Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
4031/07.1TVPRT.P1.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: ÁLVARO RODRIGUES
Descritores: ARRENDAMENTO
MORA DO ARRENDATÁRIO
EFEITO COMINATÓRIO SEMI-PLENO
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 05/06/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Sumário : I- Gozando o Réu arrendatário de uma presunção legal do lugar do cumprimento, que o nº 1 do artº 1039º do Código Civil lhe faculta, ainda que a sua contestação tenha sido desentranhada e devolvida, ficando sem efeito a sua defesa, o incumprimento invocado pelo senhorio não afecta a arrendatária demandada, uma vez que esta não carece de alegar e provar que o pagamento deveria ser efectuado no seu domicílio, pois a própria lei estipula que tal pagamento deve ser feito nesse lugar, se as partes ou os usos não fixarem outro regime.

II- Por outro lado, a lei é claríssima, no nº 2 do transcrito artº 1039º do C.Civil, ao estabelecer também a presunção, em caso de não pagamento da renda nas condições previstas no nº 1, de que o locador «não veio nem mandou receber a prestação no dia do seu vencimento».

III- Nada tinha, pois, a Ré que provar, nem sequer alegar, pois que beneficia das presunções legais acabadas de citar e, nos termos do artº 350º do CC, quem tem a seu favor a presunção legal escusa de provar o facto a que ela conduz.

IV- Dito isto, é de meridiana clareza que o Tribunal da Relação, para aquilatar do bem ou mal fundado da decisão do Tribunal da 1ª Instância que decretou o despejo com base na resolução contratual, não podia deixar de ter em atenção o disposto no citado nº 2 do artº 1039º do C.Civil, já que aí se encontra a chave hermenêutica para a decisão do pleito.
No ensinamento do saudoso e preclaro Civilista que foi o Prof. Antunes Varela, «a presunção estabelecida no nº 2 tem importância, dado que, não praticando o credor ( locador) os actos necessários ao cumprimento da obrigação, constitui-se em mora ( artº 813º) e deixam de ser aplicáveis ao locatário, consequentemente, as sanções do artº 1041º, assim como deixa o locador de poder resolver o contrato com fundamento na falta de pagamento da renda» ( P. Lima e A. Varela, Código Civil, anotado, II, 4ª edição, pg. 374, com sublinhado e bold nosso).

V- Por isso, no Acórdão de 27 de Janeiro de 2010, deste Supremo Tribunal, de que foi Relator, o Exmº Juiz Conselheiro Paulo Sá «a falta de pagamento da renda não determina, sem mais, a resolução do arrendamento e subsequente despejo; é preciso, paralelamente, que o inquilino esteja em mora, isto é, que lhe seja imputável o retardamento da prestação – cf. artº 804º, nº 2 do C.Civil.
Não resultando demonstrado, através de contrato escrito ou por outro meio, o local em que a renda deve ser paga, deve aplicar-se a regra supletiva da 2ª parte do nº 1 do artº 1039º do CCivil; nesta situação ( lugar de pagamento no domicílio do locatário), não tendo sido feito o pagamento, presume-se ( presunção não ilidida) que o locador não veio nem mandou receber ( nº 2 do mesmo normativo), o que reconduz à mora do credor ( artº 813º do CC) com a consequente impossibilidade de este resolver o contrato com base na falta de pagamento» ( Pº 1389/04.8TBVIS.C1.S1, disponível in www.dgsi.pt).

VI- Trata-se, portanto, de uma questão de direito de que o Tribunal tinha obrigação de conhecer oficiosamente, por inteiramente pertinente para a decisão, uma vez que vinha pedida a resolução do vínculo locatício por falta de pagamento atempado de rendas, com o consequente despejo da inquilina, ora Ré/Recorrida.

VII- Ainda que tal questão não tenha sido conhecida oficiosamente na 1ª Instância, como podia e devia ser, não poderia o Tribunal superior deixar de a conhecer oficiosamente, isto é, mesmo que não tivesse sido suscitada pela parte interessada, posto que para confirmar o decidido (a resolução do contrato e o despejo decretado) ou alterar tal decisão, importava saber se ocorreu in casu a mora do inquilino ( mora debitoris), dado que, nos termos do nº 2 do artº 804º do CCivil, «o devedor considera-se constituído em mora quando, por causa que lhe seja imputável, a prestação, ainda possível, não foi efectuada no tempo devido» ( sublinhado nosso).
Decisão Texto Integral:
Acordam no SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


RELATÓRIO

AA propôs contra BB, ambas com os sinais dos autos, a presente acção com processo comum na forma ordinária para resolução do contrato de arrendamento, pedindo a condenação da R. a entregar-lhe o arrendado, devoluto de pessoas e bens e a pagar-lhe a quantia de € 2.775,00, acrescida de juros de mora à taxa legal vencidos no montante de € 266,58 e dos vincendos até integral pagamento, referente a rendas vencidas e não pagas, e ainda as rendas vincendas até efectiva entrega do arrendado.
Alega, no essencial, ser co-proprietária de imóvel que identifica, juntamente com o seu ex-marido, já falecido, que o deu de arrendamento à R. mediante a renda mensal de € 75,00; à data do óbito do seu ex-marido, em 17/05/2007, a Autora transmitiu à R. que a partir daí a renda deveria ser paga à A. no locado até ao dia 8 de cada mês; desde Novembro de 2004 que a R. não paga quaisquer rendas. Alegou ainda viver actualmente com sua filha em casa por esta arrendada, pretendendo habitar o imóvel arrendado.
Citada a R., deduziu contestação que foi julgada extemporânea, tendo sido ordenado o respectivo desentranhamento.
Da decisão que o ordenou interpôs a R. recurso de agravo, que foi, por sua vez, julgado deserto por falta de alegações.
Tendo o Mmo. Juiz considerado confessados os factos articulados pela A., apenas por esta foram apresentadas alegações de direito, concluindo como na petição inicial.
Foi, a final, proferida sentença, julgando a acção procedente decretando a resolução do contrato de arrendamento e condenando a R. a despejar imediatamente o local arrendado referido em 1) dos factos assentes, livre e desembaraçado de pessoas e bens, entregando-o à A., e a pagar-lhe a quantia de € 3.900,00 a título de rendas vencidas, bem como no pagamento da quantia mensal de € 75,00 até efectiva entrega do locado, livre de pessoas e bens.

Inconformada com o decidido, interpôs a R. recurso de Apelação para o Tribunal da Relação do Porto, que revogou a sentença recorrida na parte que decretou a resolução do contrato de arrendamento e condenou a Ré a despejar imediatamente o local arrendado, deixando-o livre e desembaraçado de pessoas e bens e entregando-o à Autora, com um voto de vencido.
Foi a vez de a Autora, inconformada com a decisão revogatória da 2ª Instância, interpor recurso de Revista para este Supremo Tribunal de Justiça, rematando as suas alegações, com as seguintes:

CONCLUSÕES

I- Nas ALEGAÇÕES/CONCLUSÕES do seu recurso de APELAÇÃO a Ré é dada nova oportunidade para "esmiuçar a sua DEFESA - alegando factos que sequer foram debatidos e contraditados em momentos processuais (Réplica) e sede própria (julgamento), em exclusivo por incúria da Ré, que não contestou em tempo.

II- alegações recursivas em que a Ré tem o atrevimento de invocar UMA DITA alegada MORA DA AUTORA, e que na versão da Ré mostra-se violado o disposto nos art.º 772°. 813º e 1039º do CC porquanto provou-se que a autora tinha o ónus de ir receber as rendas ao locado e não alegou nem provou ter adoptado esse procedimento e, em consequência , não existe mora da Ré, mas da Autora".

III- é que quando a Ré/Recorrente refere nas ditas alegações que a Autora não alegou nem provou ter adoptado o procedimento de receber as rendas, o mesmo sai prejudicado apenas e tão só :

A) NAO PODE NEM É LEGALMENTE consentido à Ré que na fase recursiva possa invocar tal questão - A DA MORA DA AUTORA- esta verdadeira EXCEPÇÃO E QUESTÃO NOVA, que deveria ter sido invocada/ esgrimida pela Ré na sua peça processual CONTESTAÇÃO, e ulteriormente contraditada pela Autora na Réplica bem como ter sido objecto de apreciação e decisão por jurisdição inferior;

B) Por outro lado, tal "argumento de direito", ainda com voto vencido foi considerado e ao arrepio da lei, pelo Tribunal da Relação, sai prejudicado por tal argumento de direito não estar consubstanciado em factos suscitados pelas partes no tribunal de jurisdição inferior nem sequer haver factos assentes que suportem tal argumento de direito A ALEGADA MORA DA AUTORA,
IV- ainda assim, entende o Acórdão recorrido que, saber se existe ou não mora por parte da Autora quanto à obrigação de pagamento das rendas, é uma questão e não argumento novo, e como tal objecto de conhecimento no recurso de Apelação.

V- Ora, partindo da premissa que a)os recursos são os meios para obter o reexame de questões já submetidas à apreciação dos tribunais inferiores e não para gerar decisões sobre matéria nova (art° 878° n.° 1 e 890° n.° 1 do CPC), cfr. Ac. do STJ de 2.5.85, BMJ 347-383, de 29.11.89; b) com excepção, o tribunal superior deve decidir em recurso, apreciar questões novas, quando estas forem de conhecimento oficioso, desde que não resolvidas com trânsito em julgado; c) um facto não alegado oportunamente deve ser considerado facto novo; d) No que concerne, às questões novas, dir-se-á, por um lado, que questões relevantes para efeitos processuais são os pontos essenciais de facto e de direito em que as partes baseiam as suas pretensões, incluindo evidentemente as excepções; e) Questões novas serão aquelas que não foram apreciadas pelo tribunal recorrido por ali não terem sido suscitadas, nem serem de conhecimento oficioso, cfr. Ac. Relação Proc. n° 125/Q6.9TTAVR.CS, de 14-12-2006.

VI-A mora do senhorio é questão nova porquanto não foi debatida pelas partes em sede própria - Principio do dispositivo, nem sequer foi apreciada e decidida pelo tribunal inferior.

VII- Conclui-se que tal questão como se evidencia pelos autos foi tardiamente suscitada na fase recursiva pela Ré,

VIII-quando o deveria ter sido em contestação, à qual a Autora ora Recorrente poderia ter socorrido do PRINCIPIO DO CONTRADITÓRIO e consequentemente deduzido Réplica a tal excepção.

IX-acresce que, a Relação ao conhecer de tal questão está ilicitamente a considerar o acervo conclusivo das alegações do recurso de Apelação da Ré, que usou e pugnou de questões que não foram objecto de decisão do tribunal inferior e ainda está a desconsiderar, violando-se o Princípio do contraditório consignado no art° 3°n.°3 do CPC, uma vez que a ora recorrente sequer pode defender-se em sede própria (Réplica ) da alegada Mora do senhorio.

X- para além do mais, não pode a Relação cingir os seus poderes de cognição a uma presunção ilidível plasmada no art.º 1039° n.°2 do CC, decidindo que competia à autora alegar e provar que compareceu ou mandou receber no domicilio da Ré a prestação no dia de vencimento e que a mesma não lhe foi entregue, que a Autora não alegou na sua petição inicial".

XI-Certo e consabido que esta presunção legal pode, todavia, ser ilidida mediante prova em contrário, art.º 350° n.° 2 do C.Civil.

XII- certo que a Ré tem a seu favor a presunção legal , art° 350° n.° 1 do CC mas a Autora terá DIREITO a defender-se, esgrimir factos, apresentar prova testemunhal com o intuito de afastar tal presunção

XIII-DIREITO que com a decisão do Acórdão recorrido foi coarctado, porquanto para além da dita mora da Autora ser questão nova, não foi dada a aquela a oportunidade legal de exercer a CONTRADITA.

XIV-ao decidir como decidiu a Relação está a violar os art° 878° n.° 1, 878°, 684° n.° 2 e 3 e 690 n.° 1, art.°3° n.° 3 todos do CPC, bem como o art° 350° n.° 2 do C.C,

XV-ao decidir como decidiu a Relação está a violar o direito constitucional do direito à defesa consagrado no art.°20° da CRP, norma violada que aqui se invoca para os devidos efeitos legais.

XV- Nestes termos e nos mais de direito deve o STJ nos termos e para os efeitos do art° 722° revogar a decisão recorrida mantendo a decisão do tribunal de 1ª instância FAZENDO INTEIRA E SÃ JUSTIÇA.

Não foram apresentadas contra-alegações no presente recurso.
Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir, pois nada obsta ao conhecimento do objecto do presente recurso, sendo que este é delimitado pelas conclusões da alegação do Recorrente, nos termos, essencialmente, do artº 684º, nº 3 do CPC, como, de resto, constitui doutrina e jurisprudência firme deste Tribunal


FUNDAMENTOS

Das instâncias, vem dada, como provada, a seguinte factualidade:

1) Por escritura pública de compra e venda, lavrada a 19 de Abril de 1983, no Sétimo Cartório Notarial do Porto, CC, casado em comunhão de adquiridos com a aqui A. adquiriu o prédio sito na Rua …., n.° …, Casa 4, Campanhã, Porto para sua residência permanente.

2) O imóvel referido em 1) é um prédio urbano, composto por casa de rés do chão, com quintal, com a área coberta de 43,20m2 e descoberta de 75m2, descrito na 1.a Conservatória do Registo Predial do Porto, sob o n.° 57660, onde a aquisição referida em 1) se encontra registada e inscrito na respectiva matriz sob o artigo 679º.

3) Por sentença transitada em julgado de 27 de Novembro de 2006, foi decretado o divórcio por mútuo consentimento da Autora e CC, tendo sido acordado que a casa de morada de família seria atribuída ao cônjuge, até à partilha ou venda.

4) CC faleceu no dia 17 de Maio de 2007, sem que se tivesse procedido à partilha do património comum do casal, nomeadamente do imóvel referido em 1).

5) CC, ex-marido da autora, deu de arrendamento à Ré o imóvel referido em 1).

6) Com esta R. residindo, de forma permanente, outras pessoas.

7) Como contrapartida do arrendamento celebrado, a R. obrigou-se a pagar a renda de € 75,00 (setenta e cinco euros) mensais.

8) As rendas devidas desde Novembro de 2004 até à presente data estão por pagar.

9) À data do óbito de CC, a Autora deu-se a conhecer à aqui Ré a quem transmitiu que a partir de então, 17 de Maio de 2007, a renda deveria ser paga a si no locado até ao dia 8 de cada mês.

10) O que a Ré não cumpre até hoje.

11) A autora reside actualmente com a sua filha DD em casa por esta arrendada, não sendo (co)proprietária de mais nenhum imóvel.

12) E pretende habitar o imóvel referido em 1).

Nenhuma crítica merece o decidido pela Relação, adiante-se já!
Com efeito, o Tribunal da Relação teceu no acórdão recorrido, além do mais as seguintes considerações:
«Em termos amplos, o devedor falta ao cumprimento quando não realiza a prestação no tempo e no lugar devidos.
E atento o que vem provado em 9), pelo menos a partir de 17 de Maio de 2007, a renda deveria ser paga à Autora, no locado até ao dia 8 de cada mês, sendo certo que à mesma solução conduziria já a regra supletiva consagrada pelo n.° 1 do art° 1.039.° do CC quanto ao lugar do cumprimento. Ora, sendo o lugar do pagamento da renda o domicílio do locatário, como é no caso vertente, se o pagamento não tiver sido efectuado, presume o n.° 2 do mesmo art° 1.039° do CC que o locador não veio nem mandou receber a prestação no dia do vencimento.
Trata-se de uma presunção ilidível, ou juris tantum, mas que todavia dispensa o locatário de provar facto a que ela conduz - artigo 350°, n.° 1 do Código Civil.
Daqui decorre que não carecia a Ré de alegar e provar que ofereceu à A. o pagamento da renda e que esta, sem motivo justificado, o recusou, para que a A. se considerasse constituída em mora accipiendi. Inversamente, era à A. que cabia alegar e provar que compareceu ou mandou receber no domicílio da Ré a prestação no dia do vencimento e que a mesma não lhe foi entregue. E a A. não alegou tais factos na petição inicial, já não podendo tal insuficiência suprir-se em fase de recurso, por não ser já possível o convite ao aperfeiçoamento.
Assim sendo, e presumindo-se imputável ao senhorio a mora, não está o arrendatário obrigado a depositar a renda nem a voltar a oferecê-la, nem mesmo as posteriores enquanto o senhorio não demonstrar por um acto concreto o seu desejo de as receber. A mora accipiendi mantém-se até à purgatio morae, que aqui só veio a ocorrer com a citação.
Para se libertar da obrigação, o arrendatário, se assim o quiser, pode fazer o depósito das rendas. Contudo, a consignação em depósito é facultativa - cfr. art°s 841 n° 2 e 1.042.° n.° 2, ambos do Código Civil. Sendo assim, não constitui causa de resolução do contrato o facto de o inquilino não depositar as rendas ou não depositar a totalidade ou não as depositar no prazo da contestação, impondo-se a revogação da decisão que a decretou».

Este entendimento tem pleno cabimento na lei, além de ser o único que recebe acolhimento doutrinal e jurisprudencial.
Com efeito, dispõe o artº 1039º do Código Civil que:

1.O pagamento da renda ou aluguer deve ser efectuado no último dia de vigência do contrato ou do período a que respeita, e no domicílio do locatário à data do vencimento, se as partes ou os usos não fixarem outro regime.

2. Se a renda ou aluguer houver de ser pago no domicílio, geral ou particular, do locatário ou de procurador seu, e o pagamento não tiver sido efectuado, presume-se que o locador não veio nem mandou receber a prestação no dia do seu vencimento.

Perante esta estatuição legal, é apodíctico que mesmo que a contestação da Ré arrendatária tenha sido desentranhada e devolvida, ficando sem efeito a sua defesa, em primeiro lugar não carecia a Ré de alegar e provar que o pagamento deveria ser efectuado no seu domicílio, pois a própria lei estipula que tal pagamento deve ser feito nesse lugar, se as partes ou os usos não fixarem outro regime.
Goza, portanto, a Ré de uma presunção legal do lugar do cumprimento, que o nº 1 do artº 1039º lhe faculta.
Por outro lado, a lei é claríssima, no nº 2 do transcrito artº 1039º do C.Civil, ao estabelecer também a presunção, em caso de não pagamento da renda nas condições previstas no nº 1, de que o locador «não veio nem mandou receber a prestação no dia do seu vencimento».
Nada tinha a Ré que provar, nem sequer alegar, pois que beneficia das presunções legais acabadas de citar e, nos termos do artº 350º do CC, quem tem a seu favor a presunção legal escusa de provar o facto a que ela conduz.
Dito isto, é de meridiana clareza que o Tribunal da Relação, para aquilatar do bem ou mal fundado da decisão do Tribunal da 1ª Instância que decretou o despejo com base na resolução contratual, não podia deixar de ter em atenção o disposto no citado nº 2 do artº 1039º do C.Civil, já que aí se encontra a chave hermenêutica para a decisão do pleito.
No ensinamento do saudoso e preclaro Civilista que foi o Prof. Antunes Varela, «a presunção estabelecida no nº 2 tem importância, dado que, não praticando o credor ( locador) os actos necessários ao cumprimento da obrigação, constitui-se em mora ( artº 813º) e deixam de ser aplicáveis ao locatário, consequentemente, as sanções do artº 1041º, assim como deixa o locador de poder resolver o contrato com fundamento na falta de pagamento da renda» ( P. Lima e A. Varela, Código Civil, anotado, II, 4ª edição, pg. 374, com sublinhado e bold nosso).
Ora como se sentenciou no Acórdão de 27 de Janeiro de 2010, deste Supremo Tribunal, de que foi Relator, o Exmº Juiz Conselheiro Paulo Sá «a falta de pagamento da renda não determina, sem mais, a resolução do arrendamento e subsequente despejo; é preciso, paralelamente, que o inquilino esteja em mora, isto é, que lhe seja imputável o retardamento da prestação – cf. artº 804º, nº 2 do C.Civil.
Não resultando demonstrado, através de contrato escrito ou por outro meio, o local em que a renda deve ser paga, deve aplicar-se a regra supletiva da 2ª parte do nº 1 do artº 1039º do CCivil; nesta situação ( lugar de pagamento no domicílio do locatário), não tendo sido feito o pagamento, presume-se ( presunção não ilidida) que o locador não veio nem mandou receber ( nº 2 do mesmo normativo), o que reconduz à mora do credor ( artº 813º do CC) com a consequente impossibilidade de este resolver o contrato com base na falta de pagamento» ( Pº 1389/04.8TBVIS.C1.S1, disponível in www.dgsi.pt).
Trata-se, portanto e como se vê, de uma questão de direito de que o Tribunal tinha obrigação de conhecer oficiosamente, por inteiramente pertinente para a decisão, uma vez que vinha pedida a resolução do vínculo locatício por falta de pagamento atempado de rendas, com o consequente despejo da inquilina, ora Ré/Recorrida.
Ainda que tal questão não tenha sido conhecida oficiosamente na 1ª Instância, como podia e devia ser, não poderia o Tribunal superior deixar de a conhecer oficiosamente (mesmo que não tivesse sido suscitada pela parte interessada), posto que para confirmar ou negar a confirmação do decidido (a resolução do contrato e o despejo decretado), importava saber se ocorreu in casu a mora do inquilino ( mora debitoris), dado que, nos termos do nº 2 do artº 804º do CCivil, «o devedor considera-se constituído em mora quando, por causa que lhe seja imputável, a prestação, ainda possível, não foi efectuada no tempo devido» ( sublinhado nosso).
Em face do que exposto se deixou, e tendo em pauta a referida presunção do nº 2 do artº 1039º, o que se constata é que ocorre neste caso, efectivamente, mora do credor, como se colhe do ensinamento supracitado de A. Varela e da posição jurisprudencial esmaltada, v. g., no Acórdão deste STJ acabado de referir.

Não tem assim razão a Autora/Recorrente ao pretender sustentar que mora da senhoria é uma questão nova porque não foi debatida pelas partes em sede própria ( princípio do dispositivo) e nem sequer foi apreciada e decidida pelo tribunal inferior ( conclusão 6ª).
Não se trata de questão que dependesse da invocação das partes, uma vez que está provado o não pagamento das rendas, pois tal alegação foi efectuada pela própria Autora e que o local de pagamento é o locado, como se colhe da factualidade provada que a 1ª Instância efectuou, por força da «confessio ficta» emergente do efeito cominatório semi-pleno, decorrente do desentranhamento da contestação por apresentação extemporânea.
Estando provados tais factos, cabia ao Tribunal aplicar a lei, sendo esta que liga automaticamente a esses factos o efeito de presunção de que locador «não veio nem mandou receber a prestação no dia do seu vencimento», o que se traduz na «mora accipiendi» ou «mora creditoris», como bem decidiu a Relação.
A ratio de tal dispositivo legal é, ainda nas palavras autorizadas de Antunes Varela, a seguinte:
« Contra a regra geral do nº 1 do artº 799º, segundo a qual é ao devedor que incumbe provar que a falta de cumprimento não provém da culpa sua, inverte-se neste caso o ónus da prova, presumindo-se que a culpa é do credor, dada a dificuldade que teria o devedor de fazer a prova de um facto negativo e atenta a gravidade especial da sanção cominada para a falta de cumprimento da prestação» ( ibidem).
Se a Relação não conhecesse ou não aplicasse o nº 2 do artº 1039º do CC, a falta de pagamento da renda, por banda da Ré, teria o seguimento da regra geral da presunção da culpa do devedor, com o consequente efeito em matéria de arrendamento urbano, o que, embora constituindo excepção à regra, é abertamente contrariado pela aludida presunção legal, cabendo ao Tribunal decidir os pleitos de acordo com a lei ( jus novit curia), não estando, sequer, nos termos do artº 664º do CPC, sujeito às alegações das partes no tocante à aplicação das regras de direito.
Por outras palavras, não carecia a Ré de alegar e provar que a senhoria não veio, nem mandou receber as rendas, porque tal conclusão é imposta presuntivamente pela própria lei.

É certo que tal presunção é ilidível por prova em contrário ( presunção juris tantum), mas dada a inversão do ónus de prova a que se refere a passagem acabada de transcrever, cabia a Autora ter prevenido a situação, alegando matéria factual necessária para a ilisão de tal presunção, como doutamente sentenciou a Relação.
Ao contrário do que alega a Recorrente ( conclusão XII) a Autora teve, efectivamente «direito a defender-se, esgrimir factos, apresentar testemunhas com o intuito de afastar tal presunção», pois ninguém lhe coarctou tal direito.
Seria bastante que tivesse alegado tais factos na petição inicial, pois por força da cominação legal eles seria imediatamente dados como provados e se não houvesse revelia da Ré, seriam, em fase de instrução e julgamento, sujeitos ao debate processual.
Até porque a Autora, decerto não desconhece que, em face da falada presunção legal a favor do arrendatário, verifica-se a inversão do ónus da prova, no sentido de cabe ao senhorio alegar e provar que não ocorreu a omissão da conduta presumida no nº 2 do artº 1039º, até porque está doutamente patrocinada por distinta Advogada.
Não o tendo feito, sibi imputet.
Não merece, destarte, qualquer censura a decisão recorrida, claudicando todas as conclusões relevantes da alegação da Recorrente, relevantes para a apreciação do presente recurso, o que determina a improcedência do mesmo.

DECISÃO

Face a tudo quanto exposto fica, acordam os Juízes deste Supremo Tribunal de Justiça em se negar a revista.

Custas pela Recorrente.

Supremo Tribunal de Justiça, 6 de Maio de 2010

Álvaro Rodrigues (Relator)
Santos Bernardino
Bettencourt de Faria