equipa clínica e com os diferentes corpos de funcionários do EP, os quais realçam tanto a sua competência técnica como a sua disponibilidade e afabilidade.

Penso, por todas as razões apresentadas, ser importante a sua valorização profissional e progressão em termos de carreira.” [[2]]

34. É o seguinte o teor do documento de fls. 27 a que se reporta o nº 29 dos factos provados:


“Assunto: PRESTAÇÃO DE CUIDADOS DE SAÚDE À POPULAÇÃO RECLUSA – CESSAÇÃO DE CONTRATOS DE AVENÇA E DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS

Como é do seu conhecimento, a Direção-Geral dos Serviços Prisionais realizou um concurso público com publicidade internacional destinado a adquirir junto de pessoas coletivas, tal como a lei atualmente em vigor para a Administração Pública determina, cuidados de saúde para a população reclusa.

O procedimento aquisitivo encontra-se praticamente concluído, tendo a adjudicação sido aprovada por despacho de Sua Exa. O Ministro da Justiça, de 7 de maio último, prevendo-se que ocorra no próximo dia 1 de julho o início da atividade pelas empresas adjudicatárias.

Neste contexto, muito agradecendo a boa colaboração que tem prestado a esta Instituição, venho por este meio notificar V. Exa. de que a prestação de serviços que vem mantendo com a DGSP cessa no dia 30 de junho próximo.” [[3]]


*

*

*



III

Fundamentação de direito.

1. Delimitação objetiva do recurso.

Em face das conclusões do recurso interposto pelo A. e das contra-alegações do R. recorrido, são questões a decidir:

i. A relação contratual estabelecida entre o A. e o R. deve ser qualificada como contrato de trabalho ou como prestação de serviço, sob a forma de avença?

ii. Na eventualidade da confirmação de um contrato de trabalho, tal relação contratual, por violação do disposto nos artigos 14.º, 15º, 18º nº4 e 19º do Decreto-Lei n.º 427/89, na redação conferida pelo DL nº 218/98, de 17/7, está ferida de nulidade, não podendo a respetiva cessação ser interpretada como um despedimento?

2. Enquadramento normativo com referência à aplicação da lei no tempo.

· Na consideração de que a presente ação se iniciou em 8 de fevereiro de 2010, a lei adjetiva laboral a considerar é a decorrente do Código de Processo do Trabalho aprovado pelo Decreto-Lei n.º 295/2009, de 13/10, aplicável, de acordo com as normas ínsitas nos arts. 6.º e 9º do mesmo diploma, às ações iniciadas após a sua entrada em vigor, dizer 01/01/2010.

· Em termos de aplicação supletiva do regime adjetivo civil [arts. 1º nº2 al.b), 81º nº5 e 87º do CPT/99] ao presente recurso de revista, visto a data da prolação da decisão recorrida [03.02.2014], é aplicável o Código de Processo Civil aprovado pela Lei nº41/2013, de 26 de junho.

· Em sede normativo-substantiva, começa-se por acolher o consenso que deflui das instâncias recorridas, dizer:

«O contrato celebrado entre as partes remonta a maio de 1996, tendo sofrido alterações em agosto desse ano e em julho de 2005 e cessado efeitos a partir de 30.06.2009.

A relação jurídica estabelecida entre as partes foi constituída antes da entrada em vigor do Código de trabalho de 2003 e subsistiu após o início da sua vigência (aliás, muito para além desta), ocorrido em 01.12.2003 (cfr. artigo 3º, nº1, da Lei nº99/2003, de 27/08).

(….) as posteriores alterações a que o contrato foi sujeito, quer ao nível da remuneração, quer ao nível do tempo de trabalho, ocorreram ainda antes da entrada em vigor deste Código (cfr. factos 7 e 14). Porém, a formalização da alteração do tempo de trabalho a prestar pelo A. apenas sucedeu em 14 de julho de 2005 (cfr. doc. Nº5 junto com a p.i.), ou seja, já na vigência do Código de Trabalho.

Assim, considerando que todas as alterações do conteúdo do contrato ocorreram na vigência do DL. 49408, de 24.11.1969, não obstante a sua mera formalização posterior e o facto da relação perdurar após a entrada em vigor do CT de 2003 e o A. pretender exercer direitos relativamente à relação jurídica estabelecida até 2009, …à sua qualificação aplica-se o regime jurídico do contrato individual de trabalho, aprovado pelo DL nº 49 408 de 24.11.1969, atento o disposto no artigo 8º, nº1, da Lei Preambular que o aprovou([4])
· Ainda em sede normativo-substantiva, vindo a prevalecer a subsistência de uma relação de trabalho subordinado, ter-se-á, então, em consideração, visto a comunicação de cessação da relação contratual, em 15.05.2009, o Código de Trabalho na redação conferida pela Lei nº 7/2009, de 12.07, em vigor desde 17 de fevereiro de 2009 (Artigos 7º nº1 e 14º da Lei Preambular).  

3. Conhecendo.

3.1          A relação contratual estabelecida entre o A. e o R. deve ser qualificada como contrato de trabalho ou como prestação de serviço, na modalidade de avença?

Contrato de trabalho: eis o ponto fundamental que suporta o petitum formulado pelo A.

No dissídio patenteado no litígio, enquanto o A. apela à consideração como contrato de trabalho do vínculo que o ligava ao R., este contrapõe a natureza de prestação de serviço, sob a modalidade de avença.

O tribunal da audiência e julgamento, na 1ª instância, no sopeso e subsunção fáctico-jurídica, decidiu em sentido favorável à posição assumida pelo A., considerando que a ilação conforme ao direito a retirar da factualidade adquirida correspondia a um contrato de trabalho.

Decisão de sentido contrário – agora sob apreciação - veio a assumir o Tribunal da Relação do Porto.

Curiosamente, arrimados em doutrinas substancialmente idênticas, A./Recorrente, R./Recorrido, 1ª e 2ª Instâncias, posto que partindo de pontos comuns (índices), acabaram por deles retirar diferentes ilações, dissentindo, a final, na subsunção fáctico-normativa, ou dizer na iuris dictio aplicável ao caso concreto.

3.1.1 Necessariamente, ponto de partida comum na fundamentação normativa, as definições decorrentes da lei civil substantiva.

De acordo com o preceituado no artigo 1152º do Código Civil - cuja expressão literal viria a ser reproduzida no artigo 1.º da LCT -, «contrato de trabalho é aquele pelo qual uma pessoa se obriga, mediante retribuição, a prestar a sua atividade intelectual ou manual a outra pessoa, sob a autoridade e direção desta».

De sua vez, segundo o artigo 1154.º do Código Civil, «contrato de prestação de serviço é aquele em que uma das partes se obriga a proporcionar à outra certo resultado do seu trabalho intelectual ou manual, com ou sem retribuição».

De uma tal literalidade, logo o A. fez incidir o acento tónico da diferenciação na contraposição prestação de meios (com referência ao contrato de trabalho) / prestação de resultados (com referência ao contrato de prestação de serviço).

E fê-lo de maneira a concluir:
«Não obstante o Tribunal a quo reconhecer que a atividade do Recorrente consubstanciava uma obrigação de meios, vem subverter completamente o conceito previsto no art. 1154º do Código Civil (prestação de serviços), afirmando que o contrato de avença pode também consistir numa obrigação de meios! O que não corresponde ao entendimento da generalidade da doutrina e jurisprudência.» [Conclusão supra 11.7]

Inegavelmente, o Acórdão sob apreço previne a possível afinidade da obrigação de meios com o contrato de avença:
«[a] distinção das figuras contratuais com base no critério da obrigação de resultados (caraterística da prestação de serviços) ou na obrigação de meios (característica do contrato de trabalho) encontra-se, no caso do contrato de avença, muito esbatida, sendo de relevância diminuta. É que, também na avença, tem ela, ou pode ter, como desiderato, mais do que a obtenção de um resultado, a colocação do trabalho do avençado como meio de prossecução da atividade que o credor pretendeu contratar (…).»

Afinidade que desenvolve ao ponto de acabar por concluir, já com referência à situação sub iudicio:
«[t]ambém na avença, tem ela, ou pode ter, como desiderato, mais do que a obtenção de um resultado, a colocação  do trabalho do avençado como meio de prossecução da atividade que o credor pretendeu contratar, atividade essa a que nada obsta que se prolongue no tempo, tal como também se extrai dos nºs 3 e 5 do art. 17º, em que a prestação pode ter natureza sucessiva, podendo ser tacitamente renovada, e que tem, necessariamente, como objeto, o exercício da atividade (liberal) de que a entidade contratante careça e para a qual não disponha de funcionários ou agentes com as qualificações adequadas ao exercício das funções objeto da avença.
Assim, no caso, a circunstância de ao Réu interessar, mais do que o resultado da atividade do A., essa própria atividade, a qual foi sendo desenvolvida ao longo do tempo, não assume relevância na qualificação, como contrato de trabalho, do vínculo existente entre as partes.»

Assim procedendo, diferentemente do isolamento doutrinário-jurisprudencial reclamado pelo A./Recorrente, o acórdão encontra bom arrimo, quer na doutrina quer na jurisprudência.

Cita-se a mero título de exemplo:
«[n]o contrato de trabalho, muitas das vezes, está igualmente em causa a obtenção de um resultado. (…) atendendo às regras da boa-fé na realização da atividade, não se pode concluir que o resultado não seja tido em conta», «em contrapartida, no contrato de prestação de serviço, frequentemente, tem-se em vista uma prestação de meios; na realidade, o médico ou o advogado, por via de regra, não se obrigam à obtenção de um resultado([5])

«A exterioridade dos meios utilizados (e, nomeadamente, das atividades empregues), relativamente à vinculação do prestador de serviço, pode não ser absoluta – e daí que, …, o critério fundado na distinção entre obrigações de meios e obrigações de resultado se revista de notória relatividade na distinção entre contrato de trabalho e contrato de prestação de serviço.» ([6])


«O critério do objeto do contrato, ou seja, o critério da natureza da prestação acordada, nem sempre permite distinguir as duas figuras contratuais, por haver muitas situações, em que é difícil apurar o que é que realmente se prometeu – se a atividade em si ou se o seu resultado –dado que, em regra, toda a atividade conduz a um resultado e todo o resultado pressupõe o desenvolvimento de determinada atividade([7])

Compreende-se, mesmo, a constatação de alguma dificuldade na diferenciação quando, na respetiva conformação objetiva e no confronto com a realidade, a prestação de serviço e o contrato de trabalho surgem como figuras verdadeiramente próximas e/ou afins, a tornar difícil a definição de um traço que as distinga.

Diz Romano Martinez:


«O contrato de trabalho poderia ter sido qualificado como um subtipo de contrato de prestação de serviços. Em sentido amplo, a prestação de serviços abrange o próprio contrato de trabalho…»
«Em termos teóricos, podemos aceitar que há um contrato de prestação de serviços em sentido amplo, o qual engloba a prestação de serviços subordinada – onde se inclui o contrato de trabalho – e a prestação de serviços autónoma, que corresponde ao contrato de prestação de serviço propriamente dito». ([8])

Nesta ordem de ideias, particularizando a respeito da distinção contratual submetida a juízo - dizer, contrato de trabalho/avença – dir-se-á, de novo com Romano Martinez:


«[e]m sede de profissões liberais surgem, com frequência, dúvidas de qualificação. Os profissionais liberais, por exemplo médicos ou advogados, podem estar vinculados mediante contratos de trabalho ou de prestação de serviço, por vezes integrados num subtipo designado por contratos de avença. No entanto, mesmo quando celebram um contrato de prestação de serviço, em princípio, a sua obrigação costuma ser de meios e não de resultado.» ([9])

De modo similar, o ensinamento de Palma Ramalho:


«Muito divulgado no domínio das profissões liberais, o contrato de avença é uma figura especialmente próxima do contrato de trabalho pelos seguintes motivos: pela relativa indeterminação dos atos a realizar, em situação que lembra a indeterminação genética da atividade laboral; porque ambos os contratos são onerosos e na avença a remuneração o avençado também reveste um caráter periódico; porque o avençado se sujeita a instruções do credor quanto à execução do trabalho e, ainda, com frequência, a condições externas ao desenvolvimento da prestação também definidas pelo credor – assim, o dever de presença na empresa durante um determinado número de horas, que só na designação difere de um horário de trabalho.» ([10])

Donde será de concluir pela carência de fundamento na crítica formulada a respeito da afirmação constante do Acórdão sob recurso no sentido de que «[a] circunstância de ao R. interessar, mais do que o resultado da atividade do A., essa própria atividade, a qua foi desenvolvida ao longo do tempo, não assume relevância na qualificação, como contrato de trabalho, do vínculo existente entre as partes   

3.1.2 É, então, sob o reconhecimento da inexistência de uma absoluta diferenciação entre prestação de resultado/prestação de meios ou, de todo o modo, no reconhecimento da dificuldade numa diferenciação exata entre contrato de trabalho/contrato de prestação de serviço que a subordinação jurídica
[dizer, em termos breves: ao passo que a atividade que é objeto do contrato de trabalho é prestada «sob autoridade e direção» do empregador, já no contrato de prestação de serviço o prestador exerce a sua atividade com autonomia]

a subordinação jurídica tem assumido, na doutrina como na jurisprudência, a natureza de trave mestra com referência caraterizadora, a natureza, enfim, da ratio iuris diferenciadora.

Com particular pertinência para o thema sob debate, atentem-se nas palavras de Palma Ramalho:
«O contrato de avença está, com frequência, associado ao desempenho de profissões liberais de uma forma continuada e em benefício de um mesmo credor. Dada a frequência com que, na atualidade, as profissões liberais são desenvolvidas também num enquadramento de trabalho subordinado (assim os advogados que integram o departamento de contencioso de uma empresa, os médicos de um hospital ou os arquitetos ou engenheiros integrados numa empresa de construção civil), é particularmente difícil a distinção entre este contrato e o contrato de trabalho.
De novo, o critério decisivo será o da posição de autonomia ou de subordinação do prestador do trabalho, mas na aplicação deste critério devem ser valorizados, sobretudos, os indícios de subordinação que revelem a integração do trabalhador na organização do credor e a sua sujeição às correspondentes regras disciplinares, já que ao desempenho destas profissões, ainda que em moldes subordinados, inere uma elevada autonomia técnica e mesmo a autonomia deontológica do trabalhador» ([11])

               

Importará relevar, in casu, que a subordinação jurídica - se bem se interpretam as argumentações expendidas e não obstante os dissídios, recursivo e decisório – deflui daquelas, constituindo-se, mesmo, em o elemento caraterizador por excelência do contrato de trabalho e, desta arte, na pedra angular para a definição do direito no caso concreto.

Deste modo, a dificuldade deixada reconhecida, de per si, não deverá obstar à respetiva superação.

Como?

Responde Romano Martinez:
«É perante cada hipótese concreta que os tribunais têm de qualificar as situações, podendo haver algum casuísmo na respetiva solução. Casuísmo, não no sentido de arbítrio, mas tendo em conta a especificidade de cada caso concreto, que será um fator relevante.» ([12])

Desçamos, então, ao caso concreto, tomando em linha de conta os indícios de subordinação.

3.1.3 Indícios de subordinação.

Como vem sendo reconhecido nesta Secção Social:


«A subordinação jurídica que caracteriza o contrato de trabalho decorre precisamente do poder de direção que a lei confere ao empregador (n.º 1 do artigo 39.º da LCT) a que corresponde um dever de obediência por parte do trabalhador [alínea c) do n.º 1 do artigo 20.º da LCT].
Porém, como vem sendo repetidamente afirmado, a extrema variabilidade das situações concretas dificulta muitas vezes a subsunção dos factos na noção de trabalho subordinado, implicando a necessidade de, frequentemente, se recorrer a métodos aproximativos, baseados na interpretação de indícios.
É o que acontece nos casos em que o trabalho é prestado com grande autonomia técnica e científica do trabalhador, nomeadamente quando se trate de atividades que tradicionalmente são prestadas em regime de profissão liberal, como acontece com o exercício da atividade do médico, do engenheiro, do advogado.» [Ac. STJ de 10.12.2009, Processo Nº 6/08.1TTPTG.S1]
«A subordinação jurídica corresponde, em termos práticos, ao dever de obediência a que o trabalhador se encontra submetido no decurso da prestação da atividade que se obrigou a prestar ao empregador.
Sucede, porém, que a subordinação jurídica, sendo um conceito jurídico, não pode ser directamente apreendida e, daí, que a jurisprudência e a doutrina preconizem o recurso ao chamado método tipológico que consiste em buscar na situação real em que a relação contratual se desenvolve ou desenvolveu os aspetos factuais que normalmente ocorrem no modelo típico do contrato de trabalho e que, em regra, constituem manifestações da sujeição do trabalhador ao poder diretivo do empregador, sendo que cada um desses aspetos funcionará como um indício da existência da subordinação jurídica.» [Citado Ac. do STJ de 10.11.2010]

Quais, então, os indícios a tomar sob consideração?

Acompanhamos de perto, este último aresto. ([13])


«São vários os indícios que costumam ser apontados: uns de carácter interno e outros de carácter externo.
Como elementos indiciários de carácter interno, reveladores da existência de subordinação jurídica ou, pelo menos, de forte presunção nesse sentido, é habitual indicar-se a sujeição do trabalhador a um horário de trabalho, a execução da prestação em local definido pelo empregador, a existência de controlo sobre o modo como a prestação do trabalho é efectuada, a obediência às ordens e a sujeição à disciplina imposta pelo empregador, a propriedade dos instrumentos de trabalho por parte do empregador, a remuneração em função do tempo de trabalho e a integração do prestador da actividade na estrutura organizativa do empregador.
E, como indícios de carácter externo à relação, são referidos a observância do regime fiscal e de segurança social próprios dos trabalhadores por conta de outrem.»

Como se assinala, porém, neste mesmo Acórdão,

«[i]mporta sublinhar que os indícios atendíveis não podem ser isoladamente considerados, uma vez que, de per si, assumem, como é lógico, uma patente relatividade, devendo, por isso, ser sopesados no seu conjunto, na sua globalidade, impondo-se, como se disse no acórdão deste Supremo Tribunal de 14.1.2009, proferido no processo n.º 2278/08, da 4.ª Secção, “que o juízo de aproximação a cada modelo se faça no contexto global do caso concreto.»

Com exigência idêntica de um juízo de globalidade, MONTEIRO FERNANDES, numa compreensão que importa dar conta:
«O juízo a fazer, …, é ainda e sempre um juízo de globalidade, conduzindo a uma representação sintética da tessitura jurídica da situação concreta e comparação dela com o tipo trabalho subordinado. Não existe nenhuma fórmula que pré-determine o doseamento necessário dos vários índices, desde logo porque cada um deles pode assumir um valor significante muito diverso de caso para caso

E acrescenta:
«O próprio conjunto dos traços que integram o chamado “momento organizatório” de subordinação carece de valor absoluto na identificação do contrato de trabalho: a subordinação não é corolário forçoso de qualquer tipo ou grau de articulação da prestação de trabalho na organização da empresa. O contrato de prestação de serviço pode harmonizar-se com a inserção funcional dos resultados da atividade (art. 1154º do Cód. Civ.) no metabolismo da organização empresarial».  ([14])

3.1.4 No caso concreto.

Ao cotejo indiciário procederam uma e outra instâncias.

Todavia, como se deixa referido, com leituras e conclusões divergentes.

Importa tomar, então, sob consideração, as anotações singularmente aduzidas.

Teve por certo o Tribunal da 1ª Instância – e no mesmo sentido se bate o A./Recorrente – ter sido feita prova de uma subordinação jurídica característica do contrato de trabalho.

Justificou-se naquela decisão judicial:
«Na verdade, ficou provado que o Autor foi contratado pelo Réu para exercer as funções de psiquiatra no tratamento e acompanhamento dos reclusos do Estabelecimento Prisional do Porto, tendo sido inserido na estrutura organizativa do mesmo. (…), o Autor prestava a sua atividade de médico, ao serviço e no interesse do Réu, no próprio estabelecimento prisional em local reservado para o efeito (facto 4), com instrumentos de trabalho fornecidos por aquele (factos 21 e 25), obrigando-se a cumprir um número certo de horas, em horário completo, sendo-lhe pago um determinado quantitativo fixo e mensal. De salientar que a alteração da remuneração do Autor foi a consequência do aumento do tempo de trabalho a prestar pelo Autor, revelando tratar-se de uma contrapartida patrimonial da atividade prestado por aquele. Por outro lado, o Autor obrigou-se à prestação dos seus serviços médicos a partir da manhã, com início às 08.30h (cfr. factos 13 e 15), por força de uma orientação do Réu que (de) seu interesse e conveniência orientou a organização dos serviços nesse sentido, estando ainda sujeito a um controlo de assiduidade face ao teor do facto nº 19.
Cremos ainda que o modo de prestação do trabalho acordado com o Réu nos termos descritos no facto 16 não revela a existência de uma autonomia por parte do A. no modo de prestação do seu trabalho. Na verdade, da factualidade ali descrita resulta que o Autor se obrigou a uma prestação efectiva do seu trabalho durante 20 horas semanais que implicavam a sua presença física no EP por forma a proceder às consultas, tratamentos e assistência regular e programada aos reclusos e a uma disponibilidade nas restantes horas até perfazer as 35 horas semanais.
Tal disponibilidade não impõe a presença efectiva e concreta no local de trabalho, atribuindo ao A. tão só uma obrigação de prestar a assistência solicitada no caso de urgência e de ser chamado pelo EP. Tal disponibilização integra o conceito de prestação para efeitos de caracterização do contrato de trabalho. Na verdade, a prestação do trabalho não impõe o exercício efetivo e a todo o tempo de uma determinada atividade, a mera disponibilização da sua atividade ao serviço e em benefício do empregador integra aquele elemento caracterizador do contrato de trabalho. Aliás, é sintomático o facto do aumento do tempo de trabalho ter gerado um aumento da respectiva retribuição ao Autor, donde se infere que não será o resultado do seu trabalho o elemento crucial do contrato. Concluímos assim que ficou demonstrado que os elementos indiciários que se provaram relativamente ao horário imposto ao Autor, ao local de trabalho, aos instrumentos por aquele utilizados e à retribuição e ainda à marcação e gozo de férias, são característicos da execução de um contrato de trabalho. Neste último ponto, é claro que o Autor gozava de um período de descanso anual sem perda de remuneração (facto 17), elemento que afasta a caraterização do contrato como de prestação de serviço, não obstante, ser evidente que o tempo de férias despendido era inferior ao legalmente previsto. Relevante também para o efeito é o modo como esse período era organizado, demonstrativo que o Autor estava sujeito a determinadas regras e orientações do Réu que o impediam de se ausentar para o efeito como e quando lhe apetecia (cfr. facto 18).
Por último, resulta evidente que a atividade do Autor, ao serviço do Réu, era realizada com elevado grau de autonomia técnica decorrente dos seus conhecimentos científicos e técnicos que lhe permitiam decidir o acompanhamento clínico dos reclusos, a terapia adequada a cada um deles (facto 24), mas tal não afasta a subordinação jurídica perante o Réu realçada, nomeadamente, no facto do Autor ficar vinculado às ordens e instruções do médico responsável pelo Serviço Clínico, que, por vezes, poderia originar uma alteração do trabalho já agendado (consultas) e uma obrigação de cumprimento daquilo que lhe era determinado por aquele (facto 22 e 23).»

Colhe-se deste excerto da fundamentação que, num primeiro passo, o tribunal teve por adquiridos os elementos indiciários «relativamente ao horário imposto ao Autor, ao local de trabalho, aos instrumentos por aquele utilizados, à retribuição e, ainda, à marcação e gozo de férias».

Tomando-os em linha de consideração, o Tribunal da Relação, ora recorrido, sem pôr em causa a sua conformidade com o acervo fáctico comprovado, emprestou-lhes, todavia, um valor relativo. Vale dizer, sem deixar de os ter por elementos passíveis de uma indiciação de um contrato de trabalho, considerou-os, de todo o modo, insusceptíveis de ilidirem, de per se, a textualidade da avença.

Se bem se interpreta - atalhando caminho -, o Tribunal da Relação focou a leitura da apreciação indiciária à luz do específico circunstancialismo em que a relação contratual entre o A. (Médico Psiquiatra) e o R. (Estabelecimento Prisional) se desenvolveu.

Leitura que bem se compreende.

Em causa um ESTABELECIMENTO PRISIONAL com tudo o que, sem necessidade de especiais particularizações, dele se retira em termos de elevadas exigências de SEGURANÇA.

Tome-se em consideração, ex.g., o local da prática do ato médico por parte do A.: compreender-se-ia a deslocação do presidiário ao consultório (particular) do Médico Psiquiatra? Assim criando, seguramente - além de um óbvio acréscimo de despesas e da limitação na disponibilidade dos guardas -, fictícias necessidades de consulta (uma saída do estabelecimento será sempre apetecível!) além de sérios problemas de vigilância e de segurança, possivelmente, neste particular, para o próprio médico?! 

· Elemento indiciário reclamado pelo A./Recorrente e assumido, de igual passo, na sentença da 1ª Instância, foi desde logo a existência de um horário.

Resultou provado que, efetivamente, a partir da alteração ao contrato, outorgada em 8 de agosto de 1996, «o A. passou a prestar a sua atividade no Estabelecimento Prisional no regime de horário completo de 35 horas semanais, sendo uma parte do horário cumprida com a presença física permanente do Autor e a parte restante em regime de chamada

Provado ficou, de igual passo, que, «por conveniência dos serviços médicos e do funcionamento do próprio Estabelecimento Prisional foi acordado com o A. que o mesmo exerceria as suas funções, nomeadamente, serviço de consultas, tratamentos e assistência regular dos presos da parte da manhã, com início às 08.30h».

Outrossim, «foi acordado entre os serviços e o Autor que este prestaria 20 horas semanais em presença física e as restantes horas até perfazer as 35 horas semanais em regime de chamada, a qualquer hora ou dia da semana, devendo, nesse caso, deslocar-se ao EPP para assistir a uma urgência ocorrida com um qualquer preso, sendo tal do conhecimento e com o consentimento do próprio EPP.»

Resultava do clausulado contratual que o A. obrigava-se «a prestar serviços de médico psiquiatra aos reclusos internados no EPP em regime de profissão liberal», bem assim, que «a atividade exercida pelo A. era prestada nas instalações do próprio Estabelecimento Prisional, em local reservado para o efeito

É intuitivamente adequado, pelo que se deixou já anotado, que o local da prestação por parte do A./Psiquiatra não pudesse ser senão no próprio Estabelecimento Prisional.

Pari passu, a natureza da atividade que neste se desenvolve logo torna compreensível a existência de regras, como dizer, de um mínimo de tempos pré-determinados – logo de horários - para o desempenho médico contratado.

Esta situação traz à memória factualidade similar considerada no já citado Ac. deste STJ de 10.11.2010, de onde se transcreve:
«[o] horário de trabalho, embora típico do contrato de trabalho, não é incompatível com o contrato de prestação de serviço, mormente nos casos em que esta tem de ser necessariamente realizada em determinado local

Sendo de concluir, aqui como ali, que:

«Neste contexto, a existência de um horário de trabalho não assume relevância especial no que toca à qualificação do contrato.»

Romano Martinez entende, também ele, que:

«a existência de um horário de trabalho aponta para a qualificação do contrato como sendo de trabalho. Porém, a fixação de um horário para a realização da atividade pode estar na dependência do período de funcionamento da empresa ou das horas de laboração das máquinas, não consubstanciando em tais caos, um indício de contrato de trabalho».

No desenvolvimento deste pensamento, reconhece ainda:

«…por via da regra, se a atividade for desenvolvida na empresa, junto do empregador ou em local por este indicado, estar-se-á perante um contrato de trabalho. Há, todavia, contratos em que a determinação do local depende da atividade a desenvolver, não deixando, por isso, de se estar perante um contrato de prestação de serviços». ([15])

Mutatis mutandis, a justificação – assim quanto ao horário, assim quanto ao local da prestação - é igualmente adequada ao caso concreto, se tomada em linha de conta a especifica natureza e/ou o circunstancialismo de tempo e lugar do cumprimento da prestação. Dizer, in casu, prestação a cumprir no interior de um Estabelecimento Prisional, a que o senso comum alia necessariamente regulamentação rígida, ordem, disciplina, segurança. ([16])

A tornar, até, compreensível a existência do apontado pontómetro, posto que a factualidade provada não dê indicação quanto ao exato alcance do referido “controlo da presença” do médico e dos funcionários no EPP: controlo de segurança? Controlo da prestação do serviço? Um e outro propósitos?

A isto se alia, de todo o modo, o facto de que não flui do acervo comprovado qualquer indicação da existência e/ou do exercício de um poder disciplinar, por parte de quem dirigia o EPP, sendo, como se deixa referido, citando Palma Ramalho, «a sujeição às correspondentes regras disciplinares» factor de significante valoração na distinção entre a autonomia e a subordinação do obrigado à prestação.
· Na sentença, que o A./Recorrente perfilha, ponderou-se, ainda, como elemento indiciário conducente ao contrato de trabalho serem pertences do EPP os instrumentos por aquele utilizados.

Mostra-se adequado e razoável o juízo formulado a este respeito no Acórdão sob recurso:

«[o] local da prestação da atividade e a utilização dos instrumentos de trabalho pertencentes ao Réu não se nos afigura decisivo ou de utilidade relevante, quer tendo em conta a natureza e condições da atividade contratada (assistência clínica psiquiátrica a reclusos de estabelecimento prisional), quer por não nos parecer que o contrato de avença exclua a possibilidade de a atividade ser exercida em instalações do contratante e com material deste ou por este adquirido.»

Uma vez mais releva, sobremaneira, a natureza e especificidade de um Estabelecimento Prisional.
· E no que concerne ao índice remuneração?

Resultou provado que, inicialmente, «como contrapartida do exercício da sua atividade, o Autor auferia a quantia certa e mensal de 135.000$00, quantia essa que seria atualizada sempre que houvesse atualizações dos vencimentos da função pública».

Ficou provado, de igual passo, que, por força da alteração ao contrato introduzida em 08.08.1996, o EPP obrigou-se ao pagamento «pelos serviços prestados» pelo A., da quantia de «270.000$00», bem assim que «a remuneração do A. foi sendo atualizada anualmente nos mesmos termos dos funcionários públicos».

Retira daqui o A. a conclusão de que «os factos dados como provados nº 5, 7, 11 e 14, … revelam que o montante auferido pelo Recorrente era(m) atualizado(s) nos mesmos termos dos funcionários públicos e que a alteração na remuneração do Recorrente foi uma consequência direta do aumento do tempo de trabalho e não dos resultados, o que é totalmente incompatível com um contrato de avença.»

Não é, porém, de acolher esta pretensa incompatibilidade absoluta.

Na verdade, tal forma de retribuição não é exclusiva do contrato de trabalho, como numa conformação fáctica com total similitude à dos presentes autos, decidiu o citado Ac. do S.T.J., de 10.11.2010.

De igual entendimento comunga, se bem se interpreta, Romano Martinez:
«Se o pagamento é feito à tarefa, em princípio, estar-se-á perante um contrato de prestação de serviço, mas se for determinado por tempo de trabalho, será de pressupor que se trata de um contrato de trabalho. Este critério complementar poderá ajudar, mas não é decisivo, porque na prestação de serviço o preço pode ser fixado tendo em conta o tempo de trabalho.».
« …podem-se celebrar contratos de prestação de serviço em que a retribuição seja aferida em função do tempo utilizado na execução da tarefa.» ([17])

Virá, aqui, a propósito relembrar a apreciação conjugada – e, de algum modo, já com sentido globalizante - sobre tempo de trabalho /remuneração levada a efeito pelo Tribunal recorrido.
Reza no acórdão recorrido:
«[p]ese embora, no contrato de trabalho, o empregador adquira o direito não apenas  à prestação efetiva da atividade por parte do trabalhador, mas também à  sua disponibilidade para essa atividade, a verdade é que, por regra, o que é contratado e executado é a efetiva prestação de trabalho, no horário acordado e em regime de presença física no local onde a prestação deva ser exercida, e não já a mera disponibilidade do trabalhador para essa atividade. A disponibilização da força de trabalho no vínculo laboral significa, por excelência, que o empregador possa dispor, da forma que entender (mas dentro, naturalmente, do condicionalismo legal), da atividade do trabalhador e, bem assim que, designadamente, não deixará o empregador de estar adstrito à obrigação de lhe pagar a contrapartida pecuniária (retribuição), caso, porventura, não possa assegurar ao trabalhador a efetiva prestação do trabalho. Mas a verdade é que, pese embora a “aquisição” da disponibilidade para o trabalho, tal não significa que não tenha o trabalhador (no vínculo contratual) o direito à ocupação efetiva, o qual poderá ser exigido pelo trabalhador ao empregador, apenas podendo ser inobservado nas situações legalmente previstas. Ou seja, no contrato de trabalho a situação normal e típica é que este tenha por objeto a efetiva prestação laboral no período e horário normal de trabalho que haja sido acordado.
No caso, o A. tinha a obrigação de prestar a sua atividade, durante 20 horas semanais, em regime de presença física, nas manhãs de 2ª a 6ª Feira, com início às 8h30. Porém, no restante período não tinha o A. que prestar a sua atividade, a menos que, até ao limite de 35 horas, fosse chamado; mas, não o sendo, estava esse tempo na sua inteira disponibilidade, que o poderia aproveitar da forma que melhor entendesse, designadamente no seu consultório privado, onde também exercia a sua profissão (cfr. nº 26 dos factos provados). O que foi acordado e decorre dos factos provados é, tão-só, que, até esse limite, o A. poderia ter que prestar a sua atividade para o Réu, se chamado para assistir a situação de urgência ( cfr. nºs 14 e 16), não tendo que a prestar se não fosse chamado. Tal circunstância afigura-se-nos mais compatível com o contrato de avença do que com o contrato de trabalho

Subscreve-se por inteiro, sem necessidade de introduzir outras razões ou argumentos, a interpretação deixada reproduzida, no sentido de uma maior compatibilidade do dito horário disponível com o contrato de prestação de serviço sob a forma de avença.


· Item que merece particular reflexão o decorrente dos factos provados e descritos supra em II, 22 e 23.

Ponderou o Tribunal recorrido:

«Não se nos afigura, também, que os factos provados nos nºs 22 e 23 [22. O A recebia ordens e instruções quase diárias do médico responsável pelo Serviço Clínico, Dr. BB no que respeita à consulta de reclusos que este entendia que estariam em condições de dar entrada no programa de metadona ou outro terapêutico; que apresentassem problemas psiquiátricos após a entrada no EP; para avaliação psicológica para cumprimento de pena disciplinar; à realização de relatórios urgentes a pedido do Tribunal e ao momento da realização de tais tarefas;23.A execução de tais tarefas implicavam, por vezes, o re-agendamento das consultas marcadas pelo A. na medida em que, por ordem expressa do diretor de serviço, o A. teria que dar prioridade às mesmas sobre o serviço previamente agendado] se mostrem de relevância decisiva no sentido da existência de um contrato de trabalho e/ou que sejam incompatíveis com o contrato de avença, pois que, como refere Maria do Rosário Palma Ramalho, o avençado pode estar sujeito a instruções do credor quanto à execução do trabalho, para além de que as instruções em causa nesses números se prendiam, essencialmente, com o estabelecimento de prioridades em face de necessidades concretas que ao responsável pelo Serviço Clinico, e não ao A., competia conhecer, avaliar e definir (entrada de reclusos no programa de metadona, reclusos que apresentassem problemas psiquiátricos após entrada no EP, avaliação psicológica para cumprimento de pena disciplinar e realização de relatórios urgentes a pedido do Tribunal), o que, salvo melhor opinião, não extravasa os poderes do contratante da avença.»

Convenhamos que a expressão «O A. recebia ordens e instruções quase diárias do médico responsável pelo serviço clínico» faz crer, de imediato, na existência de uma subordinação jurídica.

Todavia, também aqui entende-se ser de acolher a interpretação emprestada a tal factualidade pelo Tribunal da Relação do Porto.

Deflui, na realidade, da factualidade em causa, não propriamente um exercício de ius imperii, um diktat, uma soberania por parte do médico responsável pelo serviço clínico, sobre o A.

Tal como no serviço de urgências, em qualquer unidade hospitalar, existe um serviço de seriação – cuja razão de ser, por tão óbvia, não carece de explicação -, torna-se razoável e adequado admitir a existência de um serviço prévio de seriação no Estabelecimento Prisional.

Não estava em causa, como bem se julga interpretar, senão uma distribuição e/ou uma forma de organização dos serviços.

Deixou-se referido, em transcrição retirada de Monteiro Fernandes, que «O contrato de prestação de serviço pode harmonizar-se com a inserção funcional dos resultados da atividade no metabolismo da organização empresarial».

A conjugação da atividade do A. – prática do ato médico, deontologicamente preservado – com a inserção funcional decorrente da seriação levada a efeito, em ato prévio, pelo médico responsável pelo serviço clínico no Estabelecimento Prisional, não põe em causa o exercício autonómico da prestação a que o A. estava contratualmente obrigado.

A destinação levada a cabo pelo médico responsável não interfere na prestação (ato médico) que incumbia ao A. Está a montante. Como se deixa referido no Acórdão, as instruções em causa prendiam-se essencialmente «com o estabelecimento de prioridades em face de necessidades concretas (inserção funcional) que ao responsável pelo serviço clínico, e não ao A., competia conhecer, avaliar e definir (entrada de reclusos no programa de metadona, reclusos que apresentassem problemas psiquiátricos após entrada no EP, avaliação psicológica para cumprimento de pena disciplinar e realização de relatórios urgentes a pedido do Tribunal).

Dir-se-á: pura inserção funcional no metabolismo da organização.

Aliás, não resulta igualmente provado – numa clara manifestação de exercício autonómico da função médica - que «O A. geria o acompanhamento clínico dos reclusos que lhe eram dirigidos para seguimento», «definindo as consultas de que aqueles no futuro necessitariam»?! [Supra II, 24]

Fazia-o com autonomia, sem necessidade de qualquer aprovação superior.

Coroando e confirmando o que vem de ser exposto vejamos o que consta do facto descrito em II. 31: «Atualmente, as funções que eram exercidas pelo A., são-no por uma empresa de serviços clínicos, utilizando os médicos o cartão eletrónico nos mesmos moldes em que o fazia o A. e existindo a mesma articulação com o chefe de serviço, Dr.BB, a nível da organização do respetivo serviço».

Posto que identificando uma realidade igual, o Tribunal não fala, agora, em ordens e instruções, antes em articulação.

Destarte, esta referência à articulação com o chefe de serviço. Dr. BB, a nível da organização do respetivo serviço confirma a antedita inserção funcional, ou dizer, repetindo Monteiro Fernandes, «O contrato de prestação de serviço pode harmonizar-se com a inserção funcional dos resultados da atividade (art. 1154º do Cód. Civ.) no metabolismo da organização empresarial».   
· Não se ignora o facto decorrente do descrito em II.20, a apontar no sentido de uma aparente avaliação do desempenho.

Diz-se ali que «mensalmente o médico responsável pelo Departamento Clínico emitia uma declaração dirigida ao Diretor do Estabelecimento sobre o desempenho das funções do A.»

Porém, uma tal avaliação de desempenho não impõe, de per si, uma identificação do vínculo como de contrato de trabalho.

Na verdade, a avaliação de desempenho é compatível com o contrato de prestação de serviço, na ideia, nomeadamente, de que um mau desempenho poderá constituir fundamento para a não renovação do contrato, sendo certo que, nos termos acordados, o contrato tinha sido celebrado pelo período de um ano, renovável por iguais períodos. (Supra II.6)

3.1.5 O nomen iuris.

Este Supremo Tribunal de Justiça vem mantendo, de uma forma praticamente unânime, a respeito do nomen iuris, o entendimento de que:

«[i]mporta atender ao nomen iuris que as partes deram ao contrato e ao teor das respectivas cláusulas, o que, não sendo decisivo, não deixa de assumir especial relevo, uma vez que se trata de um documento em que as partes expressaram a sua vontade negocial, vontade essa que não poderá deixar de assumir relevância decisiva na qualificação do contrato, salvo nos casos em que a matéria de facto provada permita concluir, com razoável certeza, que outra foi realmente a vontade negocial que esteve subjacente à execução do contrato.» [Ac. de 10.11.2010, Processo 3074/07.0TTLSB.L1.S1]

«[h]á que levar em conta, quando o contrato tenha sido reduzido a escrito, o “nomen juris” que as partes lhe deram e o teor das cláusulas que nele foram inseridas, uma vez que tais indícios, apesar de não serem decisivos para a qualificação do contrato – pois o que releva, realmente, não é a denominação que lhe foi dada pelas partes nem as cláusulas que nele foram inseridas, mas sim os termos em que o mesmo foi executadonão podem deixar de assumir relevância para ajuizar da vontade das partes no que diz respeito ao regime jurídico que escolheram para regular a relação entre elas estabelecida [Ac. de 08.10.2008, processo n.º 1328/08, 4.ª Secção).»

Tem o A./Recorrente por certo que «o EPP (Estado português) quis apenas manter uma aparência formal de prestação de serviços, assegurando uma posição contratual menos onerosa, enquanto desenvolvia paralelamente uma verdadeira relação laboral com o Recorrente.» [Supra, I.11.14]

Uma tal afirmação – a pressupor, de algum modo, uma fraude à lei - traz-nos à memória a chamada de atenção feita por Romano Martinez:

«[a]s partes podem ter enquadrado a relação jurídica num regime de trabalho autónomo por um motivo fraudulento: para obstar à aplicação das normas imperativas de direito do trabalho, como meio de prejudicar, em princípio, o prestador de trabalho. De facto, a fuga para o trabalho autónomo, tendo em vista a flexibilização do vínculo jurídico, pode implicar que não se apliquem as regras jurídico-laborais que melhor protegem o trabalhador. Em tal caso, haverá uma errada (ou abusiva) qualificação do contrato, que não vincula o intérprete, cabendo ao tribunal corrigir o lapso.»

O mesmo Autor não deixa de apontar, porém, que

«[t]ambém pode ser celebrado um contrato de trabalho simulado, que, na realidade, corresponde a um contrato de prestação de serviço para efeitos de obtenção de benefícios da segurança social…» [[18]]

Esta intenção de fraude à lei é de afastar liminarmente uma vez que a mesma não ressuma de nenhum dos factos comprovados.

Como se vê no ponto 32 do quadro fáctico comprovado, o Estabelecimento Prisional do Porto e o A., «médico especialista em psiquiatria», aquele na qualidade de 1º outorgante, o A. como 2º outorgante, outorgaram um «CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS» [AVENÇA], «nos termos do disposto no art. 17º do DL nº 41/84, de 3 de fevereiro, com a nova redação dada pelo DL nº299/85, de 29 de julho», assumindo o A. a obrigação de «prestar os serviços de médico psiquiatra aos reclusos internados no Estabelecimento Prisional do Porto em regime de profissão liberal.»

Os termos outorgados espelham, pois, a celebração de um negócio jurídico bilateral, sinalagmático, nominado - «contrato de prestação de serviço», na modalidade de «Avença».

Celebrado, por nada indiciar o contrário, dentro da liberdade contratual de cada uma das partes.

Reconhecendo-se, como é suposto dever-se reconhecer que o Estado pauta a sua conduta como pessoa de bem, nada contraria tal asserção, visto a celebração levada a efeito com subordinação objetiva, imediata e prática ao princípio da legalidade.

Outrossim, não é de suspeitar sequer uma menor capacidade de compreensão do exato alcance do contrato celebrado por parte do A./Recorrente, médico com a especialidade de psiquiatria, com «consultório privado, onde exercia a sua profissão», quando assumiu a obrigação da prestação de serviços de médico psiquiatra, «em regime de profissão liberal» [Supra II,3 e 27] e, assim a foi assumindo ao longo dos anos sem que do quadro fáctico conste qualquer reclamação, ex,g. ao nível de uma eventual exigência de subsídio de férias ou de Natal.

Dizer, por isso, que o contrato plasmado no acervo fáctico comprovado espelha, sem ponta de dúvida, a celebração voluntária e livre por parte do EPP e do A./Recorrente de uma «AVENÇA».

Uma modalidade de prestação de serviço cujo alcance e/ou noção mais ou menos exata, as dificuldades económicas socialmente sentidas fazem ver que estão ao alcance do mais humilde trabalhador por conta própria. 

Nesta ordem de ideias, são de acolher as considerações adrede aduzidas no Tribunal recorrido:

«[n]ão esquecendo que os contratos “são o que são e não o que as partes dizem que são”, como refere João Leal Amado, in Contrato de Trabalho, à luz do novo Código do Trabalho, Coimbra Editora, pág. 68, o nomen juris pode, em determinadas circunstâncias e em situações de proximidade de figuras contratuais, mostrar-se relevante  na aferição do que as partes pretenderam contratar e contrataram efetivamente, o que, no caso concreto, se nos afigura relevante.
Com efeito, o contrato formalmente celebrado e designado pelas partes foi o de avença, celebrado ao abrigo do então DL 41/84, com a redação dada pelo DL 299/85, de 29.07 e que permitia o recurso a essa figura contratual para o desempenho de atividade de natureza liberal, como era a levada a cabo pelo A., e o que, face também às suas habilitações, não poderia ser por este desconhecido, o que leva a crer que foi esse o regime contratual que foi acordado e pretendido acordar. E, isso, tanto mais se tivermos em conta que, não obstante uma remuneração a tempo completo (a partir de 08.08.1996), isto é, de 35 horas semanais, o A. não estava obrigado a uma prestação efetiva de trabalho correspondente a esse tempo (pois que, com exceção de 20 horas no período da manhã, apenas estava, até um limite de 35 horas, disponível para essa prestação), o que, apesar da condicionante de poder vir a ser chamado, lhe permitia todavia dispor livremente do tempo, designadamente no exercício da sua profissão no seu consultório, o que, como já referido acima, mais compatível se mostra com o contrato de avença do que com o contrato de trabalho.»

3.1.6 Acrescem, sem necessidade de outros desenvolvimentos, os seguintes pontos indicados pelo Tribunal da Relação, que contribuem para o afastamento de um contrato de trabalho:
· «[s]em esquecer … o cuidado com que deve ser encarado o não pagamento dos subsídios de férias e de Natal (na medida em que tal poderá consubstanciar uma violação do contrato de trabalho), a verdade é que, no caso e perante o referido contexto,  afigura-se-nos que esse não pagamento, ao longo do tempo e sem que se mostre, tão pouco, que ele tivesse sido então reclamado,  aponta no sentido do contrato de avença e de que foi esse o tipo contratual  acordado e executado.»

· «[r]esta realçar que nada se apurou em matéria disciplinar, assim como nada se apurou, como já referido, em matéria de faltas, de necessidade, ou não, de justificação das mesmas e das eventuais consequências, a nível disciplinar e/ou remuneratório.»

3.1.7 Em síntese.

Cabendo ao autor/trabalhador alegar e provar, nos termos do art.º 342.º, n.º 1, do C.C., os factos que se mostrem suficientes para, em termos de razoabilidade, convencer o julgador de que o contrato por si invocado assume, realmente, a natureza de contrato de trabalho, em caso de dúvida, as pretensões por ele formuladas com fundamento no alegado contrato de trabalho terão de ser julgadas improcedentes.
3.2 Atenta a improcedência do recurso de revista interposto pelo A., o exame da questão suscitada pelo Estado Português recorrido, em sede de contra-alegação [Supra, III, 1, ii], fica prejudicado, visto o disposto no nº2 do artigo 608º do Código de Processo Civil, aplicável aos acórdãos proferidos pelo Supremo Tribunal de Justiça, nos termos conjugados dos artigos 663.º, n.º 2, e 679.º do mesmo Código.


IV


DECISÃO

Pelos fundamentos expostos, decide-se negar a revista, confirmando-se o acórdão recorrido.

Custas pelo A.

Anexa-se Sumário.

Lisboa, 8 de outubro de 2014

Melo Lima (Relator)

Mário Belo Morgado

Pinto Hespanhol

____________________________
[1] Facto aditado pelo Tribunal da Relação
[2] Facto aditado pelo Tribunal da Relação
[3] Facto aditado pelo Tribunal da Relação
[4] Consequência de uma tal delimitação temporal determinativa do Regime Jurídico do Contrato Individual de Trabalho, [LCT] anexo ao Decreto-Lei n.º 49.408 de 24 de Novembro de 1969, será – como importa ressalvar, desde já – a inaplicabilidade, in casu, da presunção estabelecida no art. 12º do CT/2003.
[5] MARTINEZ, PEDRO ROMANO - DIREITO DO TRABALHO, 2013, 6ª Edição, Almedina, pág.289 [Negrito do Relator]
[6] FERNANDES, ANTÓNIO MONTEIRODIREITO DO TRABALHO, 16ª Edição, Almedina, 2012, págs.120-121
[7] Ac. S.T.J. de 10.11.2010; Processo 3074/07.0TTLSB.L1.S1 [Negrito do Relator]
[8] Ob. cit. págs.287-288 [Negrito do Relator]

[9] Ob. cit. pág.293

[10] RAMALHO, MARIA DO ROSÁRIO PALMATRATADO DE DIREITO DO TRABALHO / PARTE II – SITUAÇÕES LABORAIS INDIVIDUAIS, 4ª Edição, Almedina, pág.60
[11] Ob.Cit. pág. 61 [Negrito e sublinhado do Relator]
[12] Ob. cit. pág. 294
[13] Sobre os métodos tipológico e indiciário, vide, ainda: ROMANO MARTINEZ, ob. cit. págs. 300 – 304; MONTEIRO FERNANDES, ob. cit. págs.122-124
[14] Ob. cit. pág. 124
[15] Ob. cit. pág. 302
[16] Relembra-se, a propósito, a cláusula 4ª ínsita no contrato celebrado: «A prestação de serviço (…) é exercida nas instalações do Estabelecimento Prisional do Porto, em local reservado para o efeito, obrigando-se o SEGUNDO OUTORGANTE a respeitar as normas de segurança ali em vigor quer as disposições legais aplicáveis aos reclusos.» [Supra II, 32]
[17] Ob. cit. pág. 302
[18] Ob. cit. respetivamente, págs. 287 e 304, Nota 643