Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1956/17.0T8FAR.E1.S1
Nº Convencional: 4ª SECÇÃO
Relator: CHAMBEL MOURISCO
Descritores: CONTRATO DE UTILIZAÇÃO DE TRABALHO TEMPORÁRIO
INCUMPRIMENTO
Data do Acordão: 11/13/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO DO TRABALHO – CONTRATO DE TRABALHO / MODALIDADES DE CONTRATO DE TRABALHO / CONTRATO A TERMO RESOLUTIVO / TRABALHO TEMPORÁRIO / CONTRATO DE UTILIZAÇÃO DE TRABALHO TEMPORÁRIO.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – PROCESSO DE DECLARAÇÃO / RECURSOS / JULGAMENTO DO RECURSO.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE TRABALHO (CT): - ARTIGOS 140.º, N.º 2, ALÍNEA H) E 175.º, N.º 1.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 637.º, N.º 1, 640.º, 652.º, N.º 1, ALÍNEA B) E 655.º.
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 799.º.
Sumário :
I - Tendo ficado provado que ocorreu cedência de trabalhadores ao abrigo de um contrato de utilização de trabalho temporário, e que foi prestado algum trabalho por esses trabalhadores, cabe à empresa utilizadora pagar o trabalho recebido a liquidar.
Decisão Texto Integral:

Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça:



                                                           I

 Relatório:

 1. AA, Ld.ª, (A) intentou a presente ação declarativa comum, contra BB, Ld.ª, (R) pedindo a condenação desta a pagar-lhe a quantia de EUR 19 280,15, tendo para o efeito alegado que, no âmbito da sua atividade, cedeu mão de obra à R., sem que se tivesse comprometido a colocar determinada quantidade de trabalhadores em obra, tendo cedido trabalhadores e pago os seus vencimentos, emitindo a fatura n.º ..., no valor de EUR 16 698,17, que não foi paga na data do seu vencimento.

           

           2. A R. contestou alegando que a 4 de fevereiro de 2015, solicitou à A. a cedência de cinco trabalhadores polivalentes, e por ter que terminar uma obra que realizava até 20 de março de 2015 solicitou-lhe mais sete trabalhadores, tendo a A. anuído prontamente a tal pedido, obrigando-se a recrutá-los sem que tivesse, pelo menos, cumprido o mínimo de cinco funcionários. Perante tal, teve que pagar horas extraordinárias aos seus funcionários, acomodação, alimentação e gasóleo, bem como o vencimento de abril, razão pela qual não pagou a fatura, resolvendo o contrato. Invocou também que nunca lhe foi dado conhecimento das identificações, qualificações e referências das pessoas recrutadas, nem deu assentimento à colocação de tais trabalhadores em obra, o que gera nulidade.

 Deduziu reconvenção, peticionando o pagamento da quantia de EUR 21 684,94 relativa ao prejuízo que alegou ter sofrido.

3. A A. respondeu à contestação e à reconvenção alegando que nunca se obrigou a contratar um número mínimo de trabalhadores, tendo remetido os documentos dos cedidos à R., impugnando ainda os alegados prejuízos.

4. Foi admitida a reconvenção em sede de despacho saneador.

5. Foi proferida sentença que julgou improcedentes o pedido principal e o pedido reconvencional, absolvendo as partes dos pedidos contra cada uma formulados.

 

6. A A. apelou para o Tribunal da Relação, impugnando a matéria de facto, bem como a decisão de absolvição da R, porquanto entende que prestou o serviço, pagando aos trabalhadores, bem como os respetivos impostos e contribuições sociais, tendo a R. usufruído do trabalho dos mesmos, pelo que, esta tem que lhe pagar o valor constante da fatura. Caso a R. considerasse que nem todo o trabalho havia sido prestado, cabia-lhe, pelo menos, contabilizar as horas efetivamente trabalhadas pelos trabalhadores que a A. recrutou, o que não fez.

Concluiu pedindo a revogação da sentença da primeira instância e a condenação da R. no pagamento do pedido formulado.

 7. O Tribunal da Relação decidiu rejeitar a impugnação da matéria de facto, por considerar não observados os ónus de impugnação, previstos no art.º 640.º do Código de Processo Civil, e quanto ao demais julgou a apelação procedente, revogando a sentença recorrida na parte impugnada, condenando a R. a pagar à A. a quantia que se vier a apurar no incidente de liquidação, previsto nos artigos 358.º n.º 2 a 361.º do Código de Processo Civil, de acordo com a prova dos trabalhadores cedidos e os dias e horas de trabalho prestado ao serviço da ré.

 

8. Inconformada com esta decisão, a R. interpôs recurso de revista, tendo formulado as seguintes conclusões:

«A. Decorre da análise do art. 637º, do Código de Processo Civil, no seu nº 1, que: “ Os recursos interpõem-se por meio de requerimento dirigidos Tribunal que proferiu a decisão recorrida, no qual se indica a espécie, o efeito e o modo de subida do recurso interposto”, nº 2: “O requerimento de interposição de recurso contém obrigatoriamente a alegação do recorrente em cujas conclusões deve ser indicado o fundamento específico da recorribilidade; ...”

B. Contrapondo e atentando no inexistente, quimérico e ilusório requerimento, que visava a interposição de Recurso, não foram respeitadas nenhuma das formalidades impostas e previstas pelos arts. 131.º e 637.º do C.P.C..

C. Sendo que, o que se extrai é que do inexistente quimérico e ilusório requerimento, pese embora com menção ao Tribunal Judicial da Comarca de Faro, foi dirigido e passa-se a transcrever aos: “Venerandos Juízes Desembargadores do Tribunal da Relação de Évora”.

D. Quando o deveria ter sido À Meritíssima Juiz do Tribunal Judicial da Comarca de Faro, Juízo do Trabalho de Faro, Juiz 1, ou seja ao Tribunal à quo que proferiu a decisão recorrida.

E. Bem como, é omisso, o ilusório requerimento, quanto: à espécie, ao efeito e ao modo de subida do pretenso recurso, não respeitando a obrigatoriedade, legalmente imposta, de apresentar a alegação do recorrente.

F. Assim e tendo em conta que o recurso de apelação, foi interposto através de um requerimento inexistente, quimérico e ilusório, dirigido ao Tribunal da Relação, e não, como a lei prevê (artigo 637.º n.º 1 e 2 do CPC e 81º do CPT),

G. Constata-se com clareza a benevolência, condescendência, complacência, solicitude e prestatividade, do Venerando Tribunal da Relação de Évora, quando decidiu aproveitar o referido “requerimento” e retirando daquele a vontade de interpor recurso.

H. Nesta medida e porque os recursos se interpõem por meio de requerimento e in casu, o requerimento inexistiu, jamais poderia/deveria o Recurso ter sido sequer admitido, muito menos proceder, o que desde já se aduz com as devidas e legais consequências.

I. No acórdão do Venerando Tribunal da Relação de Évora, de 28.03.2019, foi julgada procedente a apelação do aqui Recorrido, revogando-se a sentença proferida na 1.ª instância na parte impugnada e condenando-se o Réu aqui Recorrente a pagar à Autora aqui Recorrida, o que se vier a apurar no incidente de liquidação, previsto nos arts. 358.º, n.º2 a 361.º do C.P.C., de acordo com a prova dos trabalhadores cedidos e os dias e horas de trabalho prestado ao serviço da Ré/Recorrente.

J. Sendo que, a única parte impugnada pela Autora/Recorrente, foi nada mais nada menos, do que a impugnação da matéria de facto.

K. Como, bem refere ponto 7. do acórdão, que delimitou o objeto do recurso interposto pela Autora nos presentes Recorrida: “O objeto do recurso está delimitado pelas conclusões das alegações formuladas, sem prejuízo do que for de conhecimento oficioso. As questões a apreciar são as seguintes: 3. Reapreciação da matéria de facto 4. Conforme o que daí resultar aplicar o direito aos factos provados”

L. Volvendo sobre o referido recurso, é notório que o mesmo foi elaborado de modo tão genérico, que não é possível chegar com certeza a uma conclusão sobre qual é, afinal, a decisão que a Autora/Recorrente defende que deveria ter sido tomada sobre a matéria de facto impugnada.

M. Assim e conforme o vertido nas contra-alegações apresentadas, pela aqui Recorrente, desde “ab initio” nos pronunciámos, no sentido da rejeição do recurso, alegando como fundamento que o Recorrente (aqui Recorrido), não cumpriu os deveres impostos pelo art. 640º do C.P.C..

N. Nesse mesmo sentido, o Ministério Público do Venerando Tribunal da Relação de Évora, emitiu parecer, conforme se transcreve:

“APRECIAÇÃO DO RECURSO As conclusões das alegacões delimitam o objeto do recurso, nos termos do disposto no artº 635º nº 4 do novo Código do Processo Civil, ex vi do artº 1º nº 2, al. a) do Código do Processo do Trabalho, não podendo o Tribunal ad quem conhecer de questões nelas não incluídas, exceto as de conhecimento oficioso (artº 608º no 2 do novo Código do Processo Civil). Decorre de teor das Conclusões/Alegacões que, se pretende: -IMPUGNAR A MATÉRIA DE FACTO (referindo genericamente que “deveria ter sido considerada provada a prestação do serviço”, mas sem indicar expressamente os pontos concretos da Mat. de Facto, com referência à decisão recorrida; Indica como prova, os documentos relativos às folhas de horas/presença, assinadas por CC, e o depoimento gravado, que concretiza nas suas Alegacões, das testemunhas DD e EE) No entanto, afigura-se-nos não estar com a razão. (sublinhado nosso) Desde logo, porque formalmente, não cumpriu a ora recorrente as formalidades exigidas para a impugnação da Matéria de Facto, previstas nos arts. 639º, nº1 e 640º, nº 1, alíneas a) e c), do Código de Processo Civil, desde logo, por falta de concretização dos pontos da Mat. de Facto que pretendia ver alterados. (sublinhado nosso) Na verdade, “...Da conjugação do art. 640º, nº 1, alínea a) e c), do Código de Processo Civil, com o disposto no art. 639.º, nº 1, do mesmo diploma legal, resulta que o recorrente que pretenda impugnar a decisão proferida sobre a matéria de facto tem de fazer consignar nas suas conclusões os concretos pontos de facto que pretende impugnar e a decisão que, no seu entender, deve ser proferida. (...) ” (entre outros, o Ac. do STJ de 31-10-2018 – P. nº 2820/15.2T8LRS.L1.S1 - Relator: CHAMBEL MOURISCO – www.dgsi.pt) E, “...A natureza e estrutura da decisão de facto, bem como a economia da sua sindicância pelo tribunal ad quem, justificam o ónus, por banda do impugnante, de delimitar com precisão o objeto do recurso e o sentido da pretensão recursória nesse particular. III. Assim, os requisitos formais de admissibilidade da impugnação da decisão de facto, mormente os constantes do artigo 640º, nº 1, alíneas a) e c), do CPC, têm em vista, no essencial, garantir uma adequada inteligibilidade do objeto e alcance teleológico da pretensão recursória, de forma a proporcionar o contraditório esclarecido da contraparte e a circunscrever o perímetro do exercício do poder de cognição pelo tribunal de recurso. (...) ” (in Ac. do TRL de 22/03/2018-Po no 290/12.6TCFUN.L1.S1 - Relator: TOMÉ GOMESwww.dgsi.pt) Assim, salvo melhor entendimento, há ́lugar ao indeferimento liminar de tal impugnação. (sublinhado nosso)

O. Neste ponto e quanto, à apreciação sobre a impugnação da matéria de facto, bem andou o Venerando Tribunal da Relação de Évora, ao decidir: “Ora, como muito bem é referido no parecer emitido pelo Ministério Público junto deste Tribunal, a apelante não indica em concreto quais os factos que pretende ver apreciados nem, em consequência o sentido da alteração. (...) Nestes termos, rejeita-se a impugnação da matéria de facto e não se conhece da mesma.” (sublinhado nosso)

P. A matéria de facto é essencial à decisão do litígio.

Q. Na medida em que, constitui o substrato material, sobre o qual recairá todo o juízo valorativo do direito.

R. A decisão é proferida tendo sempre por base análise crítica da prova e por consequência a análise da matéria de facto.

S. Subsumindo-se a matéria de facto na matéria de direito, o que irá motivar as consequências jurídicas adequadas aplicar ao caso concreto.

T. Refletindo «in casu», tal efeito não é possível alcançar como fez o Venerando Tribunal da Relação de Évora.

U. Desta feita e atentando, à impugnação da matéria de facto pretendida pelo Apelante (aqui Recorrido), sem a fixação definitiva dos factos provados e não provados não é possível extrair as pertinentes consequências à luz do direito.

V. Além disso, nos casos em que a impugnação se baseia sobre depoimentos prestados na audiência de discussão e julgamento, é exigência sob a cominação de rejeição de recurso, que a Autora/Recorrente (aqui Recorrido), refira as concretas passagens da gravação do depoimento testemunhal indicando para o efeito o início e termo da gravação das mesmas.

W. Uma vez mais, apreciando o Recurso interposto, tal não sucedeu, como se vislumbra do mesmo!

X. O que “per se” determinaria a rejeição do Recurso, cfr. Ac. do Tribunal da Relação de Guimarães, proc. n.º 123/11.0TBCBT.B1 de 28.06.2018.

Y. A Autora/Recorrente (aqui Recorrida), não cumpriu o ónus a que estava adstrita por imposição legal, nos termos do art. 640.º, n.º 1, todas as alíneas e n.º 2 do C.P.C.

Z. Concluindo-se forçosamente, que a Recorrente não deu cumprimento ao ónus que lhe era imposto pelo citado normativo.

AA. Pois, nas conclusões formuladas no respetivo recurso, não indicou com exatidão as passagens das gravações em que os pretendem fundar.

BB. Assim e com todo o respeito por V/Exas. Colendo Juízes Conselheiros, devia o recurso em causa ter sido rejeitado, com as legais consequências - neste sentido, na Jurisprudência e Doutrina, entre outros, vejam-se os Acórdão da Relação de Guimarães de 28.06.2018, processo n.º 123/11.0TBCBT.G1, in www.dgsi.pt e, ainda, o Conselheiro António Santos Abrantes Geraldes in Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2ª Edição, 2014, pág. 135.

CC. Bem como tão bem nos ensina, o Colendo Juiz Conselheiro, ABRANTES GERALDES, “Sempre que o recurso verse sobre a impugnação da matéria de facto, as exigências impostas ao recorrente que impugne a matéria de facto são decorrência dos princípios estruturantes da cooperação e da lealdade e boa-fé processuais, visando-se com elas assegurar a seriedade do próprio recurso.” (sublinhado nosso).

DD. O pleno exercício do contraditório, foi vedado à aqui Recorrente, pela obscuridade e inalcançável sentido do recurso interposto pela aqui Recorrida, sendo o princípio do contraditório um dos princípios basilares de um Estado de Direito e constitucionalmente consagrado.

EE. Por tudo isto, e de acordo com o disposto nos arts. 635.º, 640.º e 662.º, do C.P.C., uma vez mais se reitera, bem andou o Tribunal da Relação de Évora, quando rejeitou a impugnação da matéria de facto e não conheceu da mesma.

FF. O que não vislumbra nem alcança, é que se o Recurso interposto pela aqui Recorrida, versava apenas e tão somente sobre a matéria de facto, e a mesma não foi conhecida.

GG. Como logrou, o Tribunal da Relação de Évora, subsumir a matéria de facto assente pelo Tribunal Judicial da Comarca de Faro, em matéria de Direito, diversa da doutamente decidida pelo Tribunal da 1ª Instância.

HH. A “contrario” até do douto parecer emitido pelo Digníssimo Magistrado do Ministério Público do Venerando Tribunal da Relação de Évora, que infra se transcreve: “Mas, ainda que assim não fosse entendido, verifica-se que, a Matéria de Facto vertida na decisão ora sob recurso, se mostra bem fundamentada, tal como resulta da Ata de 05-04- 2018, e que aqui é dada por inteiramente reproduzida, tendo analisado o conjunto da prova – documental e testemunhal – produzida em sede de Audiência de Julgamento, o que confirma a decisão proferida, sendo certo que, a ora recorrente apenas faz apelo a uma parte daquela prova, não sendo, assim, suficiente para a abalar. Daí que se entenda, salvo melhor entendimento, que, atenta a bem fundamentada decisão recorrida, a M.ma Juiz a quo fez a mais correta interpretação dos factos, bem como a melhor integração jurídica dos mesmos, havendo lugar ao indeferimento liminar da impugnação, ou ainda que assim não fosse entendido, não podendo a mesma proceder, por apenas ter sido feito apelo a uma parte da prova produzida, não sendo, assim, suficiente para abalar a decisão recorrida, a qual deve ser mantida, nos seus precisos termos.”

II. Quando subsume a matéria de facto na de direito, o acórdão posto em crise, refere: “Incumbia à Ré alegar e provar que houve cumprimento defeituoso e incumbia à Autora alegar e provar que esse cumprimento defeituoso não se deveu a culpa sua...”

JJ. A aqui Recorrente, inequivocamente cumpriu com o ónus que lhe era exigido – o ónus de provar o cumprimento defeituoso – até porque tal consta da matéria de facto assente pelo Tribunal da 1ª Instância, mais concretamente nos pontos 16 e 17, consubstanciada em prova documental junta aos autos, “ipsis verbis” como infra se transcrevem: “16. A R. por e-mails de 16 de março de 2015, 19 de março de 2015 e 30 de março de 2015 que aqui se reproduzem demonstrou à A. a sua insatisfação pelas faltas de funcionários. 17. Nem sempre a R. conseguiu que, em obra, estivessem pelo menos 5 trabalhadores por si recrutados.”

KK. Já em relação ao ónus que incumbia a A., aqui Recorrida, de provar que o cumprimento defeituoso não se deveu a culpa a sua, esse claramente não foi cumprido.

LL. Ainda e calcorreando, o acórdão posto em crise, transcreve-se: “Dos factos provados resultam dúvidas quanto ao número de trabalhadores cedidos e não se sabe quanto tempo trabalharam ao serviço da Ré utilizadora”

MM. O Tribunal da Relação de Évora refere expressamente existirem dúvidas, nesse sentido e na nossa humilde opinião, jamais poderia esse Tribunal condenar a aqui Recorrente.

NN. Tendo em conta o preceituado no art. 662º, nº 2 alínea b) do CPC, se o Tribunal da Relação tiver dúvidas: “2- A Relação deve ainda, mesmo oficiosamente: b) Ordenar, em caso de dúvida fundada sobre a prova realizada a produção de novos meios de prova.”

OO. Tal não se verificou!

PP. Aliás e inversamente, com dúvidas o Tribunal da Relação de Évora, revogou a douta sentença proferida pelo Tribunal de 1ª Instância.

QQ. Decidindo condenar a R., nos presentes Recorrente, a pagar a A., nos presentes Recorrida, a quantia que se vier a apurar no incidente de liquidação de acordo com a prova dos trabalhadores cedidos e os dias e horas de trabalho prestado ao serviço da R.

RR. A este respeito e no que importa, aos factos provados nos pontos de 10 a 12, da douta sentença posta em crise, proferida pela 1ª Instância, é verdade que deu como provado a cedência de tais trabalhadores no seu ponto 14.

SS. Da mesma forma como também é verdade, que foi dado como provado no ponto 15., que alguns dos trabalhadores, cuja identificação não se apurou se limitaram a laborar algumas horas num único dia ou até mesmo a abandonar a obra sem qualquer explicação.

TT. O CUTT teve a superior a 1 mês, por isso não é de estranhar, face a toda a matéria dada como provada pela 1.ª Instância e única que o Tribunal da Relação podia ter conhecido, face ao já invocado, que os trabalhadores elencados nos pontos 10 a 12, tenham sido efetivamente cedidos pela aqui Recorrida à Recorrente, no período do CUTT.

UU. Como tal e no que aqui importa, não se poderá dizer nem ficou provado, que esses mesmos trabalhadores, tenham sido cedidos no período respeitante à fatura nº 9 112/2015, que é o que sempre se discutiu nos autos.

VV. Como muito bem e sempre na nossa humilde opinião, decidiu a Meritíssima Juiz do Tribunal de 1ª Instância, passando-se a transcrever infra as suas doutas palavras: “Face a tais obrigações, pretendendo a A. ver-se ressarcida do valor constante da fatura n.º 9 112/2015, no valor de €16 698,17, relativa ao preço do trabalho realizado por trabalhadores cedidos à R. ao abrigo do contrato celebrado, a procedência do pedido, impunha a prova da cedência dos mesmos e das horas de trabalho por eles realizadas o que a A., como resulta da matéria de facto, não provou. Por tal fato, não tendo a A. provado os factos constitutivos de que dependia a procedência do seu pedido – ou seja o cumprimento da sua obrigação – não pode o pedido proceder.

WW. Assim atendendo ao supra transcrito e face a todo o ante exposto e devidamente já alegado, como poderia o Venerando Tribunal de Évora ter concluído, como se transcreve: “Da análise do conjunto dos factos provados podemos concluir que a autora cedeu trabalhadores à ré e não está provado qualquer facto que esta pagou o preço pela cedência.”

XX. A Ré aqui Recorrente, sempre pagou à A. aqui Recorrida, os valores devidos pela real e efetiva cedência de trabalhadores quando tal foi devido, nem isso foi colocado em crise.

YY. Pelo que o que foi colocado em crise, foi tão-somente a última fatura, da qual não se conseguiu apurar, nem a Ré (aqui Recorrida), logrou provar, essa cedência (dos trabalhadores no ponto 10 a 12) no período respeitante a essa fatura.

ZZ. Até porque, relativamente a esse período a que se refere a fatura posta em crise, nem a identidade dos trabalhadores cedidos foi possível apurar e por consequência, nem o número de dias e horas de serviço prestadas.»

 9. A A. contra-alegou, defendendo a improcedência do recurso interposto pela R., pugnando pela manutenção da decisão recorrida.

10. Neste Supremo Tribunal de Justiça, o Excelentíssimo Senhor Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido de ser negada a revista.

11. Nas suas conclusões, a recorrente suscita as seguintes questões que cumpre solucionar:

1. Saber se o Tribunal da Relação devia ter liminarmente rejeitado o recurso de apelação pela forma como o mesmo foi apresentado (conclusões A. a H.) e também por ter sido rejeitada a reapreciação da matéria de facto (conclusões I. a FF.);

2. Determinar se com a factualidade dada como provada pela primeira instância, o Tribunal da Relação podia ter julgado procedente o pedido da A., ainda que relegando a condenação concreta para incidente de liquidação (conclusão GG. e seguintes).

                                                           II

A) Fundamentação de facto:

Foi considerada a seguinte factualidade:

1. No dia 10 de fevereiro de 2015 A., na qualidade de primeira outorgante e R., na de segunda, outorgaram o escrito de fls. 8-9 que se dá por reproduzido, a que deram o nome de “ CONTRATO DE UTILZAÇÃO DE TRABALHO TEMPORÁRIO”, declarando “O presente contrato é celebrado ao abrigo da alínea h) do n.º 2 do art.º 140.º e n.º 1 do art.º 175.º do Código de Trabalho (…) tem o seu fundamento na alínea h) do n.º 2 do artigo 140.º do Código de Trabalho, execução de obra, no âmbito do seu objeto de atividade a decorrer no ..., .... (…)

Cláusula 2ª: CATEGORIA PROFISSIONAL: Operário não diferenciado. Cláusula 3ª (…) RETRIBUIÇÕES MINIMAS FIXADAS PARA AS CATEGORIAS PROFISSIONAIS ACIMA MENCIONADAS (…)

Operário não diferenciado PREÇO/MÊS € 505

RETRIBUIÇÃO DEVIDA PELO UTILIZADOR À 1ª OUTORGANTE

CATEGORIA PROFISSIONAL PREÇO /HORA PREÇO/MÊS

Operário não diferenciado € 6,80 € 1 140

Estes preços encontram-se sujeitos à taxa legal de 23% de IVA:

- Feriados com acréscimo de 100% ao valor hora/normal.

-horas noturnas com acréscimo de 50% ao valor hora/normal.

(…)

-Trabalho suplementar faturado nos termos da lei em vigor.

(…)

4.1. – INICIO DO CONTRATO:

10 de Fevereiro de 2015

(…)

CLÁUSULA 7ª – CONDIÇÕES DE PAGAMENTO

As retribuições previstas neste contrato serão liquidadas pela segunda contraente, em regime de pagamento de 50% com a colocação do(s) Colaborador(es) e os restantes 50% no final do mês, após receção da fatura, restantes pagamentos após a receção da fatura e acrescido de IVA em vigor a cada momento. (…)”.

2. Em 21 de março de 2015 a A. emitiu, e remeteu à R., a fatura FA ... junta a fls. 6 e 7 vº, cujo teor se dá por reproduzido, no valor de € 16 698,17, concernente à cedência de trabalhadores no âmbito do acordo referido em 1.

3. A R. não procedeu ao pagamento da mesma.

4. Inicialmente a R. solicitou à A. cinco funcionários.

5. Após tal solicitação a R. encetou diligências de recrutamento de trabalhadores.

6. Posteriormente, em data não concretamente apurada, a R. solicitou à A. doze funcionários.

7. Após o referido a A. encetou as diligências de recrutamento de mais trabalhadores.

8. A R. tinha-se comprometido com o seu cliente a terminar a obra a 20 de março de 2015.

9. A R. findou a obra cerca de duas semanas depois do referido em 8.

10. Por email de 18 de fevereiro de 2015 a A. remeteu à R. as fichas de admissão na segurança social dos trabalhadores FF, GG, HH, II e JJ.

11. Por email de 13 de fevereiro de 2015 a A. remeteu à R. cópia do cartão de cidadão dos trabalhadores JJ, FF, HH, II, GG.

12. Por email de 09 de março de 2015 a A. remeteu à R. as fichas de aptidão médica dos trabalhadores KK, II, LL, MM, NN, OO, GG, PP, HH, QQ, FF e RR.

13. A A. não remeteu à R. outros documentos de identificação, nem as qualificações e referências dos trabalhadores recrutados.

14. A A. cedeu à R., pelo menos, os trabalhadores referidos em 10 a 12.

15. Alguns dos trabalhadores cedidos pela A. à R., cuja identificação não se apurou, trabalharam apenas algumas horas num único dia ou abandonaram a obra sem explicação.

16. A R., por e-mails de 16 de março de 2015, 19 de março de 2015 e 30 de março de 2015 que aqui se reproduzem demonstrou à A. a sua insatisfação pelas faltas de funcionários.

17. Nem sempre a R. conseguiu que, em obra, estivessem pelo menos cinco trabalhadores por si recrutados.

B) Fundamentação de Direito:

B1) Os presentes autos respeitam a ação declarativa comum instaurada em 19/6/2017, tendo o acórdão recorrido sido proferido em 28/03/2019.

Assim sendo, são aplicáveis:

- O Código de Processo do Trabalho (CPT), na versão atual;

- O Código de Processo Civil (CPC) na versão atual.

B2) A primeira questão colocada pela recorrente consiste em saber se o Tribunal da Relação devia ter liminarmente rejeitado o recurso de apelação: (i) pela forma como o mesmo foi apresentado (conclusões A. a H.); (ii) por ter sido rejeitada a reapreciação da matéria de facto (conclusões I. a FF.).

No que respeita ao modo como de interposição do recurso dispõe o art.º 637.º n.º 1 do Código de Processo Civil que «os recursos interpõem-se por meio de requerimento dirigido ao tribunal que proferiu a decisão recorrida, no qual se indica a espécie, o efeito e o modo de subida do recurso interposto».

A R., aquando notificação da interposição do recurso de apelação por parte da A., foi notificada de tal requerimento, não tendo manifestado, na altura, relativamente a este aspeto, qualquer discordância, configurando assim, neste momento, uma questão nova, que não pode ser objeto de apreciação.

De qualquer forma, cumpre referir que, ao contrário do que invoca a ora Recorrente, a A. dirigiu o requerimento de interposição de recurso de apelação ao Tribunal de primeira instância, como se pode concluir da análise de fls. 235 (verso) dos autos, cumprindo assim o disposto no art.º 637.º do Código de Processo Civil, pelo que não assiste qualquer razão à Recorrente relativamente a este aspeto.

No que concerne à segunda razão invocada pela recorrente, para a rejeição do recurso, por ter sido rejeitada a reapreciação da matéria de facto, importa referir que a A. apelou, requerendo a reapreciação da matéria de facto, porquanto não concordava com parte daquela decisão, mas a apreciação do recurso de apelação não estava totalmente dependente da reapreciação da matéria de facto.

O objeto da apelação era mais lato do que isso e a apreciação da decisão de Direito da primeira instância não estava inteiramente dependente das alterações à matéria de facto que a A. pretendia ver realizadas.

O que a A. pretendia é que se desse como provado que cedeu os trabalhadores à R., que estes prestaram o trabalho e que, consequentemente, a R. fosse condenada a pagar à A. o valor por esta peticionado. Era este o objeto do recurso de apelação.

Assim sendo, a não reapreciação da matéria de facto não era fundamento para rejeição do recurso de apelação, pelo que, bem andou o Tribunal da Relação ao não rejeitar a apelação com base neste fundamento.

Acresce que, cabe ao relator a quem o acórdão é distribuído verificar desde logo se alguma circunstância obsta ao conhecimento do recurso – art.º 652.º, n.º1, al. b) do CPC, sendo que, se o Relator considerar que nada obsta, isto é que estão preenchidos todos os requisitos de recorribilidade, deve julgar o recurso. Se considerar que não pode conhecer do objeto do recurso, (por falta dos referidos pressupostos) tem que dar despacho nesse sentido, depois de ouvidas as partes para o efeito – art.º 655.º do CPC).

Considerando-se preenchidos todos os requisitos de recorribilidade, estaremos pois já perante uma questão de procedência ou improcedência de alguma parte ou de todo o objeto do recurso e não perante uma questão de rejeição liminar do mesmo.

Assim, a rejeição da reapreciação da matéria de facto, num recurso de apelação que tinha outro objetivo para além desse – a revogação da decisão de Direito da primeira instância e a condenação da R. no pagamento da quantia peticionada – não era motivo para a rejeição liminar da apelação.

B3) A segunda questão equacionada tem por objeto determinar se com a factualidade dada como provada pela primeira instância, o Tribunal da Relação podia ter julgado procedente o pedido da A., ainda que relegando a condenação concreta para incidente de liquidação (conclusão GG. e seguintes).

Na decisão da 1.ª instância refere-se que «a procedência do pedido impunha, a prova da cedência dos mesmos (trabalhadores) e das horas de trabalho por eles realizadas o que a A., como resulta da matéria de facto, não provou. Por tal facto, não tendo a A. provado os factos constitutivos de que dependia a procedência do seu pedido – ou seja o cumprimento da sua obrigação – não pode o pedido proceder».

Como já se referiu o Tribunal da Relação rejeitou a reapreciação da matéria de facto, por considerar não observados os ónus de impugnação, previstos no art.º 640.º do Código de Processo Civil.

 Quanto ao demais, consta na referida decisão o seguinte:

 «Nesta ação não está diretamente em causa a relação de trabalho entre o trabalhador e a empresa utilizadora e/ou a empresa cedente, mas a relação contratual entre a empresa de trabalho temporário, a A. apelante, e a empresa utilizadora, a R. apelada.

A sentença recorrida considerou válido o contrato de utilização de trabalho temporário celebrado. Esta parte da sentença não foi impugnada, pelo que se tem como assente a sua validade, em face do trânsito em julgado relativamente a esta questão.

O art.º 762.º do Código Civil (CC) prescreve que o devedor cumpre a obrigação quando realiza a prestação a que está vinculado (n.º 1); no cumprimento da obrigação, assim como no exercício do direito correspondente, devem as partes proceder de boa-fé (n.º 2).

Nos termos do art.º 763.º do CC a prestação deve ser realizada integralmente e não por partes, exceto se outro for o regime convencionado ou imposto por lei ou pelos usos (n.º 1).

2. O credor tem, porém, a faculdade de exigir uma parte da prestação; a exigência dessa parte não priva o devedor da possibilidade de oferecer a prestação por inteiro (n.º 2).

Em conjugação com as normas jurídicas citadas, devemos ter em conta que incumbe ao devedor provar que a falta de cumprimento ou o cumprimento defeituoso da obrigação não procede de culpa sua (art.º 799.º n.º 1 do CC)

Resulta dos factos provados que a autora apelante cedeu à ré apelada, pelo menos, os trabalhadores referidos nos pontos 10 a 12.

Resulta ainda dos factos provados que alguns desses trabalhadores cedidos pela A. à R., cuja identificação não se apurou, trabalharam apenas algumas horas num único dia ou abandonaram a obra sem explicação.

Da análise do conjunto dos factos provados podemos concluir que a autora cedeu trabalhadores à ré e não está provado qualquer facto donde resulte que esta pagou o preço pela cedência.

Incumbia à ré alegar e provar que houve cumprimento defeituoso e incumbia à autora alegar e provar que esse cumprimento defeituoso não se deveu a culpa sua, nos termos do já citado art.º 799.º n.º 1 do CC.

A obrigada à cedência de trabalhadores tem o ónus de provar que cedeu os trabalhadores e a utilizadora dos trabalhadores tem o ónus de provar que pagou, que não ocorreu a cedência ou que ocorreu mas de forma deficiente.

Dos factos provados resultam dúvidas quanto ao número de trabalhadores cedidos e não se sabe quanto tempo trabalharam ao serviço da ré utilizadora.

Todavia, não restam quaisquer dúvidas quanto à cedência de trabalhadores e que a ré os utilizou ao seu serviço na obra.

A ré está obrigada a pagar de acordo com o número de trabalhadores cedidos e dias e/ou horas de trabalho prestadas ao seu serviço, pois não provou que pagou à autora cedente qualquer quantia.

Outra solução constituiria um enriquecimento ilegítimo da empresa utilizadora, aqui ré, que a ordem jurídica não consente.

Como os autos não permitem apurar qual o montante que a ré está obrigada a pagar pela cedência dos trabalhadores, relega-se o seu cálculo para o incidente de liquidação da sentença previsto nos art.ºs 358.º n.º 2 a 361.º do CPC, em fase prévia à execução (art.º 609.º n.º 2 do mesmo código).»

            Como consta na decisão recorrida ficou provado que a A. cedeu efetivamente trabalhadores à R (facto provado sob o n.º 14, que remete para os factos 10 a 12).

Alguns trabalhadores (não se sabe quantos) prestaram trabalho para a R., desconhecendo-se durante quanto tempo o fizeram, (se horas, se dias!) – factos provados 15. e 17.);

Com efeito, ainda que os autos não tenham permitido aferir quantos trabalhadores prestaram efetivamente trabalho para a R., o que é certo, é que se provou que alguns o fizeram.

A A. alegou e provou a falta de pagamento da fatura (facto provado sob o n.º 3) e a R. não demonstrou que tenha pago qualquer valor correspondente à mesma.

Perante esta factualidade provada compreende-se bem a dificuldade que o Tribunal da Relação teve em condenar a R. num pagamento em concreto.

Contudo, é indiscutível que a A. cedeu trabalhadores à R. e que alguns trabalharam efetivamente para esta.

É também indiscutível que a fatura foi apresentada a pagamento e que a R. não pagou a mesma, nem a totalidade, nem parte da mesma.

Se a R. considerava que muitos trabalhadores estavam faltosos, perante a apresentação da fatura a pagamento por parte da A., cabia-lhe fazer as contas ao trabalho efetivamente prestado, pagar apenas esse e recusar o pagamento do trabalho que não lhe foi prestado, invocando e demonstrando que o cumprimento por parte da A. fora defeituoso, cabendo a esta última demonstrar que a falta de cumprimento total não se deveu a culpa sua, nos termos do art.º art.º 799.º do Código Civil.

 Acontece que da análise da factualidade provada não se retira quaisquer factos que permitam concluir pela culpa da A. no não cumprimento total da prestação trabalho. Na verdade, nada se sabe sobre que trabalhadores abandonaram a obra, ao fim de quanto tempo o fizeram e a respetiva razão.

Assim sendo, e com base na factualidade dada como provada, cabia à R. pagar o trabalho que recebeu.

Pelo exposto, é de manter a decisão recorrida.

           

                                               III

            Decisão:

  Face ao exposto acorda-se em negar a revista, confirmando-se o acórdão recorrido.

Custas a cargo da recorrente.

Anexa-se sumário do acórdão.

Lisboa, 13 de novembro de 2019.

Chambel Mourisco (Relator)

Paula Sá Fernandes

António Leones Dantas