Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
526/15.1T8CSC.L1.S1
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: RICARDO COSTA
Descritores: DUPLA CONFORME
FUNDAMENTAÇÃO ESSENCIALMENTE DIFERENTE
MATÉRIA DE FACTO
REVISTA EXCEPCIONAL
PEDIDO SUBSIDIÁRIO
REVISTA EXCECIONAL
RECURSO DE REVISTA
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
ALTERAÇÃO DA QUALIFICAÇÃO JURÍDICA
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
FORMAÇÃO DE APRECIAÇÃO PRELIMINAR
Data do Acordão: 05/14/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NÃO CONHECIMENTO DO OBJECTO DO RECURSO DA REVISTA NORMAL E ORDENADA A REMESSA À FORMAÇÃO PARA APRECIAÇÃO DO RECEBIMENTO DO RECURSO DE REVISTA EXCEPCIONAL
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – PROCESSO DE DECLARAÇÃO / RECURSOS / RECURSO DE REVISTA / DECISÕES QUE COMPORTAM REVISTA / REVISTA EXCEPCIONAL.
Doutrina:
- Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código do Processo Civil, 5ª ed., Almedina, Coimbra, 2018, p. 364, 365, 369 e 370;
- António Pinto Monteiro e Paulo Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 4ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 2005, p. 579 e 580;
- Elizabeth Fernandez, Um novo Código de Processo Civil? Em busca das diferenças, Vida Económica, Porto, 2014, p. 190;
- Francisco Ferreira de Almeida, Direito processual civil, volume II, 2ª ed., Almedina, Coimbra, 2019, p. 574;
- Rui Pinto, Notas ao Código de Processo Civil, Volume II, 2ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 2015, sub art. 671º, p. 179, 181, 184 e 185;
- Teixeira de Sousa, Dupla conforme: critério e âmbito da conformidade, CDP n.º 21, 2008, p. 21 e 22.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 671.º, N.ºS 1 E 3 E 672.º, N.º 1, ALÍNEA A).
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 08-01-2015, PROCESSO N.º 129/11.OTCGMR.G1.S1, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 08-01-2015, PROCESSO N.º 346/11.2TBCBR.C2-A.S1, IN SASTJ, SECÇÕES CÍVEIS, 2015, P. 6, WWW.STJ.PT;
- DE 15-01-2015, PROCESSO N.º 266/10.8TBBRG.G1.S1, IN SASTJ, SECÇÕES CÍVEIS, 2015, P. 27 E 28;
- DE 19-02-2015, PROCESSO N.º 1397/10.0TBPVZ.P1.S1, IN SASTJ, SECÇÕES CÍVEIS, 2015, P. 95;
- DE 19-02-2015, PROCESSO N.º 302913/11.6YIPRT.E1.S1, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 28-01-2016, PROCESSO N.º 802/13.8TTVNF.P1.G1-A.S1, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 08-02-2018, PROCESSO N.º 2639/13.5TBVCT.GL.S1, IN WWW.DGSI.PT.
Sumário :

I - Existe dupla conformidade decisória, que obsta à admissibilidade do recurso de revista normal e ao conhecimento do seu objecto, nos termos do art. 671.º, n.º 3, do CPC, do acórdão da Relação que confirma, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente, a decisão proferida na primeira instância, se a Relação se limita a não aceitar um dos caminhos percorridos pela decisão recorrida e confirma o enquadramento normativo e a motivação jurídica crucial para atingir na parte dispositiva da decisão o mesmo resultado pretendido na acção.

II - É de concluir que a diferente compreensão da natureza jurídica de termo aditado a contrato-promessa, em ordem à previsão de nova data para celebração do contrato prometido, não colide com a fundamentação substancialmente idêntica das instâncias, uma vez acordado que uma subsequente nova segunda data para essa celebração seria ulteriormente objecto da vontade das partes, quanto à mora do promitente-comprador, à necessidade de interpelação admonitória para a converter em incumprimento definitivo, à equiparação de resolução infundada a incumprimento definitivo e ao recurso à execução específica para a substituição judicial da declaração negocial do promitente faltoso e do promitente disposto a celebrar o contrato prometido.

III. É legítima a interposição subsidiária de recurso de revista excepcional para prevenir a inadmissibilidade do recurso de revista normal com base em dupla conformidade decisória.

Decisão Texto Integral:


Acordam em Conferência no Supremo Tribunal de Justiça

6.ª Secção


I. RELATÓRIO

A) AA propôs ação declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra BB, peticionando:

«a) (…) ser proferida sentença substitutiva da declaração de venda do Réu à Autora do prédio urbano, sito na Rua ..., N.º …, descrito sob o n.º …, na Conservatória do Registo Predial de ... e inscrito, sob o artigo …, na matriz predial urbana das freguesias de ... e …; [e] em consequência seja transmitida a propriedade do referido imóvel para a autora.

b) ser o Réu condenado a pagar à Autora a título de indemnização as seguintes quantias:

1 – A quantia de € 2.500,00 (dois mil e quinhentos euros), correspondente à renda mensal que a Autora não recebeu em função da frustração da celebração do contrato de arrendamento, e vencidas no mês de Fevereiro de 2015, acrescidos daqueles que à razão de 2.500,00 €, se vencerem até à data em que a Autora possa, celebrar novo contrato de arrendamento.

2 – A quantia de € 26.514,00 (vinte e seis mil quinhentos e catorze euros), a título de despesas já pagas e com honorários com o escritório de Advogados, com todo o processo obtenção do visto e com o incumprimento do contrato promessa.

3 – A quantia de 175.000,00€ (cento e setenta e cinco mil euros) corresponde aos lucros cessantes que caberiam à Autora em virtude dos resultados gerados pela frustração do investimento no projeto de desenvolvimento na atividade vito-vinícola, em função da não obtenção atempada do visto.

4 – Aos referidos danos acrescem juros, às taxas legais desde a citação.

5 – Os custos e as despesas com a obtenção da ficha técnica de habitação, do imóvel dos autos o liquidar em sede de execução de sentença.

c) Ser reconhecido ao Réu o direito do levantamento do preço ainda em dívida depositado nos presentes autos, após pagamento das quantias referidos nas alíneas anteriores.»

Subsidiariamente pediu:

«a) Ser declarado resolvido o contrato promessa de compra e venda dos autos, por factos exclusivamente imputáveis ao Réu;

b) em consequência, ser o Réu condenado a pagar a Autora a quantia de € 1.283.999,78 (um milhão duzentos e oitenta e três mil novecentos e noventa e nove euros e setenta e oito cêntimos), correspondente ao dobro das quantias entregues pela Autora ao Réu a título de sinal e por conta do preço ao abrigo e em acrescida dos juros legais devido à taxa legal desde a citações até efetivo pagamento.»

Mais requereu, relativamente ao pedido principal, «ordenar a notificação da Autora para proceder ao depósito do preço em dívida de acordo com o disposto no contrato promessa e seu aditamento.»

 Como fundamento da acção invocou, no essencial (de acordo com a descrição da primeira instância, sentença a fls. 408-409):

«Celebrou contrato-promessa com o Réu, pelo qual este prometeu vender e a Autora comprar um móvel pelo preço de 735.000,00 €; A Autora pagou o sinal e seus reforços, ficando apenas por entregar apenas o montante de 111.500,00 €, cujo pagamento deveria ocorrer com a celebração do contrato definitivo; Foi acordado que a escritura seria celebrada até 31 de agosto de 2014; Por aditamento de 12 de setembro de 2014 o prazo foi alargado para 15 de janeiro de 2015, com novos reforços de sinal e a assunção pela Autora da obrigação de pagar outras quantias, estas dependentes de comunicação do Réu, referentes a manutenção do imóvel, IMI e custos acrescidos na execução face ao devido em 28-8-2014, bem como juros; a Autora pagou neste âmbito a quantia de 568.499,00 €; A Autora e o Réu, na pessoa do seu mandatário, acordaram verbalmente a marcação da escritura para 15 de janeiro, primeiro às 14:30 h e depois, por indisponibilidade do Réu nessa hora, às 16:00 h; Em 14 de janeiro e 15 de janeiro, até meia hora antes da diligência, a Autora não conseguiu proceder à emissão de guias para pagamento do IMT, porquanto o Réu tinha dívidas fiscais; A Autora, representada por gestor de negócios, apresentou-se no Cartório; pelas 16:15, o Réu informa que tinha acabado de proceder ao pagamento dessas dívidas; às 16:40 as guias foram presentes ao gestor de negócios da Autora, sendo esta hora tardia para a Autora poder proceder a tal pagamento, visto que por ser residente na China não tem cartão multibanco, ficando impossibilitada de obter cheque bancário, por os bancos estarem encerrados; O Réu comportou-se com manifesta má-fé ao regularizar a sua situação contributiva no próprio dia agendado para a escritura e simultaneamente com a hora marcada e por não ter comunicado essa regularização à Autora, obstando a que a Autora providenciasse em tempo útil pela emissão dos cheques que permitiriam o pagamento dos impostos; Incidiam penhoras sobre o imóvel, as quais eram desconhecidas da Autora e que subsistiam na data e hora designadas para a escritura; Faltava um documento essencial para a realização da escritura: a ficha técnica; Ficou acordado entre o gestor de negócios e o Réu que a escritura se realizaria depois de 22 de janeiro de 2015, mas apesar da Autora ter tentado contactar o Réu, não obteve resposta; Em 19 de janeiro de 2015, o Réu havia enviado à Autora carta resolvendo o contrato-promessa; Pende ação administrativa relativa ao imóvel, se não for julgada a inutilidade superveniente da lide pode-se inviabilizar o pedido de execução específica; A conduta do Réu causou danos à Autora, quer psicológicos, quer com a frustração de recebimento de contrato de arrendamento que já estava prometido, com despesas de estadia e deslocação e despesas com processo para obtenção do visto e perda de projeto de investimento.»

B) O Réu contestou, invocando para esse efeito (de acordo a súmula elaborada pela primeira instância, sentença a fls. 409-410):

«A litigância de má-fé da Autora na celebração e execução do contrato; Em data anterior a 31 de agosto de 2014 entregou á sociedade imobiliária certidão de extinção de dívidas fiscais e da Câmara Municipal de ... que dispensava a ficha técnica; O contrato definitivo não se realizou nessa data, porque a Autora não tinha as quantias necessárias para o pagamento do preço; O aditamento previa como data limite o dia 15 de janeiro de 2015 para a celebração do contrato definitivo; A Autora não pagou nas respetivas datas as quantias acordadas nas alíneas b) e c) da cláusula 2ª do aditamento; Em 17-10-2014 a Ré comunicou a resolução do contrato, resolução que veio a revogar; A Autora não pagou juros e despesas a que se obrigara; Em 15.1.2015 a Autora reunia todas as condições necessárias para a realização da escritura pública: entregou todas as certidões para cancelamento de todas as penhoras que incidiam sobre o imóvel; entregou o distrate relativo às hipotecas e entregou a certidão da Câmara Municipal de ..., com a dispensa de apresentação da ficha técnica; mais pagou todos os impostos, que permitiram a emissão das guias relativas ao IMT, a cargo da Autora; Nessa data a Autora não tinha meios financeiros para pagar ao Réu, nem para pagar os impostos devidos a título de IMT; O Réu tinha consigo, no Cartório Notarial (a 15.01.2015) as certidões emitidas pelo Serviço de Finanças de ... para cancelamento das referidas penhoras e os respetivos originais; Conforme acordado os cancelamentos das penhoras seriam apresentados imediatamente antes da celebração da escritura; A Autora autocolocou-se em incumprimento, agindo em manifesto abuso de direito por venire contra factum proprium – art. 334º do código Civil; a Autora não compareceu no Cartório Notarial, no dia 15.01.2015, nem deu prévio conhecimento ao R. dum pretenso representante indicado no artigo 37º da petição inicial – “gestor de negócios Dr. CC”, que desconhecia, e ainda ignora, por completo; A Autora sabia antecipadamente que não se realizaria a escritura publica de compra e venda; A ficha técnica da habitação era dispensável; O gestor de negócios Dr. CC não tinha em depósito dinheiro para pagar a preço da compra e venda; O Réu aceitou que a escritura se realizasse no dia 16 de janeiro ou 19 de janeiro, mas o gestor de negócios afirmou que ia à China tentar obter o dinheiro, pelo que o Réu afirmou que ia pensar; O Réu resolveu o contrato por carta expedida a 19-1-1015, que a Autora recebeu a 26-1-2015.»

Conclui pelo julgamento da acção como improcedente por não provada, com absolvição do réu da instância e dos pedidos; a condenação da Autora por abuso de direito, culpa in contrahendo e litigância com patente má fé; a condenação da Autora na compensação dos danos patrimoniais e morais causados e reembolso de todas as despesas suportadas nos autos; assim como a condenação em custas, procuradoria, taxas de justiça e demais encargos legais.

C) DD veio requerer a sua intervenção principal espontânea activa, associado à Autora como parte principal, por ser casado com esta; tal requerimento foi deferido e admitida a respectiva intervenção processual (fls. 274).

D) No decurso da instância, foi depositado o valor de 111.500,00 € relativo ao preço em falta, em execução de despacho que o determinou (fls. 274). Foi registada a acção, uma vez que se peticionava a execução específica. Foi apresentada ficha técnica de habitação do imóvel.
E) A instância observou a tramitação normal, realizou-se a audiência prévia, foi fixado o valor à causa, elaborado despacho saneador tabular, identificado o objecto do litígio e fixados os temas da prova.

Concluída a audiência final de discussão e julgamento, foi proferida sentença que, declarando os factos provados e os não provados e contendo a respectiva motivação, decidiu, sendo relevante nos autos “apurar se o Réu incumpriu o contrato celebrado entre as partes e as consequências desse incumprimento, nomeadamente quanto à execução específica e à produção de danos indemnizáveis, resolução do contrato e restituição do sinal em dobro” e ainda “apreciar se se verifica abuso de direito” (sentença, que faz fls. 410), julgar (com manifesto lapso de escrita quanto à identidade da Autora e do Interveniente Principal):

“a ação parcialmente procedente, por provada, e em consequência:

a) comprovado que seja o cumprimento das obrigações fiscais competentes ou isenção das mesmas, declarar, em substituição do Réu BB, a transmissão do direito de propriedade sobre o prédio urbano, sito na Rua ..., N.º …, descrito sob o nº …, na Conservatória do Registo Predial de ... e inscrito, sob o artigo …, na matriz predial urbana das freguesias de ... e ...[,] para a Autora DD, casada com o interveniente principal AA.

Determina-se a entrega da parte do preço depositada nos autos ao Réu.

Absolve-se o Réu de todo o mais peticionado.

Custas da ação pela Autora e Réu, na proporção de 29% para a primeira e o restante para o Réu.”

F) Inconformada com tal decisão, o Réu interpôs recurso de apelação para o Tribunal da Relação de Lisboa (TRL).

G) O Tribunal da Relação de Lisboa modificou uma parte da matéria de facto considerada provada pela 1.ª instância:

1. alterou a redacção dos factos provados sob os n.os 27, 29 e 33 nos seguintes termos (sublinhamos no que importa):
27° - Sobre o prédio prometido vender, recaíam várias penhoras, resultantes de dívidas fiscais, inscritas pela Ap. 4527 de 2009/07/24 processo executivo 1503200801205323; Ap. 4299 de 2010/11/11 processo n.° 1503200901253913; Ap.2907 de 2011/03/15,processo n.° 3123200101025724; Ap. 1902 de 2013/12/02, processo n° 150 3200801205323, cujas inscrições subsistiam na data e hora designadas para a escritura (15/01/2015), tendo porém o réu entregue no cartório notarial os documentos necessários ao cancelamento desses registos[1];
29° - Apesar da impossibilidade da outorga da escritura, o réu e o gestor de negócios da autora, em nome desta, acordaram verbalmente no dia 15-1-2015 em realizar a escritura pública de compra e venda em data a combinar no dia 23 de Janeiro de 2015.[2];
33° - Em 28 de Janeiro de 2015, a Autora remeteu uma carta registada com aviso de recepção para as várias moradas do Réu, comunicando-lhe o incumprimento do contrato promessa de compra e venda, afirmando que os factos que lhe eram exclusivamente imputáveis, conforme documento de fls. 86 e 87 dos autos, cujo teor se dá por reproduzido.[3];

2. alterou os factos não provados n.os 21 e 24, passando a considerar-se provado sob os n.os 40 e 41 o seguinte:

40° - Em 15/01/2015, por ocasião da realização da escritura, o gestor de negócios da autora, CC, não tinha na sua posse cheques bancários ou cheques visados para pagamento do preço do imóvel em falta, conforme comunicou ao réu;

41° - Na cláusula 1a do aditamento ao contrato promessa o promitente-vendedor, ora réu, pretendeu estipular uma data derradeira, improrrogável para a celebração da escritura.

Com base na restante factualidade provada, julgou improcedente a apelação e confirmou a decisão recorrida, sem voto de vencido, com a seguinte fundamentação de direito:

“Na apelação está, desde logo, em causa a questão de saber se alguma das partes incumpriu o contrato-promessa celebrado no dia 01/05/2014, com o aditamento de 12/09/2014, e se foi convencionado prazo fixo para a celebração do contrato definitivo.      Como é sabido, o incumprimento definitivo do contrato-promessa pode verificar-se em consequência de uma, ou mais, das seguintes situações:
1a Decurso do prazo fixo essencial nele estabelecido;
2a Ocorrência de um comportamento do devedor que exprima inequivocamente a vontade de não querer cumprir o contrato;
3a Ter o credor, em consequência da mora do devedor, perdido o interesse que tinha na prestação (art. 808º, n.os 1, 1ª parte, e 2 do C.C.);
4a Encontrando-se o devedor em mora, não realizar a sua prestação dentro do prazo que razoavelmente lhe for fixado pelo credor (art. 808º, n.º 1, 1ª parte, do C.C.).

Posto isto, vejamos se o contrato-promessa cessou findo o prazo nele estabelecido, ou se tal prazo era meramente indicativo, como se decidiu na sentença recorrida.
Escreveu-se aí que:

"Na cláusula primeira do aditamento do contrato promessa as partes acordaram que "acordam em proceder ao alargamento do prazo estipulado para a celebração da escritura publica de compra e venda do imóvel identificado nos considerandos do presente contrato, fixando a data limite para a sua realização no dia 15 de Janeiro de 2015".
"O termo essencial subjectivo pode ser expresso – se a essencialidade é expressamente clausulada – ou tácito – se a essencialidade deriva de especiais circunstâncias do contrato, conhecidas de ambas as partes; e a essencialidade pode ser absoluta – no caso de o termo fixado constituir o prazo-limite, improrrogável, para o inadimplemento, implicando a sua não observância o incumprimento definitivo da obrigação, fundamento imediato da resolução – ou relativa – se o desrespeito do termo constitui apenas fundamento do direito de resolução para o credor, que pode recusar a prestação ou exigir o cumprimento retardado.
Na dúvida sobre o carácter absoluto ou relativo do termo essencial subjectivo deve este ser havido como relativo." cf Acórdão STJ de 21-05-2009 no processo 09B0641.
Aqui se esclarece: "Quanto ao termo: o prazo da prestação não é, em regra, um elemento essencial na economia do contrato, o que justifica que a simples mora, o atraso no cumprimento, não seja, só por si, fundamento de resolução.
Casos há, porém, em que, pela própria natureza da prestação, o cumprimento desta fora do prazo implica o imediato desaparecimento da sua utilidade para o credor: assim sucede, v.g., no caso do contrato que tenha por objecto o fornecimento de um copo-de-água para uma festa.
Estamos, nestes casos, perante um termo essencial objectivo, que se acha objectivamente integrado ou consolidado na própria prestação, de tal modo que, transcorrido o termo, a prestação se torna impossível.
Mas a essencialidade do termo pode resultar de convenção, expressa ou tácita, dos contraentes: no momento da celebração do contrato estes determinam como essencial o termo fixado. Estamos, nesse caso, perante um termo essencial subjectivo.
(…)
Assim, para se descobrir o sentido a dar a esta cláusula há que recorrer às normas de interpretação das declarações negociais, atendendo quer aos dizeres da própria cláusula, quer às circunstâncias em que foi efectuada quer todos os demais elementos concomitantes que nos aproximem da vontade que pretenderam expressar.

Nos termos do artigo 236° [corrigimos a versão original: 238º] nº 1 e 2 do Código Civil a declaração negocial vale, em regra, com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, excepto se este não puder razoavelmente contar com esse sentido ou se o declaratário conhecia a vontade real do declarante (valendo então esta vontade). Acresce que nos negócios onerosos deve dar-se prevalência ao sentido que conduzir ao maior equilíbrio das prestações (artigo 237° do Código Civil).

Ora, nada na cláusula inculca que se concedeu uma gravidade especial (para além da constituição em mora) da "data limite fixada para o dia 15 de Janeiro de 2015 para a realização do contrato”): não se incluiu ali qualquer indicação da importância desse prazo para além de se fixar o terminus do prazo. Não se diz que é improrrogável, que ultrapassado o contrato deixa de subsistir, ou sob pena de imediata resolução.

A mera inclusão na cláusula da palavra "limite" na cláusula não permite que se tire tão grave consequência da ultrapassagem desse dia, sem qualquer outro elemento que aponte para tal importância do prazo na economia do contrato.

Veja-se que no presente caso, a escritura não se veio a realizar na primeira data, porquanto a Autora não tinha então a totalidade das quantias necessárias para o pagamento do preço (37 da matéria de facto provada), o que as partes solucionaram mediante a celebração de um aditamento ao contrato-promessa; no próprio dia 15 de janeiro de 2015, data designada para o contrato definitivo, as partes acordaram em fixar nova data para a sua celebração no dia 23-1-2015 e nenhuma razão objetiva foi apresentada para que o Réu se desinteressasse da venda caso a mesma não tivesse lugar até esse dia 15 de janeiro de 2015.
Assim, tendo o contrato sido prorrogado para além da primeira data designada, tendo as partes acordado na sua prorrogação na data constante do aditamento ao contrato promessa e nada, no contrato ou nas circunstâncias que o rodearam, indicando que o prazo fosse tão taxativo que algumas das partes pudesse, por razões objetivas, perder as vantagens que lhe adiriam da celebração do contrato com o seu retardamento (por período razoável), não se pode concluir que se está perante um termo essencial".

Como é sabido, e se salientou naquela decisão, a convenção de um prazo para o cumprimento de um contrato não tem sempre o mesmo alcance e significado.

Assim, enquanto nas chamadas obrigações de prazo fixo essencial absoluto (de "prazo fatal"), o decurso do prazo sem o devido cumprimento pode determinar, sem mais, a sua extinção, nas de prazo fixo relativo, simples ou usual o decurso do prazo poderá fundamentar o direito de resolução.
Importa, por isso, averiguar o significado do prazo certo fixado pelas partes, com o objectivo de surpreender a presença ou não da essencialidade subjectiva do «termo fixado como característica inerente ao contrato, e na sua projecção no acordo celebrado», o "que terá de ser «deduzido» do material interpretativo fornecido pelas partes, da natureza da promessa, do comportamento posterior dos promitentes ou de outras circunstâncias adjuvantes" (J. C. BRANDÃO PROENÇA, "Do Incumprimento do Contrato-Promessa Bilateral", 110), sendo que, se estivermos perante um «termo fixo essencial» a resolução está automaticamente legitimada, enquanto se se tratar de um «termo relativamente fixo» a resolução é legítima se verificados os respectivos requisitos gerais (arts. 808.° e 801.° e 802.°, cits) — cfr. Ac do STJ de 29-11-2006, acessível em www.dgsi.pt.
Nesta matéria, as partes estabeleceram na cláusula 3a, n.° 1, do contrato-promessa que a escritura de compra e venda deveria "ser celebrada até 31 de Agosto de 2014".
Não tendo a escritura sido celebrada até essa data, porque a autora não tinha então a totalidade das quantias necessárias para o pagamento do preço, mas porque se mantinha o interesse das partes na celebração do contrato definitivo, foi no dia 12 de Setembro de 2014 acordada a celebração de um aditamento ao contrato promessa.
Nesse aditamento acordaram "em proceder ao alargamento do prazo estipulado para a celebração da escritura pública de compra e venda do imóvel (...), fixando a data limite para a sua realização no dia 15 de Janeiro de 2015" – cláusula primeira.
Ficou ainda acordado manter o preço global da venda e que, para além do montante já pago de € 73.500,00, a autora pagaria ao réu, mediante cheques bancários: até 30 de Setembro de 2014, a título de reforço de sinal, e por conta do preço o montante de €250.000,00 (duzentos e cinquenta mil euros); até 31 de Outubro de 2014, a quantia de € 100,000, 00 (cem mil euros), igualmente a título de reforço de sinal e por conta do preço; até 30 de Novembro de 2014, a quantia de € 100,000, 00 (cem mil euros) igualmente a título de reforço de sinal e por conta do preço; até 31 de Dezembro de 2014, a quantia de € 100,000,00 (cem mil euros) igualmente a título de reforço de sinal e por conta do preço; a parte remanescente do preço, ou seja, a quantia de €115.000,00, no dia da celebração da escritura de compra e venda.
E na cláusula 3a estabeleceu-se que o incumprimento de algum dos pagamentos previstos na cláusula anterior implicará a resolução imediata do contrato, sem direito a reembolso dos valores entregues até essa data.
Estabeleceram assim uma condição resolutiva de funcionamento automático.
Mais se apurou que o réu (promitente-vendedor) pretendeu estipular uma data derradeira, improrrogável para a escritura.

Não se tendo apurado qual a vontade da autora (promitente-compradora) e se esta conhecia a essencialidade do prazo para o promitente-vendedor, importa recorrer às regras da interpretação da declaração negocial desta (art. 236º, n.º 1, do CC).

Nesta sede importa atentar na diferente redacção dada no contrato-promessa e no aditamento a este: enquanto no 1º se exarou que a "escritura pública deverá ser celebrada até 31 de Agosto de 2014", no aditamento exarou-se que "os outorgantes acordam em proceder ao alargamento do prazo estipulado para a celebração da escritura pública de compra e venda do imóvel (...), fixando a data limite para a sua realização no dia 15 de Janeiro de 2015".

A apontada diferença de redacção dada à cláusula relativa à data da realização da escritura, com o estabelecimento no aditamento da expressão "fixando como data limite para a sua realização" e o estabelecimento de uma cláusula resolutiva automática em caso de não pagamento até às datas limites previstas de diversas parcelas do preço, inculcam a ideia num declaratário normal que no aditamento ao contrato-promessa se estabeleceu um prazo fixo essencial.

Acontece, porém, que se provou que na data limite designada para a escritura pública de compra e venda (dia 15/01/2015), esta não veio a ser celebrada e que, apesar da impossibilidade da outorga da escritura, o réu e a autora, através do seu gestor de negócios, acordaram verbalmente no dia 15-1-2015 realizar a escritura em data a combinar no dia 23 de Janeiro de 2015.

A aludida conduta do gestor de negócios da autora foi ratificado por esta, como se infere, de resto da carta datada de 28/01/2015 remetida ao réu e do próprio teor da p.i. (arts. 471º e 268º do CC).

Significa isto que as partes relativizaram o prazo limite contratualmente fixado para efeitos de celebração da escritura pública de compra e venda e pagamento do remanescente do preço, tendo acordado na sua prorrogação.

Daqui decorre, como se salienta na sentença recorrida, que: "(...) mesmo que se imputasse à Autora a exclusiva culpa pela não realização da escritura no dia 15 de Janeiro de 2015, tal falta apenas a colocaria em mora.

Cumpria, pois, ao Réu, querendo transformar a mora em incumprimento definitivo, efectuar-lhe notificação admonitória, concedendo-lhe prazo razoável para cumprir e apenas caso a mesma não cumprisse nesse prazo é que poderia resolver o contrato, como supra se explanou.
Não foi isso que aconteceu.

O Réu imediatamente (decorridos quatro dias, embora não recebida antes de dia 26 desse mês) remeteu carta resolvendo o contrato (com fundamento na falta de pagamento, pela Autora, quer do imposto quer do preço, inviabilizando a escritura)

Da mora/incumprimento definitivo:
Apurou-se que a autora só acedeu às guias de liquidação de imposto de selo e IMT entre as 16 e as 17h do dia designado para a escritura, após a representante da agência imobiliária, EE, se ter deslocado ao Serviço de Finanças.
Nessa altura, em pleno acto da escritura, a autora não tinha condições para proceder ao pagamento dos impostos de selo e IMT.
Porém, como se entendeu na sentença recorrida, "não obstante as circunstâncias especiais do caso, deveriam os compradores ter consigo os fundos necessários para a realização da escritura e para pagamento dos impostos na mesma data.

O facto de a Autora não ter logrado obter as guias para o pagamento até à data da marcação da escritura, mas tão só naquela, não é causa justificativa para não ter consigo os fundos para o seu pagamento, cheque para o efeito ou que não o pudesse fazer por home banking.

Com efeito, não se demonstrou que foi por qualquer má-fé do Réu que a Autora estava impossibilitada de pagar o imposto até ao momento da escritura".

A autora entrou assim em situação de mora e não de incumprimento definitivo, visto as partes terem prorrogado o prazo para a celebração da escritura pública de compra e venda.

Refira-se ainda que, em face da alteração da matéria de facto operada por esta Relação, o réu não se encontrava também em situação de mora, pois que embora recaíssem várias penhoras sobre o imóvel, aquele havia entregue no cartório notarial os documentos necessários ao cancelamento desses registos.

Do que se deixa dito decorre que na data da celebração da escritura pública a autora encontrava-se em mora e o réu mantinha interesse na concretização da venda da fracção, pois que de outro modo não teria acordado em realizar a escritura em data a combinar no dia 23 de Janeiro de 2015.

E, como bem se frisa na sentença recorrida, o réu não converteu em incumprimento definitivo a mora do autor, por via da interpelação admonitória  – art. 808º do CC.

De acordo com o estatuído no n.º 1, desse artigo, a mora só se converte em incumprimento definitivo se a prestação não foi realizada dentro do prazo que razoavelmente for fixado pelo credor.

Trata-se da interpelação admonitória, a qual, para produzir efeitos, deve conter uma intimação clara para cumprir, contendo a informação inequívoca de que o não cumprimento dentro daquele prazo terá a consequência de ter-se por não cumprida definitivamente a prestação.

Como assinala o Prof. Antunes Varela (…), este prazo terá de ser fixado em termos de claramente deixar transparecer a intenção do credor.
Não tendo o apelante agido desse modo, a mora da autora não se converteu em incumprimento definitivo.

E também não se apuraram factos objectivos demonstrativos da perda de interesse objectiva do promitente-vendedor na realização da prestação, não assistindo, por isso, ao réu o direito à resolução do contrato-promessa.

Ao resolver ilicitamente o contrato-promessa, o réu denotou o propósito de não cumprir o mesmo.

A resolução infundada equipara-se assim ao incumprimento definitivo (Acórdão do STJ de 09­09-2014, relatado pelo Cons. Mário Mendes, acessível em www.dgsi.pt).

Tal incumprimento presume-se culposo (art. 799°, n.°1, do CC), presunção essa que o réu não ilidiu.

Por último, refira-se que não resultam dos autos quaisquer elementos donde se possa inferir ter a autora litigado de má fé (art. 456°, do CPC) ou agido de forma abusiva, na modalidade do venire contra factum proprium.

Como se refere na sentença recorrida, "(...) o facto de já uma vez, anteriormente, em agosto, a escritura não se ter realizado, dessa feita assumindo a Autora a total responsabilização por essa demora, não permite ao Réu, que aceitou tal adiamento, com a contrapartida de ter recebido a maior parte do preço, vir agora, sem razão plausível, buscar tal argumento para encontrar um incumprimento definitivo.
(…)

Assim, sendo certo que a Autora não pautou o seu comportamento pela pontualidade imposta pelo artigo 406º n° 1 do Código Civil, certo é também que os atrasos até o dia 19 de Janeiro de 2015 foram tendo a compreensão do Réu, mediante acordos que o foram compensando, com reforços de sinal e a assunção pela Autora de eventuais despesas adicionais que destes atrasos adviessem.

Não se provou qualquer má-fé da Autora ou um venire contra factum proprium, apenas se verifica que, simplesmente, a mesma entrou em mora no cumprimento da sua obrigação".


Efectivamente, na modalidade de "venire contra factum proprium", o abuso de direito caracteriza-se pelo exercício de uma posição jurídica em contradição com uma conduta antes assumida ou proclamada pelo agente. Deste modo, para que se possa dar por criada uma situação objectiva de confiança torna-se necessário que alguém pratique um facto — o factum proprium — que, em abstracto, seja apto a determinar em outrem uma expectativa da adopção, no futuro, de um comportamento coerente ou consequente com o primeiro e que, em concreto, gere efectivamente uma tal convicção.
Ora, não se provou ter a autora criado no réu uma situação de confiança, traduzida na boa fé própria da pessoa que acredite numa conduta alheia (no factum proprium), no sentido de que não exerceria o direito à execução específica do contrato-promessa.
Ademais, ao exercer esse direito, a autora não está a tirar partido do facto de ter entrado numa situação de mora, mas tão-só, do incumprimento definitivo do contrato-promessa por parte do réu.
Ao fazê-lo não ofende, e muito menos de forma clamorosa, os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico do direito, não actuando de forma abusiva – art. 334º do CC.
Refira-se ainda que caso se entendesse inexistir decisão implícita a desatender o pedido de condenação da autora como litigante de má fé, caso em que caberia a esta Relação substituir-se ao tribunal a quo e conhecer desse pedido, sempre o mesmo seria de julgar improcedente.”

 Concluiu-se a final:

“Em face do incumprimento definitivo do contrato-promessa por parte do réu, e mantendo a autora interesse na execução do contrato, assiste a esta o direito de execução específica do contrato-promessa nos termos definidos na sentença — arts. 442°, n.° 3, e 830°, n.° 1, do CC.”

A decisão foi sumariada nos seguintes termos:

1. Desconhecendo-se qual a vontade da promitente-compradora e se esta conhecia a essencialidade do prazo para o promitente-vendedor, importa recorrer às regras da interpretação da declaração negocial daquela (art. 236º, n.º 1, do CC).

2. A interpelação admonitória, para produzir efeitos, deve conter uma intimação clara para cumprir, contendo a informação inequívoca de que o não cumprimento dentro daquele prazo terá a consequência de ter-se por não cumprida definitivamente a prestação.

3. A resolução infundada equipara-se ao incumprimento definitivo.

H) Ainda inconformado, o Réu/Recorrente interpôs, a título principal, o presente recurso de revista normal, e, a título subsidiário, recurso de revista excepcional, com as seguintes conclusões:

I – DA ADMISSIBILIDADE DO RECURSO DE REVISTA
1. Não obstante a existência de duas decisões judiciais, a da primeira instância e do Tribunal da Relação de Lisboa, proferidas no sentido de deferir, parcialmente, o pedido e condenar o Réu nos mesmos termos, a verdade é que não se verifica uma situação de dupla conforme;
2. Nos termos do art. 671.º n.º 3 do CPC, o recurso de Revista para o STJ será admitido sempre que, não obstante a decisão de segunda instância, sem voto de vencido, manter o sentido da decisão proferida em primeira instância, [que o recurso será admitido quando] as decisões assentem em fundamentação essencialmente diferente;
3. Nos presentes autos, a decisão do Tribunal da Relação de Lisboa alterou o conteúdo dos factos considerados provados nos pontos 27 e 29 e acrescentou dois factos que haviam sido julgados como não provados, alterando, dessa forma, o quadro factual referente à questão da não realização da escritura de compra e venda no dia 15 de Janeiro e das causas dessa não realização.
4. Sendo certo que nos presentes autos se pretende aferir o sentido e efeito da não realização da escritura – mora ou incumprimento – as alterações operadas revelam-se significativas e conduziram a fundamentação distinta;
5. Também a matéria de direito que justificou uma e outra decisão assenta em pontos de partida distintos, a primeira instância considerou que a cláusula aditada ao contrato não configurava uma condição resolutiva e que, por isso, o promitente vendedor, perante a não realização da escritura, deveria proceder a interpelação admonitória, para transformar a mora em incumprimento definitivo, enquanto a Relação entendeu que haveria essa condição resolutiva, mas que fora relativizada na data da escritura;
6. As decisões foram proferidas em termos essencialmente diferentes, não tendo havido uma situação de dupla conforme, o que justifica a possibilidade de recurso de Revista para o STJ;

Não sendo admitida o recurso de revista, por verificação de dupla conforme,

“II – DO RECURSO DE REVISTA EXCEPCIONAL
7. Sempre deverá ser admitido a revista excepcional, nos termos do art.  672.° n.° 1 a) do CPC, por estarem em discussão questões cuja apreciação se torna necessária para melhor aplicação do direito, em  conformidade com aquele que tem sido o douto entendimento do STJ, para admissão deste tipo de recurso;
8. A primeira questão de relevância essencial para o direito e sua boa aplicação, centra-se na diferença entre as situações de mora e de incumprimento definitivo, nomeadamente saber se aquele que incumpre o contrato  promessa,  após  uma  primeira  verdadeira  interpelação admonitória, não passará a estar em incumprimento definitivo, ou se se exige ao outro promitente uma nova interpelação dessa natureza;
9. A segunda questão relevante prende-se com a natureza e forma de aprovação de actos praticado pelo gestor, por parte do interessado, nomeadamente se essa aprovação se pode inferir ou se tem de ser praticada por declaração negocial expressa e inequívoca e se a mesma pode ser efectuada após o contrato em relação ao qual se refira já ter sido resolvido pela outra parte, no fundo, a boa interpretação e aplicação do art. 268.° do CC;
10. A terceira questão de particular relevância está relacionada com as regras, os limites e os efeitos da actuação contrária às regras da boa fé, nomeadamente saber se é legítimo a um promitente faltoso, que não outorga a escritura do contrato prometido e se mantém em silêncio sobre o estar em condições de o fazer e de o pretender fazer, se após a resolução do contrato, por parte do outro promitente, pode obter decisão de execução específica do contrato, tudo à luz do art. 334.º do CC;

III – DOS FUNDAMENTOS DO RECURSO
11. O fundamento principal do recurso ora interposto assenta na discordância com a decisão do Tribunal da Relação de Lisboa que entendeu que haveria uma situação de Mora, quando o autor, na qualidade de promitente comprador, no dia 15 de Janeiro de 2015, não outorgou o contrato prometido, por se entender que o que ocorreu, em bom rigor, revela uma verdadeira situação de incumprimento definitivo;
12. No contrato promessa outorgado entre as partes, ficou definida uma primeira data para outorga da escritura de compra e venda, 31 de Agosto de 2014, ao não estar em condições para adquirir o imóvel nessa data, o promitente comprador constituiu-se em mora;
13. Perante a não realização da escritura na data inicialmente prevista, por facto  imputável ao  promitente  comprador,  as  partes  outorgaram aditamento ao contrato, fixando, por imposição do promitente vendedor, nova cláusula em relação à data, que agora estipularam como data limite, valendo a mesma coma condição resolutiva de funcionamento automático, a qual tem o significado de interpelação admonitória do promitente vendedor para o promitente comprador;
14.Contendo a mesma todos os requisitos para  valer enquanto  tal, nomeadamente, a intimação para cumprimento da obrigação em falta, com fixação de prazo peremptório para o efeito, determinando, por conseguinte, que a obrigação se tornaria definitivamente por incumprida se não fosse realizada no novo prazo e tendo sido efectuada após a mora;
15. Ao não reunir as condições para a realização da escritura, na nova data agendada, mormente as condições económicas para pagamento do preço e pagar os encargos, bem sabendo que aquela era a data limite para o efeito, o promitente comprador constituiu-se em incumprimento definitivo;
16. Tendo o autor, na qualidade de promitente comprador, depois de interpelação pela clausula contratual para a efeito, tornado impossível a realização da escritura, por não dispor de meios para pagamento do preço, a sua conduta transformou-se em incumprimento definitivo;
17. 1n casu, nem a este promitente vendedor se poderia exigir que procedesse a nova interpelação admonitória, para poder justificar a perda do  seu  interesse  na  concretização  do  negócio,  nem  este promitente comprador, atenta a sua atitude inadimplente reiterada, se pode conceder o beneficio de perpetuar a interpretação da sua atitude como sendo uma simples mora;
18.O réu recorrente não pode aceitar a interpretação do Tribunal a quo, que entendeu que o facto de autor e réu, perante a impossibilidade de a escritura se realizar na data aprazada, terem equacionado a hipótese de a realizar noutra, nos dias subsequentes, que reconheceram, entre si, que não haveria uma situação de incumprimento definitivo, porquanto considera que o dia 15 de Janeiro de 2015, constituía já a data derradeira  para  outorga  do  contrato,  na  sequência  da  verdadeira interpelação admonitória, traduzida na cláusula ínsita no aditamento ao contrato;
19. O facto de ter equacionado a possibilidade de a escritura ser realizada noutro dia, não significa que o promitente vendedor fique impossibilitado de considerar o contrato definitivamente incumprido, até porque, não podia uma declaração de uma parte, afastar uma cláusula escrita;
20. A principal discordância do recorrente perante a decisão do Tribunal da Relação de Lisboa, centra-se em rejeitar que tenha havido um acordo entre o promitente vendedor (réu) e o gestor de negócios do promitente comprador para agendar a escritura para outra data, que esse acordo tenha sido ratificado pelo autor e que tenha significado o relativizar da data limite fixada como condição resolutiva;
21. A primeira objecção a esta conclusão, que, na opinião do recorrente a inquina de forma irremediável, prende-se com o facto de não se poder admitir de um pretenso acordo verbal, ainda por cima aferido por se aferir que era esse o entendimento, não se pode provar por prova testemunhal, carecendo do respeito pela forma escrita exigida para o contrato em causa;
22. Desde logo, porque aquele que actuou no interesse do autor não estava investido da qualidade de gestor de negócios, na medida em que estava autorizado pelo autor para actuar desse modo, não se preenchendo os requisitos do art. 464.º do CC;
23. Também porque o autor não ratificou tal actuação, não tendo os actos que praticou preenchido as pressupostos da uma ratificação, a qual não se pode inferir de actos que não contêm nenhuma menção nesse sentido, sob pena de violação do art. 268. do CC;
24. Para além de, qualquer ratificação não poder ser feita por pessoa diferente daquele que é o beneficiário do acto, devendo ser feita pelo próprio, atento o carácter intuito personae da mesma;
25. Por outro lado, tal ratificação seria inútil porque realizada após o destinatário do acordo já ter, entretanto, procedido a resolução do contrato — o que significa que o acto de combinação de reagendamento da escritura não foi ratificado pelo autor, não podendo produzir efeitos na sua esfera jurídica
26. O recurso ao direito a exigir a execução específica do contrato promessa, por parte do autor, promitente comprador, depois de este não ter estado na escritura, não ter criado condições posteriores para a realização da escritura, não ter manifestado vontade de o fazer, apenas reagindo quando foi contactado para resolução do contrato, revela-se em manifesto abuso de direito, sendo, nos termos do art. 334.° do CC ilegítima;
27. Violando também o princípio to quoque, que impede tirar partido de uma situação de incumprimento ou de inadimplência;
28. O réu, promitente vendedor, [ao] aceitar ponderar a realização da escritura noutra data, não significa relativizar nem tirar efeito à cláusula que fixava a data limite, nem vincula o mesmo à necessidade de efectuar nova interpelação admonitória;
29. Aquele que no dia do prazo limite não  apresenta[m]  condições económicas para realização da escritura e que nos dias seguintes  nada  disse  ou  fez  para  oferecer garantias de  cumprir o  contrato promessa, pela sua omissão, confere condições à outra parte para perder o interesse na realização do negócio, sem que sobre este recaia a  necessidade  de  proceder  a  nova  interpelação,  operando,  por conseguinte, o incumprimento definitivo do contrato, de acordo com  o art. 808.º, n.º 1 do Código Civil;
30. A conjugação dos factos que antecederam e sucederam o fracasso da outorga da escritura do dia 15 de Janeiro de 2015, são factores suficientes para poder justificar a perda do interesse na outorga do contrato prometido e que, nos termos e para os efeitos do art. 808.º n.º 1 do CC, a mora se transformou em incumprimento definitivo, assistindo razão ao réu quando procedeu à resolução do contrato por incumprimento do devedor, ora autor.
Termos em que (…) deve o presente recurso de Revista ser julgado procedente e em consequência:
1. Ser revogado o Acórdão que julgou improcedente o recurso interposto pelo recorrente da decisão de primeira instancia e por conseguinte ser revogada a decisão de primeira instância que julgou procedente a acção de execução específica e condenou  o  réu à realização do contrato prometido;
2. Ser a decisão substituída por outra que julgue a acção intentada pelo autor totalmente  improcedente e que considere que houve um incumprimento definitivo do contrato promessa por parte do promitente comprador e que o contrato se considera resolvido por carta enviada pelo promitente vendedor, com a consequente perda do sinal pago.”

I) O recorrido apresentou contra-alegações nas quais defendeu a inadmissibilidade e a improcedência do recurso, defendendo, em síntese, que (i) se verifica um caso de “dupla conforme” que obsta ao conhecimento do recurso de revista normal (art. 671º, 3, CPC), e não se verifica o preenchimento do art. 672º, 1, al. a), CPC, uma vez que o recorrente “limita-se a discordar das decisões condenatórias, sem invocar questões que possam preencher o normativo” e “pretende ver analisadas questões nunca antes alegadas, nomeadamente, a validade da vontade expressa oralmente pelas partes e a nulidade por falta de forma, nem concretamente apreciadas, ponderadas e decididas”, o que frustra o conhecimento do recurso de revista excepcional, pugnando a final pela manutenção da decisão recorrida.

J) O Senhor Juiz Relator do Tribunal da Relação recorrido admitiu o recurso de revista nos termos do art. 671º, 1 e 3, do CPC, através de despacho com o seguinte conteúdo (que faz fls. 629):

Não sem algumas dúvidas, entendemos que a fundamentação vertida na sentença e no acórdão por nós proferido é essencialmente diferente, pois que neste, ao contrário daquele, se entendeu que o prazo fixado no aditamento ao contrato-promessa é absoluto e que a não realização da escritura pública é imputável apenas ao autor”.

Apresentados os autos nos termos do art. 672º, 5, do CPC, para «exame preliminar», e colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir em Conferência.

II. APRECIAÇÃO DO RECURSO E FUNDAMENTAÇÃO

A questão prévia da admissibilidade do recurso

1. O processo n.º 526/15.1T8CSC.L1 versa sobre o incumprimento de um contrato--promessa de compra e venda de imóvel (sinalizado em antecipação de pagamento), por força da (assim qualificada pelas instâncias) resolução ilícita por uma das partes, e a consequente declaração judicial, por força de execução específica e em substituição do promitente faltoso, da transmissão do direito de propriedade cuja transmissão se prometera.
No seu requerimento de interposição de recurso, o Réu/Recorrente, no pedido principal referido à revista normal, refere o art. 671º, 3, do CPC para sustentar que a decisão recorrida da Relação de Lisboa, na parte em que confirma a decisão da primeira instância, usa fundamentação diferente. Assim seria uma vez que “alterou o conteúdo dos factos considerados provados nos pontos 27 e 29 e acrescentou dois factos que haviam sido julgados como não provados, alterando, dessa forma, o quadro factual referente à questão da não realização da escritura de compra e venda no dia 15 de Janeiro e das causas dessa não realização”, “[s]endo certo que nos presentes autos se pretende aferir o sentido e efeito da não realização da escritura – mora ou incumprimento – as alterações operadas revelam-se significativas e conduziram a fundamentação distinta”. Por outro lado, “[t]ambém a matéria de direito que justificou uma e outra decisão assenta em pontos de partida distintos, a primeira instância considerou que a cláusula aditada ao contrato não configurava uma condição resolutiva e que, por isso, o promitente vendedor, perante a não realização da escritura, deveria proceder a interpelação admonitória, para transformar a mora em incumprimento definitivo, enquanto a Relação entendeu que haveria essa condição resolutiva, mas que fora relativizada na data da escritura”. Afirma a terminar que as decisões “foram proferidas em termos essencialmente diferentes, não tendo havido uma situação de dupla conforme, o que justifica a possibilidade de recurso de Revista para o STJ”.

O Autor/Recorrido opôs-se a esse entendimento viabilizador do presente recurso e pugnou pela existência de “dupla conforme”, sem fundamentação essencialmente diferente no “núcleo jurídico fundamentador”, das duas decisões judiciais anteriores. Em particular, destacou:

“ao contrário do alegado pelo recorrente (…), a decisão da primeira instância não foi outorgada com base no pressuposto da culpa de tal situação (da não outorga da escritura no dia 15/01/2015) ser imputável ao réu. (…) a vontade das partes foi estabelecer nova data – o que o Réu incumpriu declarando resolver o contrato promessa afirmando, assim, a sua intenção em incumpri-lo”;

“O Tribunal da Relação de Lisboa veio confirmar que o Recorrente manifestou a intenção de marcar nova data para a realização da escritura pública, a combinar no dia 23 de Janeiro, mantendo o interesse na concretização da venda (tal como doutamente decidido pela 1ª instância), e que não converteu em incumprimento definitivo a mora da autora, por via da interpelação admonitória – tal como também decidido em primeira instância!”;

“o pressuposto/facto essencial para as iguais doutas decisões de Direito é o facto provado número 29: Apesar da impossibilidade da outorga da escritura, o réu e o gestor de negócios da autora, em nome desta, acordaram verbalmente no dia 15-1-2015 em realizar a escritura pública de compra e venda em data a combinar no dia 23 de Janeiro de 2015.

            Sem prejuízo de outros fundamentos, assiste razão ao Recorrido.

  2. Tendo o acórdão da Relação, em sede de recurso de aplicação, confirmado a decisão da primeira instância, e não havendo voto de vencido, o acesso ao STJ é, em princípio, vedado pelo disposto por esse art. 671º, 3, ou seja, pela existência da denominada “dupla conforme”. Só não será assim se o acórdão recorrido, apesar de ter decidido de forma coincidente, tiver utilizado fundamentação essencialmente diferente daquela que foi usada pela primeira instância (e desde que não se integre o caso numa das hipóteses elencadas no art. 629º, 2, do CPC (“é sempre admissível recurso”) e salvaguardadas no corpo do art. 671º, 3, do CPP (“Sem prejuízo dos casos em que o recurso é sempre admissível (…)”).

Uma análise atenta leva-nos a julgar que, pelo confronto das duas decisões, não existe discrepância significativa entre a decisão da primeira instância e a decisão recorrida, nem quanto aos fundamentos jurídicos invocados nem quanto à base factual em que se sustentam – o que conduz ao preenchimento do aludido bloqueio recursório da “dupla conformidade decisória”.

2.1. Não obstante as partes, aqui Recorrente/Réu e Recorrida/Autora, se terem colocado de acordo quanto ao alargamento do prazo estipulado para a outorga da escritura pública de compra e venda do imóvel prometido vender, fixando, em aditamento ao contrato-promessa originariamente convencionado, uma nova data limite (15 de Janeiro de 2015 = termo certo impróprio[4]) para essa celebração solene da compra e venda prometida (com a previsão até lá de novos pagamentos ulteriores de sinal “por conta do preço” acordado), o certo é que, nessa data, as partes – o Réu e a Autora, esta através de gestor de negócios actuante em seu nome[5] e com actuação por si ratificada[6], chegaram a um novo acordo (verbal): prorrogar a data constante do aditamento ao contrato-promessa e realizar a escritura pública em nova data a combinar no dia 23 de Janeiro de 2015 – facto este que ambas as instâncias concluíram em termos probatórios. Ora, independentemente da natureza jurídica desse novo prazo convencionado (até ao limite de certa data) para a celebração do contrato definitivo (termo essencial ou relativo na relação com a impossibilidade definitiva da prestação/incumprimento pela sua não observância e fundamento de resolução) e do juízo de imputabilidade pela não celebração da escritura pública nessa nova primeira data[7], ambas as instâncias coincidem no essencial para a dilucidação do resultado jurídico que principalmente se pretendia na acção

— a partir de 15 de Janeiro de 2015, a Autora, aqui Recorrida, estava numa situação de mora (ainda, portanto, na órbita de cumprimento do contrato-promessa);

— cumpria ao Réu, aqui Recorrente, converter a mora da contraparte em incumprimento definitivo, através da adequada interpelação admonitória e concessão de prazo razoável para cumprimento;

— não havendo cumprimento nesse prazo, a mora converter-se-ia em incumprimento definitivo e causa de resolução do contrato-promessa por parte do Réu, aqui Recorrente;

— a partir de 15 de Janeiro de 2015, o Réu, aqui Recorrente, manteve o interesse no cumprimento do contrato-promessa, pois, se assim não fosse, não teria acordado em celebrar o contrato prometido em data a combinar ulteriormente;

— a resolução declarativa extra-judicial operada pelo Reú, aqui Recorrente, quando a contraparte estava em situação de mora e não fora notificada para efeitos admonitórios, foi ilícita e equipara-se a incumprimento definitivo;

— tendo em conta o incumprimento definitivo do contrato-promessa por parte do Réu, aqui Recorrente, mantendo a Autora, aqui Recorrida, interesse na execução do contrato, tem de se reconhecer a esta o direito de execução específica do contrato-promessa nos termos legais (art. 830º, 1, 3, 410º, 3, 442º, 3, CCiv.).
No que aqui mais interessa, a manifestação de nova vontade negocial quanto à prorrogação da data de celebração da escritura pública (depois da frustração da data de 15 de Janeiro) sana (em rigor, relativiza) o relevo do termo anteriormente convencionado para essa celebração; dessa feita, tendo essa nova vontade como elo de ligação fundamental e ponto de partida comum, o enquadramento jusnormativo é partilhado nas duas instâncias[8], ou seja, simpliciter, numa primeira etapa, o cumprimento do contrato-promessa, ainda que perturbado pela situação de mora do promitente-comprador, e, numa segunda etapa, o incumprimento do promitente-vendedor, por força da resolução infundada e ilegítima, que funda o recurso à execução específica. Assim sendo, verifica-se “a coincidência fundamental do decidido na 1ª instância e na Relação [que] torna plausível a adequação e legalidade substantiva da solução normativa alcançada para o litígio[9].
De acordo com este STJ, “não existe diversidade essencial da fundamentação quando a Relação se limita a não aceitar uma das vias trilhadas para atingir o mesmo resultado[10] ou quando “a confirmação da sentença na 2.ª instância” não assenta “num enquadramento normativo absolutamente distinto daquele que foi ponderado na decisão da 1.ª instância, o que equivale por dizer que irrelevam (…) a não aceitação de um dos caminhos percorridos, ou a mera adição de fundamentos”[11]. Por outras palavras, para se implicar a intervenção do STJ “[é] necessário, para o efeito, uma modificação qualificada, essencial, da fundamentação jurídica que aos olhos das partes exiba a ideia de que as águas em que cada instância navegou são tão diferentes, que só mesmo as decisões são coincidentes[12]. Isso significa que o obstáculo recursório da “dupla conforme” não se preenche com “qualquer alteração, inovação ou modificação dos fundamentos jurídicos do acórdão recorrido relativamente aos seguidos na sentença apelada, qualquer nuance na argumentação jurídica assumida pela Relação para manter a decisão já tomada em 1ª instância”; [é] necessário, na verdade, que estejamos confrontados com uma modificação qualificada ou essencial da fundamentação jurídica em que assenta, afinal, a manutenção do estrito segmento decisório – só aquela se revelando idónea e adequada para tornar admissível a revista normal”, só se podendo considerar existente essa fundamentação essencialmente diferente se “a solução jurídica do pleito prevalecente na Relação tenha assentado, de modo radicalmente ou profundamente inovatório, em normas, interpretações normativas ou institutos jurídicos perfeitamente diversos e autónomos dos que haviam justificado e fundamentado a decisão proferida na sentença apelada – ou seja, quando tal acórdão se estribe decisivamente no inovatório apelo a um enquadramento jurídico perfeitamente diverso e radicalmente diferenciado daquele em que assentara a sentença proferida em 1ª instância”[13]. Em suma, para se activar o recurso de revista é imperativo que a essencialidade da diferença do fundamento que confirma a decisão determine uma sucumbência qualitativa da parte prejudicada[14].
            Ora, pelas razões apontadas, assim como pela confirmação (com maior solidez na fundamentação) da improcedência dos restantes pedidos feitos em primeira instância contra a Autora, aqui Recorrida – a saber, litigância de má fé e comportamento em abuso de direito, na modalidade de venire contra factum proprium[15] –, tal não ocorre no caso dos autos, e falece o interesse processual do Recorrente para aceder ao terceiro grau da jurisdição quando recebe duas decisões que pelo seu teor definiram de modo consolidado a sua situação jurídica sem deixar lugar a dúvida razoável e objectiva na fundamentação, uma vez que as duas decisões acabam por ser fungíveis entre si nos seus efeitos[16].

            2.2. Para além disso, o Recorrente alega previamente (e ainda), no intuito de afastar a “dupla conforme”, que a Relação “alterou o conteúdo dos factos considerados provados nos pontos 27 e 29 e acrescentou dois factos que haviam sido julgados como não provados, alterando, dessa forma, o quadro factual referente à questão da não realização da escritura de compra e venda no dia 15 de Janeiro e das causas dessa não realização. Sendo certo que nos presentes autos se pretende aferir o sentido e efeito da não realização da escritura – mora ou incumprimento –[,] as alterações operadas revelam-se significativas e conduziram a fundamentação distinta”.
            Segundo uma parte relevante da doutrina (Teixeira de Sousa, Rui Pinto, Francisco Ferreira de Almeida), “a divergência entre as decisões das instâncias há-de recair sobre elementos que caibam na competência decisória do Supremo Tribunal de Justiça” nos termos do art. 674º do CPC, “visto que o que se procura saber é se é admissível a interposição de revista para o Supremo Tribunal de Justiça”. “Portanto, em regra está excluída a consideração de uma dupla conforme quanto à apelação sobre a matéria de facto, como, aliás, decorre do artigo 662º, n.º 4 [“Das decisões da Relação previstas nos n.os 1 e 2 não cabe recurso para o Supremo Tribunal de Justiça.”][17], mas sem prejuízo do disposto no n.º 3 do artigo 674º” do CPC (isto é, o conhecimento de “ofensa de uma disposição expressa que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova”).[18] Logo, traduzindo esta posição, não tendo o Recorrente apresentado nas suas Conclusões (que delimitam o objecto de apreciação: arts. 608º, 2, 635º, 4, 637º, 2, 1.ª parte, 639.º, 1, 663º, 2, todos do CPC) a invocação de que a desconformidade de motivação/avaliação da prova pela Relação tenha violado alguma norma legal das que se referem no art. 674º, 3, 2ª parte, do CPC[19], está excluída no caso a actuação dos poderes de verificação da “desconformidade” entre as decisões das instâncias que tornasse admissível a revista.
De todo o modo, há posição mais flexível nesta sede na doutrina e na jurisprudência do STJ. Para Abrantes Geraldes, “[a] expressão “fundamentação essencialmente diferente” pode, porventura, confrontar-nos com o relevo a atribuir a uma eventual modificação da decisão da matéria de facto empreendida pela Relação, ao abrigo do art. 662º. Todavia, tal evento não apresenta verdadeira autonomia, na medida em que uma modificação essencial da matéria de facto provada ou não provada apenas será relevante para aquele efeito na medida em que também implique uma modificação essencial da motivação jurídica, sendo, portanto, esta que servirá de elemento aferidor da diversidade ou da conformidade das decisões centrada na respetiva motivação. / Por conseguinte, a aferição de tal requisito delimitador da conformidade das decisões deve focar-se no eixo da fundamentação jurídica que, em concreto, se revelou crucial para sustentar o resultado declarado por cada uma das instâncias, verificando se existe ou não uma real diversidade nos aspetos essenciais”[20].
Pois bem. Mesmo seguindo este entendimento, não absoluto e instrumental à motivação jurídica, o resultado concreto nesta sede de não desconformidade (analisada na economia interna da decisão recorrida) é o mesmo.
Na verdade:
A alteração dos factos 27. e 29., assim como o aditamento dos factos provados 40. e 41., brigaram com as (i) circunstâncias imputáveis a ambas as partes quanto à outorga da escritura pública marcada para 15 de Janeiro de 2015, a (ii) consideração dessa data na interpretação da economia do contrato-promessa pelo Réu promitente-vendedor e (iii) os intervenientes no acordo verbal estabelecido nessa mesma data para realização de nova escritura pública. Não se vê que a modificação seja relevante para a motivação jurídica crucial que funda a execução específica em benefício da Autora, aqui Recorrida, em face do incumprimento do Réu, aqui Recorrente, nem contraria o resultado declarado pela sentença apelada e na construção que está na base da parte dispositiva da decisão e, por isso, não conduziu a qualquer alteração estrutural ou essencial de fundamentação da decisão recorrida. 

3. Em conclusão

Tendo o acórdão recorrido sido lavrado por unanimidade (sem voto de vencido) e norteado no âmbito do mesmo quadro jurídico em que se moveu a sentença de primeira instância para alcançar um resultado idêntico àquele que se obtivera na primeira instância, é de afirmar que, na Relação, não se adoptou uma fundamentação que deva ser tida como essencialmente diferente. Tal implica que, considerando a opção legislativa de irrecorribilidade consagrada no art. 671º, 3, do CPC, o recurso de revista não é admissível no presente caso.

O pedido subsidiário de revista excepcional
A título subsidiário, o Recorrente interpôs recurso de revista excepcional, para o caso “de não ser admitido o recurso de revista, por verificação de dupla conforme”.[21]
Fê-lo tendo por base a sua admissibilidade nos termos do art. 672º, 1, a), do CPC, “por estarem em discussão questões cuja apreciação se torna necessária para melhor aplicação do direito”.
Como primeiro passo desse recurso, a verificação dessa admissibilidade, condicionada ao preenchimento dos pressupostos do art. 672º, 1, do CPC, cabe em exclusivo à Formação de Juízes do STJ a que se refere o art. 672º, 3, do CPC, à qual se deverá remeter os autos para serem avaliados esses pressupostos.

III. DECISÃO

Pelo exposto, acorda-se em:
1) não tomar conhecimento do objecto do recurso de revista normal interposta a título principal;
2) ordenar a remessa dos autos à Formação Especial deste STJ, a que alude o art. 672º, 3, do CPC, para os efeitos de julgamento da admissibilidade da revista excepcional interposta a título subsidiário.


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Custas pelo Recorrente, que se fixam em 2 UC.

STJ/Lisboa, 14 de Maio de 2019

Ricardo Costa (Relator)

Assunção Raimundo

Ana Paula Boularot

SUMÁRIO (arts. 663º, 7, 679º, CPC)

__________________________
[1] Era o seguinte o teor do ponto alterado:
“Sobre o prédio prometido vender, recaíam várias penhoras, resultantes de dívidas fiscais, inscritas pela Ap. 4527 de 2009/07/24 processo executivo 1503200801205323; Ap. 4299 de 2010/11/11 processo n.º 1503200901253913; Ap.2907 de 2011/03/15, processo n.º 3123200101025724; Ap. 1902 de 2013/12/02, processo nº 150 3200801205323, cujas inscrições subsistiam na data e hora designadas para a escritura.”
[2] Era o seguinte o teor do ponto alterado:
“Apesar da impossibilidade da outorga da escritura, por factos exclusivamente imputáveis ao Réu, este e a Autora acordaram verbalmente no dia 15-1-2015 realizar a escritura em data a combinar no dia 23 de Janeiro de 2015.”
[3] Era o seguinte o teor de acordo com a 1.ª instância:
“Em 28 de Janeiro de 2015, a Autora remeteu uma carta registada com aviso de recepção para as várias moradas do Réu, comunicando-lhe o incumprimento do contrato promessa de compra e venda, afirmando que os factos que lhe eram exclusivamente imputável.”
[4] V. por todos Carlos Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 4ª ed. por António Pinto Monteiro e Paulo Mota Pinto, Coimbra Editora, Coimbra, 2005, págs. 579-580.
[5] De acordo com o ponto 29. da matéria de facto, alterado (também) pela Relação nesta delimitação subjectiva dos intervenientes nesse acordo.
[6] V. o Ac. recorrido, a fls. 542.
[7] Também de acordo com o ponto 29. da matéria de facto, deixou de constar no julgamento da Relação que a impossibilidade da outorga da escritura tivesse sido causada “por factos exclusivamente imputáveis ao Réu” – o que se conjuga sistematicamente com a alteração/acrescento do ponto 27. da matéria de facto no acórdão recorrido da Relação.
[8] Inclusivamente enfatizado na transcrição-apropriação pela Relação de parcelas da sentença de primeira instância: v., em esp., os excertos que fazem fls. 542 e 543.
[9] Ac. do STJ de 28/1/2016, processo n.º 802/13.8TTVNF.P1.G1-A.S1, Rel. Ana Luísa Geraldes, in www.dgsi.pt, sublinhado nosso.
[10] Ac. de 8/1/2015, processo n.º 346/11.2TBCBR.C2-A.S1, Rel. João Bernardo, in Sumários de Acórdãos do Supremo Tribunal Justiça – Secções Cíveis, 2015, pág. 6, https://www.stj.pt/?page_id=4471 (Jurisprudência/Sumários de Acórdãos), itálico nosso.
[11] Ac. (também) de 8/1/2015, processo n.º 129/11.OTCGMR.G1.S1, Rel. João Trindade, in www.dgsi.pt, com sublinhado nosso.
[12] Ac. do STJ de 19/2/2015, processo n.º 1397/10.0TBPVZ.P1.S1, Rel. Pires da Rosa, in Sumários de Acórdãos do Supremo Tribunal Justiça – Secções Cíveis cit., pág. 95, também com ênfase da nossa responsabilidade.
[13] V. Ac. do STJ (também) de 19/2/2015, processo n.º 302913/11.6YIPRT.E1.S1, Rel. Lopes do Rego, in www.dgsi.pt.
[14] Assim: Elizabeth Fernandez, Um novo Código de Processo Civil? Em busca das diferenças, Vida Económica, Porto, 2014, pág. 190.
[15] V. as parcelas da sentença da primeira instância, que fazem fls. 431, e do Acórdão da Relação, que fazem fls. 543-544.
[16] Seguimos Rui Pinto, Notas ao Código de Processo Civil, Volume II, Artigos 546º a 1085º, 2ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 2015, sub art. 671º, pág. 181.
[17] E, em especial para o julgamento em recurso de revista, do art. 682º, 2, do CPC.
[18] V., também para as transcrições, Teixeira de Sousa, “’Dupla conforme’: critério e âmbito da conformidade”, CDP n.º 21, 2008, págs. 21-22, Rui Pinto, Notas ao Código de Processo Civil, Volume II cit., sub art. 671º, págs. 179, 184-185, Francisco Ferreira de Almeida, Direito processual civil, volume II, 2ª ed., Almedina, Coimbra, 2019, pág. 574.
[19] V., a este propósito, o Ac. do STJ de 15/1/2015, processo n.º 266/10.8TBBRG.G1.S1, Rel. Tavares de Paiva, in Sumários de Acórdãos do Supremo Tribunal Justiça – Secções Cíveis cit., págs. 27-28: (ponto IV. do Sumário) “Salvo os casos previstos na lei – que a recorrente não invoca –, não pode o STJ, enquanto tribunal de revista, sindicar a matéria de facto decidida pelas instâncias (art. 674.º, n.º 3, do NCPC (2013) e art. 26.º, da LOFTJ), cabendo-lhe apenas integrar os conceitos legais por matéria factual pertinente (art. 682.º, n.º 1, do NCPC (2013))”.
[20] Recursos no Novo Código do Processo Civil, 5ª ed., Almedina, Coimbra, 2018, págs. 364-365. Na jurisprudência do STJ v., em apoio, o Ac. de 8/2/2018, processo n.º 2639/13.5TBVCT. GL.S1, Rel. António Joaquim Piçarra, in www.dgsi.pt.
[21] Sobre a legitimidade e validade desta interposição, Abrantes Geraldes, Recursos… cit., págs. 369-370.