Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
02B3431
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: OLIVEIRA BARROS
Descritores: MARCAS
CONFUSÃO
Nº do Documento: SJ200211130034317
Data do Acordão: 11/13/2002
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL LISBOA
Processo no Tribunal Recurso: 1335/02
Data: 03/04/2002
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Sumário : Entre as marcas "Dr Martens" destinada a produtos da classe 25 (calçado, nomeadamente, botas e sapatos) e " Dr. Martinez", destinado aos mesmos produtos, existe risco de confusão.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:


1. A "A", com sede em Munique, é titular da marca internacional nº584207 - "Dr. Martens", destinada, nomeadamente, a produtos da classe 25ª (calçado, nomeadamente, botas e sapatos) da classificação internacional de produtos e serviços (1).
A protecção dessa marca internacional em Portugal foi concedida por despacho de 23/4/93 do Director do Serviço de Marcas do Instituto Nacional da Propriedade Industrial ( INPI )

Em 19/12/95, B, requereu a esse Instituto o registo de marca com o nº 314329, caracterizada pela expressão "Dr. Martinez" e destinada a produtos da classe referida

Julgada improcedente a reclamação da sobredita sociedade alemã, o registo, com aquele número, da marca "Dr. Martinez" foi concedido por despacho de 11/4/96 do Director do Serviço de Marcas do INPI.

2. Em 31/10/96, a referida sociedade alemã interpôs, ao abrigo do art. 38º ss CPI (2), recurso desse despacho.

Distribuído à 2ª Secção da 10ª Vara Cível da comarca de Lisboa, esse recurso, fundado nos arts. 189º, nº1º, al.m), 191º, 193º ( nº1º), e 260º ( al.a) ) daquela lei, foi, por sentença de 13/7/2001, julgado procedente te, tendo sido revogado o despacho nele impugnado, de concessão de protecção registral à marca nº 314329 " Dr. Martinez ".

Julgada, na Relação de Lisboa, improcedente a apelação que B, interpôs dessa decisão, a mesma, ainda inconformada, pede agora revista, rematando a alegação respectiva com - atenta a emenda a fls. 277, e mesmo se noutra ordem - as seguintes conclusões, delimitativas do âmbito ou objecto deste recurso (arts. 684, nºs 2 a 4, e 690, nºs 1 e 3, CPC ):

1ª - Constituída pela expressão " Dr. Martinez ", a marca da recorrente é referida por duas vezes no acórdão recorrido como " Dr. Martines" ; mais se lhe atribuindo nesse acórdão composição mista que, mera-mente nominativa, manifestamente não possui.

2ª - A recorrente é totalmente alheia à composição abusiva da marca " Dr. Martinez " nos termos escogitados no acórdão recorrido, exclusivamente imputáveis à firma "B", também genericamente conhecida por " Altivo ".

3ª - A marca em causa é legítima e inconfundível com a que lhe foi contraposta pela recorrida.

4ª - A recorrente é, em Portugal, titular prioritária da marca nº 247987, integrada pela expressão " Dr. Martinez ", anterior à marca nº 584207 - " Dr. ...".
5ª - Esse facto legitima a recorrente quanto à adopção e registo da marca nº 314329, justificando, de acordo com a teoria da distância, a legitimidade da sua protecção registral.

Houve contra-alegação, e, corridos os vistos legais, cumpre decidir, em vista, apenas, da matéria de facto fixada pelas instâncias, - para que se remete, em obediência ao prescrito nos arts. 713, n. 6, e 726 CPC -, e consideradas as conclusões da alegação da recorrente na ordem acima adoptada.

3. Precisado, antes de mais, que a expressão " Dr. Martines " só, de facto, aparece no relatório do acórdão sindicado (3), nenhuma relevância para a resolução deste recurso se vê que haja que atribuir a essa parte da supra indicada conclusão 1ª.

É, por outro lado, exacto também que, como notado na 2ª parte dessa conclusão, a marca impugnada é nominativa, e não mista, como considerado no acórdão sob revista em virtude de confusão que a seguinte conclusão 2ª menciona.

Eis, enfim, quanto basta notar no respeitante às duas primeiras conclusões da alegação da recorrente
(como dito, tal como acima ordenadas), nada mais cabendo utilmente adiantar a esse propósito.

4. No que, por sua vez, diz respeito à questão da prioridade do registo (al. a) do n. 1º do art. 193 CPI), suscitada nas conclusões 4ª e 5ª dessa alegação, importa, antes de mais, salientar que, como logo na 1ª instância se fez notar (4), a prévia existência da marca nº 247987, "Dr. Martinez", não foi invocada na contra-alegação da ora recorrente, então recorrida (5).

De tal, por isso, não conheceu o tribunal de 1ª instância; nem, aliás, também o acórdão recorrido, apesar de mencionada - dir-se-ia que en passant - na segunda das conclusões oferecidas na apelação; não vindo, em todo o caso, assacada a esse acórdão a nulidade por omissão de pronúncia prevenida na al. d) do nº1º do art. 668º CPC (cfr. também nº3º desse mesmo artigo) (6).

Trata-se, em todo o caso, de questão já resolvida por este Tribunal em sentido desfavorável à recorrente, noutro processo entre as mesmas partes, mas relativo a (ainda) outro registo.

Nesse acórdão de 19/6/2001 lavrado no Proc. nº 1706/01-6ª e de que há cópia a fls.145 ss dos autos, que, neste ponto, remete para a lição de Carlos Olavo, " Propriedade Industrial " (1997), 54-55, julgou-se, em indicados termos, sem cabimento a ora de novo invocada teoria da distância (7). Na verdade:

Propondo que o titular dum sinal distintivo (a marca " Dr. ...", neste caso) não pode exigir que um sinal concorrente (o da ora recorrente) guarde maior distância em relação ao seu sinal do que aquela que ele próprio observou relativamente a sinais pré-existentes (no caso, a predita marca nº 247987, " Dr. Martinez ", da ora recorrente), essa teoria surge reportada essencialmente a sinais fracos, isto é, desprovidos de eficácia distintiva, a que falte aptidão diferenciadora.

Não é essa a hipótese ocorrente.

Fez-se, mais, notar, no predito aresto, que a marca nominativa "Dr. ....." não tem qualquer semelhança com a marca mista nº 247987, que descreve ( fls.153, último par.) (8): o que de imediato arreda o cabimento daquela teoria.

Pode, deste jeito, dizer-se das aludidas conclusões 4ª e 5ª que se trata de fraco foguete, já estourado, e de que nem da cana deveria ter sobrado rasto.

5. Chega-se, desta forma, ao real cerne deste recurso, resumido na atrás transcrita conclusão 3ª, segundo a qual a marca da recorrente em crise é inconfundível com a que lhe foi contraposta pela recorrida.

Essa é, no entanto, a nosso ver, tese de igual modo insustentável.

Não se discute que a ora recorrente seja, como alega, uma empresa nacional do sector do calçado altamente cotada pela qualidade dos seus produtos; que tenha querido prevenir a comercialização dos mesmos em toda a Península Ibérica; e que lhe tenha sido autorizado o uso do nome (clínico) Dr. Martinez (9).

Trata-se, enfim, de factos que não constam da matéria de facto fixada pelas instâncias, e que, portanto, não podem ter-se agora em conta, dado o disposto no art. 729º, nºs 1º e 2º, CPC.

Nada, em todo o caso, a falada autorização tira ou põe seja o que for à observação do acórdão recorrido de que enquanto a titular da marca Dr. ...é sociedade denominada A, a marca Dr. Martinez não encontra correspondência - antes se diria que surge, por assim dizer, de pára-quedas - na firma da ora recorrente, B.

Por outro lado:

O consumidor médio dos produtos em referência que importa ter em consideração para este efeito é, como óbvio, o nacional; não o do país vizinho (logo, aliás, posto de sobreaviso por imediata distinção entre nome espanhol e outro que o não é). Com efeito:

Irrefutável a anterioridade, exigida pela al.a) do nº1º do art.193º CPI, do registo da marca estrangeira aludida, a conformação da reclamação deduzida pela sua titular com o princípio da especialidade estabelecido na seguinte al.b) resulta imediatamente da coincidência dos números do reportório ou classes da tabela aludida em 1., supra.

A questão a resolver é, deste jeito, apenas a de apurar se há ou não risco para o consumidor português de confundir as marcas em litígio, ou seja, se foi, ou não, infringida a proibição de imitação ínsita na al. c) daquele normativo, e, assim, nos termos da lei, se efectivamente ocorre, ou não semelhança gráfica, figurativa ou fonética susceptível de facilitar erro ou confusão do consumidor, ou risco de associação; semelhança essa tal que a distinção só se revele possível mediante confronto ou exame atento.

Colhe, deste modo, cabimento a breve recapitulação que segue da boa doutrina já adiantada nos autos a este respeito. Assim:

6. A marca tem por função a identificação dos produtos ou serviços propostos ao mercado.

Serve, pois, para distingui-los dos congéneres; e, assim, do mesmo passo que protege o público consumidor de eventual confusão, favorece, através da sua função identificadora e distintiva a empresa no jogo da concorrência, garantindo ao titular o direito a que o público não seja confundido (10).

Em causa o princípio da novidade da marca, destinado a proteger a sua função individualizadora, e, designadamente, de identificação da proveniência do produto ou serviço, à apreciação da confundibilidade interessa essencialmente a semelhança ou dissemelhança que as marcas em confronto revelem no seu aspecto geral, em impressão de conjunto (11).

Deve, por isso mesmo, olhar-se mais à semelhança do conjunto dos seus elementos constitutivos do que à dissemelhança que apresentem diversos pormenores, considerados isolada ou separadamente (12), atendendo-se, deste modo, à impressão geral suscitada no consumidor médio dos produtos ou serviços em questão, ao qual raramente será possível proceder a um exame comparativo (13).

Tratando-se de marcas nominativas, o aspecto a considerar em primeiro lugar é, efectivamente, o da semelhança fonética, por ser o que a memória retem melhor (14).

Inegável a homofonia propiciada por tonicidade idêntica, a afinidade visual ou gráfica resulta, por sua vez, manifesta do início por igual abreviatura e da identidade das 4 primeiras letras do patronímico que se lhe segue; por fim contribuindo essa abreviatura para de igual modo patente semelhança ideográfica.

Há risco de erro ou confusão sempre que a semelhança possa dar origem a que um sinal seja tomado por outro, ou a que o público considere que há identidade de origem ou proveniência dos produtos ou serviços a que os sinais se destinam (15).

Mesmo quando não preenchida a previsão do nº1º do art.190º CPI, a outrossim arguida notoriedade da marca da ora recorrida, reconhecida no final da sentença apelada ( fls.129 ) (16), agrava o risco de confusão
(17).

Julgaram, pois, bem, a nosso ver, as instâncias quando concluíram pela probabilidade de confusão que a recorrente sustenta não existir.

7. Daí, a seguinte decisão:

Nega-se a revista.

Confirma-se a decisão recorrida.

Custas pela recorrente.

Após trânsito, observe-se o prescrito no art.44º CPI (remessa de cópia ao Instituto Nacional da Propriedade Industrial).

Lisboa, 13 de Novembro de 2002
Oliveira Barros,
Diogo Fernandes,
Miranda Gusmão.
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(1) Instituída pelo Acordo de Nice de 15/1/57, vigente em Portugal nos termos do DL 176/80, de 30/5.
(2) Código da Propriedade Industrial aprovado pelo DL 16/95, de 24/1.
(3) Como observado a fls.294, e, aliás, reconhecido no texto da alegação da recorrente ( a fls.264, 2º par.).
(4) A abrir a fundamentação de direito da decisão então proferida - cfr.fls.119, último par.
(5) Mas só depois, como notado a fls. 117, 1º par. Nem bem também se vendo que fosse questão de conhecimento oficioso em sede de recurso.
(6) Antes, inicialmente, apenas, e mal, se reclamou a da al.b), por falta óbvia de atenção ao disposto no oportunamente invocado nº 6º do art.713º CPC.
(7) V. também , do mesmo, " Violação do Direito à Marca ", em " O Direito ", ano 127º-I-II ( Jan./Jun.1995 ), 57 e 58, citado na contra-alegação da recorrida. Nesses casos, ligeiras modificações introduzidas no novo sinal podem ser suficientes para afastar o risco de confusão. Em tais hipóteses, a teoria da distância, elaborada pela doutrina alemã, adianta que o titular dum sinal distintivo não pode exigir que um sinal concorrente ( o da ora recorrente ) guarde maior distância em relação ao seu sinal do que aquela que ele próprio observou relativamente a sinais pré-existentes.
(8) A marca nominativa é, de facto, composta apenas por um sinal ou um conjunto de sinais nominativos," estando essencialmente em causa um determinado fonema ", como notado na sentença apelada ( fls.124 ), que cita Carlos Olavo, " Propriedade Industrial - Noções Fundamentais ", CJ, XII, 2º, 23-10. ; a marca mista é integrada, conjuntamente, por sinais nominativos e por uma figura ou emblema. V. nº1º do art.165º CPI 95 e Ferrer Correia, " Lições de Direito Comercial ", I (1965), 339 ( nº73.)
(9) Bem, em todo o caso, se não podendo falar de marca de fantasia : o significado das " expressões de fantasia ", a que se referia o § único do art.201º CPI 40, e que o art.193º, nº2º, 1ª parte, ora diz " denominação de fantasia ", é o de, por definição, fruto da imaginação, destituído de correspondência na realidade.
(10) Sobre as funções da marca, v., para melhor desenvolvimento, Carlos Olavo, "Propriedade Industrial -Noções Fundamentais", cit., CJ, XII, 2º, 21-7., Pedro Sousa e Silva, " O Princípio da Especialidade das Marcas (... ) ", na ROA, ano 58, Jan. 98, 381 ss, e Couto Gonçalves, " Função Distintiva da Marca " ( 1999 ), 25 a 34 e 115 a 118.
(11) Carlos Olavo, " Propriedade Industrial " ( 1997 ) , 56 e 57, e, v.g., Acs.STJ de 3/11/81, BMJ 311/401-II, e de 14/6/95, CJSTJ, III, 2º, 130-3.
(12) O Ac.STJ de 31/3/98 no Proc. nº180/98, citado na sentença apelada nota 11 ), que refere a sua publicação na página do STJ na Internet, em http://www.cidadevirtual.pt/stj/bol19civel.html., reproduz, nesta parte, a fórmula clássica de Bedarride, segundo a qual a questão da imitação deve ser apreciada pela semelhança que resulte do conjunto dos elementos que constituem a marca e não pelas dissemelhanças que ofereçam os diversos pormenores isolada e separadamente considerados. É autor citado por Pouillet no "Traité des Marques de Fabrique et de la Concurrence Déloyale en Tous Genres ", 314 - por sua vez citado por Pinto Coelho, " Lições de Direito Comercial", 1º ( 3ª ed.), 426. Aquela fórmula é igualmente citada pelo mesmo mestre na RLJ 93º/51, como mencionado no acórdão sob revista. Refere-a ainda, mais recentemente, Pupo Correia, " Direito Comercial ", 6ª ed. (1999), 340. Cfr., bem assim, Ac.STJ de 23/7/80, BMJ 299/347 e ARL de 2/5/80, CJ, V, 3º, 155, e de 23/4/85, CJ, X, 2º, 143, 2ª col.
(13) Carlos Olavo, rev. e est.., e ob.cits., 56, citando Ferrer Correia (ob. e ed.cits., 347); Oliveira Ascensão, " Direito Comercial -II- Direito Industrial " (1988), 151; Coutinho de Abreu, "Curso de Direito Comercial", I (1998), 343 ; Ac.STJ de 20/10/92, BMJ 420/606. Sobre a referência ao consumidor médio, v. a doutrina citada no BMJ 299/348, anotação II. Cfr. também Ac. STJ de 16/11/93, BMJ 431/503-III, que menciona anteriores no mesmo sentido.
(14) Carlos Olavo, ob.cit., 52, citando o Ac.STJ de 16/7/76, BMJ 259/239-III,
(15) Idem, 53, e rev. e est. cits., 56.
(16) Onde se lê, com implícita referência ao nº1º do art.514º CPC, ser " facto notório " ( v. também nota 16 dessa sentença ), " do conhecimento oficioso do Tribunal ", que " a marca da recorrente, ao contrário do que invoca a recorrida, é uma marca que tem estado no centro das tendências da moda, especialmente da moda jovem, sendo uma marca de culto, e conhecida da grande maioria da população jovem ". Não confundível o aí outrossim mencionado " universo da população jovem " com necessariamente mais ampla consideração do denominado " grande público ", está, por provar, nestes autos, que as botas e sapatos " Dr. Martens " tenham efectivamente atingido a excepcional notoriedade e atracção gerais ou o excepcional grau de satisfação do consumidor que têm, por exemplo, os blue jeans Levi 's. Como quer que efectivamente seja, bem não se vê, enfim, que o atrás transcrito baste para preencher o conceito de marca célebre ou de grande prestígio, a que alude o art.191º CPI ( v., a este respeito, Couto Gonçalves, ob.cit., 168 ss, e Pedro Sousa e Silva, estudo cit., ROA, ano 58 ( 1998 ), 416 ss. De notar é, por último, com referência ainda à parte final do articulado submetido à 1ª instância, o papel complementar e integrativo da tutela concorrencial relativamente à dos sinais distintivos do comércio notado por Orlando de Carvalho," Critério e Estrutura do Estabelecimento Comercial ", 81ss, nota 48, e Gustavo Ghidini. " La Concorrenza Sleale " ( 1971), 61.
(17) Como faz notar Carlos Olavo, est. e rev.cits, 56.