Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
9268/07.0TBMAI.P1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: GRANJA DA FONSECA
Descritores: TRANSPORTE INTERNACIONAL DE MERCADORIAS POR ESTRADA - TIR
CONVENÇÃO CMR
PERDA DAS MERCADORIAS
RESPONSABILIDADE CONTRATUAL
PRESUNÇÃO DE CULPA
SUBCONTRATO
ACTOS DOS REPRESENTANTES LEGAIS OU AUXILIARES
LIMITE DA INDEMNIZAÇÃO
ÓNUS DA PROVA
FACTO EXTINTIVO
FACTO MODIFICATIVO
Data do Acordão: 05/15/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES - FONTES DAS OBRIGAÇÕES / RESPONSABILIDADE CIVIL / MODALIDADES DAS OBRIGAÇÕES / OBRIGAÇÃO DE INDEMNIZAÇÃO / NÃO CUMPRIMENTO DAS OBRIGAÇÕES / FALTA DE CUMPRIMENTO IMPUTÁVEL AO DEVEDOR.
DIREITO COMERCIAL - CONTRATOS COMERCIAIS - CONTRATO DE TRANSPORTE.
Doutrina:
- Alfredo Proença e J. Espanha Proença, Transporte de Mercadorias, p. 119.
- Almeida e Costa, Direito das Obrigações, p. 572.
- Cunha Gonçalves, Comentário ao Código Comercial Português, Volume II, p. 394.
- Francisco Costeira da Rocha, O contrato de transporte de mercadorias : contributo para o estudo da posição jurídica do destinatário no contrato de transporte de mercadorias, pp. 65, 66, 168.
- Menezes Cordeiro, Direito das Obrigações, II, p. 126.
- Pedro Romano Martinez, O Subcontrato, 1989, p. 188.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 483.º, 487.º, N.º1, 562.º, 798.º, 799.º, 800.º.
CÓDIGO COMERCIAL (C.COM.): - ARTIGO 367.º, 376.º, 382.º, 383.º.
Referências Internacionais:
CONVENÇÃO RELATIVA AO CONTRATO DE TRANSPORTE INTERNACIONAL DE MERCADORIAS POR ESTRADA (CMR), ASSINADA EM GENEBRA EM 19-05-1956, APROVADA EM PORTUGAL PELO DL N.º 46235, DE 18-03-1965: - ARTIGOS 17.º, 18.º, 23º, N.ºS 1, 2, 3, 5 E 6, 29.º, N.º1.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 28/01/1997, PROCESSO N.º 878/66 – 1ª SECÇÃO;
-DE 14/06/2011, PROCESSO 437/05.9TBANG.C1.S1;
-DE 5/06/2012, PROCESSO 3303/05.4TBVIS.C2.S1.
Sumário :

I - Designa-se de contrato de transporte internacional de mercadorias a convenção pela qual alguém (transportador) se obriga perante outrem (expedidor), mediante um preço, a realizar, por si ou por terceiro, a mudança de coisas de um local (designado de expedição) para outro (destino), sitos em países diferentes.

II - Tal contrato é oneroso, sinalagmático, consensual e de resultado, apenas se mostrando cumprido com a entrega da mercadoria ao destinatário.

III - A entrega, enquanto obrigação essencial do transportador, é um acto jurídico que se pode compor em dois momentos: a apresentação da mercadoria e a sua aceitação pelo destinatário.

IV - Recai sobre o transportador uma presunção de culpa no incumprimento da obrigação de entrega para com o expedidor, nos termos definidos em III, ainda que tal perda ocorra na execução de um subcontrato – negócio jurídico bilateral pelo qual um dos sujeitos, sem se desvincular da sua posição, estipula com terceiro a execução total ou parcial das prestações a que está adstrito – arts. 367.º do CCom, 800.º do CC e 17.º, n.º 1 da CMR (Convenção Relativa ao Contrato de Transporte Internacional de Mercadorias por Estrada, assinada em Genebra em 19-05-1956, aprovada em Portugal pelo DL n.º 46235, de 18-03-1965).

V - Atenta tal presunção, (i) ao lesado que queira demandar o transportador, incumbe o ónus de alegar e provar a celebração do contrato, a entrega da mercadoria ao transportador e o facto ilícito causador do dano e (ii) ao transportador o ónus de alegar e provar as circunstâncias excludentes da culpa (caso fortuito, causa imprevisível e a cujas consequências não se podia obstar) – arts. 487.º, n.º 1, do CC, 17.º e 18.º da Convenção CMR, e 383.º e 376.º do CCom.

VI - A qualificação da culpa latu sensu para efeitos da obrigação de reparação integral dos danos à luz da Convenção CMR exige que haja dolo ou falta equivalente, por parte do transportador.

VII - Enquadra-se no conceito de “falta (…)que, segundo a lei da jurisdição que julgar o caso, seja considerada equivalente a dolo ”, para efeitos do n.º 1 do art. 29.º da Convenção CMR – e não caso fortuito – a perda da mercadoria de milhares de euros (Lamborghini), abandonada, em Monza (Itália), no período da noite, por dois motoristas do transportador, fora de um parque vigiado.

VIII - Se o transportador inicia a execução do transporte sem se certificar que a realização de contrato de seguro para garantir um eventual furto da viatura – condição que foi imposta para a respectiva entrega pelo proprietário – incumpriu a obrigação de contratar o seguro de transporte, a qual se presume culposa e é causal do prejuízo correspondente ao montante que foi pago ao proprietário do veículo (arts. 798.º, 799.º e 562.º, todos do CC).
Decisão Texto Integral:


Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


1.
AA, SA instaurou acção declarativa de condenação, sob a forma de processo ordinário, contra BB, SA, pedindo que a ré fosse condenada a pagar-lhe a quantia de € 237.881,51, acrescida de juros de mora comerciais desde a citação até efectivo e integral pagamento.
Como fundamento, alegou, em síntese, que foi condenada a pagar uma indemnização a terceira pessoa, que lhe pediu que diligenciasse pelo transporte de um veículo automóvel para Itália para reparar, sendo que o mesmo foi furtado por incúria dos condutores do camião que efectuavam o transporte. Mais alegou que tem direito de regresso relativamente à ré, já que celebrou com esta um contrato de transporte internacional, que foi incumprido culposamente, ao que acresce que, por culpa desta, o veículo não estava segurado, conforme tinha sido pedido.

A ré contestou, defendendo-se por impugnação, alegando, em suma, que a não realização do seguro não foi por culpa sua, para além de que a ré nunca se obrigou a contratá-lo, sendo que, quanto ao transporte, não existiu qualquer dolo ou negligência grosseira dos motoristas e, a haver pagamento, está limitado pela Convenção CMR (8,33 unidades de conta por cada quilograma de peso bruto em falta e juros de mora a 5%), já que os condutores nenhuma culpa tiveram no furto.

Replicou a autora, mantendo a sua versão.

Percorrida a tramitação subsequente, foi proferida sentença que julgou a acção procedente e, em consequência, condenou a ré a pagar à autora a quantia de € 237.881,51, acrescida de juros de mora comerciais desde a citação até efectivo e integral pagamento.
A Ré recorreu para o Tribunal da Relação do Porto que, por douto acórdão de 25/10/2012, na parcial procedência da apelação, revogou, em parte, a sentença recorrida e, em consequência, condenou a ré a pagar à autora a indemnização a liquidar em fase ulterior, equivalente à perda do veículo automóvel de matrícula 00-00-00, no montante que vier a ser apurado nos termos do artigo 23º da CMR.
Inconformada, recorreu agora a Autora para o Supremo Tribunal de Justiça, formulando as seguintes conclusões:
1ª - O douto Acórdão recorrido julgou parcialmente procedente o recurso de apelação interposto pela ora Recorrida, revogando em parte a sentença recorrida e, em consequência, condenou a Recorrida a pagar à Recorrente uma indemnização no montante que vier a ser apurado nos termos dos n.os 3, 7, 8 e 9 do artigo 23º da CMR.
2ª - Entenderam os Venerandos Juízes Desembargadores do Tribunal da Relação do Porto que o comportamento dos motoristas que realizaram o transporte, embora consubstanciando uma negligência consciente e grosseira, não se enquadra no conceito de "falta [...] que, segundo a lei da jurisdição que julgar o caso, seja considerada equivalente a dolo", para efeitos do n.º 1 do artigo 29º da CMR.
3ª - O que originou a condenação da Recorrida no pagamento de uma indemnização que não representará sequer 5% do valor em que a Recorrente foi condenada a indemnizar o proprietário do veículo.
4ª - A Recorrente entende, contudo, que o Tribunal da Relação do Porto, no douto Acórdão recorrido, errou ao determinar o cálculo da indemnização a pagar pela Recorrida à Recorrente dentro dos limites impostos pelo artigo 23º da CMR.
5ª - E errou porque, por um lado, o comportamento dos motoristas que realizaram o transporte se enquadra, inequivocamente, no conceito de "falta [...] que, segundo a lei da jurisdição que julgar o caso, seja considerada equivalente a dolo", para efeitos do n.º 1 do artigo 29º da CMR; e
6ª - Por outro lado, porque a responsabilidade da Recorrida emerge não apenas do incumprimento da obrigação de entrega da mercadoria, como, também, do incumprimento da obrigação de contratar o seguro de transporte, sendo que, a este título, nunca se colocaria qualquer limitação à indemnização;
7ª - Ao que acresce, ainda, o facto de estarmos no âmbito de uma acção de regresso, em que a Recorrente apenas pretende que lhe seja restituído, por quem efectivamente teve responsabilidade pelo dano, o montante que pagou ao proprietário da viatura.
8ª - Assim, a douta decisão proferida pelo Tribunal Judicial da Maia não merece qualquer censura, pois fez uma apreciação jurídica e factual da causa inatacável.
9ª - Não existe qualquer elemento que permita limitar a responsabilidade da Recorrente no caso em apreço, pois houve um inequívoco incumprimento do contrato de transporte, com negligência consciente e grosseira, bem como uma clara violação da obrigação de contratar o seguro de transporte.
10ª - A ora Recorrente tem, por isso, direito a reaver (no âmbito da presente acção de regresso) da ora Recorrida a totalidade da quantia que aquela teve que pagar ao Sr. LL a título de condenação no processo n.º 620/97, que correu os seus termos na 14ª Vara de Lisboa, 2.ª Secção, pelo facto de a Recorrida ter incumprido, com negligência consciente e grosseira, a obrigação de entrega da mercadoria, incumprindo, por consequência, o contrato de transporte internacional de mercadoria e também por não ter contratado o seguro conforme o acordado com a Recorrida.
11ª - A Recorrente e Recorrida celebraram um contrato de transporte internacional, para transportar um Lamborghini para Itália, com vista à sua reparação.
12ª - Tratava-se de um serviço efectuado num transporte expresso (com dois condutores) em camião semi - reboque.
13ª - A exigência por um transporte exclusivo era legítima, pois "naquele tempo o transporte para Itália era considerado um transporte de risco".
14ª - Na noite de 6 para 7 de Março de 1997, em Monza (Itália), o camião que transportava o Lamborghini foi furtado, juntamente com toda a sua mercadoria, que afinal, sem que a Recorrente tivesse conhecimento, também foi transportada pelo camião.
15ª - O furto do Lamborghini ocorreu no momento em que o motorista e co - piloto se ausentaram, deixando o camião (e a sua valiosa carga) fora de um parque reservado e guardado.
16ª – É sobre o transportador que recai a obrigação de entregar a mercadoria no local acordado, tal como foi entregue na origem (obrigação de resultado).
17ª - No caso em apreço, a Recorrida tinha a obrigação de entregar em Itália o veículo automóvel, tal como o recebeu, presumindo-se culposa a inobservância desta sua obrigação de entrega (resultado), nos termos dos artigos 17º e 18º da CMR e do artigo 799º do Código Civil.
18ª - Verifica-se, assim, uma presunção de culpa do devedor pelo não cumprimento da prestação respectiva.
19ª - Presunção esta que a Recorrida não logrou ilidir.
20ª - O comportamento dos dois motoristas é altamente censurável, pois só levianamente poderiam pensar que a mercadoria em apreço não seria furtada.
21ª - Dúvidas não restam, portanto, que a conduta dos motoristas foi consciente, embora levianamente acreditassem que tal não sucederia.
22ª - E poderá designar-se consciente e grosseira, pois sendo dois motoristas, e ausentando-se ambos simultaneamente, ainda para mais num parque não vigiado, violaram as mais elementares regras de prudência e zelo, pelo que nenhum sentido faz aplicar aqui a limitação de responsabilidade invocada pela Recorrida.
23ª - Ora, para efeitos do n.º 1 do artigo 29º da CMR, não se pode deixar de considerar que a negligência consciente e grosseira equivale ao dolo.
24ª - Caso assim não fosse, estaríamos perante um estímulo ao não cumprimento do contrato pelo transportador e à entrega da mercadoria só quando lhe conviesse.
25ª - Isto mesmo entendeu o Supremo Tribunal de Justiça, ao considerar que a "«falta...que, segundo a lei da jurisdição que julgar o caso, seja considerada equivalente ao dolo», a que se reporta o artigo 29º da Convenção CMR, não pode deixar de ser, manifestamente, face à legislação nacional [...], a negligência ou mera culpa que, conjuntamente com o dolo, faz parte da culpa «lato sensu»" (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 14/06/2011, processo n.º 437/05.9TBAGN.C1).
26ª - Caso assim não se entenda - o que só por hipótese de raciocínio se concede -, sempre se dirá que estamos perante uma situação de dolo eventual.
27ª - Perante os factos provados, não existe qualquer fundamento para a limitação da responsabilidade da Recorrida.
28ª - A responsabilidade da Recorrida decorre não só da violação do contrato de transporte, mas também do incumprimento da obrigação assumida por si quanto à contratação do seguro.
29ª - Após pedido do proprietário do veículo, no dia 3 de Março de 1997 (dia anterior ao carregamento), a Recorrente contactou telefonicamente a Recorrida, questionando se a Recorrida poderia tratar do seguro do Lamborghini, bem como, qual seria o respectivo preço.
30ª - Após a indicação do preço e da respectiva aceitação pelo proprietário do veículo, a Recorrente informou a Recorrida, no dia anterior ao carregamento, para que esta procedesse a contratação do seguro.
31ª - Só após lhe ter sido dada a garantia de emissão da apólice, o proprietário do veículo autorizou o transporte do Lamborghini para Itália, solicitando ao ACP a sua entrega nas instalações da Recorrente.
32ª – A Recorrida permitiu que o veículo fosse transportado sem estar coberto pelo seguro, incumprindo o que havia estipulado com a Recorrente e, consequentemente, impossibilitando o proprietário da viatura de ser ressarcido pela seguradora.
33ª - Pelo exposto, dúvidas não existem de que a Recorrida é responsável perante a Recorrente pelo prejuízo que esta suportou com a condenação no anterior processo, condenação esta que, aliás, considerou precisamente como evento danoso a não celebração do contrato de seguro.
34ª - Mas, além do mais, estando em causa uma acção de regresso, seria contrário aos princípios gerais do Direito que quem foi responsável pelo dano (a Recorrida) não ressarcisse integralmente quem teve que suportar o custo perante o proprietário do veículo (a Recorrente).
35ª - É que, na verdade, ao determinar a radical limitação da indemnização devida pela Recorrida à Recorrente, num valor que não corresponde sequer a 5% do valor que esta última pagou ao proprietário do veículo, o Acórdão recorrido descaracterizou por completo o instituto do direito de regresso.

A Ré não contra – alegou.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
2.
As instâncias consideraram provados os seguintes factos[1]:
1º - A CC, L.da foi constituída em 1968 (alínea A).
2º - Em 9/09/2003, a referida sociedade fundiu-se, por incorporação, na sociedade DD, L.da, transmitindo para esta última todo o activo e passivo, direitos e obrigações (alínea B).
3º - Nessas circunstâncias, a sociedade DD, L.da alterou a sua denominação para CC, L.da (alínea C).
4º - No início de 2004, por cisão, foi cindido da CC, L.da todo o activo e passivo referente à actividade económica relacionada com as áreas dos transportes, marítimo e aéreo e da logística, o qual passou para a sociedade EE (Portugal), L.da (alínea D).
5º - Na sequência dessa cisão, a CC, L.da alterou a sua firma para FF, L.da (alínea E).
6º - Esta sociedade incorporou as sociedades GG, SA, HH, L.da, II L.da, JJ, L.da e KK, L.da (alínea F).
7º - Tendo desde aí adoptado a denominação BB, L.da (alínea G).
8º - A autora dedica-se à importação, representação e comercialização de veículos automóveis (alínea H).
9º - A ré dedica-se ao transporte de mercadorias (alínea I).
10º - Na sequência de uma avaria, o mencionado LL solicitou à autora para tratar do transporte do veículo de matrícula 00-00-00, de Lisboa para Itália, e para tratar do respectivo seguro que garantisse, entre outros riscos, o furto e o roubo (alínea M).
11º - O veículo de matrícula 00-00-00 não foi vendido ao mencionado LL pela autora (quesito 2º).
12º - A solicitação do mencionado LL, a autora prontificou-se a providenciar pelo transporte do automóvel através de um transportador credenciado (a ré) e a solicitar a sua reparação por conta do proprietário (quesito 3º).
13º - No dia 3/03/97, a autora comunicou ao mencionado LL que existia um transporte para o dia seguinte, às 11.00 horas, com o preço de 130.000$00 (alínea N).
14º - Nessas circunstâncias, o mencionado LL perguntou se o preço incluía o seguro, tendo a aqui autora respondido negativamente (alínea O).
15º - Tendo o mencionado LL recordado que pretendia que fosse efectuado o seguro (alínea P).
16º - No dia 3/03/97, após pedido do mencionado LL, a autora contactou telefonicamente a ré, questionando se esta poderia tratar do seguro do Lamborghini, bem como qual seria o respectivo preço (quesito 6º).
17º - Nessa ocasião, a ré respondeu afirmativamente, tendo informado que o prémio de seguro seria de 40.000$00 (quesito 7º).
18º - Nesse mesmo dia, foi transmitido ao mencionado LL pela aqui autora que o seguro custaria 40.000$00 e que iria ser emitida a apólice (alínea Q).
19º - No próprio dia 3/03/97, a autora informou a ré da aceitação do valor proposto (quesito 8º).
20º - A ré contactou a seguradora WL......r, tendo-lhe sido dito que, para fazer o seguro e emitir a apólice, seria necessário fazer uma peritagem ao veículo (alínea LL).
21º - O contacto aludido no ponto 20º (alínea LL) foi efectuado na sequência do pedido mencionado no ponto 19º (quesito 8º) (quesito 9º).
22º - Sendo que nessa altura já o transporte tinha sido iniciado (quesito 10º).
23º - Não tendo a ré dado instruções para parar o transporte do veículo, nem diligenciado no sentido de encontrar outra seguradora (quesito 11º).
24º - Por lhe ter sido dada a garantia de emissão da apólice, o mencionado LL autorizou o transporte do Lamborghini de matrícula 00-00-00 para Itália, solicitando ao ACP a sua entrega nas instalações da autora (alínea R).
25º - O que aconteceu na manhã de 4/03/97 (alínea S).
26º - O veículo de matrícula 00-00-00 foi carregado nas instalações da autora no camião da sociedade MM, L.da, contratado para o efeito pela ré (alínea BB).
27º - A autora só tomou conhecimento que seria a sociedade MM, L.da a executar o transporte quando o camião chegou às suas instalações para efectuar o carregamento do veículo de matrícula 00-00-00 (quesito 4º).
28º - O carregamento do veículo de matrícula 00-00-00 ocorreu no dia 4/03/97, sendo que nesse mesmo dia, por volta das 9.30/10.00 da manhã, a autora contactou telefonicamente a ré, informando que o camião já se encontrava nas instalações para carregar o Lamborghini do mencionado LL (alínea GG).
29º - Nessas circunstâncias, a autora informou que a operação iria demorar algum tempo e deveria estar concluída ao final da manhã (alínea HH).
30º - O carregamento foi concluído na final da manha do dia 4/03/97, tendo o camião saído das instalações da autora (alínea II).
31º - O camião saiu das instalações da Autora, a seguir à hora de almoço, no dia 4/03/97 (quesito 13º).
32º - Com data de 4/03/97, foi emitido o respectivo aviso de expedição, que só foi enviado à autora em 12/03/97 (quesito 5º).
33º - Nessa tarde, a aqui autora comunicou ao mencionado LL que a viagem se iniciara sem problemas e que a chegada estava prevista para a manhã de 7/03/97 (alínea T).
34º - O serviço foi efectuado num transporte com dois condutores, em camião semi - reboque (alínea JJ).
35º - Na noite de 6 para 7/03/97, em Monza, Itália, o camião que transportava o Lamborghini foi furtado, juntamente com toda a sua mercadoria, tendo o furto ocorrido no momento em que o motorista e o co - piloto se ausentaram, deixando o camião e a carga fora de um parque reservado e guardado (alínea DD).
36º - A viatura de matrícula 00-00-00 tinha o peso bruto de 1.200 Kg (quesito 23º).
37º - No dia 7/03/97, a aqui autora comunicou ao mencionado LL que o camião que transportava o Lamborghini tinha sido furtado na noite anterior, com toda a sua carga (alínea U).
38º - Nessas circunstâncias, a aqui autora comunicou ao mencionado LL que tinha solicitado a execução do transporte à ré e que estava a aguardar que esta lhe transmitisse o ocorrido em Itália (alínea V).
39º - E que não tinha sido emitida a apólice de seguro (alínea X).
40º - Mas que a ré tinha sido encarregada do transporte e da emissão da apólice (alínea Z).
41º - Após o desaparecimento do veículo de matrícula 00-00-00 (na 2a feira seguinte) teve lugar uma reunião nas instalações da ré entre esta e a autora (alínea CC).
42º - No dia 10/03/97, teve lugar uma reunião nas instalações da ré, em que estiveram presentes o Eng. NN, o Sr. 00 da parte da autora, o Sr. PP (Director Nacional de Gestão de Frota) e a Sra. QQ, da parte da ré (alínea EE).
43º - Nessa reunião, a ré referiu não ter efectuado o seguro que lhe fora solicitado (alínea FF).
44º - No dia 18/03/97, por sugestão do mencionado LL, decorreu uma reunião com a autora e com a ré, na qual esta referiu ter contratado a sociedade MM, L.da para efectuar o transporte (alínea AA).
45º - Em 1997, LL intentou uma acção declarativa de condenação contra a autora, a CC, L.da e a sociedade MM, L.da, a qual correu termos na 2ª Secção da 14ª Vara de Lisboa sob o n° 620/97, conforme documento junto a fls. 79 a 98 dos autos (alínea J).
46º - No âmbito da acção aludida na alínea J), mediante decisão transitada em julgado, a autora foi condenada a pagar a LL a quantia de € 149.639,37, incluindo juros desde a citação, conforme documentos juntos a fls. 79 a 127 dos autos (alínea L).
47º - Em 12/09/06, na sequência das decisões mencionadas na alínea L), a autora pagou a LL a quantia de € 237.881,51 (quesito 1º).
3.
Sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões da recorrente, salvo se outras houver que sejam de conhecimento oficioso, (artigos 684º, n.º3, 690º, n.os 1 e 3 e 660º, n.º 2 CPC), a questão a decidir é a seguinte:
Se, não obstante ser a ré responsável pela perda da mercadoria que transportava, a sua responsabilidade deverá ser (ou não) limitada ao pagamento da quantia de € 11.798,68, por força do disposto no artigo 23º, n.os 1 a 3 da CMR.
4.
Embora sem consagração legal, o Doutor Cunha Gonçalves definiu o transporte de mercadorias por estrada como a convenção celebrada “entre aquele que pretende fazer conduzir a sua pessoa ou as suas coisas de um lugar para outro e aquele que, por determinado preço, se encarrega dessa condução[2]”.
Este Supremo Tribunal de Justiça considerou-o como “a convenção através da qual alguém se obriga perante outrem, mediante um preço, a realizar, por si ou por terceiro, a mudança de pessoas ou coisas de uma para outra localidade[3].
Quando o local de expedição e de destino da mercadoria forem países diferentes, deparamo-nos com um contrato de transporte internacional de mercadorias.
Ao contrato de transporte internacional de mercadorias por estrada aplica-se a Convenção Relativa ao Contrato de Transporte Internacional de Mercadorias por Estrada (CMR), assinada em Genebra em 19/05/1956, aprovada em Portugal pelo Decreto – Lei n.º 46235, de 18/03/1965, entrou em vigor em 21/12/1969 e foi objecto de alteração através do Protocolo de Emenda, aprovado pelo Decreto n.º 28/88, de 6 de Setembro.

No caso dos autos, não se questiona que o contrato cujo incumprimento a autora imputa à ré é um contrato de transporte internacional de mercadorias por estrada, ao qual se aplicam as regras da aludida Convenção, designada pela sigla CMR – à qual pertencem todas as normas adiante designadas sem menção de origem – assumindo a autora a função de expedidora e a ré a de transportadora.

A recorrente discorda, porém, do douto acórdão recorrido, na parte em que o Tribunal da Relação concluiu que o comportamento dos motoristas que realizaram o transporte, embora consubstanciando uma negligência grosseira, não se enquadra no conceito de «falta […] que, segundo a lei da jurisdição que julgar o caso, seja considerada equivalente a dolo”, para efeitos do n.º 1 do artigo 29º».

Discorda ainda da desconsideração que, em seu entender, o Tribunal da Relação fez do facto da responsabilidade da Ré emergir não apenas do inequívoco incumprimento da obrigação da entrega da mercadoria ao destinatário, mas também “da clara violação da obrigação de contratar o seguro de transporte”.

Assim, no entendimento da Recorrente, o acórdão recorrido, além de não ter aplicado correctamente o limite indemnizatório do artigo 23º da CMR, sempre teria de atender ao facto de, a par do incumprimento do contrato de transporte, se verificar ainda uma inequívoca violação da obrigação de contratar o seguro de transporte, por parte da Recorrida, sendo que a violação desta (última) obrigação sempre daria lugar à responsabilidade civil desta e consequente obrigação de indemnizar a Recorrente, não sendo esta indemnização passível de qualquer limitação.
5.
Estamos no âmbito de uma acção de regresso, que teve origem numa condenação anterior da Recorrente, no âmbito do processo n.º 620/97, que correu termos na 14ª Vara de Lisboa, 2ª Secção, pretendendo esta que lhe seja restituído, por quem teve efectivamente responsabilidade pelo dano, o montante que pagou ao proprietário do Lamborghini que a Recorrida transportou para Itália, não só por incumprimento da obrigação de entrega da mercadoria ao destinatário mas também por incumprimento da obrigação de contratar o seguro de transporte.

Importará, então, começar por analisar se a ora Recorrida incumpriu o contrato de transporte de mercadorias que acordou com a Recorrente, por falta da entrega da mercadoria ao destinatário e quais as consequências que daí advêm, relegando para um segundo momento o alegado incumprimento do mesmo contrato de transporte de mercadorias, agora por incumprimento da obrigação de contratar o seguro de transporte.
5.1.
INCUMPRIMENTO DA OBRIGAÇÃO DE ENTREGA DA MERCADORIA AO DESTINATÁRIO:
A Recorrente tem como objecto social a importação, representação e comercialização de veículos automóveis.
A Recorrida é uma empresa transitária e transportadora que exerce uma actividade ligada ao transporte de mercadorias.
Em Fevereiro de 1997, LL, proprietário de um veículo automóvel, da marca Lamborghini, detectando uma avaria no dito veículo, contactou a Recorrente a quem expôs os factos que, em seu entender, consubstanciavam a aludida avaria.
Cerca de uma semana depois, a Recorrente comunicou ao proprietário do veículo que a avaria não era detectável e que a única forma de resolver o problema seria enviá-lo para o fabricante em Itália.
Este aceitou a solução proposta pela Recorrente, tendo-lhe solicitado que tratasse do transporte do veículo de Lisboa para Itália e do respectivo seguro que garantisse, entre outros riscos, o furto e o roubo.
Como a Recorrente não efectua este tipo de transporte, contratou com a CC L.da (actual Recorrida) o transporte do veículo para Itália e esta encarregou a sociedade MM da execução do mesmo.
Tratava-se de um serviço efectuado num transporte expresso (com dois condutores) em camião semi – reboque.
Na noite de 6 para 7 de Março, em Monza (Itália), foi furtado o camião e a carga que este transportava, tendo este furto ocorrido no momento em que o motorista e co – piloto se ausentaram, abandonando o camião e a sua carga num parque não vigiado.

Como se referiu, muito embora não tenha sido celebrado um contrato escrito, resulta evidente que entre a recorrente e a recorrida se celebrou um contrato de transporte internacional de mercadorias, com todas as obrigações e consequências legais que daí advêm.
Trata-se de um contrato oneroso, sinalagmático, consensual e de resultado, ou seja, como prestação pelo pagamento do preço de transporte (frete), existia, por parte da Recorrida a obrigação de efectuar o transporte, entregando a mercadoria no lugar estipulado.
A Recorrida encarregou a empresa “MM” de executar o transporte. Ou seja, a Recorrente encarregou a Recorrida, enquanto transportador, - que, por sua vez, recorreu a terceiro para cumprir as suas obrigações – de chegar a coisa ao seu destinatário.

Esta intervenção dos “MM” ocorre no âmbito de um sub – contrato, (negócio jurídico bilateral pelo qual um dos sujeitos, parte em outro contrato, sem deste se desvincular e com base na posição jurídica que daí lhe advém, estipula com terceiro, quer a execução total ou parcial das vantagens de que é titular, quer a execução total ou parcial das prestações a que está adstrito[4]), continuando o transportador obrigado ao cumprimento, pois é ele o sujeito da relação contratual que estabeleceu com o expeditor, sendo consequentemente a Recorrida a responsável pelos actos da MM (vide artigo 367º do Código Comercial, artigo 800º do Código Civil e artigo 17º, n.º da CMR).

Como já se referiu e o acórdão recorrido sublinhou, “o contrato de transporte é um contrato de resultado, que apenas se mostra cumprido com a entrega da mercadoria ao destinatário, entendendo-se mesmo que é essa a obrigação essencial do transportador[5]”. Importa, porém, salientar que “a entrega é um acto jurídico que se pode decompor-se em dois momentos, a apresentação da mercadoria ao destinatário e a sua aceitação”, mas que só acontece “quando o destinatário aceita a mercadoria e entrega a declaração de recepção ao transportador”[6].

Tendo sido furtada a mercadoria em Monza, é evidente que o transportador não a fez chegar ao destinatário, não tendo ocorrido, consequentemente, a entrega da mercadoria.

Ora “a falta de entrega da mercadoria configura incumprimento contratual” e pode dever-se a várias causas, nomeadamente, perda, destruição, extravio, retenção, arresto, penhora, ou qualquer outro acto da autoridade ou de terceiro[7].

Nas prestações de resultado, como acontece no contrato de transporte internacional de mercadorias por estrada, em que o transportador se encontra obrigado a alcançar o efeito útil contratualmente previsto, basta ao credor demonstrar a não verificação desse resultado, ou seja, a não entrega da mercadoria pelo transportador, no local e tempo acordados, para se estabelecer o incumprimento do devedor.

A propósito da responsabilidade do transportador, na parte que agora interessa considerar, dispõe o n.º 1 do artigo 17º da CMR que “o transportador é responsável pela perda total ou parcial, ou pela avaria que se produzir entre o momento do carregamento da mercadoria e o da entrega, assim como pela demora da entrega”.

Trata-se de uma presunção de culpa do transportador, que só fica desobrigado dessa responsabilidade, nos termos do n.º 2 do mesmo artigo, “se a perda, avaria ou demora teve por causa uma falta do interessado, uma ordem deste que não resulte de falta do transportador, um vício próprio da mercadoria, ou circunstância que o transportador não podia evitar e a cujas consequências não podia obviar”.

De acordo com o disposto no n.º 1 do artigo 18º da CMR, “compete ao transportador fazer a prova de que a perda, avaria ou demora teve por causa de um dos factos previstos no artigo 17º, parágrafo 2º.

Assim, ao interessado (expedidor ou destinatário) bastará a prova de que fez a entrega da mercadoria ao transportador e que este não a entregou no destino ou que a entregou com avarias. Ao transportador incumbirá a prova de qualquer circunstância que o isente de responsabilidade pelo sucedido, ou seja uma circunstância limitativa da sua responsabilidade[8].

Também constituem excepção à regra da responsabilidade da transportadora pela perda da mercadoria até à sua entrega ao destinatário, as situações provenientes de caso fortuito, força maior, vício do objecto, culpa do expedidor ou do destinatário, como resulta do preceituado pelas disposições combinadas dos artigos 383º e 376º do Código Comercial.”

Como considerou a sentença, “de todas as causas excludentes apenas cabe equacionar se o furto do veículo poderá qualificar-se como caso fortuito, pois, quanto às demais causas excludentes, as mesmas, ostensivamente, não se verificam.
Uma coisa é certa, sendo um facto excludente da responsabilidade da Ré, competia a esta prová-lo.
Caso fortuito, em matéria de obrigações, são os acontecimentos imprevisíveis que se tivessem sido previstos, poderiam evitar-se.
Ora, da matéria dada como provada não resulta que o furto era imprevisível”.
“Na verdade, provou-se que na noite de 6 para 7 de Março de 1997, em Monza — Itália, o camião que transportava o Lamborghini foi furtado, juntamente com toda a sua mercadoria, tendo o furto ocorrido no momento em que o motorista e o co - piloto se ausentaram, deixando o camião e a carga fora de um parque reservado e guardado.
Ora, considerando a mercadoria valiosa que transportavam, os inúmeros furtos que existem no transporte internacional, o facto de se ausentarem simultaneamente os dois motoristas do camião, deixando-o sozinho, num parque que nem sequer era guardado, objectivamente aumenta os riscos de um furto, que se torna previsível neste quadro, e que infelizmente sucedeu.
Não poderá portanto apelidar-se o furto de um caso fortuito, uma vez que à luz de todos estes factos era previsível que sucedesse um assalto, não se verificando a excludente da responsabilidade”.

Assim, no caso concreto, no conceito de perda, inclui-se o furto da mercadoria, que não pode ser considerado como caso fortuito.

Ao transportador impunha-se a guarda e conservação da mercadoria, protegendo-a da acção dos elementos da natureza ou de terceiros, tal como o faria um profissional experiente, conhecedor e responsável, com o padrão de diligência adoptado por um bonus pater - familias[9].

E não podendo a ré ignorar a realidade que constitui a massiva existência de assaltos nas cargas transportadas em viaturas de transporte internacional, “o comportamento dos motoristas, no caso dos autos, foi altamente censurável, e só levianamente confiaram que a mercadoria não poderia ser furtada. Na verdade, transportando uma mercadoria de milhares de euros, e abandonando-a num parque não vigiado, pois nenhum dos motoristas ficou no camião, demonstra uma actuação imprudente, não zelosa e não correspondente à diligência que seria exigível a motoristas cientes das responsabilidades e perigos que a sua conduta poderia despoletar para a carga, afastando-se assim do exigível ao bonus pater - familias – artigo 487.º, n.º 2 do CC”, como ajuizadamente considerou a sentença.

Com efeito, a ré não tomou as providências que se revelaram as mais apropriadas para cumprir o encargo que lhe fora cometido de efectuar a deslocação incólume da mercadoria para o destinatário, em condições de integral satisfação, omitindo os esforços exigíveis de que, também se não absteria um bom pai de família, mas admitindo como possível o desaparecimento da mesma pelo furto, embora tenha confiado, levianamente, de que tal não se verificaria.

Assim sendo, consideraram as instâncias, que a ré, através dos seus agentes, actuou com negligência consciente, pois não poderia ter deixado de ter ocorrido ao motorista e co – piloto que, deixando um Lamborghini num parque não vigiado e não reservado, sem qualquer motorista, que eventualmente poderia ocorrer um assalto, embora levianamente acreditaram que tal não sucederia.

E poderá apelidar-se de grosseira, pois sendo dois motoristas, e ausentando-se ambos simultaneamente, ainda para mais num parque não vigiado, violaram as mais elementares regras de prudência, segurança e zelo.

A este respeito, quer a decisão proferida na 1ª Instância, quer o acórdão recorrido, consideram que a conduta dos referidos motoristas lhes é imputável a título de negligência consciente e grosseira.

Por conseguinte, não tendo a ré provado factos suficientes para provar a inevitabilidade do furto e, consequentemente, que este constituía caso fortuito, é responsável pela perda do Lamborghini, cujo transporte foi confiado à sua guarda, com o inevitável incumprimento contratual, presumindo-se a sua culpa que não logrou ilidir[10].

Deste modo não se mostra excluída a responsabilidade da ré pela perda do veículo KA, estando obrigada a, nos termos dos artigos 382º e 383º do Código Comercial, 17º, n.º 1 e 18º, n.º 2 da CMR e 798º, 799º, n.º 1 e 483º do Código Civil, indemnizar todos os prejuízos que causou à Recorrente.

Limitação da responsabilidade da ré
No artigo 23º, n.os 1, 2, 3, 5 e 6 da CMR estabelece-se um regime específico de indemnização por perdas e danos.

No entanto, diz o artº 29º, nº 1 que o transportador não tem direito a aproveitar-se das disposições do presente capítulo que excluem ou limitem a sua responsabilidade ou que transferem o encargo da prova se o dano provier de dolo ou de falta que lhe seja imputável e que, segundo a lei da jurisdição que julgar o caso, seja equivalente ao dolo.

E o que se deve entender por falta equivalente ao dolo, segundo a lei da jurisdição que julgar o caso?
Como se considerou no douto acórdão deste STJ, adiante citado, “a qualificação da culpa «lato sensu», para efeitos da Convenção CMR, tem a maior relevância, pois que, apenas em caso de dolo, ou equiparação no direito nacional que julgar o caso, de uma falta grave que seja equiparável ao dolo, é que a indemnização deixa de representar o valor correspondente ao preço do transporte, a que alude o n.º 5 do artigo 23º, para passar a observar como critério de referência o princípio da reparação integral dos danos, segundo a teoria da diferença, de acordo com o preceituado nos artigos 562º e 566º do Código Civil[11]. Ou seja, quando houver dolo do transportador ou falta equivalente, a indemnização deve reparar integralmente os danos verificados, de acordo com a teoria da diferença.

Á luz dos factos provados é manifesto que a ré, pelo menos, agiu com negligência grosseira.

E, conforme se decidiu no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14/06/2011, atrás citado, merecendo o acolhimento do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 5/06/2012[12], “uma falta que segundo a lei da jurisdição que julgar o caso seja considerada equivalente ao dolo, como acontece com a jurisdição nacional, não pode deixar de ser, manifestamente, face à legislação nacional, enquanto elemento do nexo de imputação do facto ao agente, a negligência ou mera culpa que, conjuntamente com o dolo, faz parte da culpa lato sensu”.

Na verdade, trata-se de duas modalidades de culpa lato sensu, sendo certo que tal equivalência a nível contratual flui logo do artigo 798º do Código Civil, em que para existir responsabilidade contratual é indiferente uma conduta dolosa ou negligente, apenas se exigindo como pressuposto a culpa lato sensu.

Deste modo, nos termos do n.º 1 do artigo 29º da CMR, a indemnização a ser paga pela Recorrida à Recorrente não deverá ser submetida ao limite imposto pelo n.º 3 do artigo 23º, sendo antes determinada pelo n.º 1 do artigo 23º da CMR, o que levará a que a Recorrida seja condenada a pagar à Recorrente a importância de € 237.881,51, acrescida de juros de mora comerciais desde a citação até efectivo e integral pagamento.
5.2.
INCUMPRIMENTO DA OBRIGAÇÃO DE CONTRATAR O SEGURO DE TRNSPORTE:

Tal como comprovam os factos, o proprietário do Lamborghini sempre colocou como condição essencial para a realização do transporte que fosse outorgado um contrato de seguro para garantir um eventual furto ou roubo da viatura.
O preço e a realização do seguro ficaram acordados na véspera do transporte.
Efectivamente, só após lhe ter sido dada a garantia de emissão da apólice, o proprietário do veículo autorizou o transporte do Lamborghini para Itália, solicitando ao ACP a sua entrega nas instalações da Recorrente, o que aconteceu a 4 de Março de 1997.
Assim, na sequência do pedido da Recorrente, a recorrida contactou a seguradora W......
No entanto, aquela seguradora transmitiu à recorrida que, para fazer o seguro e emitir a respectiva apólice, seria necessária a realização de uma peritagem à viatura.
Porém, nessa altura, já o transporte da viatura se tinha iniciado e a Recorrida, perante este contratempo, não só não deu instruções para parar o transporte do veículo, como também não diligenciou no sentido de encontrar outra seguradora que eventualmente emitisse uma apólice para o veículo, sem necessidade de peritagem.
Deste modo, A Ré não cumpriu o acordo de segurar o veículo, presumindo-se culposa tal omissão (artigo 799º do Código Civil) e inexistindo quaisquer factos que permitam ilidir tal presunção.
Com tal omissão causou um dano à Recorrente, pois, caso tivesse segurado o veículo, nunca esta teria de ter pago o montante que pagou.
Assim, sendo que do cômputo do contrato, resultava a obrigação de fazer o seguro, concluiu ajuizadamente a sentença que a violação de tal dever contratual causou um prejuízo à Autora na quantia que teve de despender para pagar ao dono do veículo furtado, pois que, caso este tivesse sido ressarcido pelo seguro que a Ré se obrigou a fazer, não teria que efectuar qualquer pagamento.
Pelo exposto, também com este fundamento, é a Recorrida responsável perante a Recorrente pelo prejuízo que esta suportou com a condenação no anterior processo, com base no incumprimento da obrigação de celebrar um contrato de seguro de transporte, incumprimento imputável à Recorrida (artigos 798º, 799º e 562º do Código Civil), devendo, também, com este fundamento, reembolsar a Recorrente da quantia total que esta pagou ao proprietário do Lamborghini.
6.
Concluindo:
I - Designa-se de contrato de transporte internacional de mercadorias a convenção pela qual alguém (transportador) se obriga perante outrem (expedidor), mediante um preço, a realizar, por si ou por terceiro, a mudança de coisas de um local (designado de expedição) para outro (destino), sitos em países diferentes.
II - Tal contrato é oneroso, sinalagmático, consensual e de resultado, apenas se mostrando cumprido com a entrega da mercadoria ao destinatário.
III - A entrega, enquanto obrigação essencial do transportador, é um acto jurídico que se pode compor em dois momentos: a apresentação da mercadoria e a sua aceitação pelo destinatário.
IV - Recai sobre o transportador uma presunção de culpa no incumprimento da obrigação de entrega para com o expedidor, nos termos definidos em III, ainda que tal perda ocorra na execução de um subcontrato – negócio jurídico bilateral pelo qual um dos sujeitos, sem se desvincular da sua posição, estipula com terceiro a execução total ou parcial das prestações a que está adstrito – artigos 367º do Código Comercial, 800º do Código Civil e 17º, n.º 1 da CMR (Convenção Relativa ao Contrato de Transporte Internacional de Mercadorias por Estrada, assinada em Genebra em 19-05-1956, aprovada em Portugal pelo DL n.º 46235, de 18-03-1965).
V - Atenta tal presunção, (i) ao lesado que queira demandar o transportador, incumbe o ónus de alegar e provar a celebração do contrato, a entrega da mercadoria ao transportador e o facto ilícito causador do dano e (ii) ao transportador o ónus de alegar e provar as circunstâncias excludentes da culpa (caso fortuito, causa imprevisível e a cujas consequências não se podia obstar) – artigos 487º, n.º 1, do Código Civil, 17º e 18º da Convenção CMR, e 383º e 376º do Código Comercial.
VI - A qualificação da culpa latu sensu para efeitos da obrigação de reparação integral dos danos à luz da Convenção CMR exige que haja dolo ou falta equivalente, por parte do transportador.
VII - Enquadra-se no conceito de “falta (…) que, segundo a lei da jurisdição que julgar o caso, seja considerada equivalente a dolo ”, para efeitos do n.º 1 do artigo 29º da Convenção CMR – e não caso fortuito – a perda da mercadoria de milhares de euros (Lamborghini), abandonada, em Monza (Itália), no período da noite, por dois motoristas do transportador, fora de um parque vigiado.
VIII - Se o transportador inicia a execução do transporte sem se certificar que a realização de contrato de seguro para garantir um eventual furto da viatura – condição que foi imposta para a respectiva entrega pelo proprietário – incumpriu a obrigação de contratar o seguro de transporte, a qual se presume culposa e é causal do prejuízo correspondente ao montante que foi pago ao proprietário do veículo (artigos 798º, 799º e 562º, todos do Código Civil).
DECISÃO:
Pelo exposto, confirmando a revista, revoga-se o douto acórdão recorrido, condenando a Ré a pagar à Autora a quantia de € 237.881,57 (duzentos e trinta e sete mil, oitocentos e oitenta e um euros e cinquenta e um cêntimos), acrescidos de juros de mora comerciais desde a citação até efectivo e integral pagamento.

Lisboa, 15 de Maio de 2013

Granja da Fonseca (Relator)

Silva Gonçalves

Ana Paula Boularot

_________________________

[1] A Relação alterou a sistematização na discriminação dos factos provados, ordenando-os todos de forma mais lógica e coerente, a fim de se retirar um sentido útil desse encadeamento e facilitar a respectiva análise e apreciação.

[2] Comentário ao Código Comercial Português, Volume II, página 394.
[3] Acórdão STJ de 28/01/1997, Processo n.º 878/66 – 1ª Secção.
[4] Pedro Romano Martinez, O Subcontrato, 1989, página 188.
Almeida e Costa, Direito das Obrigações, página 572.
Menezes Cordeiro, Direito das Obrigações, II, página 126.
[5] Francisco Costeira da Rocha, obra citada, página 65.
[6] Francisco Costeira da Rocha, obra citada, págs. 66 e 168.
[7] Alfredo Proença e J. Espanha Proença, Transporte de Mercadorias, pág. 119.
[8] Alfredo Proença e J. Espanha Proença, obra e lugar citados.
[9] Ac. STJ de 14/06/2011, Processo 437/05.9TBANG.C1.S1.
[10] Ac. STJ de 5/06/2012, Processo 3303/05.4TBVIS.C2.S1. (Relator Conselheiro Azevedo Ramos).
[11] Ac. STJ de 14/06/2011, Processo 437/05.9TBANG.C1.S1. (Relator Conselheiro Hélder Roque).
[12] Processo 3303/05.4TBVIS.C2.S1. (Relator Conselheiro Azevedo Ramos).