Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
185/19.2ZFLSB-A.S1
Nº Convencional: 3ª SECÇÃO
Relator: RAUL BORGES
Descritores: HABEAS CORPUS
AUXÍLIO À IMIGRAÇÃO ILEGAL
PRISÃO ILEGAL
INADMISSIBILIDADE
Data do Acordão: 11/20/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: HABEAS CORPUS
Decisão: NEGADO A PROVIDÊNCIA
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL PENAL – MEDIDAS DE COACÇÃO E DE GARANTIA PATRIMONIAL / MEDIDAS DE COACÇÃO / MODOS DE IMPUGNAÇÃO / HABEAS CORPUS EM VIRTUDE DE PRISÃO ILEGAL.
Doutrina:
- Faria Costa, apud acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30 de Outubro de 2001, CJSTJ 2001, Tomo III, p. 202;
- Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, II volume, p. 297.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO PENAL (CPP): - ARTIGOS 220.º, N.º 1 E 222.º, N.º 2.
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA (CRP): - ARTIGO 27.º, N.º 1.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 27-10-2010, PROCESSO N.º 108/06.9SHLSB-AH.S1;
- DE 08-11-2013, PROCESSO N.º 115/13.5YFLSB.S1;
- DE 03-01-2018, PROCESSO N.º 217/15.3GCSAT-A.S1;
- DE 21-02-2018, PROCESSO N.º 418/11.3GCOVR-B.S1.
Sumário :
I – Sendo o único caso de garantia específica e extraordinária constitucionalmente prevista para a defesa de direitos fundamentais, o habeas corpus testemunha a especial importância constitucional do direito à liberdade.

II – Sendo o direito à liberdade um direito fundamental – artigo 27.º, n.º 1, da CRP – e podendo ocorrer a privação da mesma, «pelo tempo e nas condições que a lei determinar», apenas nos casos elencados no n.º 3 do mesmo preceito, a providência em causa constitui um instrumento reactivo dirigido ao abuso de poder por virtude de prisão ou detenção ilegal.

III – Ou, para utilizar a expressão de Faria Costa, apud acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30 de Outubro de 2001, in CJSTJ 2001, tomo 3, pág. 202, atenta a sua natureza, trata-se de um «instituto frenador do exercício ilegítimo do poder».

IV – A providência de habeas corpus tem a natureza de remédio excepcional para proteger a liberdade individual, revestindo carácter extraordinário e urgente «medida expedita» com a finalidade de rapidamente pôr termo a situações de ilegal privação de liberdade, decorrentes de ilegalidade de detenção ou de prisão, taxativamente enunciadas na lei: em caso de detenção ilegal, nos casos previstos nas quatro alíneas do n.º 1 do artigo 220.º do CPP e quanto ao habeas corpus em virtude de prisão ilegal, nas situações extremas de abuso de poder ou erro grosseiro, patente, grave, na aplicação do direito, descritas nas três alíneas do n.º 2 do artigo 222.º do CPP.

V – Sendo a prisão efectiva e actual o pressuposto de facto da providência e a ilegalidade da prisão o seu fundamento jurídico, esta providência extraordinária com a natureza de acção autónoma com fim cautelar (assim, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, II volume, pág. 297) há-de fundar-se, como decorre do artigo 222.º, n.º 2, do CPP, em ilegalidade da prisão proveniente de (únicas hipóteses de causas de ilegalidade da prisão):

a) Ter sido efectuada ou ordenada por entidade incompetente;

b) Ser motivada por facto pelo qual a lei a não permite; ou

c) Manter-se para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial.

VI – O artigo 222.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, constitui a norma delimitadora do âmbito de admissibilidade do procedimento em virtude de prisão ilegal, do objecto idóneo da providência, nela se contendo os pressupostos nominados e em numerus clausus, que podem fundamentar o uso da garantia em causa.

VII – O fundamento previsto na alínea b) abrange uma multiplicidade de situações, nomeadamente: a não punibilidade dos factos imputados ao preso, a prescrição da pena, a amnistia da infracção imputada ou o perdão da respectiva pena, a inimputabilidade do preso, a falta de trânsito da decisão condenatória, a inadmissibilidade legal de prisão preventiva.

VIII – O que importa é que se trate de uma ilegalidade evidente, de um erro directamente verificável com base nos factos recolhidos no âmbito da providência confrontados com a lei, sem que haja necessidade de proceder à apreciação da pertinência ou correcção de decisões judiciais, à análise de eventuais nulidades ou irregularidades do processo, matérias essas que não estão compreendidas no âmbito da providência de habeas corpus, e que só podem ser discutidas em recurso”

IX – A providência de habeas corpus não é o meio próprio para sindicar as decisões sobre medidas de coacção privativas de liberdade, ou que com elas se relacionem directamente; a medida em causa não se destina a formular juízos de mérito sobre a decisão judicial de privação de liberdade, ou a sindicar eventuais nulidades, insanáveis, ou não, ou irregularidades, cometidas na condução do processo ou em decisões, ou alegados erros de julgamento de matéria de facto.

Para esses fins servem os recursos, os requerimentos e os incidentes próprios, deduzidos no tempo e na sede apropriada.

X – Não é, pois, o habeas corpus o meio próprio de impugnar as decisões processuais ou de arguir nulidades e irregularidades eventualmente cometidas no processo, ou para apreciar a correção da qualificação jurídica dos factos imputados ao arguido, decisões essas cujo meio adequado de impugnação é o recurso ordinário. 

XI – O habeas corpus, insiste-se, não pode revogar ou modificar decisões, ou suprir deficiências ou omissões do processo. Pode, sim, e exclusivamente, apreciar se existe, ou não, uma privação ilegal da liberdade motivada por algum dos fundamentos legalmente previstos para a concessão de habeas corpus, e, em consequência, determinar, ou não, a libertação imediata do recluso.

XII – As situações de decisão discutível são impugnáveis pela via do recurso, não sendo o habeas corpus o meio para impugnar o mérito do despacho que valida a detenção e impõe medida de coacção, bem como de outras decisões, como relativamente ao despacho de revogação de suspensão da execução de pena de prisão, para questionar a validade, relevância ou pertinência dos fundamentos para tanto invocados.

Decisão Texto Integral:

AA, cidadã de nacionalidade …, arguida no inquérito n.º 185/19.2ZFLSB, que corre termos na … Secção do DIAP, com intervenção jurisdicional no Juízo de Instrução Criminal, Juiz …, Comarca de Lisboa, nascida em …-07-1988, presa preventivamente, desde 28 de Outubro de 2019, à ordem de tal processo, vem, em 12 de Novembro de 2019, em petição subscrita por Exmo. Advogado, invocando o disposto no artigo 31.º da Constituição Portuguesa e nos termos do preceituado no artigo 222.º, n.º 1 e n.º 2, alínea b), do Código de Processo Penal, intentar providência de HABEAS CORPUS, nos termos e com os fundamentos seguintes (em transcrição integral):

“1. - ENQUADRAMENTO

1° Seja permitido à peticionante referir desde logo que o seu processo encontra-se sujeito ao regime de segredo de justiça por se tratar, alegadamente, da prática indiciária de crimes graves e integradores do conceito de criminalidade altamente organizada.

Contudo,

2° Se a Defesa, no decurso da fase de investigação, tem que permanecer absolutamente silente, já não assim o Ministério Público ou o SEF que se têm pronunciado profusamente sobre a suposta matéria em apreço.

Assim,

3° Não obstante a arguida estar indiciada pela prática de crimes de auxílio à imigração ilegal e de associação para a prática de auxílio à imigração ilegal;

4º O Jornal “BB” informava publicamente que “Funcionária … fica em prisão preventiva por suspeita de tráfico de pessoas”,

5º Mais se referindo, na parte aqui relevante que “(...) detida pelo Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) por suspeita de tráfico de seres humanos e auxílio à imigração ilegal ficou esta segunda-feira em prisão preventiva, disse à … fonte do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras”.

6° Mais refere o BB, na notícia em causa que “(...) O Serviço de Estrangeiros e Fronteiras sublinha que, de “acordo com a análise de risco habitualmente efetuada pela Unidade de Identificação e Peritagem Documental do SEF”, e considerando o modo de atuação, esta situação foi encaminhada para a equipa de combate ao tráfico de seres humanos, que está no Aeroporto de Lisboa.”

Do mesmo modo,

7º Já o Jornal online de “CC”, citando fontes do Ministério Público, elaborou a extensa notícia denominada “Este era o esquema da funcionária da … detida por auxílio à imigração” na qual, em síntese, se refere o seguinte (citação):

8° “(...) Os detalhes do esquema da arguida são agora divulgados pelo … de Lisboa em nota publicada na página da Procuradoria-Geral Distrital de Lisboa.

Segundo os indícios recolhidos, “a arguida planeou e colocou em prática um esquema que consistia em, com regularidade, facilitar a entrada e permanência de cidadãos estrangeiros, que não reúnem as devidas condições, no espaço europeu, fazendo-os transitar por diversos locais, incluindo Portugal”.

Para levar a cabo a operação, a arguida, de nacionalidade estrangeira, comprava passagens aéreas para um destino que não exigisse qualquer visto de entrada, com escala em Lisboa. Deste modo, os estrangeiros chegavam ao nosso país, apresentavam-se junto das autoridades sem documentos, pedindo proteção jurídica internacional, designadamente asilo (…)”

9° Também o Diário “DD” noticia o sucedido, com elementos verdadeiramente estranhos, até aí inacessíveis à Defesa e citando fontes oficiais, o que fez do seguinte modo:

10º Sob o título “SEF investiga 20 viagens a Lisboa feitas por funcionária da …”, o DD noticia:

11º “Funcionária de loja da … em … já tinha vindo 20 vezes a … antes de ser presa pelo SEF

O Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) investiga as 20 viagens a Lisboa feitas nos últimos dois anos pela mulher, de 31 anos e nacionalidade …, funcionária de uma loja … em … e que aguarda julgamento presa após ter sido apanhada a traficar duas mulheres e duas crianças.

Cada uma das deslocações feita pela suspeita, com visto de turista, durou no máximo dois dias. Com o apoio da sua congénere ..., o SEF procura perceber os motivos destas deslocações, acreditando que em pelo menos algumas ocasiões a mulher trouxe consigo vários imigrantes, para entrarem ilegalmente no espaço Schengen.

Entretanto, as mulheres de 27 e 31 anos, duas das quatro vítimas de tráfico humano salvas pelos inspetores do SEF, foram esta terça-feira interrogadas no … de ... (…)”.

12° Sem pretender ser maçador, cumpre referir que também a … revelou, segundo fontes da investigação, que “(...) em causa, estão os crimes de auxílio à imigração ilegal e de tráfico de seres humanos (...)” (cfr. do segundo 12 ao segundo 16).

13º E ainda que “(...) Quando confrontadas pelos inspetores do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, referiram que a documentação estava na posse da funcionária da … e acusaram-na de pertencer a uma rede de tráfico de seres humanos (…)”.

14º Já as supostas vítimas seriam duas pessoas de meia idade e duas crianças...

15º Por fim, também a televisão …, …, falou sobre o caso, citando fontes oficiais, para declarar, na sua emissão do noticiário “…” de 28 de Outubro do corrente (cfr. do minuto 11:35 até ao minuto 12:55) designadamente, que a arguida “estava em trânsito para …, … . E suspeita de tráfico de seres humanos e de auxílio à imigração ilegal (…)”.

16° Enfim, parece que todos podem falar, dizer o que lhes aprouver, exceto a Defesa e a aqui peticionante.

II. - DOS FACTOS

16° (SIC) Em concreto, a peticionante é indiciariamente suspeita da prática de crimes de auxílio à imigração ilegal; e de associação para auxílio à imigração ilegal, ambos previstos em legislação avulsa de estrangeiros; mas jamais lhe foi imputado o crime de tráfico de seres humanos, previsto e punido pelo Código Penal Português.

17º Efetivamente, a arguida e peticionante — que é funcionária da … em …, embora se achasse no gozo de curto período de férias – foi encontrada na posse de quatro passaportes que não lhe pertenciam.

18° Perguntada sobre se queria depor, respondeu a todas as questões suscitadas, tendo nomeadamente referido que, a solicitação de um outro funcionário de uma empresa de segurança, tinha a mesma pegado nos ditos passaportes, para que os passageiros não os rasgassem ou inutilizassem, impedindo assim a sua posterior identificação e fazendo incorrer a … em pesadas multas, penalidades e na obrigação de pagar todas as despesas inerentes à instalação dos ditos 4 passageiros em Portugal.

19º Embora a Defesa acredite na versão da peticionante porquanto quem conheça a lei de estrangeiros e os mecanismos de pedidos de asilo, como é o caso, bem sabe que são as companhias aéreas as mais prejudicadas e que os estrangeiros vêm normalmente sem qualquer documento de identificação pessoal (cfr. artigos 38° n° 3, 41°, números 1, 2 e 4; artigo 202° n° 4. artigo 203°, 204°, 207° e artigo 209° n° 3, todos da Lei de estrangeiros em vigor).

20º A verdade é que não se sabe se, por detrás desta explicação verdadeira existiria — ou não — qualquer intuito da arguida (fosse para ganhar dinheiro ou por compaixão por pessoas africanas como ela própria) de auxiliar a imigração ilegal de pessoas sem direito a entrar no território nacional.

21° Facto é que, pese embora a Defesa acredite na versão da arguida, na pior das hipóteses, cometeu a mesma nesta sede indiciária, “apenas” o ilícito de auxílio à imigração ilegal, o qual, não justifica a aplicação da medida de coação de prisão preventiva por implicar pena abstrata máxima inferior a cinco anos de prisão.

22° Por conseguinte, a arguida, ora peticionante, encontra-se presa preventivamente de forma ilegal, ou seja, por factos que não comportam tal medida de coação.

23° É verdade que o Ministério Público imputou também à aqui peticionante a prática de um crime de associação para auxílio à imigração ilegal. O qual, em abstrato, é punível com pena de prisão de um a seis anos e que, por isso, e em tese, admite a medida de prisão preventiva.

24° De facto, nos escassos e insuficientes elementos dados a conhecer à peticionante, dizia-se que a mesma teria fundado ou dirigido uma associação destinada ao auxílio à imigração ilegal.

25° Contudo, não foi a peticionante confrontada com quaisquer factos de onde seja legítimo depreender que a mesma tivesse fundado ou dirigisse a dita associação criminosa, o que foi alegado pela Defesa em momento próprio (requer-se a análise sumária do Douto Despacho que determinou a prisão preventiva, bem como da Douta promoção do Ministério Público e da pronúncia da Defesa).

26° Daí que, já com a arguida fora da sala de audiências — à qual apenas voltou para lhe ser comunicada a medida de coação aplicada — tenha a Defesa alegado que a mesma não poderia ser objeto de uma medida de prisão preventiva, por inexistirem quaisquer elementos que a ligassem à fundação ou direção de associação tendente ao auxílio à imigração ilegal.

27° Neste ponto, sempre com a arguida fora da sala, foi referido pelo Ministério Público — não sabe a Defesa se os elementos disponíveis sobre o processo foram alterados ou não em conformidade — alegou lapso, nomeadamente no número do artigo imputado a AA, para sustentar que a mesma seria punível, já não por fundar ou dirigir, mas por integrar associação de auxílio à imigração ilegal.

28° Pois bem, do mesmo modo que a aqui peticionante não foi jamais confrontada com factos ou elementos de onde se pudesse extrair que a mesma tivesse criado ou dirigido a dita associação criminosa;

29° Também não foi a arguida confrontada, sequer, com factos de onde se extraísse a sua mera pertença a tal associação... sendo que a pertença é menos grave do que a criação ou direção de uma tal estrutura criminosa.

III. - DO DIREITO

30º A lei não confunde as situações de “habeas corpus” com aqueloutras de mero recurso de decisão de aplicação de medida de coação

31° Assim, pode a medida de “habeas corpus” ser solicitada em situações de tal maneira graves e insuportáveis que se traduzam, designadamente, na aplicação de uma medida de coação de prisão preventiva a situações que a não comportam ou justificam.

32° Tal ocorre nos presentes Autos em que, ainda que seja reconhecido indiciariamente que a arguida e peticionante poderá ter cometido o ilícito de auxílio à imigração ilegal (e nem nisso a Defesa consente pois a versão da peticionante é credível, sendo que a mesma trabalha para o Estado Português pelo que não quereria, muito provavelmente, “jogar fora” as suas vantagens decorrentes do seu vínculo à …)

33° Ainda que se conjeture que a arguida poderá ter cometido indiciariamente um crime, o mesmo não é suscetível da aplicação de medida de prisão preventiva pelo que, tendo a mesma sido imposta, se revela ilegal e terá de ser substituída sem qualquer delonga.

34º Sem prescindir, não existem nos Autos, que se saiba — pelo menos que tenham sido legalmente comunicados a AA — quaisquer elementos, fosse de a mesma ter fundado, dirigido ou sequer integrado uma Associação para auxílio à imigração ilegal.

35º Tal imputação constituirá, quanto muito, um recurso processual desenvolvido pelo SEF e pelo Ministério Público para alargarem o período da sua investigação, mas não sustentado em indícios suficientemente fortes que justifiquem a aplicação da medida de prisão preventiva à arguida.

36° Aliás, se tais elementos ou factos existissem, capazes de fazer crer que a arguida, pelo menos, integrasse uma concreta associação criminosa tendente ao auxílio à imigração ilegal, os mesmos indícios, elementos ou documentos teriam que ter sido, conforme os casos, comunicados, exibidos ou pelo menos apresentados e questionados à arguida, o que jamais sucedeu.

37° Em suma, seja porque a arguida não foi confrontada com factos ou elementos que façam crer que a mesma, pertence a dada organização criminosa, concretamente definida;

Assim, sem necessidade de outras considerações, requer-se:

Seja dado provimento ao presente procedimento de Habeas Corpus, porquanto:

A) A aqui peticionante, AA encontra-se presa preventivamente por crime que, ainda que se verifique indiciariamente — o de auxílio à imigração ilegal — não admite a aplicação de tal medida de coação;

B) Foi também imputado à arguida o crime de associação para auxílio à imigração ilegal, por a mesma, supostamente, ter fundado ou dirigido a dita associação, sem que lhe tenham sido exibidos quaisquer documentos ou apresentados quaisquer indícios de tais suspeitas;

C) Já com a arguida fora da sala de audiências, para efeitos de deliberar sobre a medida de coação a aplicar, veio o Tribunal a indicar ter existido erro de escrita ou de indiciação, considerando que a arguida, já não teria fundado ou dirigido tal associação, mas apenas a integraria;

D) No entanto, além de se desconhecer se a dita alteração foi incorporada nos Autos, tão pouco sequer foram exibidos documentos à arguida ou apresentados indícios concretos de que a mesma fizesse parte de alguma associação criminosa, muito menos destinada ao auxílio à imigração ilegal;

E) A presente indiciação parece ter por base a necessidade de investigar após esta arguida ter sido preventivamente presa, quando as boas práticas indicam, justamente, que se deve investigar e depois, se necessário, prender e não o contrário, como agora sucedeu;

F) Finalmente, anota-se que a Imprensa pode falar abundantemente sobre este processo, com o beneplácito de fontes altamente colocadas dentro das hierarquias do SEF e do MP; mas a Defesa tem que permanecer silenciosa, até por o processo se encontrar em segredo de Justiça;

G) Em qualquer caso, requer-se não seja julgada a presente providência de Habeas Corpus como manifestamente infundada, dado que a mesma se baseia em manifesta e inequívoca ininteligibilidade da Douta decisão que determinou a prisão preventiva do peticionante; e que este se encontra em difícil situação pessoal, no limiar — ou para além dele — do respeito pela sua dignidade humana.

Nestes termos e nos demais de Direito, deve a Providência de Habeas Corpus ser decretada, conforme peticionado, o que se espera e requer”.

A título de prova, mais se requer que a petição em anexo seja acompanhada de cópia (em papel e gravação) da Douta decisão judicial que se seguiu ao primeiro interrogatório do arguido e que determinou a sua prisão preventiva, documento este que ainda não foi solicitado pela arguida mas que em breve o fará, até para efeitos de interposição de recurso da medida de coação que lhe foi aplicada.



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A Exma. Juíza no Tribunal de Instrução Criminal na Comarca de ... – Juiz … – exarou a informação a que alude o artigo 223.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, a fls. 12, nestes termos (em transcrição integral):

 “A arguida AA encontra-se sujeita a medida de coação privativa da liberdade desde 26.10.2019 e pela prática dos crimes de auxílio à imigração ilegal e associação criminosa destinada à imigração ilegal, p.p. nos arts. 183.º e 184.º da Lei 23/2007 de 4 de julho.

O fundamento desta imputação, genericamente, corresponde ao facto de a arguida ter colaborado na introdução em território nacional de 4 cidadãos estrangeiros, dois dos quais menores.

Era a arguida quem detinha a documentação dos mesmos e o modus operandi utilizado é já conhecido do SEF, sendo os cidadãos em causa, dois menores e duas senhoras de condição social muito modesta, instruídos na realização de viagem para destino com escala em Lisboa, onde irão pedir sem o mínimo fundamento, asilo e aproveitar a demora na sua decisão para desaparecerem no espaço europeu, apoiados por uma rede criminosa a quem devem elevadas quantias por todo o processo.

Na sequência destes factos e da detenção da arguida, esta veio a ser sujeita à medida de prisão preventiva, tendo sido apresentada no prazo legal.

Uma análise preliminar do requerimento apresentado permite concluir que este se fundamenta essencialmente na discordância com a medida de coação aplicada, não se verificando fundamento legal para a concessão do habeas corpus.

Assim e sem prejuízo de melhor entendimento do Tribunal superior não se afigura que a prisão preventiva da arguida seja ilegal nos termos do art. 222.º do CPP, devendo manter-se a mesma, porquanto se mostram inalterados os pressupostos que determinaram a sua aplicação.

Desde já remeta ao STJ pelo meio mais expedito a presente informação.

Após, remeta os autos ao STJ, com certidão do auto de notícia, do auto de 1º interrogatório judicial e despacho subsequente”.


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Os autos foram instruídos com as certidões indicadas na douta informação.

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Convocada a Secção Criminal e notificado o Ministério Público e o Defensor, teve lugar a audiência.

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Cumpre apreciar e decidir.



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Constam dos autos – documentos juntos e teor da informação prestada – os seguintes elementos fácticos que interessam para a decisão da providência requerida:

I – Em 26-10-2019, pelas 7:58 horas, no Posto de Fronteira …, Aeroporto …, Lisboa, foram detectados na Zona Internacional quatro passageiros em trânsito para …, a fazer o percurso …-…, no voo …, que não constavam na base de dados VIS (vistos Schengen emitidos).

II – Os passageiros eram EE, FF, GG e HH, respectivamente, de 31, 27, 7 anos e 18 meses de idade, os quais viajaram acompanhados pela requerente, que trazia dentro da sua mala os quatro passaportes e os respectivos cartões de embarque.

III – EE e FF pretenderam viajar para Portugal e esta última pretendeu trazer consigo os menores, que afirma serem seus filhos, não tendo obtido os necessários vistos que lhes permitissem a entrada legal no nosso país, tendo-se colocado nas mãos da ora requerente, que engendrou um esquema fraudulento para as introduzir em território nacional, sem o necessário visto de entrada.

IV – A requerente é funcionária da … numa loja na … de … e nos últimos dois anos tem vinte entradas e outras vinte saídas registadas todas com uma duração máxima entre 1 a 3 dias.

V – A peticionante foi detida no dia 26-10-2019 e submetida a interrogatório judicial no dia 28 seguinte. 

VI – Do auto de interrogatório consta que tendo sido informada, nos termos das alíneas c), d) e e) do artigo 141.º do CPP, dos motivos da detenção, designadamente dos factos que lhe eram concretamente imputados, nos termos da promoção junta, através da entrega de cópia, “os factos não lhe foram lidos porquanto a arguida declarou que tem conhecimento dos mesmos”.

VII – Aquando da realização do primeiro interrogatório judicial, foi proferido despacho que determinou que a arguida aguardasse os ulteriores termos do processo sujeito à medida de coação de prisão preventiva, tendo-se considerado fortemente indiciada a prática pela arguida de quatro crimes de auxílio à imigração ilegal, na forma tentada, p. e p. pelo artigo 183.°, n.°s 2 e 4, e um crime de associação de auxílio à imigração ilegal, p. e p. pelo artigo 184.°, n.°s 1 e 2, ambos da Lei n.º 23/2007, de 4 de Julho.



Apreciando.


A providência de habeas corpus constitui uma garantia do direito à liberdade com assento na Lei Fundamental que nos rege.

Incluída no Capítulo I «Direitos, liberdades e garantias pessoais», do Título II “Direitos, liberdades e garantias”, da Parte I “Direitos e deveres fundamentais”, a providência de habeas corpus está prevista no artigo 31.º da Constituição da República Portuguesa, que estabelece:

1 – Haverá habeas corpus contra o abuso de poder, por virtude de prisão ou detenção ilegal, a requerer perante o tribunal competente.

2 – A providência de habeas corpus pode ser requerida pelo próprio ou por qualquer cidadão no gozo dos seus direitos políticos.

3 – O juiz decidirá no prazo de oito dias o pedido de habeas corpus em audiência contraditória.

O texto do n.º 1 foi alterado/revisto pela Lei Constitucional n.º 1/97, que introduziu a Quarta revisão constitucional (Diário da República, I-A Série, n.º 218/97, de 20 de Setembro de 1997) e que pelo artigo 14.º alterou a redacção do n.º 1 do artigo 31.º da Constituição, de modo a que nesse preceito a expressão “a interpor perante o tribunal judicial ou militar consoante os casos” fosse substituída pela expressão “a requerer perante o tribunal competente”, assim afastando a referência a tribunais militares.

Mas como assinala Faria Costa em Habeas Corpus: ou a análise de um longo e ininterrupto “diálogo” entre o poder e a liberdade, Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra, volume 75, Coimbra, 1999, pág. 549, a revisão constitucional de 1997 não veio, nem de longe nem de perto, restringir o âmbito de aplicação da norma. Por isso, o habeas corpus vale também e em toda a linha perante a jurisdição militar.

Como referem Gomes Canotilho e Vital Moreira, in Constituição da República Portuguesa Anotada, volume I, Coimbra Editora, 4.ª edição revista, 2007, a págs. 509, o n.º 2 do artigo 31.º reconhece uma espécie de acção popular de habeas corpus (cfr. art. 52.º - 1), pois, além do interessado, qualquer cidadão no gozo de seus direitos políticos tem o direito de recorrer a providência em favor do detido ou preso. Além de corporizar o objectivo de dar sentido útil ao habeas corpus, quando o detido não possa pessoalmente desencadeá-lo, essa acção popular sublinha o valor constitucional objectivo do direito à liberdade.        

A providência em causa é uma garantia fundamental privilegiada (no sentido de que se trata de um direito subjectivo «direito-garantia» reconhecido para a tutela do direito à liberdade pessoal – neste sentido, cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, II, pág. 296) e citando este e J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, in Constituição da República Portuguesa Anotada, volume I, Coimbra Editora, 4.ª edição revista, 2007, a figura do habeas corpus é historicamente uma instituição de origem britânica, remontando ao direito anglo - saxónico, mais propriamente ao Habeas Corpus Amendment Act, promulgado em 1679, passando o instituto do direito inglês para a Declaração de Direitos do Congresso de Filadélfia, de 1774, consagrado pouco depois na Declaração de Direitos proclamada pela Assembleia Legislativa Francesa em 1789, sendo acolhido pela generalidade das Constituições posteriores e introduzido entre nós pela Constituição de 1911 (artigo 3.º- 31), tendo como fonte a Constituição Republicana Brasileira de 1891, muito influenciada pelo direito constitucional americano.

A Constituição de 1933 (artigo 8.º, § 4.º) consagrou igualmente o instituto, que só veio a ser regulamentado pelo Decreto-Lei n.º 35.043, de 20 de Outubro de 1945, cujas disposições vieram a ser integradas no Código de Processo Penal de 1929 pelo Decreto-Lei n.º 185/72, de 31 de Maio, sendo que no pós 25 de Abril de 1974 teve a regulamentação constante do Decreto-Lei n.º 744/74, de 27 de Dezembro de 1974 e do Decreto-Lei n.º 320/76, de 4 de Maio de 1976.

A Lei n.º 43/86, de 26 de Setembro - lei de autorização legislativa em matéria de processo penal, a cujo abrigo foi elaborado o Código de Processo Penal vigente - estabeleceu a garantia no artigo 2.º, n.º 2, alínea 39 – “ (…) garantia do habeas corpus, a requerer ao Supremo Tribunal de Justiça em petição apresentada perante a autoridade à ordem da qual o interessado se mantenha preso, enviando-se a petição, de imediato, com a informação que no caso couber, ao Supremo Tribunal de Justiça, que deliberará no prazo de oito dias”.

Sendo o único caso de garantia específica e extraordinária constitucionalmente prevista para a defesa de direitos fundamentais, o habeas corpus testemunha a especial importância constitucional do direito à liberdade.

Sendo o direito à liberdade um direito fundamental – artigo 27.º, n.º 1, da CRP – e podendo ocorrer a privação da mesma, «pelo tempo e nas condições que a lei determinar», apenas nos casos elencados no n.º 3 do mesmo preceito, a providência em causa constitui um instrumento reactivo dirigido ao abuso de poder por virtude de prisão ou detenção ilegal.

Ou, para utilizar a expressão de Faria Costa, apud acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30 de Outubro de 2001, in CJSTJ 2001, tomo 3, pág. 202, atenta a sua natureza, trata-se de um «instituto frenador do exercício ilegítimo do poder».

A providência de habeas corpus tem a natureza de remédio excepcional para proteger a liberdade individual, revestindo carácter extraordinário e urgente «medida expedita» com a finalidade de rapidamente pôr termo a situações de ilegal privação de liberdade, decorrentes de ilegalidade de detenção ou de prisão, taxativamente enunciadas na lei: em caso de detenção ilegal, nos casos previstos nas quatro alíneas do n.º 1 do artigo 220.º do CPP e quanto ao habeas corpus em virtude de prisão ilegal, nas situações extremas de abuso de poder ou erro grosseiro, patente, grave, na aplicação do direito, descritas nas três alíneas do n.º 2 do artigo 222.º do CPP.

Sendo a prisão efectiva e actual o pressuposto de facto da providência e a ilegalidade da prisão o seu fundamento jurídico, esta providência extraordinária com a natureza de acção autónoma com fim cautelar (assim, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, II volume, pág. 297) há-de fundar-se, como decorre do artigo 222.º, n.º 2, do CPP, em ilegalidade da prisão proveniente de (únicas hipóteses de causas de ilegalidade da prisão):

a) Ter sido efectuada ou ordenada por entidade incompetente;

b) Ser motivada por facto pelo qual a lei a não permite; ou

c) Manter-se para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial.



Analisando.


No essencial, no caso concreto, o que está em discussão é a questão de saber se a privação da liberdade da peticionante é ilegal.

A requerente invoca o artigo 222.º, n.º 2, alínea b), do CPP, ou seja, ser a prisão motivada por facto pelo qual a lei a não permite.

A providência do habeas corpus tem lugar quando alguém se encontra ilegalmente preso, quer por virtude de prisão preventiva, quer em razão de prisão resultante de pena constante da sentença condenatória, tratando-se de meio expedito, célere, destinado a pôr cobro a essa situação o mais depressa possível.

Como se extrai do acórdão deste Supremo Tribunal de 27-10-2010, proferido no processo n.º 108/06.9SHLSB-AH.S1-3.ª Secção, o processo de habeas corpus assume-se como de natureza residual, excepcional, e de via reduzida: o seu âmbito restringe-se à apreciação da ilegalidade da prisão, por constatação e só dos fundamentos taxativamente enunciados no artigo 222.º, n.º 2, do CPP. Reserva-se-lhe a teleologia de reacção contra a prisão ilegal, ordenada ou mantida de forma grosseira, abusiva, por chocante erro de declaração enunciativa dos seus pressupostos.

Como referiu o acórdão de 8 de Novembro de 2013, proferido no processo n.º 115/13.5YFLSB.S1-3.ª Secção “Este fundamento abrange uma multiplicidade de situações, nomeadamente: a não punibilidade dos factos imputados ao preso, a prescrição da pena, a amnistia da infracção imputada ou o perdão da respectiva pena, a inimputabilidade do preso, a falta de trânsito da decisão condenatória, a inadmissibilidade legal de prisão preventiva.

O que importa é que se trate de uma ilegalidade evidente, de um erro directamente verificável com base nos factos recolhidos no âmbito da providência confrontados com a lei, sem que haja necessidade de proceder à apreciação da pertinência ou correcção de decisões judiciais, à análise de eventuais nulidades ou irregularidades do processo, matérias essas que não estão compreendidas no âmbito da providência de habeas corpus, e que só podem ser discutidas em recurso”. (Sublinhados nossos).

A definição dos limites de intervenção ao abrigo da providência foi abordada de forma muito clara em 1990, no acórdão de 10 de Outubro, proferido no processo n.º 29/90, publicado na Colectânea de Jurisprudência 1990, tomo 4, pág. 28 e no BMJ n.º 400, pág. 546, onde se ponderou: «A providência de habeas corpus tem a natureza de medida com a finalidade de resolver de imediato situações de prisão ilegal, e não de meio de reapreciação dos motivos da decisão proferida pela entidade competente. Essa função, de meio de obter a reforma da decisão injusta, de decisão inquinada de vício substancial ou de erro de julgamento, compete aos recursos. O STJ não pode substituir-se ao tribunal ou ao juiz que detém a jurisdição sobre o processo e não pode intrometer-se numa função reservada aos mesmos, consistindo as suas funções em controlar se a prisão se situa e se está a ser cumprida dentro dos limites da decisão judicial que a aplicou. Existindo uma decisão judicial, ela permanece válida até ser revogada em recurso. Por isso, a providência de habeas corpus apenas pode ser utilizada em situações diferentes. De contrário, estava a criar-se um novo grau de jurisdição, não contemplada. Daí que, quando o despacho de um juiz decreta a prisão baseado em fundamentos que a lei permite, o único meio de impugnação, por se pretender entender que tal fundamento se não encontra preenchido face aos elementos constantes do processo, é o recurso. Pode ao mesmo tempo requerer-se a providência, mas com base em outras razões que não as que foram objecto do recurso». 

E como se assinala no acórdão de 26 de Agosto de 2008, proferido no processo n.º 2555/08-3.ª Secção, a providência de habeas corpus não decide sobre a regularidade de actos do processo com dimensão e efeitos processuais específicos, não constituindo um recurso de actos de um processo em que foi determinada a prisão do requerente, nem um sucedâneo dos recursos admissíveis.

Como este Supremo Tribunal de Justiça tem vindo a decidir, a providência não pode ser utilizada para a sindicação de outros motivos ou fundamentos susceptíveis de pôr em causa a legalidade da prisão, para além dos taxativamente previstos na lei, designadamente para apreciar a correcção das decisões judiciais em que aquela é ordenada. Neste sentido, vejam-se o acórdão de 30 de Abril de 2008, processo n.º 1504/08-5.ª Secção e acórdãos desta 3.ª Secção, de 26 de Setembro de 2007, processo n.º 3473/07; de 24 de Outubro de 2007, processo n.º 3976/07; de 25 de Julho de 2008, nos processos n.ºs 2532/08 e 2526/08; de 10 de Setembro de 2008, por nós relatado no processo n.º 2912/08; de 7 de Janeiro de 2009, por nós relatado no processo n.º 4154/08; de 4 de Fevereiro de 2009, processo n.º 325/09; de 25 de Novembro de 2009, por nós relatado no processo n.º 694/09.1JDLSB-B.S1 e de 31 de Março de 2011, por nós relatado no processo n.º 38/11.2YFLSB.S1.

Como se pode ler no acórdão do STJ, de 16 de Julho de 2003, proferido no processo n.º 2860/03-3.ª Secção, de que houve recurso para o Tribunal Constitucional - Acórdão n.º 423/2003, de 24 de Setembro de 2003-3.ª Secção, proferido no processo n.º 571/2003, publicado no Diário da República, II Série, n.º 89, de 15 de Abril de 2004, e em Acórdãos do Tribunal Constitucional, volume 57.º, págs. 343 e ss. - «Os fundamentos da providência revelam que a ilegalidade da prisão que lhes está pressuposta se deve configurar como violação directa e substancial e em contrariedade imediata e patente da lei: quer seja a incompetência para ordenar a prisão, a inadmissibilidade substantiva (facto que não admita a privação de liberdade), ou a directa, manifesta e autodeterminável insubsistência de pressupostos, produto de simples e clara verificação material (excesso de prazo)».

Aditando ainda o seguinte: «Deste controlo estão afastadas todas as condicionantes, procedimentos, avaliação prudencial segundo juízos de facto sobre a verificação de pressupostos, condições, intensidade e disponibilidade de utilização in concreto dos meios de impugnação judicial».

No acórdão de 5 de Maio de 2009, proferido no processo n.º 665/08.5JAPRT-A.S1, desta Secção diz-se: “(…), no âmbito da decisão sobre uma petição de habeas corpus, não cabe julgar e decidir sobre a natureza dos actos processuais e sobre a discussão que possam suscitar no lugar e momento apropriado (isto é, no processo), mas têm de se aceitar os efeitos que os diversos actos produzam num determinado momento – princípio da actualidade – retirando daí as consequências processuais que tiverem para os sujeitos implicados”.

Especifica que a providência “não pode decidir sobre a regularidade de actos do processo com dimensão e efeitos processuais específicos, não constituindo um recurso dos actos de um processo em que foi determinada a prisão do requerente, nem um sucedâneo dos recursos ou dos modos processualmente disponíveis e admissíveis de impugnação” (...) “A medida não pode ser utilizada para impugnar irregularidades processuais ou para conhecer da bondade de decisões judiciais, que têm o processo ou o recurso como modo e lugar próprios para a sua reapreciação”.   (Sublinhados nossos).

A providência de habeas corpus não é o meio próprio para sindicar as decisões sobre medidas de coacção privativas de liberdade, ou que com elas se relacionem directamente; a medida em causa não se destina a formular juízos de mérito sobre a decisão judicial de privação de liberdade, ou a sindicar eventuais nulidades, insanáveis, ou não, ou irregularidades, cometidas na condução do processo ou em decisões, ou alegados erros de julgamento de matéria de facto.

Para esses fins servem os recursos, os requerimentos e os incidentes próprios, deduzidos no tempo e na sede apropriada.

Nesta sede cabe apenas verificar, de forma expedita, se os pressupostos de qualquer prisão constituem patologia desviante (abuso de poder ou erro grosseiro) enquadrável em alguma das alíneas do n.º 2 do artigo 222.º do CPP. - Neste sentido que é dominante, cfr., para além dos já citados, os acórdãos de 21 de Setembro de 2011, processo n.º 96/11.0YFLSB; de 9 de Fevereiro de 2012, processo n.º 927/1999.0JDLSB-X.S1; de 6 de Fevereiro de 2013, processo n.º 109/11.5SVLSB.S1; de 13 de Fevereiro de 2013, processo n.º 311/10.7TAGRD-A.S1; de 10 de Abril de 2013, processo n.º 992/12.7GCALM-A.L1.S1; de 17 de Abril de 2013, processo n.º 308/10.7JELSB-F.S1; de 19 de Junho de 2013, processo n.º 69/13.8YFLSB.S1; de 2 de Agosto de 2013, processo n.º 82/13.5YFLSB.S1; de 25 de Setembro de 2013, processo n.º 964/07.3JAPRT-B.S1 e de 8 de Novembro de 2013, processo n.º 115/13.3JAPRT-B.S1, todos desta Secção, podendo ler-se no último:      

“Esta providência não constitui, assim, um meio de impugnação de decisões judiciais, uma espécie de sucedâneo “abreviado” dos recursos ordinários, ou mesmo um recurso “subsidiário”, antes um mecanismo expedito que visa pôr fim imediato às situações de privação da liberdade que se comprove serem manifestamente ilegais, por ser a ilegalidade diretamente verificável a partir dos factos documentalmente recolhidos no âmbito da providência. 

Não é, pois, o habeas corpus o meio próprio de impugnar as decisões processuais ou de arguir nulidades e irregularidades eventualmente cometidas no processo, ou para apreciar a correção da qualificação jurídica dos factos imputados ao arguido, decisões essas cujo meio adequado de impugnação é o recurso ordinário. 

O habeas corpus, insiste-se, não pode revogar ou modificar decisões, ou suprir deficiências ou omissões do processo. Pode, sim, e exclusivamente, apreciar se existe, ou não, uma privação ilegal da liberdade motivada por algum dos fundamentos legalmente previstos para a concessão de habeas corpus, e, em consequência, determinar, ou não, a libertação imediata do recluso.

O que importa é que se trate de uma ilegalidade evidente, de um erro diretamente verificável com base nos factos recolhidos no âmbito da providência confrontados com a lei, sem que haja necessidade de proceder à apreciação da pertinência ou correção de decisões judiciais, à análise de eventuais nulidades ou irregularidades do processo, matérias essas que não estão compreendidas no âmbito da providência de habeas corpus, e que só podem ser discutidas em recurso, como vimos”. (Realces nossos).

No mesmo sentido, os acórdãos desta Secção de 30 de Dezembro de 2013, processo n.º 379/13.4TXPRT-G.S1, de 25-06-2014, processo n.º 35/14.6YFLSB.S1, de 08-08-2014, processo n.º 1042/13.1SELSB-B.S1, de 20-11-2014, processo n.º 59/08.2PFBRR-A.S1, de 21-01-2015, processos n.º 9736/08.7TDPRT e n.º 9/15.0YFLSB.S1, de 6-05-2015, processo n.º 53/15.7YFLSB.S1, de 17-06-2015, processo n.º 122/13.8TELSB-P.S1, de 28-10-2015, processo n.º 95/14.0T9STS-E.A.S2, de 5-08-2016, processos n.º 51/16.3YFLSB.S1 e 52/16.1YFLSB.S1, de 4-01-2017, processo n.º 109/16.9GBMDR-B.S1, em caso de violência doméstica, de 15-02-2017, processo n.º 6/17.0YFLSB.S1-3.ª, de 1-08-2017, processo n.º 796/11.4PAVNG-B.S1 e processo n.º 837/09.5PHLRS-A.S1, de 3-01-2018, processo n.º 217/15.3GCSAT-A.S1, de 21-02-2018, processo n.º 418/11.3GCOVR-B.S1.


Revertendo ao caso concreto.


Vejamos se a situação invocada cabe na previsão da referida alínea b) do n.º 2 do artigo 222.º do CPP, se a pretensão da requerente se enquadra em tal preceito.

No caso presente, o que está em discussão é a questão de saber se a prisão da requerente é ilegal, certo sendo, como já referimos, que a peticionante indica o fundamento previsto no artigo 222.º, n.º 2, alínea b), do CPP - Ser a prisão motivada por facto pelo qual a lei a não permite.

Os factos invocados não cabem, não se enquadram, neste fundamento.

A peticionante começa, ao longo dos artigos 1.º a 16.º da petição, rematando na alínea F) final, por insurgir-se contra o facto de o processo ser secreto para a arguida, mas poderem o Ministério Público e o SEF veicularem informações e dados do processo que são difundidos nos meios de comunicação social.

Podendo efectivamente dizer-se estarmos perante dois pesos e duas medidas, a verdade é que esta matéria não cabe no âmbito desta providência, extravasando-a por completo, podendo/devendo a questão ser colocada noutra sede.

 

Defende a peticionante que a única infracção cometida não comporta a medida de coacção aplicada.

 

Sob a epígrafe “Prisão preventiva” estabelece o artigo 202.º do CPP: 

1 - Se considerar inadequadas ou insuficientes, no caso, as medidas referidas nos artigos anteriores, o juiz pode impor ao arguido prisão preventiva quando:

a) Houver fortes indícios de prática de crime doloso punível com pena de prisão de máximo superior a 5 anos.

 

As alíneas b) a f) não têm aplicação no caso presente.

Os crimes imputados à peticionante estão previstos na Lei n.º 23/2007, de 4 de Julho, Diário da República, I Série, n.º 127, de 4-07, págs. 4290/4330, entrada em vigor em 3 de Agosto de 2007 - artigo 220.º -, a qual, sucedendo ao Decreto-Lei n.º 244/98, de 8 de Agosto, com as alterações introduzidas pela lei n.º 97/99, de 26 de Julho, pelo Decreto-Lei n.º 4/2001, de 10 de Janeiro e pelo Decreto-Lei n.º 34/2003, de 25 de Fevereiro, aprovou o regime jurídico de entrada, permanência, saída e afastamento de estrangeiros do território nacional, e que teve as seguintes alterações:

Lei n.º 29/2012, de 9 de Agosto, Diário da República I Série, n.º 154, de 9-08, procede à 1.ª alteração (nomeadamente artigos 182.º a 186.º) e procede à republicação.

Lei n.º 56/2015, de 23 de Junho, Diário da República, 1.ª série, n.º 120, de 23-06 procede à 2.ª alteração – Altera a redacção dos artigos 52.º, n.º 4, 70.º, n.º 1, alínea d) e 151.º, n.º 3.

Lei n.º 63/2015, de 30 de Junho, Diário da República, 1.ª série, n.º 125, de 30-06, procede à 3.ª alteração – Altera a redacção dos artigos 3.º, 61.º, 82.º, 99.º e 122.º e revoga o n.º 3 do artigo 90.º-A.

Lei n.º 59/2017, de 31 de Julho, Diário da República, 1.ª série, n.º 146, de 31-07, procede à 4.ª alteração – Altera a redacção dos artigos 88.º, n.º 2, 89.º, n.º 2 e 135.º, sendo revogado o n.º 3 do artigo 88.º.

Lei n.º 26/2018, de 5 de Julho, Diário da República, 1.ª série, n.º 128, de 05-07 – Regularização do estatuto jurídico das crianças e jovens de nacionalidade estrangeira acolhidos em instituições do Estado ou equiparadas (quarta alteração à Lei de Protecção de Crianças e Jovens Perigo, aprovada em anexo à Lei n.º 147/99 de 1 de Setembro e sexta alteração à Lei n.º 23/2007 – Altera a redacção dos artigos 123.º, n.º 2 e 124.º, n.º 4.

Lei n.º 28/2019, de 29 de Março, Diário da República, 1.ª série, n.º 63, de 29-03, procede à 7.ª alteração – Altera a redacção dos artigos 88.º, n.º 6 e 89.º, n.º 5.


De todas estas alterações apenas a de 2012 alterou a redacção dos preceitos que ora há que analisar, sendo a seguinte a nova redacção que é aplicável:



Artigo 183.º

Auxílio à imigração ilegal



2 – Quem favorecer ou facilitar, por qualquer forma, a entrada, a permanência ou o trânsito ilegais de cidadão estrangeiro em território nacional, com intenção lucrativa, é punido com pena de prisão de um a cinco anos.



Artigo 184.º

 Associação de auxílio à imigração ilegal



 1 – Quem promover ou fundar grupo, organização ou associação cuja finalidade ou atividade seja dirigida à prática dos crimes no artigo anterior é punido com pena de um a seis anos.

2 – Incorre na mesma pena quem fizer parte de tais grupos, organizações ou associações, bem como quem os apoiar ou prestar auxílio para que se recrutem novos elementos.


Ressalta da petição a discordância da peticionante relativamente à espécie da medida de coacção aplicada, defendendo diversa qualificação jurídica, de modo a que fique apenas o crime de auxílio à imigração ilegal, em seu entender, único cometido, cuja moldura penal não consente a aplicação de prisão preventiva.

Com o afastamento da imputação do crime de associação de auxílio à imigração ilegal, cuja moldura penal é de 1 a 6 anos de prisão, afastada estaria a convocação do artigo 202.º, n.º 1, alínea a) do CPP.

Tal discordância é patente nos artigos 21.º a 29.º e 32.º a 34.º da petição e a final na alínea A).

Ora, o despacho proferido imputa à arguida a prática dos dois crimes, incluindo o crime de associação de auxílio à imigração ilegal, p. e p. pelo artigo 184.º, n.º 1 e 2, da Lei n.º 23/2007, cuja moldura penal é de 1 a 6 anos de prisão, o qual tem cabimento na alínea a) do artigo 202.º do CPP, comportando a aplicação de prisão preventiva.

A peticionante entende que cometeu apenas o crime de auxílio à imigração ilegal e ao fazê-lo está a pretender impugnar o despacho proferido em 28-10-2019 e efectuar novo enquadramento jurídico-criminal.

Afirma a peticionante que não lhe foram lidos os factos integrantes do crime de associação de auxílio à imigração ilegal, mas a verdade é que como consta do ponto VI dos elementos fácticos supra enunciados: “Do auto de interrogatório consta que tendo sido informada, nos termos das alíneas c), d) e e) do artigo 141.º do CPP, dos motivos da detenção, designadamente dos factos que lhe eram concretamente imputados, nos termos da promoção junta, através da entrega de cópia, “os factos não lhe foram lidos porquanto a arguida declarou que tem conhecimento dos mesmos”.

Ora, como abundantemente e de forma consolidada, vem entendendo a jurisprudência a presente providência não serve para apreciar a bondade das decisões judiciais, pois para o efeito há lugar a recurso ordinário.

 

Como referimos no acórdão de 21-02-2018, processo n. 418/11.3GCOVR-B.S1 “As situações de decisão discutível são impugnáveis pela via do recurso, não sendo o habeas corpus o meio para impugnar o mérito do despacho que valida a detenção e impõe medida de coacção, bem como de outras decisões, como relativamente ao despacho de revogação de suspensão da execução de pena de prisão, para questionar a validade, relevância ou pertinência dos fundamentos para tanto invocados”.


Não se verifica, pois, a ilegalidade da prisão, inexistindo o fundamento previsto na alínea b) do n.º 2 do artigo 222.º do CPP, invocado pela requerente, o que inviabiliza desde logo a providência, por ausência de pressupostos, já que a violação grave do direito à liberdade, fundamento da providência impetrada, há-de necessariamente integrar alguma das alíneas daquele n.º 2 do artigo 222.º do CPP.

  

O artigo 222.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, constitui a norma delimitadora do âmbito de admissibilidade do procedimento em virtude de prisão ilegal, do objecto idóneo da providência, nela se contendo os pressupostos nominados e em numerus clausus, que podem fundamentar o uso da garantia em causa.

Sendo assim, é de indeferir a providência por falta de fundamento bastante - artigo 223.º, n.º 4, alínea a), do Código de Processo Penal.


Decisão


Pelo exposto, acordam na 3.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça em indeferir, por infundada, a providência de habeas corpus requerida pela peticionante AA.

Custas pela requerente, com taxa de justiça de três unidades de conta, nos termos do artigo 8.º e Tabela III do Regulamento das Custas Processuais - Decreto-Lei n.º 34/2008, de 26 de Fevereiro (rectificado pela Declaração de Rectificação n.º 22/2008, de 24 de Abril, e com as alterações introduzidas pela Lei n.º 43/2008, de 27 de Agosto, pelo Decreto-Lei n.º 181/2008, de 28 de Agosto, pelo artigo 156.º da Lei n.º 64-A/2008, de 31 de Dezembro (Suplemento n.º 252), pelo artigo 163.º da Lei n.º 3-B/2010, de 28 de Abril, pelo Decreto-Lei n.º 52/2011, de 13 de Abril e pela Lei n.º 7/2012, de 13 de Fevereiro, rectificada com a Rectificação n.º 16/2012, de 26 de Março, pela Lei n.º 66-B/2012, de 31de Dezembro, pelo Decreto-Lei n.º 126/2013, de 30 de Agosto, e pela Lei n.º 72/2014, de 2 de Setembro), o qual aprovou – artigo 18.º – o citado Regulamento, publicado no anexo III do mesmo diploma legal, sendo a Tabela actualizada de acordo com o Decreto-Lei n.º 52/2011, de 13 de Abril, sem prejuízo da isenção subjectiva que venha a ser detectada, nos termos do artigo 4.º, n.º 1, alínea j), do mesmo diploma.

Mantém-se em vigor o valor da UC (Unidade de conta) vigente em 2018, conforme estabelece o artigo 182.º da Lei n.º 71/2018, de 31 de Dezembro (Orçamento do Estado para 2019). Tal valor é de 102,00 €, que se tem mantido inalterado desde 20 de Abril de 2009.   

Consigna-se que foi observado o disposto no artigo 94.º, n.º 2, do Código de Processo Penal.

Lisboa, Escadinhas de São Crispim, 20 de Novembro de 2019


Raul Borges (Relator)

Manuel Augusto Matos