Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
590/13.8TVLSB.L1.S1
Nº Convencional: 1.ª SECÇÃO
Relator: MARIA JOÃO VAZ TOMÉ
Descritores: RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
ACIDENTE DE VIAÇÃO
DANOS FUTUROS
JUÍZO DE PROGNOSE
JUROS DE MORA
ÓNUS DA PROVA
CÁLCULO DA INDEMNIZAÇÃO
TRATAMENTO MÉDICO
PRINCÍPIO DA RAZOABILIDADE
CONTAGEM DOS PRAZOS
ATUALIZAÇÃO MONETÁRIA
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
DANO BIOLÓGICO
Data do Acordão: 11/04/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I. Os danos futuros previsíveis são atendíveis.

II. Entre os danos ressarcíveis encontram-se aqueles que o lesado ainda não sofreu, ao tempo da atribuição da indemnização, mas que seguramente ou muito provavelmente virá a sofrer no futuro, por causa do facto ilícito do lesante. Não se tendo ainda produzido, a sua valoração será efetuada com base em juízos de prognose, mediante um cálculo de verosimilhança ou probabilístico.

III. Os danos futuros indemnizáveis compreendem as despesas implicadas pelos tratamentos médico-cirúrgicos que a vítima de acidente estradal haja de suportar quando o julgador dê como assente que tais despesas ocorrerão segundo um critério de atendibilidade razoável e fundada, de segurança bastante ou elevada probabilidade.

IV. Se os danos futuros não forem previsíveis com segurança bastante, o seu ressarcimento apenas pode ser exigido quando ocorrerem.

V. A contagem de juros de mora desde a citação tem em vista a mesma finalidade que a atualização da indemnização à data da sentença: “imputar ao lesante o risco da depreciação monetária ou da erosão do valor da moeda.

VI. O art. 805.º, n.º 3, do CC, tem por objetivo a consagração de um critério abstrato de cálculo dos danos sofridos pelo lesado, decorrentes da demora no pagamento, ulteriores à citação e anteriores à liquidação, sem afastar a teoria da diferença. No caso de a avaliação dos danos ser reportada à data da sentença do Tribunal de 1.ª Instância, à indemnização não podem acrescer juros de mora desde a citação.

VII. Não há que distinguir, nesta sede, entre danos não patrimoniais e danos patrimoniais e, ainda, entre as diversas espécies de danos patrimoniais, uma vez que todos eles são indemnizáveis em dinheiro e suscetíveis, portanto, do cálculo atualizado previsto no art. 566.º, n.º 2, do CC.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça,



I – Relatório

1. AA propôs ação declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra AXA Portugal – Companhia de Seguros, S.A., pedindo a condenação desta no pagamento das seguintes quantias:

a) € 50.000,00, a título de dano não patrimonial;

b) € 36.099,56, a título de danos emergentes;

c) €132.142,00, a título de lucros cessantes;

d) € 190.120,00, a título de lucros cessantes pelas retribuições que a Autora deixará de auferir até à idade da reforma por incapacidade para o desenvolvimento do trabalho e exercício da sua profissão;

e) correspondentes às despesas implicadas pela necessidade de auxílio doméstico e pelos tratamentos médico-cirúrgicos a que a Autora terá de se submeter, relegando-se para execução de sentença o que não for possível apurar até à sentença;

f) tudo acrescido de juros moratórios e compensatórios, à taxa legal, que se vencerem desde a citação até efetivo e integral pagamento.

2. Funda o pedido no atropelamento por veículo segurado na Ré, acidente este da responsabilidade exclusiva do respetivo condutor, que lhe causou danos diversos que assim pretende ver reparados.

3. A Ré AXA Portugal – Companhia de Seguros, S.A., apresentou contestação em que não impugna o modo como o acidente ocorreu, mas apenas alguns dos danos invocados e a indemnização pedida.

4. Após a audiência de julgamento, o Tribunal de 1.ª Instância proferiu a seguinte decisão:

a) Condeno a R a pagar à A a quantia de cento e dezasseis mil, cinquenta e três euros e cinquenta e seis cêntimos [€ 40.000,00 (danos não patrimoniais), € 70.000,00 (lucros cessantes decorrentes do dano corporal], € 5.970,56 (perda de salários) e € 83,00 [pagamento de uma consulta], acrescida de juros de mora calculados à taxa supletiva aplicável aos créditos de natureza meramente civil vencidos desde data da citação da R para a presente ação e até efetivo e integral pagamento;

b) Condeno a R a pagar à A a quantia correspondente ao valor das retribuições que a A deixou de auferir na oficina … ... desde a data do acidente e até cinco de março de dois mil e treze, até ao valor máximo de oito mil e quatrocentos euros, acrescida de juros de mora calculados à taxa supletiva aplicável aos créditos de natureza meramente civil vencidos desde data da citação da R para a presente ação e até efetivo e integral pagamento, a liquidar posteriormente;

c) Condeno a R a pagar à A, a título de danos futuros, as importâncias apuradas com as despesas com ajuda doméstica e com tratamentos médico-cirúrgicos a que vir a ter de se submeter, a liquidar posteriormente;

d) Absolvo a R do pedido quanto ao mais peticionado”.

5. Não conformada, a Autora AA interpôs recurso de apelação.

6. Não foram apresentadas contra-alegações.

7. Por seu turno, a Ré AXA Portugal – Companhia de Seguros, S.A., interpôs recurso subordinado.

8. Os recursos foram recebidos para subirem imediatamente, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.

9. Por acórdão de 23 de janeiro de 2020, o Tribunal da Relação ...... decidiu o seguinte:

Pelo exposto, ACORDAM em julgar improcedente o recurso principal e parcialmente procedente o recurso subordinado e, em consequência:

1) Julgam improcedente a impugnação da decisão de facto;

2) Revogam a decisão recorrida quanto à condenação da Ré a pagar à Autora a título de danos futuros, as importâncias apuradas com as despesas com tratamentos médico-cirúrgicos, a liquidar posteriormente;

3) Revogam a decisão recorrida quanto à condenação no pagamento de juros de mora contados da citação quanto às indemnizações fixadas em € 40.000,00 e € 70.000,00, substituindo-a pela condenação em juros contados desde a data da decisão de primeira instância;

4) Mantêm a decisão no mais,

Custas pela Autora/recorrente - artigo 527.e, n.s 2, do CPC”.

10. Não conformada, a Autora AA interpôs recurso de revista, apresentando as seguintes Conclusões:

1.A Recorrente não se conforma com a decisão proferida pelo Tribunal ad quem, porquanto na mesma não houve uma apreciação correcta dos pressupostos de facto e de direito constantes dos presentes autos.

2. O Tribunal ad quem revogou a decisão recorrida quanto à condenação da Ré a pagar à Autora a título de danos futuros, as importâncias apuradas com as despesas com tratamentos médico-cirúrgicos.

3. Entende a Recorrente que foi feita prova de que em consequência do acidente a Autora poderá vir a necessitar de ser submetida a uma cirúrgia à coluna cervical.

4. O Tribunal a quo deu como provado “existem probabilidades que de a autora vir a necessitar de ser submetida a intervenção cirúrgica à coluna cervical”.

5. O Tribunal a quo para fundamentação deste facto louvou-se no relatório pericial de fls. 207-212, o qual refere “na situação em apreço é de perspectivar a existência de Dano Futuro (considerando exclusivamente como tal o agravamento das sequelas que constitui uma previsão fisiopatologicamente certa e segura, por corresponder à evolução lógica, habitual e inexorável do quadro clínico), o que pode obrigar a uma futura revisão do caso e uma eventual cirurgia à coluna cervical”.

6. O acórdão recorrido revogou a decisão quanto à condenação no pagamento de juros de mora contados desde a citação quanto às indemnizações fixadas em € 40.000,00 e € 70.000,00., substituindo-a pela condenação em juros contados desde a data da decisão de primeira instância.

7. Pelo cálculo da indemnização verifica-se que aquele valor não sofreu actualização.

8. Entende a Recorrente que a Ré deverá ser condenada a pagar os juros de mora contados da citação quanto à indemnização de € 70.000,00.

9. Em face do exposto, deve a decisão recorrida ser alterada por outra que condene a Ré nos termos peticionados.

Nestes termos demais de direito, com o sempre mui douto suprimento de V. Exas., deverá ser concedido provimento ao presente recurso e, revogando-se o Acordão na parte recorrida, farão Vossas Excelências, a costumada JUSTIÇA!”

11. A Ré AXA Portugal – Companhia de Seguros, S.A., não apresentou contra-alegações.

II – Questões a decidir        

Atendendo às conclusões do recurso, que, segundo os arts. 608.º, n.º 2, 635.º, n.º 4 e 639.º, do CPC, delimitam o seu objeto, e não podendo o Supremo Tribunal de Justiça conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser em situações excecionais de conhecimento oficioso, estão em causa as seguintes questões:

- da indemnização dos  danos futuros  decorrentes de  despesas com  tratamentos médico-cirúrgicos;

- do termo inicial de contagem dos juros de mora sobre as quantias atribuídas a título de compensação de danos não patrimoniais e de indemnização do dano biológico.

           

III - Fundamentação

A) De Facto       

Foram dados como provados os seguintes factos:

A) No dia 5 de março de 2010, pelas 8h30m, a A. foi atropelada pelo veículo ligeiro de mercadorias, da marca ..., matrícula ...-...-QE, propriedade da sociedade Joaquim Estevão Unipessoal., Lda.

B) O veículo era conduzido pelo empregado da proprietária do veículo, de nome BB.

C)   O embate deu-se em cima da passadeira para peões que se situa no final do Largo... ..., junto ao início da Rua ....

D)   A Rua ... apresenta uma faixa de rodagem de sentido único, com estacionamento nas laterais, e o trânsito faz-se do final para o início da Rua, de Norte para Sul, e da esquerda para a direita atento o sentido de marcha da A., com continuação pelo Largo... ....

E)    A A. pretendia atravessar o Largo... ..., em direção à Av. ..., sentido poente/nascente.

F)    A A. fazia a travessia em cima da passadeira para peões quando foi embatida pelo veículo ...-...-QE.

G)   O embate deu-se quando o condutor do veículo encetava uma manobra de marcha atrás, sentido Sul/Norte.

H) A traseira do veículo embateu no ombro e membro superior direito da A., projetando-a no solo.

I) Como consequências diretas do embate a A. sofreu: a) Contusão do braço direito; b) Entorses e distensões (articulação) (ligamento) acromioc na coluna cervical; c) Contusão do dorso; d) Lombalgia.

J) A A apenas se dirigiu ao hospital no dia seguinte, em virtude de as dores se terem intensificado, recorrendo então ao serviço de urgências do Hospital de ..., onde recebeu tratamento, foi observada no serviço de ortopedia e cirurgia plástica, fez RX e TAC à coluna cervical, foi medicada com Tramadol, Metroclopramida e Zaldiar e enviada para o médico assistente.

K) A A. voltou às urgências do Hospital de ... no dia 12/03/2010 devido ao agravamento da sua saúde, com intensificação das dores no braço direito.

L) Por indicação e marcação da R., a A. foi observada no Hospital ... no dia 06/04/2010.

M) Entre 04/05/2010 e 09/02/2012 a A. foi observada em 43 consultas médicas no Hospital ....

N) No Hospital ..., a A. foi submetida a duas intervenções cirúrgicas, com anestesia geral: no dia 03/09/2010, foi operada à rotura da coifa e, no dia 31 de agosto de 2011, foi operada ao ombro.

O) A A fez os seguintes exames complementares: - no dia 16/06/2010, RMN crânio-encefálica - no dia 20/04/2010, Ecografia ao ombro; - no dia 06/01/2010, TAC da coluna lombar; - no dia 06/01/2010, RMN da coluna cervical; - no dia 12/04/2011, Ecografia das partes moles; - no dia 12/04/2011, Electromiograma.

P) Entre 06/04/2010 e 08/02/2012 a A. foi submetida a tratamentos de fisioterapia em todos os dias úteis, tendo despendido €83,00 com uma consulta médica.

Q) Pelos Serviços Médicos da R. foi dado alta clínica à A. no dia 08/02/2012, com a observação de que a A. não estava curada

R) À data da propositura da ação, a A. continuava de baixa médica, por incapacidade, atribuída pela sua médica assistente.

S) Os serviços clínicos da R. atribuíram à A. um quantum doloris de grau 5 numa escala de 0 a 7.

T) A A. tinha, à data do acidente, 37 anos de idade.

U) A A. exercia a profissão de ........

V) A responsabilidade civil emergente de acidentes de viação decorrente da circulação do veículo de matrícula ...-...-QE encontrava-se transferida para a R.

W) Existem probabilidades de a autora vir a necessitar de ser submetida a intervenção à coluna cervical.

X) A autora não apresentava antes do sinistro qualquer defeito físico ou psíquico, embora tenha sofrido uma rotura da coifa em 2009 e sido operada.

Y) Era uma pessoa alegre, divertida e que gostava de conviver.

Z) A autora continua a sofrer dores, que a impedem de descansar e dormir, sofre de tonturas e as mãos incham e ficam dormentes quando o esforço dos membros superiores é maior.

AA) A A., em consequência das lesões sofridas, não consegue fazer esforços físicos com os membros superiores sem sofrer os efeitos mencionados em Z).

BB) A A. sofre de instabilidade com choro fácil, alterações de humor e estados de angústia, face à incerteza da sua cura, sendo que também lhe foi diagnosticado um tumor no colo do útero (que teve de ser retirado).

CC) A autora sofre por não poder trabalhar nem poder assegurar as tarefas domésticas e, até este ter começado a trabalhar, a subsistência do filho.

DD) O esforço físico que a prestação de trabalho doméstico exige impede a A. de retomar a sua atividade e de exercer a sua profissão ....... .........

EE) Desde o dia do acidente a A. não voltou a trabalhar e não poderá voltar a trabalhar na sua atividade habitual face às lesões físicas de que sofre, pese embora possa exercer outras profissões compatíveis com a sua preparação técnico-profissional.

FF) A Autora passou a auferir €178,15 a título de RSI a partir de março de 2014.

GG) À data do acidente a A. era empregada de CC, prestando trabalho na sua residência sita na Av. ......, em ..., auferindo uma remuneração mensal de €500,00.

HH) Em resultado do prolongamento da sua incapacidade para prestar o seu trabalho, a A. foi despedida pela sua entidade empregadora.

II) A A. prestava ainda ........ na .........., sita na Rua ......., ..., em ..., auferindo um valor concretamente não apurado.

JJ) A A. necessita da ajuda de terceiros para a realização de alguns trabalhos domésticos que exigem maior esforço, tais como a limpeza da casa e o tratamento da roupa.

KK) As sequelas das lesões determinaram à A. uma IPP de 20,96%.


Foram considerados como não provados os seguintes factos:

“1. Sem prejuízo do referido em W), a autora necessita de ser submetida a intervenção à coluna cervical.

2. Sem prejuízo do referido em BB) e CC), a A. sofre de instabilidade com choro fácil, alterações de humor e estado de angústia exclusivamente por causa da incerteza da sua cura quanto às lesões que sofreu em consequência do acidente em causa nos autos.

3. Sem prejuízo do referido em EE), em virtude do sinistro e tendo em conta a sua idade e habilitações, a autora não conseguirá exercer outra atividade que exija todo e qualquer esforço físico.

4. Sem prejuízo do referido em GG), a Autora não aufere qualquer rendimento ou subsídio desde Fevereiro de 2012.

5. Sem prejuízo do referido em GG), a autora auferia uma retribuição base mensal de € 735,00, acrescido da refeição do almoço que lhe era fornecida, na quantia de € 110,00 mensais, o que totaliza € 845,00 mensais.

6. Sem prejuízo do referido em II), pela prestação desses serviços a autora auferia em média cerca de € 200,00 mensais.

7. Sem prejuízo do referido em JJ), a A. carece de auxílio de terceiros para confeção de alimentos.

8. A A. despendeu, com pagamento de trabalho doméstico no ano de 2012, a quantia de € 4.536,00 (quatro mil quinhentos e trinta e seis euros).

B) De Direito

Na responsabilidade civil extracontratual resultante da circulação de veículos automóveis, o critério fundamental para a determinação judicial da indemnização encontra-se estabelecido no CC. Apesar de poderem ser ponderados pelo julgador, os critérios e valores constantes da Portaria n.º 377/2008, de 26 de maio (com as alterações introduzidas pela Portaria n.º 679/2009, de 25 de junho) visam apenas e tão somente a elaboração de proposta pela empresa seguradora em ordem à regularização extrajudicial de sinistros[1].

Danos futuros decorrentes de despesas com tratamentos médico-cirúrgicos

Na opinião da Autora AA, o Tribunal da Relação ...... não devia ter revogado a sentença do Tribunal de 1.ª Instância, na parte em condenou a “a R a pagar à A, a título de danos futuros, as importâncias apuradas com as despesas com ajuda doméstica e com tratamentos médico-cirúrgicos a que vir a ter de se submeter, a liquidar posteriormente”.

Por seu turno, de acordo com o facto provado sob a letra W), “existem probabilidades de a autora vir a necessitar de ser submetida a intervenção à coluna cervical”. Foi, efetivamente, dado como provado que existem probabilidades de a Autora vir a necessitar de intervenção cirúrgica à coluna cervical.

Conforme o art. 564.º, n.º 2, do CC, “Na fixação da indemnização pode o tribunal atender aos danos futuros, desde que sejam previsíveis; se não forem determináveis, a fixação da indemnização correspondente será remetida para decisão ulterior”.

Os danos futuros previsíveis são, pois, atendíveis. Assim, entre os danos ressarcíveis encontram-se aqueles que o lesado ainda não sofreu, ao tempo da atribuição da indemnização, mas que seguramente ou muito provavelmente virá a sofrer no futuro, por causa do facto ilícito do lesante.

Danos futuros são os prejuízos que não produzem efeitos imediatamente após o evento danoso, mas que se manifestam ulteriormente. Trata-se de danos não ainda presentes ao tempo em que é exigida e concedida a reparação, mas que se verificarão seguramente no futuro. São danos de natureza patrimonial. Não se tendo ainda produzido, a sua valoração será efetuada com base em juízos de prognose, mediante um cálculo de verosimilhança ou probabilístico.

Os danos futuros indemnizáveis compreendem as despesas implicadas pelos tratamentos médico-cirúrgicos que a vítima de acidente estradal haja de suportar quando o julgador dê como assente que tais despesas ocorrerão segundo um critério de atendibilidade razoável e fundada. Esses danos emergentes futuros pressupõem, pois, a convicção do julgador de que tais despesas serão suportadas pelo lesado conforme aquele critério da atendibilidade razoável e fundada, da segurança bastante. I.e., apenas se admite a ressarcibilidade de despesas médico-cirúrgicas futuras em que o lesado incorrerá com elevada probabilidade.

Na verdade, os danos futuros previsíveis são certos ou altamente prováveis. Para serem indemnizados, devem ser provados pelo lesado, pois é sobre ele que impende o ónus da prova da existência do dano (o an), da sua medida (o quantum) e do nexo de causalidade entre ele e o facto ilícito. No caso de os danos futuros previsíveis não serem determináveis, a fixação da respetiva indemnização é remetida para decisão ulterior (art. 564.º, n.º 2, do CC). Por seu turno, na hipótese de não poder ser provada a sua medida precisa, i.e., quando os elementos, considerados suficientes, não consintam a determinação certa do quantum do dano, a fixação da correspondente indemnização tem lugar segundo a equidade (art. 566.º, n.º 3,do CC).

Naturalmente que o grau de certeza que deve existir para tornar o dano futuro ressarcível – para que seja considerado como previsível - não é o mesmo daquela que carateriza o dano presente. A especificidade dos danos futuros previsíveis reside justamente no facto de, não se tendo ainda verificado no momento da atribuição da indemnização, virem verossimilmente a produzir-se segundo um grau de elevada probabilidade com base no critério do id quod plerumque accidit.

A previsibilidade dos danos futuros inculca, pois, um elevado grau de probabilidade, atendendo aos efeitos geralmente associados à lesão causada e às especificidades das circunstâncias concretas do lesado e do evento. Daqui resulta a necessidade da existência de “suficiente segurança”: i.e., os danos futuros devem ser previsíveis com segurança bastante. Se o não forem, o tribunal não pode condenar o lesante a reparar danos que não se sabe se virão a produzir-se. Por conseguinte, se os danos futuros não forem previsíveis com segurança bastante, o seu ressarcimento apenas pode ser exigido quando ocorrerem[2].

Conforme mencionado supra, a previsibilidade com segurança dos danos pode resultar da verosimilhança ou de probabilidades da sua produção: a certeza dos danos futuros pode decorrer do facto de serem o desenvolvimento seguro de danos atuais, mesmo que o respetivo quantum seja incerto. Entre a certeza e a elevada probabilidade subsiste, ainda, uma margem significativa de apreciação para os tribunais, de acordo com as regras da experiência comum[3].

De um lado, não basta a mera eventualidade de um prejuízo futuro para justificar a condenação do lesante no pagamento da respetiva indemnização, i.e., para afirmar o dano futuro como imediatamente ressarcível. De outro lado, afigura-se suficiente a atendibilidade fundada de que o dano se venha a produzir segundo a normalidade e regularidade do desenvolvimento causal; a probabilidade relevante de consequências prejudiciais é configurável como dano futuro imediatamente indemnizável sempre que a efetiva diminuição patrimonial surja como resultado da evolução natural de factos concretamente assentes e inequivocamente sintomáticos daquela probabilidade, segundo um critério de normalidade fundado nas circunstâncias do caso concreto. Os danos futuros decorrentes de despesas implicadas por tratamentos médico-cirúrgicos são ressarcíveis quando se assente que tais despesas serão suportadas segundo um critério de atendibilidade fundada e razoável.

Importa, assim, saber se a factualidade provada permite considerar verificados danos futuros indemnizáveis.

Conforme mencionado supra, de acordo com o facto provado sob a letra W), “existem probabilidades de a autora vir a necessitar de ser submetida a intervenção à coluna cervical”. Foi, assim, dado como provado que existem probabilidades de a Autora vir a necessitar de intervenção cirúrgica à coluna cervical.

De acordo com o art. 564.º, n.º 2, do CC, na fixação da indemnização, o tribunal pode atender aos danos futuros previsíveis.

A previsibilidade dos danos futuros corresponde a uma probabilidade elevada da sua produção: segundo as regras da experiência, os danos verificar-se-ão. A mera – que não elevada -  probabilidade significa apenas que os danos podem tanto verificar-se como não se verificar.

Por conseguinte, a prova da mera probabilidade (por não quantificada, não elevada) da necessidade da Autora de intervenção médico-cirúrgica à coluna cervical não demonstra a previsibilidade dos danos. Não, tem, por isso, lugar a correspondente indemnização, pois não pode antecipar-se a sua ocorrência.

Todavia, a Autora AA, mesmo depois do termo da presente lide, pode sempre pedir o ressarcimento dos danos supervenientes – ainda não produzidos - e não razoavelmente previsíveis ao tempo da decisão, após a sua manifestação. Com efeito, não sendo os danos futuros previsíveis com segurança bastante, o seu ressarcimento apenas pode ser exigido quando ocorrerem.

Do termo inicial de contagem de juros de mora sobre as quantias atribuídas, com fundamento na responsabilidade civil por facto ilícito, a título de compensação de danos não patrimoniais e de indemnização do dano biológico

A Autora AA discorda do termo inicial fixado para a contagem dos juros: a sentença do Tribunal de 1.ª Instância.

Segundo o art. 805.º, n.º 2, al. b), do CC, “Há, porém, mora do devedor, independentemente de interpelação: b) Se a obrigação provier de facto ilícito” e, conforme o n.º 3, do mesmo preceito, “Se o crédito for ilíquido, não há mora enquanto se não tornar líquido, salvo se a falta de liquidez for imputável ao devedor; tratando-se, porém, de responsabilidade por facto ilícito ou pelo risco, o devedor constitui-se em mora desde a citação, a menos que já haja então mora, nos termos da primeira parte deste número”.

Deste modo, de acordo com o art. 805.º, n.º 2, al. b), do CC, o titular da obrigação de indemnizar fundada na responsabilidade civil extracontratual por facto ilícito constitui-se em mora no momento da prática do ato ilícito. Esta regra encontra-se em harmonia com aquela do art. 566.º, n.º 2, do CC, segundo a qual a quantificação dos danos é temporalmente balizada pela data da prática do ato ilícito[4].  Com efeito, de acordo com o art. 566.º, n.º 2, do CC, “Sem prejuízo do preceituado noutras disposições, a indemnização em dinheiro tem como medida a diferença entre a situação patrimonial do lesado, na data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal, e a que teria nessa data se não existissem danos”.

A contagem de juros de mora desde a citação tem em vista a mesma finalidade que a atualização da indemnização à data da sentença: “imputar ao lesante o risco da depreciação monetária [5] ou da erosão do valor da moeda – porquanto, desde o início de vigência do DL n.º 200-C/80, de 24 de junho, os juros de mora têm também a função de compensar a desvalorização monetária. Interpretado à luz dos princípios gerais que regem a obrigação de indemnização e o respetivo cálculo, o preceito do art. 805.º, n.º 3, do CC, deve, pois, ser considerado como concretização da teoria da diferença. Tem por objetivo a consagração de um critério abstrato de cálculo dos danos sofridos pelo lesado, decorrentes da demora no pagamento, ulteriores à citação e anteriores à liquidação, sem afastar a teoria da diferença[6].

A indemnização arbitrada pelo Tribunal de 1ª Instância já foi objeto de cálculo atualizado, porquanto, nos termos do art. 566.º, n.º 2, do CC, se levou em linha de conta a correção monetária entre a citação e a decisão. Foi calculada com base no valor que a moeda tinha ao tempo da decisão. A avaliação dos danos foi reportada à data da sentença do Tribunal de 1.ª Instância. Não podem, por isso, acrescer-lhe juros de mora desde a citação.

Note-se que tanto na determinação da compensação dos danos não patrimoniais como na da indemnização do dano biológico, se atendeu, à luz do art. 566.º, n.º 2, do CC, à “data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal” (que implica que se leve em conta a diferença entre o valor da moeda ao tempo da prática do ato ilícito e essa “data mais recente”). Pois tal consideração resulta do próprio princípio geral da indemnização, plasmado no art. 562.º do CC. É que não há que distinguir, nesta sede, entre danos não patrimoniais e danos patrimoniais e, ainda, entre as diversas espécies de danos patrimoniais, uma vez que todos eles são indemnizáveis em dinheiro e suscetíveis, portanto, do cálculo atualizado previsto no art. 566.º, n.º 2, do CC.

Acresce que, em tempos como os atuais (que podem não se manter), caracterizados por uma relativa estabilidade no valor da moeda, em que se assiste à elevação dos pedidos  indemnizatórios e ao desincentivo do protelamento das ações, passou a permitir-se ao juiz, com base no art. 805.º, n.º 3, do CC, sem violar o princípio do pedido, atribuir indemnizações atualizadas em conformidade como art. 566.º, n.º 2.

Não pode, pois, fazer-se incidir sobre tais quantias atualizadas juros moratórios entre a citação e a sentença. Aos prejuízos decorrentes do atraso da liquidação da indemnização, responde, assim, o art. 566.º, n.º 2, do CC, não havendo razão para se considerar que o responsável entrou em mora a partir da citação, pelo cumprimento da obrigação pecuniária em que como que se converteu a obrigação de indemnização.

Se o juiz calcula o montante indemnizatório com base em valores atualizados, em critérios contemporâneos da decisão, não se afigura teleologicamente adequada a aplicação retroativa do corretor monetário. Por conseguinte, a sua intervenção apenas se justifica a partir da data da sentença do Tribunal de 1.ª Instância que, no que toca ao cálculo da correção monetária, constitui, nos termos do art. 566.º, n.º 2, a mais recente que pode e deve ser tida em conta.

Não estamos perante um caso em que o juiz não pode valer-se do art. 566.º, n.º 2, do CC, por o pedido estar muito desatualizado e não ter sido ampliado. Por isso, os juros de mora não devem ser contados desde a citação.

De resto, a propósito da interpretação do art. 805.º, n.º 3, do CC, foi uniformizada jurisprudência (AUJ n.º 4/2002, de 2 de maio de 2002) no sentido de que “Sempre que a indemnização pecuniária por facto ilícito ou pelo risco tiver sido objecto de cálculo actualizado, nos termos do n.º 2 do artigo 566.º do Código Civil, vence juros de mora, por efeito do disposto nos artigos 805.º, n.º 3 (interpretado restritivamente), e 806.º, n.º 1, também do Código Civil, a partir da decisão actualizadora, e não a partir da citação”.

O Tribunal da Relação ...... levou em linha de conta as fórmulas que permitam estabelecer os parâmetros da perda patrimonial com base na situação profissional da lesada ao tempo do acidente, considerando o défice funcional da lesada, o salário por si então auferido, a sua esperança média de vida (em Portugal de 83,41 anos para a população feminina). Não se limitou, por isso, a aplicar a fórmula matemática invocada pela Autora [danos = salário mensal x 14 x T x défice. I.e., danos = € 500,00 x 14 x (83,41-37) x 0,2096 = € 68.092,75]. Apreciou igualmente que a disponibilização imediata do capital em tempo de juros por vezes negativos não implica qualquer dedução no montante do capital por este modo obtido. Considerando, por último, critérios de equidade para corrigir e adequar o montante indemnizatório às circunstâncias do caso concreto, ponderando a situação da Autora antes e depois do acidente. Concluiu no sentido da adequação do montante indemnizatório de € 70.000,00, atribuído à lesada a título de dano biológico, dando-o também como atualizado à data da sentença do Tribunal de 1.ª Instância.

Entendeu igualmente adequada a quantia de € 40.000,00, atribuída à lesada a título de compensação dos danos não patrimoniais, considerando-a atualizada à data da sentença do Tribunal de 1.ª Instância.

Por conseguinte, apenas são devidos juros de mora a partir da data da sentença do Tribunal de 1.ª Instância, contados sobre os montantes de € 40.000,00 e de € 70.000,00.


IV - Decisão

Nos termos expostos, acorda-se em considerar improcedente o recurso interposto por AA.

Custas pela Autora/Recorrente, sem prejuízo do apoio judiciário de que possa beneficiar.


Lisboa, 4 de novembro de 2021.


 Sumário: 1. Os danos futuros previsíveis são atendíveis. 2. Entre os danos ressarcíveis encontram-se aqueles que o lesado ainda não sofreu, ao tempo da atribuição da indemnização, mas que seguramente ou muito provavelmente virá a sofrer no futuro, por causa do facto ilícito do lesante. Não se tendo ainda produzido, a sua valoração será efetuada com base em juízos de prognose, mediante um cálculo de verosimilhança ou probabilístico. 3. Os danos futuros indemnizáveis compreendem as despesas implicadas pelos tratamentos médico-cirúrgicos que a vítima de acidente estradal haja de suportar quando o julgador dê como assente que tais despesas ocorrerão segundo um critério de atendibilidade razoável e fundada, de segurança bastante ou elevada probabilidade. 4. Se os danos futuros não forem previsíveis com segurança bastante, o seu ressarcimento apenas pode ser exigido quando ocorrerem. 5. A contagem de juros de mora desde a citação tem em vista a mesma finalidade que a atualização da indemnização à data da sentença: “imputar ao lesante o risco da depreciação monetária ou da erosão do valor da moeda. 6. O art. 805.º, n.º 3, do CC, tem por objetivo a consagração de um critério abstrato de cálculo dos danos sofridos pelo lesado, decorrentes da demora no pagamento, ulteriores à citação e anteriores à liquidação, sem afastar a teoria da diferença. No caso de a avaliação dos danos ser reportada à data da sentença do Tribunal de 1.ª Instância, à indemnização não podem acrescer juros de mora desde a citação. 7. Não há que distinguir, nesta sede, entre danos não patrimoniais e danos patrimoniais e, ainda, entre as diversas espécies de danos patrimoniais, uma vez que todos eles são indemnizáveis em dinheiro e suscetíveis, portanto, do cálculo atualizado previsto no art. 566.º, n.º 2, do CC.


Maria João Vaz Tomé (relatora)

António Magalhães

Fernando Jorge Dias

_______

[1] Cf. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19 de setembro de 2019 (Maria do Rosário Morgado), proc. n.º 2706/17.6T8BRG.G1.S1 – disponível para consulta in www.dgsi.pt.
[2] Cf. Henrique Sousa Antunes, “Anotação ao Artigo 564.º”, in Comentário ao Código Civil – Direito das Obrigações – Das Obrigações em Geral, Lisboa, Universidade Católica Editora, 2018, p.561.
[3] Cf. Henrique Sousa Antunes, “Anotação ao Artigo 564.º”, in Comentário ao Código Civil – Direito das Obrigações – Das Obrigações em Geral, Lisboa, Universidade Católica Editora, 2018, p.561.
[4] Cf. Maria da Graça Trigo,  “Anotação ao Artigo 805.º”, in Comentário ao Código Civil – Direito das Obrigações – Das Obrigações em Geral, Lisboa, Universidade Católica Editora, 2016, p.1130.
[5] Cf. Maria da Graça Trigo,  “Anotação ao Artigo 805.º”, in Comentário ao Código Civil – Direito das Obrigações – Das Obrigações em Geral, Lisboa, Universidade Católica Editora, 2018, p.1132.
[6] Cf. Maria da Graça Trigo,  “Anotação ao Artigo 805.º”, in Comentário ao Código Civil – Direito das Obrigações – Das Obrigações em Geral, Lisboa, Universidade Católica Editora, 2018, p.1132.