Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
878/15.3T8VRL.G2.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: ANTÓNIO PIÇARRA
Descritores: NEGÓCIO CONSIGO MESMO
ANULABILIDADE
CONSENTIMENTO
PROCURAÇÃO
REVOGAÇÃO
DECLARAÇÃO RECEPTÍCIA
DECLARAÇÃO RECETÍCIA
CONTRATO DE COMPRA E VENDA
EFICÁCIA
REPRESENTAÇÃO VOLUNTÁRIA
PODERES DE REPRESENTAÇÃO
AUTONOMIA PRIVADA
Data do Acordão: 03/01/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL – RELAÇÕES JURÍDICAS / PESSOAS / PESSOAS COLECTIVAS / FACTOS JURÍDICOS / NEGÓCIO JURÍDICO / DECLARAÇÃO NEGOCIAL / MODALIDADES DA DECLARAÇÃO / PERFEIÇÃO DA DECLARAÇÃO NEGOCIAL / REPRESENTAÇÃO / REPRESENTAÇÃO VOLUNTÁRIA.
Doutrina:
-Heinrich Ewald Horster, A parte Geral do Código Civil Português, Almedina, 6.ª reimpressão, p. 476, 477, 483 e 484;
-João de Castro Mendes, Teoria Geral do Direito Civil, Volume II, AAFDL, 1995, p. 411 e 412.
-João de Castro Mendes, Teoria Geral do Direito Civil, Volume II, Edição da AAFDL, 1995, p. 418;
-Jorge Duarte Pinheiro, Negócio Consigo Mesmo, Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Inocêncio Galvão Telles, IV Volume , Novos Estudos de Direito Privado, p. 160;
-José de Oliveira Ascensão, Direito Civil, Teoria Geral, Volume II, 2.ª Edição, p. 240 e 241;
-Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 4ª Edição por António Pinto Monteiro e Paulo Mota Pinto, p. 551;
-Pedro Leitão Pais de Vasconcelos, A Procuração irrevogável, Almedina, p. 98 ; Teoria Geral do Direito Civil, 7.ª Edição, p. 276, 278, 289, 296 e 305;
-Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Volume I, 4.ª edição, 1987, anotação aos artigos 224.º e 265.º.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): -ARTIGOS 165.º, N.º 2, 224.º, Nº1, 258.º, 261.º, N.º1 E 262.º.
Jurisprudência Nacional:

ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


-DE 03-03-1998, IN BMJ 475, P. 610.
Sumário :
I - Na representação (art. 258.º do CC) há um representante que participa no tráfico jurídico negocial em nome de outrem (contemplatio domini) - o representado - e os efeitos dos negócios por aquele conduzidos produzem-se directa e imediatamente na esfera jurídica deste (dominus negotii).

II - Uma das fontes do poder de representação é a procuração, definida pelo art. 262.º do CC como o acto pelo qual alguém (dominus) atribui a outrem (procurador), voluntariamente, poderes de representação.

III - Trata-se de acto unilateral, por intermédio do qual é conferido ao procurador o poder de celebrar negócios jurídicos em nome de outrem (dominus) em cuja esfera jurídica se vão produzir os seus efeitos (art. 262.° do CC).

IV - A procuração é revogável, nos termos do n.º 2 do art. 165.º do CC, através de declaração negocial receptícia, ou seja, a revogação só se torna eficaz quando chega ao poder do destinatário ou é dele conhecida (art. 224.º, n.º 1, do CC).

V - Tendo a revogação da procuração ocorrido a 16-03-2015 e a compra e venda sido realizada no dia 13 desse mês, o procurador estava habilitado ainda com os poderes que o dominus lhe confiara e que incluía o negócio consigo mesmo.

VI - Este tipo de negócio, também apodado na doutrina portuguesa de “autocontrato”, “acto jurídico consigo mesmo” e, na doutrina italiana, “stipulazione dei contratto ad opera di una sola persona”, é, em regra, anulável (art. 261.°, n.º 1, do CC), mas a anulabilidade é excluída sempre que o representado, como sucedeu no caso, consentiu especificamente na celebração desse tipo de negócio.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:



Relatório


I AA, ..., instaurou acção declarativa, sob a forma de processo comum, contra BB e mulher, CC, alegando, em síntese, que:

Em 27 de Janeiro de 2015, outorgou procuração a favor do Réu, seu sobrinho e pessoa de total confiança, para proceder à venda, pelo preço de €50.000,00, do prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o nº 2…3.

O Réu ficou de receber o preço e, depois de liquidar os ónus e encargos que impendiam sobre o dito imóvel, no montante global de €21.188,73, entregar-lhe o remanescente, ou não encontrando comprador, poderia ficar com o prédio, liquidando os ónus e encargos que sobre o mesmo recaíam.

No início de Março de 2015, recebeu uma melhor proposta para a compra do referido prédio e comunicou ao Réu que ficaria sem efeito a venda do prédio por seu intermédio.

Veio a saber, porém, que o Réu, utilizando a referida procuração, tinha já, em 13 de Março de 2015, outorgado escritura de compra e venda do referido prédio urbano, figurando ele mesmo como comprador pelo preço de €28.016,50, registando-o a seu favor.

Com tais fundamentos, concluiu por pedir que:

a) se declare a nulidade da procuração outorgada em 27/01/2015 no consulado geral de Portugal no Canadá, a favor do Réu;

b) se declare nula a escritura de compra e venda outorgada no cartório notarial de … em 13 de Março de 2015, sobre o imóvel, sito na rua …, no Concelho de Valpaços e melhor identificado no artigo 1º e celebrada com a referida procuração;

c) serem os Réus condenados a reconhecerem isso mesmo e a restituir o imóvel supra referido ao Autor;

d) se ordene o cancelamento do registo de aquisição a favor dos Réus, sob a AP. 1202 de 2015/03/13, da Conservatória do registo predial de …;

e) a condenação dos Réus a pagar ao Autor uma indemnização no valor de euros 10.000,00.

Os Réus contestaram contrapondo diferente versão, alegando, em resumo, que na base da outorga da procuração esteve a impossibilidade do Autor em suportar os encargos relacionados com o imóvel e pagar a dívida já em execução judicial, tendo sido acordado que seriam eles a fazê-lo como contrapartida da aquisição do prédio, desse modo concluindo pelo infundado do petitório e litigância de má fé do Autor.

Além disso, deduziram reconvenção, pretendendo que este seja condenado a pagar a quantia de €2.631.13, proveniente de despesas relacionadas com a aquisição e manutenção do aludido imóvel, se acaso houver lugar à restituição deste.

O Autor apresentou réplica, pugnando pela improcedência da reconvenção e da litigância de má fé.

Em sede da audiência prévia, foi admitido o pedido reconvencional no tocante apenas ao montante de €900,00 e igualmente julgou-se improcedente o pedido indemnizatório formulado pelo Autor na alínea e) do petitório, absolvendo do mesmo os Réus.

Na sequência da normal tramitação processual, foi realizada a audiência final e lavrada sentença que, na procedência da acção e de parte da reconvenção, decidiu:

a) declarar que o Autor revogou a procuração outorgada em 27/01/2015 no Consulado geral de Portugal no ..., a favor do Réu;

b) declarar a nulidade da escritura de compra e venda outorgada no Cartório Notarial de … em 13 de Março de 2015, celebrada com a procuração indicada em A), com referência ao prédio urbano sito na Rua …, freguesia de …, descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o n.º 2…3/2003…9 e inscrito na matriz sob o artigo 587;

c) condenar os Réus a reconhecerem o referenciado em b) e a restituírem o imóvel supra referido ao Autor;

d) ordenar o cancelamento do registo de aquisição a favor do Réu e mulher atinente ao prédio enunciado em B), sob a ap. 1202 de 2015/03/13, da Conservatória do Registo predial de …;

e) absolver o Autor do pedido de condenação como litigante de má-fé.

f) condenar o Autor a pagar ao Réu a quantia de euros 900,00.

Discordando dessa decisão, apelaram os Réus, com total êxito, tendo a Relação de …, revogado a sentença e decidido absolvê-los de todos os pedidos.

Agora inconformado, interpôs o Autor recurso de revista, finalizando a sua alegação, com as conclusões que se transcrevem[1]:

1 - Resulta evidente, por provado, que a procuração outorgada pelo Autor a favor do Réu, em 27/01/2015 no consulado geral de Portugal em ..., no ..., tratou-se de uma procuração que conferiu poderes de representação ao Réu – BB, para vender o prédio melhor descrito nos autos, sito em …, portanto, outorgada no interesse exclusivo do dominus/Autor, logo livremente revogável, pelo que enquadrável no Artº 258º ,  262º   e 265º nº 2 do Código Civil.

2 - O Réu – BB, munido da supra referida procuração, outorgou por si e na qualidade de representante do Autor, a escritura de compra e venda, de 13 de março de 2015, no cartório Notarial de …, adquirindo para si, o referido prédio do Autor, configurando um negócio consigo mesmo, conforme o disposto no Artº 261º do C. Civil.

3 - O sobredito negócio, celebrado pelo Réu, configura uma compra e venda, consigo mesmo, previsto no Artº 874º C. Civil, que desde logo, violou o disposto no Artº 879º al c), por não se ter verificado o pagamento do preço, porquanto não liquidou os ónus sobre o prédio (hipoteca ao Banco DD e penhora a favor de EE), nem entregou qualquer quantia por conta do mesmo ao Autor.

4 - Aferindo-se, no caso, que naufragou a comprovação da factualidade atinente à relação jurídica subjacente, à emissão da procuração, falecendo a matéria passível de configurar um interesse do procurador/Réu BB, a compra e venda, por si realizada, consigo mesmo, é anulável nos termos do disposto no Artº 261º nº 1 do Código Civil.

5 - Excedendo o Réu os poderes que lhe foram conferidos pela procuração, porque contrários aos fins da representação, agiu em abuso de representação, o que tem como consequência que a compra e venda, também é ineficaz em relação ao autor, por aplicação do disposto no Artº 268º e 269º do Código Civil.

6 - Sabendo o Réu procurador que, com a compra e venda que ele fez, para si mesmo, sem nada pagar por conta da mesma, prejudicou o Autor, manifesto é que o negócio foi intencionalmente lesivo do representado, não tendo actuado de boa fé e em protecção da confiança que nele depositou o Autor.

7 - Pelo contrário, atentou clamorosamente contra os vectores elementares do sistema jurídico, por manifestamente excedidos os limites impostos pela boa fé e fim social e económico, por haver desequilíbrio entre as contraprestações e uma consequente onerosidade excessiva, suportada pelo Autor, que se viu desapossado do seu prédio, em benefício do enriquecimento injustificado do Réu e sua mulher, se se considerar válida e eficaz a compra e venda.

8 - A conduta do Réu conforme descrita e demonstrada, porque em manifesto abuso de representação, não pode deixar de ser considerada como violadora do princípio geral da Boa Fé e Bons Costumes, configurando para além do mais – Abuso de Direito- que funciona como um critério de aferição dos comportamentos das partes e que impõe às partes deveres de confiança e lealdade, conforme o disposto no Artº 334º do Código Civil.

9 - Não se pode deixar de se considerar essa componente no negócio consigo mesmo, sendo pois, condição de validade do negócio consigo mesmo, que não haja conflito de interesses no acto de constituição ou conclusão do negócio, e a factualidade provada mostra que há conflito de interesses.

10 - O douto acórdão recorrido, ao decidir que a escritura de compra e venda celebrada pelo Réu, com a procuração conferida pelo A, é válida, porque nessa data o Réu não tinha conhecimento da revogação da procuração operada pelo Autor que ocorreu em 16/03/2015, estando provado que celebrou negócio consigo mesmo, que nada pagou ao autor ou sequer liquidou qualquer dos ónus que impendiam sobre o prédio, sem para tal existirem os pressupostos, de um seu interesse especifico em tal negócio, e que o foi nos estritos limites dos poderes conferidos, pela procuração, sabendo-se, porque provado, que o Réu celebrou negócio consigo mesmo, fez tábua rasa dos comportamentos desviantes do Réu, validando-os, beneficiando-o, claramente, o que não se pode conceder.

11 - Impõe-se, assim, considerar que a revogação da procuração, operada pelo Autor em 16/03/2015, tendo sido considerada válida, enquanto negócio jurídico unilateral que produzindo efeitos ex tunc, anulando assim a sua eficácia, devendo ser de aplicar com as devidas adaptações o estipulado para a resolução do negócio jurídico e previsto nos artºs 433º e 434º do código civil, que determina também a retoactividade e não o Artº 224º nº 1 do Código civil, como entendeu o tribunal da Relação.

12 - Bem como, e independentemente de se considerar que a declaração de revogação da procuração, operada pelo Autor em 16/03/2015, teve ou não eficácia retroativa, destruindo os efeitos da procuração, sempre, à luz do comportamento do Réu e da factualidade provada, o negócio jurídico de compra e venda, celebrado pelo Réu, que outorgou consigo mesmo, é anulável, tendo sempre em qualquer circunstância efeito retroactivo destruindo os efeitos do negócio celebrado, conforme previsto nos artº 289º do Código Civil.

13 - E ainda se tal não bastasse, ainda tudo seria nulo, com base na verificação do instituto do abuso de direito, previsto no Artº 334º do Código civil.

14 - Em face do caso concreto, ao Supremo Tribunal de Justiça é possível exercer a faculdade de preencher a relação jurídica, em nome da liberdade que a Lei que confere, recorrendo a conceitos indeterminados, como são os casos da Boa Fé, dos Bons Costumes, Ordem Pública, Fim Social e Económico dos Contratos, Equilíbrio das Prestações e assim, fiscalizar a moralidade dos actos praticados no exercício de direitos ou a sua conformidade com as razões sociais ou económicas que os legitimam, se houver manifesto Abuso.

15 - Deveria o tribunal da Relação ter confirmado na íntegra a sentença da primeira instância, condenando os Réus - BB e mulher, CC, nos precisos termos aí configurados, considerando a acção totalmente procedente.

16 - Ao não o fazer, o acórdão do tribunal da Relação de …, violou a lei substantiva por errada determinação da norma aplicável e consequentemente, errada aplicação ao caso concreto da norma ínsita no Art° 224° n° 1 do Código civil, nos termos do disposto no Art° 674° n° 1 al a) do CPC.

17 - Foram ainda violados os Artigos 258°, 261°, n° 1, 262°, n° 1, 265°, n° 2, 268°, 269°, 285°, 289°, 334°, 433°, 434°, 874°, 879° n° 1 al c), 1302°, 1305° e 1311° do Código Civil e 674°, n° 1, al a) do Código de Processo Civil.

Os Réus contra-alegaram a pugnar pelo insucesso do recurso.

Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.


II - Fundamentação de facto

A factualidade dada como provada, nas instâncias, é a seguinte:

1) Pela ap. 4 de 2008/10/01, encontra-se registada hipoteca voluntária a favor do Banco DD, S.A. com referência ao prédio urbano sito na Rua …, freguesia de Valpaços, descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o n.º 2…3/2003…9 e inscrito na matriz sob o artigo 587.

2) Pela ap. 2325 de 2014/10/06, encontra-se registada penhora a favor de EE incidente sobre o prédio indicado em 1).

3) Em 27 de Janeiro de 2015, no Consulado Geral de Portugal em Toronto, o Autor AA outorgou procuração, declarando, designadamente que “(…) constitui seu bastante procurador com a faculdade de substabelecer BB (…) a quem com os de substabelecer confere plenos poderes para, com livre e geral administração civil, reger e gerir, conforme entender melhor, todos os bens e direitos dele outorgante (…) paras vender pelos preços que tiver por convenientes quaisquer propriedades e direitos prediais dele outorgante (…) para negociar com a entidade bancária denominada BANCO DD, todos e quaisquer assuntos referentes ao prédio urbano inscrito na matriz predial da freguesia de V... e S... sob o artigo 587 e sito na Rua … (…) O constituído mandatário poderá fazer negócio consigo mesmo e substabelecer esta procuração (…)”.

4) Por escritura pública de “Compra e Venda” exarada em 13.03.2015, BB, outorgando por si e na qualidade de procurador de AA declarou “Que o seu representado, pelo preço de vinte e oito mil e dezasseis euros e cinquenta cêntimos, igual ao seu valor patrimonial, já recebido, vende, livre de ónus ou encargos, a ele outorgante, o prédio urbano (…) sito na Rua …, freguesia de V... e S..., concelho de Valpaços, descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o n.º dois mil novecentos e noventa e três/Valpaços (…)”.

5) Pela ap. 1202 de 2015/03/13, afigura-se registada a aquisição a favor de BB enunciada em 4).

6) Em 16.03.2015, no Consulado Geral de Portugal em ..., o Autor subscreveu um escrito denominado “Revogação de Procuração”, declarando que, “Pelo presente instrumento de revogação considera nula e de nenhum efeito, a partir desta data, a procuração outorgada a favor do seu sobrinho BB (…) outorgada em vinte e sete de Janeiro de dois mil e quinze.”

7) O Réu BB não comunicou ao Autor a outorga da escritura indicada em 4).

8) Até à data, o Réu não pagou ao Banco DD o crédito hipotecário, nem a dívida exequenda referente à penhora inscrita a favor da referida EE, e não entregou ao Autor qualquer quantia por conta da escritura enunciada em 4).

9) Após a data referenciada em 4), o Réu BB colocou uma porta no prédio, despendendo a quantia de 900,00 euros.


*


       Não foram considerados provados os factos seguintes:

     a) O Autor e o Réu acordaram que a outorga da procuração referenciada em 3) tinha como finalidade que o Réu procedesse à venda, pelo preço de euros 50.000,00 do prédio urbano sito na Rua … no concelho de Valpaços, inscrito na matriz predial urbana da Freguesia de V... e S..., sob o artigo 587º e descrito na Conservatória do registo predial de … sob o nº 2…3, recebendo o Réu o preço e, depois de liquidados os encargos referentes à hipoteca e penhora mencionadas em 2) e 3), entregando o remanescente ao Autor.

    b) No âmbito do referido em a), consignou-se ainda que, se o Réu pretendesse ficar com o prédio descrito, se comprometia a liquidar os citados encargos com a hipoteca e a penhora.

     c) No início de Março de 2015, o Autor recebeu uma proposta para a compra do referido prédio superior ao valor citado em 7) e comunicou ao Réu BB que ficaria sem efeito a venda da casa por seu intermédio e solicitou-lhe a entrega da procuração outorgada em 27 de Janeiro, o que o Réu aceitou.

     d) O valor de mercado do prédio mencionado em 1) é de, pelo menos, euros 50.000,00.

     e) O Autor outorgou e procuração indicada em 3) com a finalidade de liquidar o empréstimo contraído junto do Banco DD e citado em 1) mediante a venda do sobredito prédio ao Réu, para que o mesmo ali recolhesse um tractor agrícola e um veículo ligeiro.


   III – Fundamentação de direito

A apreciação e decisão da presente revista passam, atentas as conclusões da alegação do Recorrente (artigos 635º, n.º 4 e 639º, n.º 1, do Cód. de Proc. Civil), pela análise e resolução da questão central por ele colocada a este Tribunal e que consiste em determinar se, à data da celebração do contrato de compra e venda em causa no processo, tinha ou não operado a revogação da procuração com base na qual o Réu nele outorgou em representação do Autor e, por outro lado, se abusou dos poderes que este lhe confiou.

A 1ª instância entendeu que a revogação da procuração levada a efeito pelo Recorrente (Autor) é válida e operou «ex tunc» aniquilando a procuração e deitando por terra a compra e venda celebrada pelo Réu em representação do Autor e simultaneamente em nome próprio, enquanto a 2ª instância decidiu, ao invés, que a revogação da procuração não operou e o aludido contrato de compra e venda é válido.

O Recorrente pugna naturalmente para que fique a subsistir a 1ª decisão, em substituição da ditada pela Relação, abonando-se, para o efeito, em parte dos argumentos ali tecidos que foram rebatidos, depois, no acórdão posto em crise e que, adiantamos, desde já, merecem ser sufragados.

Para melhor compreender essa conclusão interessa ter em consideração que a essência do diferendo que está na base da demanda respeita à procuração que, em 27 de Janeiro de 2015, o Recorrente passou ao Réu - cfr. ponto 3) do elenco factual provado -, a quem conferiu poderes para, nomeadamente, vender pelos preços que tiver por convenientes quaisquer propriedades dele, com autorização de fazer negócio consigo mesmo, estendendo-se à concretização deste, através da compra e venda aludida no ponto 4) do elenco factual provado, realizada em 13 de Março de 2015, e a subsequente revogação da procuração operada, como se alcança do ponto 6) desse mesmo elenco factual, em 16 de Março de 2015.

Será, portanto, no âmbito dos poderes de representação conferidos através da procuração, em confronto com o período de vigência dos mesmos, que se encontrará a solução para a manutenção ou não da questionada compra e venda realizada pelo Réu a si próprio.

Como se sabe, constitui principio basilar da «autonomia privada e da autodeterminação do homem que este, em vez de agir ele próprio, possa autorizar outrem para encontrar um resultado ou negociar um efeito que deve valer juridicamente»[2] e, nessa medida, as declarações negociais nem sempre são prestadas pelas próprias partes, podendo ser formuladas e manifestadas por outros que agem em vez das partes ou de uma delas.

É o que acontece na representação (artigo 258º do Código Civil) em que há um representante que participa no tráfico jurídico negocial em nome de outrem (contemplatio domini), o representado, e os efeitos dos negócios por aquele concluídos produzem-se, directa e imediatamente, na esfera jurídica deste (dominus negotii)[3].

Uma das fontes do poder de representação é a procuração, definida pelo artigo 262º do Código Civil como o ato pelo qual alguém (dominus) atribui a outrem (procurador), voluntariamente, poderes representativos. Trata-se, portanto, de acto unilateral, por intermédio do qual, é conferido ao procurador o poder de celebrar negócios jurídicos em nome de outrem (dominus), em cuja esfera jurídica se vão produzir os seus efeitos (artigo 262º do Código Civil)[4]. A concessão desses poderes de representação não é ilimitada. Está circunscrita ao âmbito dos poderes contidos na procuração, sob pena de, sendo tais poderes extravasados, existir abuso de representação.

O procurador actua como um intermediário, situação que comporta riscos para o representado, mas que lhe traz simultaneamente vantagens, sendo estas que o motivam a fazer-se representar na conclusão de negócios jurídicos por outrem – procurador – em vez de o fazer pessoalmente. Estes riscos correm naturalmente por conta de quem se faz representar.

No caso, a procuração emitida pelo Recorrente autorizava o Réu, seu procurador, a negociar o prédio em causa consigo mesmo, o que se concretizou, como decorre do ponto 4) do elenco factual provado, na compra e venda celebrada no dia 13 de Março de 2015. Tal procuração é revogável, nos termos do nº 2 do artigo 265º do Código Civil, através de declaração negocial receptícia[5] que só se torna eficaz quando chega ao poder do destinatário ou dele é conhecida (artigo 224º, n.º 1, do Código Civil).

Tendo a revogação da procuração ocorrido a 16 de Março de 2015 - cfr. ponto 6) do elenco factual provado - e a compra e venda realizada a 13 desse mês – cfr. ponto 4) desse elenco – é óbvio que nessa data o Réu estava habilitado ainda com os poderes que o Recorrente lhe confiara e, nessa medida, como bem equacionou e ajuizou o acórdão recorrido, o contrato celebrado, com base na procuração, não se mostra afectado pela subsequente revogação.

Nem, por outro lado, é anulável, como sustenta o Recorrente, por se tratar de negócio consigo mesmo. É sabido que o negócio consigo mesmo, também apodado na doutrina portuguesa de autocontrato, acto jurídico consigo mesmo e, na doutrina italiana, “stipulazione dei contratto ad opera di una sola persona[6], é, em regra, anulável (artigo 261º, n.º 1, do Código Civil), mas a anulabilidade é excluída sempre que o representado, como sucedeu no caso, consentiu especificamente na celebração desse tipo de negócio[7].

Acresce que, contrariamente ao alegado pelo Recorrente, nada se apurou que na celebração desse contrato, autorizado pela procuração, o Réu (o procurador) tenha exorbitado os poderes representativos ou tenha agido com animus nocendi, descurando os interesses do Recorrente (o representado), ou sequer em desrespeito das regras da boa-fé (artigo 762º, nº 1, do Código Civil), e muito menos a sua conduta é passível de ser considerada abusiva do direito (artigo 334º do Código Civil).

Em suma, inexistem motivos para não considerar válida a procuração e a compra e venda do prédio realizada, com base naquela, sendo certo que o não pagamento do preço ou o não custeio dos encargos que sobre o mesmo recaíam não interferem com a validade do contrato e relevam apenas em sede de incumprimento do mesmo, questão que, frise-se, não é sequer objecto deste processo.

Nesta conformidade, improcedem ou mostram-se deslocadas todas as conclusões do Recorrente, a quem não assiste razão para se insurgir contra o decidido pela Relação, que não merece os reparos que lhe aponta, nem viola os princípios ou disposições legais que indica.


IV – Decisão

Nos termos expostos, decide-se negar a revista e confirmar consequentemente o acórdão recorrido.

 Custas pelo Recorrente.


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Anexa-se sumário do acórdão (art.ºs 663º, n.º 7, e 679º, ambos do CPC).

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Lisboa, 01 de Março de 2018


António Joaquim Piçarra (relator)

Fernanda Isabel Pereira

Olindo Geraldes

__________


[1] Excluem-se as 4 primeiras que correspondem ao relato dos passos da lide.
[2] Cfr. Heinrich Ewald Horster, in A parte Geral do Código Civil Português, Almedina, 6ª reimpressão, págs. 476 e 477.
[3] Cfr,a este propósito, João de Castro Mendes, in Teoria Geral do Direito Civil, Vol. II, edição da AAFDL, 1995, págs. 411 e 412, Pires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil Anotado, vol. I, 4ª edição, pág. 240, Pedro Pais de Vasconcelos, in Teoria Geral do Direito Civil, 7ª edição, págs. 276 e 278, e José de Oliveira Ascensão, in Direito Civil, Teoria Geral, Vol. II, 2ª edição, págs. 240 e 241.
[4] Cfr., neste sentido, Heinrich Ewald Horster, in A parte Geral do Código Civil Português, Almedina, 6ª reimpressão, págs. 483 e 484, Pedro Pais de Vasconcelos, in Teoria Geral do Direito Civil, 7ª edição, pág. 296,  e Pedro Leitão Pais de Vasconcelos, in A Procuração irrevogável, Almedina, págs. 98 e Pires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil Anotado, vol. I, 4ª edição, 1987, pág. 240.
[5] Cfr., neste sentido, Heinrich Ewald Horster, in A parte Geral do Código Civil Português, Almedina, 6ª reimpressão, pág. 484, Pedro Pais de Vasconcelos, in Teoria Geral do Direito Civil, 7ª edição, pág. 305 e Pires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil Anotado, vol. I, 4ª edição, 1987, anotação aos artigos 224º e 265º.

[6] Cfr., a este propósito, Pedro Pais de Vasconcelos, in Teoria Geral do Direito Civil, 7ª edição, pág. 289, Jorge Duarte Pinheiro, “Negócio Consigo Mesmo” , in “Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Inocêncio Galvão Telles, IV Volume – Novos Estudos de Direito Privado”, pág. 160, Mota Pinto, in “Teoria Geral do Direito Civil” – 4ª edição por António Pinto Monteiro e Paulo Mota Pinto,  págs. 551 e verso, e João de Castro Mendes, in Teoria Geral do Direito Civil, Vol. II, edição da AAFDL, 1995, pág. 418.
[7] Cfr, neste sentido, Pedro Pais de Vasconcelos, in Teoria Geral do Direito Civil, 7ª edição, pág. 289, e o acórdão do STJ de 3.3.1998, in BMJ 475, 610, com o sequinte sumário:
“I – O negócio consigo mesmo, “negotium a semet ipso”, é o celebrado por uma só pessoa, que intervém simultaneamente a título pessoal e de representante de outrem, ou como representante ao mesmo tempo de mais de uma pessoa.
II – Tal contrato, porque envolve perigos evidentes, como seja, desde logo, a circunstância de o representante se sentir tentado a sacrificar os interesses do representado em benefício dos seus, é anulável, conforme o disposto no artigo 261º, nº1, do Código Civil.
III – A viabilidade da anulação do negócio fica afectada desde que se possa concluir pela existência de consentimento ou confirmação do representado, caso em que o mesmo, de anulável, em princípio, passa a ser inteiramente válido.”