Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
05P4215
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: SILVA FLOR
Descritores: ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS
MEDIDA CONCRETA DA PENA
Nº do Documento: SJ200602080042153
Data do Acordão: 02/08/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário :
Dentro da moldura penal abstracta correspondente ao crime de abuso sexual de crianças, p. e p. pelos arts. 172.º, n.º 2, e 177.º, n.º 1, al. a), do CP, ou seja, a de 4 anos a 13 anos e 4 meses de prisão, e tendo em consideração que:
- a conduta do recorrente consistiu, essencialmente, na prática de quatro actos de cópula com a sua filha, na altura com 12 anos de idade;
- a menor, que nunca tinha tido contactos sexuais com outros homens, foi desflorada pelo recorrente, circunstância que, associada à lembrança que a acompanhará por toda a vida dos actos que seu pai praticou, fonte de revolta - ou pelo menos de indignação - e de perturbação no desenvolvimento da sua personalidade no aspecto da vida sexual, envolve uma acentuada gravidade do crime em termos de ilicitude;
- perpassa no comportamento do recorrente um resquício de um sentimento de posse dos pais em relação às filhas que não desapareceu totalmente nalguns meios sociais, o que, conjuntamente com a relativa frequência com que estes crimes são cometidos, não permite uma subestimação das exigências de prevenção geral, positiva e negativa;
- o arguido é trabalhador rural, de fracos recursos económicos, quase analfabeto, vivendo a família numa situação de alguma promiscuidade, não propícia a uma saudável convivência entre todos;
- o arguido é delinquente primário; não se mostra excessiva a pena aplicada, de 7 anos e 6 meses de prisão.
Decisão Texto Integral:
Acordam na Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça:

I. No 1.º Juízo do Tribunal Judicial de Peso da Régua, foi julgado em processo comum com intervenção do tribunal colectivo, AA, tendo o tribunal decidido:
─ Condenar o arguido, como autor material de um crime de abuso sexual de crianças, previsto e punido pelos artigos 172.º, n.º 2, e 177.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, na pena de 7 anos e 6 meses de prisão;
─ Absolvê-lo da prática dos restantes três crimes de abuso sexual de crianças, previstos e punidos pelos artigos 172.º, n.º 2, e 177.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, de que vinha acusado.
Inconformado com tal decisão, dela recorreu o arguido para este Supremo Tribunal, formulando na motivação do recurso as conclusões que em seguida se reproduzem:
1.º Com este recurso o recorrente apenas pretende pôr em causa o teor do acórdão condenatório na decisão da matéria de direito, no tocante à determinação da medida concreta da pena.
2.° Na verdade a moldura penal aplicada ao recorrente e que reconduz a uma pena de prisão efectiva de sete anos e seis meses, afigura-se desajustada e elevada, sendo manifestamente desproporcional à única resolução criminosa que ficou provada.
3.° Na prática, não foram devidamente atendidas as condições pessoais do agente e a sua situação económica e não revestiram uma importância eficaz na determinação concreta da pena.
4.° A perspectiva de ressocialização e regeneração do recorrente, finalidade também fulcral da aplicação de uma pena, exige um cuidado extremo no seu doseamento.
5.° No presente caso, e face ao já exposto, considera-se proporcionada e justa a pena de prisão que se situe no intervalo entre três/ quatro anos e seis meses.
6.° Assim tendo entendido e decidido, o acórdão recorrido, com o devido respeito, não fez a melhor e mais correcta aplicação ao caso das pertinentes disposições legais, nomeadamente a do n.° 2 do art. 71.° do Código Penal.
Pelo que, no provimento do recurso interposto pelo recorrente, deve o acórdão recorrido, ser revogado e, em sua substituição, ser proferido outro que condene o recorrente em pena que se situe entre os três/quatro anos e seis meses de prisão, assim se cumprindo a lei e promovendo a tão acostumada Justiça.
O Ministério Público respondeu à motivação do recurso, sustentando que deve ser mantida a pena aplicada.
Neste Supremo Tribunal o Exmo. Procurador-Geral Adjunto disse nada obstar ao conhecimento do recurso.
Colhidos os vistos legais, teve lugar a audiência, com a produção de alegações, cumprindo agora apreciar e decidir.
II. Foram dados como provados os seguintes factos:
1. BB nasceu no dia 11 de Outubro de 1989, sendo filha do arguido AA e de CC;
2. A BB residiu com os pais em casa destes, composta por dois quartos, uma sala, uma cozinha e uma retrete situada no exterior, habitação esta degradada e sem higiene;
3. O arguido costuma ingerir bebidas alcoólicas e a esposa, mãe da BB, sofre de debilidade mental;
4. As condições de habitabilidade da residência referida no ponto 2 eram e são indutoras de promiscuidade entre os que ali residam, primando pela falta de privacidade;
5. No dia 31 de Janeiro de 2002, cerca das 23 horas, na residência referida nos pontos anteriores, sita em …, …, Peso da Régua, a BB encontrava-se na cama com as suas irmãs quando o arguido, em estado alcoolizado, a agarrou pelos braços, levando-a para a cama dele, e pedindo-lhe que tirasse a roupa, o que esta recusou;
6. Em face dessa recusa, o arguido tirou a roupa à BB e a roupa dele, ficando ambos nus da cinta para baixo, apercebendo-se a ofendida nessa altura do que o arguido pretendia fazer-lhe, pelo que ficou quieta com medo do mesmo;
7. De seguida, o arguido, sem qualquer palavra, colocou-se em cima da BB e, após friccionar o pénis na sua vagina, introduziu-o no interior da vagina da ofendida;
8. De manhã, a BB reparou que tinha sangrado, pela existência de sangue no seu corpo e no lençol da cama;
9. Em datas que não foi possível apurar em concreto do ano de 2002, mas já após ter sido internada na Santa Casa da Misericórdia do … ─ a “…” ─ o que aconteceu no dia 15 de Abril de 2002, e antes do dia 9 de Outubro, quando a BB ainda ia passar o fim-de-semana a casa dos pais, e nessas visitas, o arguido, duas vezes em casa e uma vez numa vinha, local para onde foram ambos trabalhar, introduziu o seu pénis na vagina da ofendida;
10. A BB apresenta na área genital hímen anelar, membranoso, com solução de continuidade de bordos irregulares, extremidades angulosas, cicatrizada e coaptável;
11. O óstio da BB permite a entrada dos dedos indicador e médio justapostos;
12. A BB apresenta lesões traumáticas a nível himenial compatíveis com sinais de desfloramento, cuja data não foi possível precisar, mas compatível com o dia 31 de Janeiro de 2002;
13. O traumatismo que a BB apresenta foi causado pelo acto descrito no ponto 7;
14. O arguido não ignorava que tinha um ascendente sobre a BB, e que ao actuar da forma como efectivamente actuou com ela comprometia a sua formação sexual e prejudicava o livre desenvolvimento da sua personalidade, sendo que a ofendida nunca havia tido contactos sexuais;
15. O arguido exercia o poder paternal incidente sobre a BB;
16. O arguido actuou livre, voluntária e conscientemente, sabendo que a BB é sua filha, tendo na altura apenas 12 anos de idade, e que lhe estava vedado manter acto de natureza sexual com ela;
17. O arguido sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei como crime;
18. O arguido é casado, tendo 3 filhas, embora nenhuma delas esteja a seu cargo;
19. O arguido é jornaleiro, na agricultura, auferindo a contrapartida diária de € 20;
20. O arguido e sua esposa habitam em casa própria;
21. O arguido completou o 1.º ano de escolaridade;
22. O arguido não apresenta qualquer condenação criminal.
III. Suscita-se no recurso tão-somente a questão da medida da pena, peticionando o recorrente a redução da mesma para três/quatro anos de prisão.
Alega para tanto e em síntese que a pena aplicada é desajustada, sendo desproporcional à única resolução criminosa que ficou provada, e que não foram devidamente atendidas as condições pessoais do agente e a sua situação económica.
O recorrente foi condenado pela prática de um crime de abuso sexual de criança, previsto e punido pelos artigos 172.º, n.º 2, e 177.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal.
Não se levantam dúvidas sobre o enquadramento jurídico-penal dos factos, havendo apenas que sindicar a medida da pena aplicada.
O Código Penal, com a reforma de 1995, em matéria aplicação de penas adoptou o modelo de prevenção.
Como resulta do disposto no artigo 40.º. n.º 2, a culpa tem uma função restritiva, não justificando a pena ou a sua medida. Releva tão-somente no sentido de impedir que razões de prevenção geral ou especial conduzam a uma pena superior à culpa do agente.
A aplicação da pena tem como finalidade a tutela dos bens jurídicos e, na medida possível, a reinserção do agente na sociedade, ainda que esta reinserção funcione simultaneamente como meio de realizar aquela finalidade primordial, na medida em que contribui para evitar e reincidência.
No sentido de que a reinserção social não passa de um meio de realizar o fim do direito penal que é a protecção dos bens jurídicos v. Dr. Américo Taipa de Carvalho, Liber Discipulorum, pg. 324.
A medida da pena há-de ser encontrada pela necessidade de tutela dos bens jurídicos, pautada pelas exigências de prevenção geral e especial, dentro dos limites da culpa.
O bem jurídico protegido pela incriminação constante do artigo 172.º é a autodeterminação sexual face a condutas de natureza sexual que, em consideração da pouca idade da vítima, podem, mesmo sem coacção, prejudicar gravemente o desenvolvimento da sua personalidade ─ Prof. F. Dias, Comentário Conimbricense ao Código Penal, Tomo I, pg. 541.
A conduta do recorrente consistiu, essencialmente, na prática de 4 actos de cópula com a sua filha BB, na altura com 12 anos de idade. A menor, que nunca tinha tido contactos sexuais com outros homens, foi pelo recorrente desflorada.
A reiteração da conduta exaspera a ilicitude, na medida em que envolve uma repetida violação do bem jurídico protegido. E revela simultaneamente um maior grau de culpa, designadamente em virtude de ter voltado a praticar actos de cópula quando a filha já estava confiada a uma instituição de solidariedade social.
Acresce que a menor não tinha qualquer experiência sexual. Esta circunstância, associada à lembrança que a acompanhará por toda a vida dos actos que seu pai praticou, fonte de revolta ou pelo menos de indignação, e de perturbação no desenvolvimento da sua personalidade no aspecto da vida sexual, que inegavelmente constitui hoje uma forma de realização da pessoa humana, envolvem uma acentuada gravidade do crime em termos de ilicitude.
Perpassa no comportamento do recorrente um resquício de um sentimento de posse dos pais em relação às filhas que não desapareceu totalmente nalguns meios sociais, o que, conjuntamente com a relativa frequência com que estes crimes são cometidos, não permite uma subestimação das exigências de prevenção geral, positiva e negativa.
De atentar também nas condições sociais e económicas do recorrente: é trabalhador rural, de fracos recursos económicos, quase analfabeto, vivendo a família numa situação de alguma promiscuidade, não propícia a uma saudável convivência entre todos.
É delinquente primário.
A moldura penal é de prisão de 4 anos a 13 anos e 4 meses.
Tudo ponderado, e nos termos do artigo 71.º do Código Penal, face à gravidade do crime, sem que se verifiquem circunstâncias atenuantes de significativo relevo que diminuam a culpa, não se mostra excessiva a pena de 7 anos e 6 meses de prisão que foi aplicada ao recorrente.
IV. Nestes termos, julgam não provido o recurso, confirmando a acórdão recorrido.
O recorrente pagará 10 UCs de taxa de justiça, sem prejuízo do apoio judiciário que entretanto lhe tenha sido concedido.
Lisboa, 8 de Fevereiro de 2006

Silva Flor (relator)
Soreto de Barros
Armindo Monteiro
Sousa Fonte