Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
542/14.0YLSB.L1.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÂO
Relator: ABRANTES GERALDES
Descritores: PROCEDIMENTOS CAUTELARES
ADMISSIBILIDADE DA REVISTA
ART. 629º Nº 2 AL. D) DO NCPC
ESSENCIALIDADE DA CONTRADIÇÃO DE ACÓRDÃOS
Data do Acordão: 11/11/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO DE REVISTA
Decisão: REJEITADO O RECURSO DE REVISTA
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - PROCESSO / PROCEDIMENTOS CAUTELARES / RECURSOS.
Doutrina:
- Ribeiro Mendes, Recursos em Processo Civil, p. 290.
- Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, 2ª ed., pp. 556 e 557.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (NCPC): - ARTIGOS 370.º, N.º2, 629.º, NºS 1 E 2 AL. D).
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 7-2-80, BMJ 294º/248;
-DE 4-5-10, CJSTJ, TOMO III, P. 63.
Sumário :
1. Nos procedimentos cautelares, a admissibilidade do recurso de revista está condicionada pela verificação de alguma das excepções previstas no art. 629º, nº 2, do NCPC.

2. Ao abrigo da previsão da al. d) do referido normativo, apenas releva a verificação de uma contradição entre o acórdão recorrido e outro acórdão da Relação relativamente a uma questão de direito que se tenha revelado verdadeiramente decisiva para os resultados declarados em qualquer dos acórdãos.

3. Não se verifica esse requisito quando no acórdão fundamento se admitiu a providência de restituição provisória da posse com base no pressuposto de que a requerente era possuidora de um estabelecimento comercial instalado numa loja de um centro comercial, ao passo que no acórdão recorrido foi negada à requerente a qualidade de possuidora, por falta do elemento subjectivo da posse.

Decisão Texto Integral:

1. A requerente obteve do tribunal de 1ª instância a restituição provisória da posse de uma loja num Centro Comercial, providência que foi mantida, apesar de a requerida ter deduzida oposição.

Desta decisão interpôs a requerida recurso de apelação, tendo a Relação revogado a decisão da 1ª instância.

Pese embora o disposto no art. 370º, nº 2, do NCPC, que, em regra, veda o recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça, a requerente da providência, para sustentar a sua admissibilidade, ao abrigo do art. 629º, nº 2, al. d), veio alegar que o acórdão recorrido contradiz outro acórdão da mesma Relação, sobre a mesma questão fundamental de direito, pretendendo que, uma vez admitida a revista, seja revogado o acórdão recorrido e seja reposta a decisão da 1ª instância.

Importa apreciar liminarmente a admissibilidade da revista.


2. Ao acórdão recorrido subjaz a seguinte situação:

- A requerente da providência e requerida, esta como administradora de um Centro Comercial, outorgaram um contrato de utilização de loja em Centro Comercial, na qual a requerente instalou um estabelecimento comercial.

- O prazo previsto para tal contrato foi de 6 anos, com início em 31-8-02 e terminus em 26-9-08, tendo sido acordado que, decorrido o sexénio, o contrato caducaria, podendo as partes celebrar novo contrato nos termos e condições a acordar entre ambas.

- Decorrido o sexénio, as partes não outorgaram outro contrato. Contudo, a requerente manteve no mesmo local o seu estabelecimento comercial, pagando à requerida a retribuição mensal que anteriormente havia sido acordada, emitindo esta as correspondentes facturas-recibo, até Janeiro de 2014.

- A partir desta data, a requerida alterou a sua postura e passou a recusar o recebimento das quantias que a requerente mensalmente lhe enviava, assim como recusou a emissão das facturas-recibo, ao passo que a requerente considerava que a utilização da loja, depois de caducado o contrato anteriormente celebrado, era desenvolvida ao abrigo de um contrato verbal de arrendamento comercial.

- Neste contexto, a requerida procedeu à mudança da fechadura da loja do Centro Comercial, impedindo o acesso à mesma por parte da requerente da providência que, assim, se viu impedida de continuar a explorar o estabelecimento comercial que nela estava instalado.

- No acórdão recorrido foi considerado que, tendo caducado o contrato de utilização de loja em Centro Comercial e, apesar de a requerente da providência se ter mantido no local, ao mesmo tempo que eram trocadas comunicações tendentes à outorga de um novo contrato que nunca veio a ser celebrado, não se configura uma situação de verdadeira posse: para além de não ter sido outorgado novo contrato, faltaria o elemento subjectivo passível de configurar uma verdadeira posse, sendo a requerente mera detentora da loja.


3. Já no acórdão fundamento a situação que estava em discussão era a seguinte:

- Também foi celebrado um contrato de utilização de loja em Centro Comercial. Com fundamento no alegado incumprimento por parte da requerida, administradora do Centro Comercial, de obrigações relacionadas com o seu funcionamento e dinamização, a outra parte recusou efectuar o pagamento da contraprestação mensal acordada.

- Com base nessa recusa, a administradora do Centro Comercial comunicou-lhe a resolução do contrato, a qual foi não foi aceite pela requerente da providência, o que levou aquela a apoderar-se da loja e de todos os elementos que constavam do estabelecimento comercial.

- Fê-lo ao abrigo de uma cláusula contratual, segundo a qual, uma vez resolvido o contrato, lhe era conferida a possibilidade de utilizar a chave que ficou em seu poder para reassumir a loja, sendo que a não aceitação da resolução apenas daria à utilizadora da loja o direito de a accionar judicialmente, não podendo opor-se à produção dos efeitos próprios da resolução operada.

- Foi então requerida a providência de restituição provisória da posse da loja do Centro Comercial, decisão que foi confirmada pela Relação no acórdão que foi apresentado como contraponto da admissibilidade do presente recurso de revista.

- Em tal acórdão foi decidido que a restituição provisória da posse não pode ser usada para defender a posição do cessionário num contrato de cedência da loja em Centro Comercial, considerando que tal possibilidade apenas é excepcionalmente conferida ao arrendatário, não admitindo essa norma aplicação analógica ao outro contrato.

- Contudo, depois de considerar que estava afectada de nulidade a cláusula que conferia à administradora do Centro Comercial a possibilidade de usar da acção directa, a restituição provisória da posse foi julgada procedente na medida em que tinha por objecto o estabelecimento comercial que fora instalado na loja e de que a requerente era possuidora, posse de que foi esbulhada por recurso ilegal à acção directa.

- Para o efeito considerou-se que o facto de a requerente já não beneficiar de título que lhe permitia ocupar a loja do centro Comercial, atenta a declaração de resolução do contrato, não relevava nessa providência, bastando para o seu deferimento a demonstração de que a requerente tinha o poder material sobre a coisa, ou seja, tinha a posse do estabelecimento comercial em termos de aparente titularidade da propriedade do mesmo.


4. Em suma, no acórdão fundamento considerou-se que, apesar de ter operado a resolução do contrato de utilização de loja em Centro Comercial, a requerente da providência tinha a qualidade de possuidora do estabelecimento comercial que na mesma estava instalado, assim se justificando a concessão da providência cautelar.

Já no acórdão recorrido se considerou que, uma vez caducado o contrato de utilização da loja em Centro Comercial, a manutenção da exploração da loja enquanto eram trocadas comunicações para a concretização de novo contrato não configurava uma situação possessória, já que lhe faltaria o elemento subjectivo.

Não está em causa neste momento sindicar a bondade do julgamento que foi efectuado, mas simplesmente apurar se entre ambos os acórdãos da Relação se verifica uma contradição jurisprudencial imprescindível para a admissibilidade da revista.

A resposta é negativa.


5. O art. 629º, nº 2, al. d), do NCPC, admite a interposição de recurso de revista, em casos em que, não sendo admitido tal recurso por razões estranhas à alçada da Relação, se verifique a contradição entre o acórdão recorrido e outro acórdão da Relação, sobre a mesma questão fundamental de direito, sendo qualquer deles proferido domínio da mesma legislação.

Esta solução já constara do art. 678º do anterior CPC, tendo sido inexplicavelmente afastada na revisão do regime dos recursos de 2007.

Mas com a sua repristinação, reabriu--se a possibilidade de aceder ao terceiro grau de jurisdição em casos em que o impedimento ao recurso não reside no facto de o valor da acção ou o da sucumbência ser inferior aos limites mínimos resultantes do nº 1 do art. 629º do NCPC, mas noutro motivo de ordem legal.

Assim acontece em sede dos procedimentos cautelares, em que, em regra, independentemente do seu valor processual, não se admite a interposição do recurso de revista (art. 370º, nº 2, do NCPC), a não ser que com este se projecte a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça para dirimir uma contradição jurisprudencial.

6. Esta possibilidade, de natureza extraordinária, depende, no entanto, de pressupostos que devem ser apreciados com rigor, obstando a que, de modo enviesado, se consiga aceder ao terceiro grau de jurisdição em casos que extravasam o âmbito do preceito legal.

Como se disse, em primeiro lugar é necessário que o acesso ao Supremo não esteja vedado por razões ligadas à alçada da Relação, pois se for este o motivo da restrição, a questão de direito sobre a qual existe contradição será susceptível de ser apreciada pelo Supremo noutros casos, sem necessidade de invocar a recorribilidade extraordinária.

Em segundo lugar deve verificar-se uma relação de identidade entre a questão que foi objecto de um e de outro aresto, não bastando que num e noutro acórdão se tenha abordado o mesmo instituto jurídico. Tal pressupõe que os elementos de facto relevantes para a ratio da regra jurídica sejam coincidentes num e noutro caso, isto é que, a subsunção jurídica feita em qualquer das decisões contraditórias tenha operado sobre o mesmo núcleo factual, sem se atribuir relevo a elementos de natureza acessória (cfr. o Ac. do STJ, de 4-5-10, CJSTJ, tomo III, pág. 63).

Em terceiro lugar pressupõe-se que exista uma efectiva contradição de decisões,oposição que deve ser frontal e não apenas implícita ou pressuposta (neste sentido, Ribeiro Mendes, Recursos em Processo Civil, pág. 290, pronunciando-se sobre o anterior recurso para o Pleno, mas com inteira aplicação ao caso). Não bastando para o efeito uma qualquer contradição relativamente a questões laterais ou secundárias, a questão de direito deve apresentar-se com natureza essencial para o resultado que foi alcançado em ambas as decisões, sendo irrelevante a contradição que respeitar apenas a algum argumentos sem valor decisivo ou obiter dicta (cfr. Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, 2ª ed., págs. 556 e 557, e o Ac. do STJ, de 7-2-80, BMJ 294º/248, proferido no âmbito de um anterior recurso para o Pleno).

Por fim, a divergência deve verificar-se num quadro normativo substancialmente idêntico.

7. A integração da concreta situação nos aludidos requisitos que emergem do texto legal conduz a um resultado negativo.

Verificando-se o primeiro e quarto requisitos, já o mesmo não ocorre quanto ao segundo e ao terceiro, ou seja, quanto à identidade da situação que subjaz a cada uma das decisões e à contradição do acórdão recorrido com o acórdão fundamento.

Pode até afirmar-se que a situação de facto que subjaz a cada uma das situações é diversa, diversidade que se estende ao respectivo enquadramento jurídico.

No acórdão recorrido estava em causa um contrato de cedência de loja em Centro Comercial a que a administradora pretendeu pôr termo mediante declaração de resolução que, porém, não foi aceite pela requerente da providência.

Já no acórdão recorrido o contrato que foi celebrado extinguiu-se por caducidade decorrente do decurso do prazo contratual, mantendo-se a situação de facto, é certo, por um período dilatado, mas sem que tivesse sido outorgado outro contrato que formalizasse a ocupação e utilização da loja, apesar das diligências efectuadas pela administradora do Centro Comercial e das respostas evasivas que a ocupante foi dando. A permanência da requerente no espaço comercial ocorreu num contexto em que existiam e prosseguiam negociações no sentido de se outorgar novo contrato de utilização de loja em Centro Comercial, resultado que nunca se consumou e que levou a administradora a modificar o seu comportamento, deixando de receber as contraprestações correspondentes à ocupação.

Apesar daquela ocupação e do facto de a requerente ter pago durante um longo período de tempo uma contraprestação em termos semelhantes ao que se verificava durante o período em que vigorou o contrato anteriormente outorgado, concluiu a Relação – nisso fundando a improcedência da providência de restituição de posse – que inexistia uma situação que configurasse a posse, sendo a situação da requerente a de mera detentora.

8. Como já se anunciou, não existe uma relação de identidade entre uma situação (configurada no acórdão fundamento) em que as partes divergem da eficácia da declaração de resolução e da licitude de uma cláusula contratual que autorizava a promotora do Centro Comercial a apoderar-se da loja, depois de declarada a resolução contratual, e outra (apreciada no acórdão recorrido) em que o contrato anteriormente outorgado se extinguira pelo decurso do prazo, mantendo-se, apesar disso, a requerente a explorar o estabelecimento instalado na loja.

A divergência é ainda mais evidente quando se verifica que nesta situação a administradora do Centro Comercial, a partir de certa altura, sem que tivesse sido outorgado novo contrato de cedência de loja, passou a recusar a manutenção da situação de facto e o recebimento da contraprestação que a requerente vinha efectuando.

É verdade que em ambas as situações nos deparamos com dois estabelecimentos comerciais que funcionavam numa loja de Centro Comercial, estabelecimentos esses de que a administradora se apossou, impedindo o acesso aos mesmos das requerentes da providência.

Porém, nem assim se verifica a aludida identidade que é imprescindível para a admissibilidade do recurso de revista.

Com efeito, no acórdão fundamento, depois de se ter considerado que a qualidade de cessionária de uma loja em centro comercial não permite o recurso à restituição provisória da posse, pelo facto de esta apenas ser conferida ao arrendatário, a providência cautelar foi deferida, apesar disso, atribuindo relevo à verificação da situação de posse sobre o estabelecimento comercial que na loja se encontrava instalado.

Já no acórdão recorrido, para além de nem sequer ter sido apreciada a possibilidade de a utilizadora de uma loja em Centro Comercial aceder, enquanto tal, à tutela possessória, a recusa de concessão desta tutela foi sustentada no facto de não existir sequer uma situação de posse (do estabelecimento comercial ou outra), por falta do elemento subjectivo.

Asseverou-se no acórdão recorrido que a requerente “não pode ser considerada possuidora visto que não é detentora propriamente de um contrato celebrado entre as partes posteriormente à cessação do primitivo contrato de utilização”. E acrescentou-se ainda que, tendo sido proteladas as negociações sem se concretizar a outorga de novo contrato, verifica-se “uma ausência de animus passível de poder configurar uma verdadeira posse”, sendo a posição da requerente a de “mera detentora que lhe não permite obter a procedência do presente procedimento”.

De acordo com a fundamentação, subentende-se, aliás, que se fosse configurada a existência da aludida posse, a providência seria aceite como forma de tutela dos interesses da requerente.

Em suma, para além da diversidade de contextos factuais e jurídicos atinentes a cada caso que foi objecto de pronúncia judicial, releva no acórdão fundamento o facto de se ter valorado, para efeitos de concessão da providência, a posse de um estabelecimento comercial instalado ao abrigo de um contrato de cedência de loja em Centro Comercial que fora resolvido pela promotora, ao passo que no acórdão recorrido, a Relação nem sequer atribuiu à requerente a qualidade de possuidora susceptível de justificar o recurso à providência de restituição provisória, devido à falta o elemento subjectivo que relevava da existência de negociações que se mostraram inconclusivas e da mudança de atitude da administradora relativamente à persistência da situação de facto.

Por isso, não se confirma a contradição jurisprudencial em questão que se tenha mostrado verdadeiramente decisiva para a obtenção de cada um dos resultados.

9. Face ao exposto, acorda-se em rejeitar o recurso de revista.


Custas a cargo da recorrente.

Notifique.


Lisboa, 11-11-14


Abrantes Geraldes