Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
3220/20.8T8FAR.E1.S2
Nº Convencional: 1.ª SECÇÃO
Relator: MANUEL AGUIAR PEREIRA
Descritores: CONTRATO-PROMESSA DE COMPRA E VENDA
BEM IMÓVEL
FRAÇÃO AUTÓNOMA
OMISSÃO DE FORMALIDADES
LICENÇA DE CONSTRUÇÃO
LICENÇA DE UTILIZAÇÃO
ESCRITURA PÚBLICA
CONVALIDAÇÃO
Data do Acordão: 07/04/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Sumário :
I - O incumprimento da formalidade prevista no art. 410.º, n.º 3, do CC consistente na inexistência de licença de construção ou de utilização, só constitui causa de nulidade do contrato promessa de celebração de contrato oneroso de transmissão ou constituição de direito real sobre edifício ou sua fracção autónoma se tal facto continuar a ocorrer no momento da celebração da escritura pública do contrato prometido.

II - A posterior obtenção de tal licença de construção ou de utilização - conforme os casos - do imóvel ou sua fracção autónoma, convalida o contrato promessa relativamente ao qual tal formalidade era indispensável.

Decisão Texto Integral:

EM NOME DO POVO PORTUGUÊS, acordam os Juízes Conselheiros da 1.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça


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RELATÓRIO

Parte I – Introdução

1) AA e BB, residentes em ..., demandaram através da presente acção declarativa de condenação, M... – Sucursal em Portugal, com sede em ..., ....

Formularam os autores o seguinte pedido a título principal:

“a) Declarar-se resolvido o contrato promessa do contrato promessa outorgado a 4 de outubro de 2019 pelo qual a ré prometeu vender aos autores o prédio urbano, com uma área total registada de 195,10 m2, área coberta 71,20 m2, sito em ..., freguesia de ..., concelho de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º ...09 e inscrito na matriz predial urbano com o artigo 2021 da freguesia de ..., por se ter verificado incumprimento definitivo e culposo por parte da ré;

b) Em consequência do pedido formulado em a), ser a ré condenada a pagar aos autores a quantia de 594.000,00 €, corresponde ao valor do sinal recebido em dobro (…);

c) Ser a ré condenada ao pagamento de juros desde a data da citação, até integral pagamento, sobre a quantia peticionada;

d) Ser a ré condenada ao pagamento das custas e demais encargos com o processo, com as demais consequências legais.”

Subsidiariamente formularam os autores o seguinte pedido:

“e) Ser declarada a nulidade do contrato promessa de compra e venda, celebrado entre autores e ré, em 4 de outubro de 2019, que tem por objeto o prédio identificado em 1 da p.i. - prédio urbano, com uma área total registada de 195,10 m2, área coberta 71,20 m2, sito em ..., freguesia de ..., concelho de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º ...09 e inscrito na matriz predial urbano com o artigo 2021 da freguesia de ... - nos termos e efeitos do artigo 280.º e 294.º, ambos do Código Civil;

f) Ser a ré condenada a restituir aos autores os montantes que lhe foram entregues por conta da celebração do contrato promessa, no montante de 297.000,00 € (duzentos e noventa e sete mil euros);

g) Ser a ré condenada ao pagamento de juros legais aos autores, calculados à taxa legal, 148.500,00 € calculados desde 04/10/2019 até entrada da PI, os restantes 148.500,00 € calculados desde 27/12/2019 até entrada da PI, acrescido de juros vincendos até integral pagamento;

h) Ser a ré condenada ao pagamento das custas e demais encargos com o processo, com as demais consequências legais.”

2) Alegaram os autores, em síntese, o seguinte:

Que os autores e a ré celebraram em 4 de outubro de 2019, um contrato promessa que teve por objecto a celebração de um contrato de compra e venda de um imóvel para habitação, pelo preço global de € 990.000,00 (novecentos e noventa mil euros), sendo que nessa data o mencionado imóvel se encontrava em fase de construção;

Que a título de sinal e princípio de pagamento os autores entregaram à ré na data da celebração do contrato promessa a quantia de 148.500,00 euros, e, a título de reforço de sinal e parte de pagamento, igual quantia em 27 de dezembro de 2019, devendo o remanescente do preço ser pago aquando da celebração da escritura do contrato prometido, a qual deveria ter lugar até ao final do mês de janeiro de 2020, em data a definir pelos autores e a comunicar à ré;

Que a data de celebração do contrato de compra e venda era meramente indicativa uma vez que, conforme acordado entre as partes, se tornava necessário proceder a alterações no projecto de construção aprovado;

Que em resultado de circunstâncias relativas à obtenção de crédito bancário – de que foram dando conhecimento à ré – e à pandemia provocada pelo vírus COVID-19 e consequente interdição de tráfego aéreo com destino e a partir de Portugal, os autores apenas em 23 de junho de 2020 iniciaram o processo de alteração do projecto de construção da moradia unifamiliar objecto do contrato;

Que solicitaram à ré o reagendamento da data para realização da escritura de compra e venda, tendo como limite 31 de dezembro de 2020, o que a ré viria a aceitar;

Que em 7 de agosto de 2020 comunicaram ao procurador da ré que estavam reunidas as condições para a celebração do contrato de compra e venda, tendo eles agendado a respectiva escritura para o dia 22 de setembro de 2020 e disso dado conhecimento à ré;

Que a ré se recusou a celebrar o contrato de compra e venda e não forneceu os elementos necessários à celebração da escritura do contrato prometido, nem compareceu na data agendada para o efeito, assim incumprindo definitivamente o contrato promessa celebrado.

Relativamente ao pedido formulado em via subsidiária, e para o caso de se considerar que não ocorre incumprimento definitivo da ré, alegaram os autores que a transmissão do imóvel destinado a habitação sempre estaria legalmente impossibilitada por falta de licença de utilização do imóvel para o efeito, sendo consequentemente nulo o contrato promessa celebrado.


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3) A ré, tendo sido regularmente citada, contestou o pedido alegando, em síntese, além do mais, o seguinte:

Que a não celebração da escritura de compra e venda no prazo previsto no contrato promessa e no prazo posteriormente concedido para o efeito se ficou a dever exclusivamente aos autores, bem sabendo eles que o contrato promessa se encontrava definitivamente incumprido, por ser da sua responsabilidade a não realização da escritura do contrato de compra e venda até 1 de junho de 2020;

Que a partir dessa data a ré retomou a execução da obra que tinha sido suspensa a aguardar indicação dos réus sobre os moldes em que deveria prosseguir;

Que os autores encenaram artificiosamente o agendamento de uma escritura de compra e venda em setembro de 2020, bem sabendo eles que, em data anterior, tinham deixado de cumprir, definitivamente, o contrato promessa;

Que o contrato de compra e venda do imóvel em fase inicial de construção podia ser realizado sem qualquer impedimento legal, já que o imóvel a transacionar era uma obra em construção, com alvará e licença de construção em vigor, e não de um imóvel já construído e pronto a ser habitado;

Que os autores incorrem em litigância de má-fé.


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4) Tendo sido dispensada a realização da audiência prévia foi proferido despacho saneador que definiu o objecto do processo e enunciou os temas da prova.

Teve depois lugar a audiência final, vindo a ser oportunamente proferida sentença em primeira instância que, julgando a acção procedente, e dando acolhimento ao pedido formulado a título principal, condenou a ré nos seguintes termos:

“A) Declaro resolvido o contrato promessa de compra e venda em causa, com fundamento em incumprimento imputável, de modo exclusivo, à ré sociedade;

B) Consequentemente, condeno a ré requerida à restituição, em dobro, do valor do sinal pago pelos autores, no montante de € 594.000,00 (quinhentos e noventa e quatro mil euros), acrescido dos respetivos juros vencidos e vincendos, a contar da citação e até integral pagamento.”


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5) Inconformada a ré interpôs recurso de apelação para o Tribunal da Relação de Évora, visando, no essencial a alteração da decisão da matéria de facto descrita na sentença impugnada e a sua revogação, com o fundamento de que foram os autores os únicos responsáveis pelo incumprimento do contrato promessa, não tendo, por isso, direito ao reconhecimento do direito à resolução do contrato promessa com base em culpa da ré, reafirmando ainda a litigância de má-fé por parte dos autores.

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6) Por acórdão datado de 10 de março de 2022 o Tribunal da Relação de Évora julgando a apelação parcialmente procedente revogou a sentença impugnada e decidiu ser a acção improcedente, com a consequente absolvição da ré do pedido em apreciação (pedido principal).

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7) Desse acórdão interpuseram recurso de revista os autores questionando os fundamentos da decisão, nomeadamente a existência de uma perda objectiva do interesse dos credores (autores) na prestação da devedora (ré) em mora e em consequência dela, e o incumprimento culposo do contrato promessa por parte da ré, apontando ao acórdão recorrido omissão de pronúncia acerca do pedido subsidiário por eles formulado.

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8) Por acórdão datado de12 de julho de 2022 o Supremo Tribunal de Justiça decidiu a revista nos termos seguintes:

“Julgar parcialmente improcedente a revista (…);

Confirmar o acórdão recorrido no que toca à revogação da sentença proferida em primeira instância;

Julgar improcedente o pedido formulado pelos autores a título principal, dele absolvendo a ré;

Ordenar a baixa do processo ao Tribunal da Relação de Évora a fim de ali ser apreciado, em substituição do Tribunal de primeira instância recorrido, nos termos previstos no artigo 665.º n.º 2 do Código de Processo Civil, o pedido formulado pelos autores a título subsidiário;

Confirmar o acórdão recorrido no que concerne à apreciação e conclusão sobre a inexistente litigância de má-fé dos autores.”


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9) Tendo os autos baixado à segunda instância nos termos ordenados por este Supremo Tribunal de Justiça, foi proferido acórdão pelo Tribunal da Relação de Évora em 12 de janeiro de 2023 que julgou o pedido formulado subsidiariamente pelos autores improcedente e dele absolveu a ré.

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Parte II – A Revista

10) Mais uma vez inconformados os autores interpuseram novo recurso de revista, agora do acórdão do Tribunal da Relação de Évora datado de 12 de janeiro de 2023.

Os autores formulam as seguintes conclusões nas respectivas alegações:

“1. Os autores, não se conformando com a decisão da 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora, que julgou improcedente a apelação interposta pela ré, quanto ao pedido subsidiário, (absolvendo) a ré do pedido formulado, pretendem apresentar o presente recurso de revista, porquanto o Tribunal da 1ª instância julgou a ação totalmente procedente, por totalmente provada, tendo declarado (resolvido) o contrato promessa de compra e venda em causa, com fundamento em incumprimento imputável, de modo exclusivo, à ré/sociedade e condenado a ré/recorrida à restituição, em dobro, do valor do sinal pago pelos autores, no montante de € 594.000,00, acrescido dos respetivos juros vencidos e vincendos, a contar da citação e até integral pagamento, acolhendo a tese dos autores quanto ao pedido subsidiário, isto é, da nulidade do contrato promessa e da restituição em singelo do valor de 297.000,00€ aos autores/Recorrentes.

2. A regra é a da inadmissibilidade de recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça das decisões da Relação que confirmem, sem voto de vencido, a decisão da 1.ª instância (dupla conforme), o que aqui não se verifica, porquanto existem duas decisões contraditórias: a sentença proferida em 1ª instância foi procedente para os autores, condenando a ré no pedido, e acolhendo a tese do pedido subsidiário, por sua vez o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora foi favorável à ré, absolvendo-a do pedido subsidiário.

3. No caso dos autos, os Digníssimos Desembargadores delimitaram o recurso da seguinte forma: 1.ª Questão – Saber se o contrato é nulo por impossibilidade legal de cumprimento; 2.ª Questão – Em caso afirmativo, quais as consequências.

4. Quanto à 1.ª questão, julgaram totalmente improcedente as alegações dos recorrentes, afirmando que não tinha que ser exibida licença de utilização, mas sim de construção e que não tendo sido exibida licença de construção, mas antes sido emitida e prorrogada posteriormente, a existir nulidade, sempre a mesma estaria sanada, improcedendo assim o pedido subsidiário e ficando prejudicada a 2.ª questão.

5. Todavia, os Venerandos Desembargadores confundem e fazem uma errónea interpretação do que é uma licença de utilização e licença de construção, sendo conceitos manifestamente diferentes, quer em termos leigos, quer em termos jurídicos.

6. Perante toda a factualidade provada, corroborando-se o entendimento da onde a 1.ª instância, a subsequente transmissão do imóvel, através de escritura pública, sem a licença de utilização, padecia de nulidade, por violação de normas imperativas, como o artigo 1.º do DL nº 281/99, não podendo ser dispensada a exigência legal pela vontade das partes, expressa no contrato promessa em que ambas manifestaram a vontade de futura transmissão do bem no estado e condições em que se encontrava à data da escritura.

7. A esse respeito, o Acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça, em 07/11/2019, no Processo nº 3401/17.1..., o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 12/02/2019, do Proc. nº 908/17.4... e o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, no Proc. nº 364/04.7...

8. Do facto provado 58, consta a exigência legal da ré apresentar a licença de utilização do imóvel ou documento equivalente, constando também do facto provado 60, que a ré sempre transmitiu aos autores que o referido imóvel, do ponto de vista legal e para a sua transmissão, não necessitava de licença de utilização, mas a ré/recorrida, já na data da outorga do contrato promessa, não obstante o teor do nº 5 da cláusula 4, tinha conhecimento que viria a ser, legalmente, necessária a obtenção de licença de utilização para o referido prédio.

9. São conceitos jurídicos díspares, com aplicação diversa, uma é a obrigatoriedade da licença de utilização para realização da escritura definitiva, uma vez que é um imóvel que se enquadra na obrigatoriedade de licença de utilização, precisamente porque se tratava de construção nova, sendo esta licença um documento emitido pela Câmara municipal da área de localização do imóvel que define o tipo de situação permitida para determinado edifício ou fração: habitação, ou fins não habitacionais (comércio, serviços ou indústria).

10. E outra é a licença de construção, que é um alvará de licença de obra que autoriza a construção de um determinado imóvel, com as características possíveis que reflete os projetos entretanto aprovados, sendo um documento transversal a qualquer obra, quer construção nova, quer remodelação, quer demolição, sendo manifestamente díspar da licença de utilização, que pode não ser necessária porque a obra é anterior a 1951,dispensando a sua exibição, ou porque cabe nas excepções previstas no n.º 4 e 5 do artigo 2.º do DL nº 281/99, ou seja, a possibilidade de exibição da licença de construção apenas se aplica aos casos previstos no n.º 4, mas não aos previstos no n.º 5, que é o caso dos autos, pois trata-se de moradia unifamiliar.

11. Reitere-se que é proibido, pelo artigo 1.º do DL nº 281/99 a realização de escritura pública cujo objeto seja a transmissão da propriedade de prédio urbano, ou de frações autónomas, sem que se prove a existência da respetiva licença de utilização, onde as exceções a este regime previstas no n.º 4 do artigo 2º do mesmo diploma não se aplicam à transmissão de frações autónomas nem de moradias unifamiliares, como é o caso dos autos, vide. Artigo 3.º, nem sequer cabendo na isenção prevista para edificações anteriores a 1951, pois quando se trata de edificação nova, reconstruída, ampliada ou alterada, quando da alteração resultem modificações importantes nas suas características, carece de licença de utilização.

12. Assim, a interpretação feita ao n.º 3 do artigo 410.º do Código Civil, é errada, pois não é aplicada ao caso concreto. É a legislação especifica do DL nº 281/99, artigo 2.º, n.º 5, que determina a obrigatoriedade da exibição de licença de utilização para a constituição e transmissão de direito real sobre edifício ou fracção autónoma dele ou moradia unifamiliar, precisamente como medida de combate à construção clandestina, como de resto é afirmado pelo Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 02/9/2009, Proc. nº 364/04.7TBFND.C1.S1, pelo que não pode vir uma lei mais abrangente, derrogar disposição especifica como a que decorre do DL nº 281/99.

13. Do referido acórdão decorre que “Como é sabido, a lei exige, no âmbito do próprio contrato-promessa – artigo 410.º n.º 3 – como requisito de validade formal, no caso de respeitar à constituição e transmissão de direito real sobre edifício ou fracção autónoma dele, já construído, como é o caso, a certificação pelo próprio notário, no documento respectivo, da licença de utilização, como medida de combate à construção clandestina.” e não que também pode ser licença de construção, como convenientemente adaptam e referem.

14. Do próprio certificado emitido pelo notário, no dia 22/09/2020, consta a exigência legal da ré apresentar a licença de utilização do imóvel ou documento equivalente, tal como consta do facto provado 58, constando também do facto provado 60, que a ré sempre transmitiu aos autores que o referido imóvel, do ponto de vista legal e para a sua transmissão, não necessitava de licença de utilização, o que como sabemos, não corresponde à verdade.

15. O contrato promessa foi alicerçado com base nesse pressuposto, constando nele a obrigação da ré obter essa certidão de isenção, certidão do registo comercial, número de identificação de pessoa colectiva, certidão do registo predial e certificado energético, tal como resulta do facto provado 19.

16. Mas a ré/recorrida, já na data da outorga do contrato promessa, não obstante o teor do nº 5 da cláusula 4, tinha conhecimento que viria a ser, legalmente, necessária a obtenção de licença de utilização para o referido prédio, tanto mais que havia demolido na totalidade a casa existente no terreno e aí se encontrava em construção – já com fundações e pilares – uma construção NOVA, como aliás decorre da sentença da 1ª instância, tanto da prova documental como testemunhal, bem como do facto provado 26.

17. A recorrida prometeu vender um prédio urbano para habitação, tal como consta do registo predial que se encontra nos autos, ou seja, um edifício térreo de tipologia T-dois, terraço exterior e logradouro, como consta do facto provado 23, afirmando que para a sua transmissão não seria necessária a licença de utilização, como aliás se verifica da leitura do nº 5 da clausula 4ª do contrato promessa e facto provado 60, mas à data da outorga do contrato promessa, 04/10/2019, o prédio urbano para habitação já não existia, a casa havia sido demolida pelo menos desde 22/10/2018 e se encontrava a sofrer obras novas, das quais resultaram modificações importantes das características do edifício, tendo já um novo projecto de arquitectura aprovado, bem como um alvará de construção com o nº .../2018, para nova construção e não obra inacabada, como erradamente vem mencionado pelos Venerandos Desembargadores.

18. Resulta do facto provado n.º 26, que refere que antes do início de 2019, a casa anteriormente existente foi completamente demolida.

19. Antes do início do ano de 2019, a casa anteriormente existente foi completamente demolida e em outubro de 2019, a obra já apresentava estrutura metálica para betonar e pilares, tendo sido executadas as fundações e parte dos muros, o que resulta dos factos provados 26 e 27, corroborando o proferido na douta sentença, “O edificado anteriormente existente (visível na foto de fls. 30 v.º) fora completamente demolido, fazendo-se as fundações e colocando-se os pilares para a nova construção. Não se tratou pois, de uma mera reconstrução do existente, mas de uma nova construção."

20. O que a Recorrida, efectivamente, prometeu vender foi um prédio em construção, com um projecto de arquitectura e construção já aprovado para uma nova construção e que necessariamente careceria de licença de utilização para transmitir o imóvel, ao abrigo do DL nº 281/99.

21. O projecto inicial da ré contemplava a demolição parcial de uma moradia unifamiliar e construção de duas moradias geminadas com garagens e piscina, tal como consta do projecto de arquitectura, pelo que tal implicaria sempre a necessidade de obtenção de licença de utilização, uma vez que a utilização de qualquer edificação nova, reconstruída, ampliada ou alterada, quando da alteração resultem modificações importantes nas suas características, carece de licença municipal, tal como prevê o Regulamento Geral das Edificações Urbanas, de onde decorre que para a transmissão do imóvel prometido vender, tal qual como ele se encontrava a 04/10/2019, seria sempre necessária licença de utilização.

22. Igualmente não se pode aceitar a tese peregrina da Relação de Évora, quando refere que: “Importa ainda referir que, no caso dos autos, não poderia estar em causa a LU – como alegam os recorrentes – mas sim a licença de construção, pois como os próprios admitem – artigos 98 e 99 da petição inicial – o que foi objecto da promessa foi um prédio em construção. Ou seja, o caso dos autos estaria sujeito à apresentação de licença de construção (e não de utilização, por se tratar de uma obra inacabada) mas tal licença não foi apresentada.”

23. O facto de ser um prédio em construção, não tem nada a ver com o facto de ser exigida ou não a licença de utilização, não se podendo extrair, sem mais, que por ser um prédio em construção, que só exige licença de construção.

24. Reitera-se que se trata de um prédio em construção, que foi demolido, tendo a recorrida iniciado uma nova construção, dai ser um prédio em construção que necessita obrigatoriamente de uma licença de utilização para ser transmitida e logo no contrato promessa, não se entendendo juridicamente a afirmação da Relação de Évora quando refere que “É que é necessário distinguir entre a escritura de compra e venda e a promessa de compra e venda,…”.

25. A recorrida ocultou tais factos aos recorrentes, fazendo constar do contrato promessa a não obrigatoriedade legal da licença de utilização no caso concreto induzindo os autores em erro, mesmo sabendo que estavam a prometer transmitir um prédio sujeito a construção nova, uma vez que demoliram integralmente o prédio inicial, para assim construírem novas moradias unifamiliares e uma construção nova.

26. O Tribunal da Relação de Évora não só vem sufragar a atitude da ré, como faz tábua rasa das falsas declarações prestadas perante Advogado a quem a Ré, falsamente, aquando da outorga do contrato promessa, declarou estar a transmitir aos autores um imóvel que não necessitava de licença de utilização, quando na verdade, não se tratava de remodelação do prédio originário, mas sim uma construção nova, pois o prédio antigo foi totalmente demolido, o que acarreta sempre a obrigatoriedade de licença de utilização.

27. Nessa medida, sendo o contrato-promessa concluído e estando apenas este em causa, não o contrato prometido, está em causa a impossibilidade legal do objecto negocial, por via da invalidade, a que sempre corresponderá a nulidade do artigo 280.º do Código Civil, uma vez que o contrato promessa celebrado tinha um objecto legalmente impossível, contrário à lei, sendo ainda aplicável o artigo 294.º do Código Civil, pois foi celebrado contra disposição legal de carácter legal imperativo e insuperável, in casu, a necessidade de licença de utilização, sendo assim nulo, ainda que já tenha sido concluído.

28. E às normas imperativas do DL n.º 281/99, nomeadamente os artigos 1.º e 2.º, n.ºs 4 e 5, não pode a exigência legal ser dispensada pela vontade expressa pelas partes, pelo que determinará sempre a nulidade do contrato promessa celebrado entre ré/recorrida e autores/recorrentes, assim, como a impossibilidade legal de cumprimento do contrato definitivo, que, por isso e nos termos dos artigos 280.º, n.º 1 e 294.º do Código Civil, é nulo.

29. Toda a fundamentação aduzida pela Relação de Évora está inquinada, uma vez que se refere apenas à licença de construção e não quando se trata de licença de utilização, como é o caso dos autos, pelo que quando aplica o Acórdão do STJ de 28/02/2008 a estes autos, aplica-o em manifesto erro de raciocínio e de uma errada aplicação do direito, uma vez que nesse caso, se refere apenas quanto à licença de construção e não quanto à licença de utilização, que como já amplamente alegado, é obrigatória.

30. O n.º 1 do artigo 280.º do Código Civil que é «nulo o negócio jurídico cujo objecto seja física ou legalmente impossível, contrário à lei ou indeterminável», assim definindo, segundo a sua própria epígrafe, os requisitos do objeto negocial, pelo que segundo Pires de Lima e Antunes Varela é «legalmente impossível, por ex., o objecto da promessa de celebração de um contrato que o direito não consente, da promessa de venda de uma coisa do domínio público» - cfr. Código Civil Anotado, vol. I, 4.ª edição revista e atualizada, 1987, Coimbra Editora, Ld.ª, pág. 258.

31. Isto é, é legalmente impossível, a celebração de um contrato que o direito não consente desde logo, da promessa de compra e venda de um imóvel, com o pressuposto de que não é necessária a licença, quando juridicamente sempre foi, é e seria necessária, pois no imóvel estão a ser realizadas obras de reconstrução, demolição, alteração ao prédio original, pelo que obrigatória a licença de utilização.

32. Há então impossibilidade quando o objecto se analise num efeito jurídico não permitido, que é realizar a escritura de compra e venda com a certidão de isenção de licença de utilização. A possibilidade será «física ou jurídica consoante o objecto contenda, ontologicamente, com a natureza das coisas ou com o Direito» - Tratado de Direito Civil Português, I, Parte Geral, tomo I, Almedina, 2ª edição, págs. 479 e seguintes, que sempre conduzirá à declaração de nulidade do contrato promessa.

33. E esta a declaração de nulidade traria sempre a restituição dos montantes já entregues pelos autores/recorrentes à ré/recorrida, no montante de 297.000,00 €, tal como dita o artigo 289º. n.º 1 do Código Civil , incumbindo também ao Supremo Tribunal de Justiça ponderar sobre esta matéria de direito, uma vez que a mesma foi peticionada e pese embora conste do pedido subsidiário, também colheu a procedência da 1.ª instância, enquadrando-se numa violação de leis substantivas, que consiste num erro de interpretação e aplicação das normas, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 674.º do Código de Processo Civil.

34. Em face de tudo exposto, impõe-se a revogação da decisão recorrida, condenando-se a Ré/Recorrida nos temos precisos da decisão da 1.ª instância, quanto ao pedido subsidiário, a devolução do sinal em singelo – 297.000,00 €, face à nulidade do contrato promessa, por via da inexistência de licença de utilização, quando a mesma é legalmente obrigatória e exigível.

Nestes termos, nos melhores de direito e sempre com o mui douto suprimento de Vossas Excelências, deve ser concedido provimento ao presente recurso de revista, revogando-se a decisão recorrida, julgando-se procedente por provada a presente ação, condenando-se a Ré nos termos do pedido subsidiário.


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11) A ré/recorrida apresentou articulado de resposta às alegações de recurso que remata pela forma seguinte:

“1 – A ré não tem qualquer reparo a fazer à decisão proferida no douto acórdão recorrido.

2 - Os recursos interpõem-se das decisões e não da respetiva fundamentação.

3 – Se atentarmos nos elementos constantes dos autos, outro não podia ter sido o resultado senão julgar-se o pedido subsidiário improcedente e absolver a ré do mesmo conforme consta do acórdão recorrido que, assim, não merece censura.

4 – São as conclusões do recurso que delimitam o seu objeto, independentemente do âmbito mais alargado da respetiva motivação e seus fundamentos.

5 – O recurso de revista que foi interposto pelos autores não é admissível e deve ser rejeitado porquanto no que diz respeito ao pedido subsidiário formulado pelos autores o entendimento perfilhado pela primeira instância e também pela segunda instância coincidem, tendo ambas as instâncias se pronunciando pela improcedência do pedido subsidiário.

6 – Na eventualidade teórica deste Colendo Tribunal admitir o presente recurso o mesmo deve ser julgado improcedente, confirmando-se o que foi determinado pelo Venerando Tribunal da Relação de Évora.

7 – Os autores alheiam-se da matéria de facto que foi dada como provada e não retiram as devidas ilações do que eles próprios dizem.

8 – Os autores apesar de perceberem que o que iam adquirir era um terreno para construção de uma edificação para a qual eles teriam de apresentar um projeto de alterações e proceder à sua construção, insistem malevolamente em falar numa licença de utilização que teriam de ser eles a obter depois de terem adquirido o imóvel e concluído a construção da edificação por eles pretendida. A construção nova seria realizada pelos autores e não pela ré.

9 – Os autores pretendiam adquirir o imóvel no estado em que se encontrava – terreno onde estava em curso uma construção que dispunha de licença de construção – e para o efeito, quer o contrato-promessa quer o contrato prometido não careciam de licença de utilização.

10 – Não havia qualquer impossibilidade física ou legal do objeto negocial.

11 – Os autores pretendiam adquirir um imóvel com uma licença de construção válida para a alteração da anterior construção que fora, entretanto, demolida encontrando-se a obra em curso, obra esta que os autores pretendiam alterar de modo a que a construção fosse concluída nos moldes por eles pretendida após a aquisição do imóvel.

12 – A descrição do imóvel constante do registo predial podia inclusivamente atualizar-se no respetivo título de transmissão, isto é, aquando da outorga da escritura pública de compra e venda.

13 – O documento a que os autores se reportam para sustentar a nulidade do negócio (licença de utilização da futura construção) era impossível que existisse aquando da outorga do contrato-promessa.

14 – Não existe fundamento legal para que o pedido subsidiário possa ser julgado procedente, porquanto o negócio acordado entre as partes era concretizável, dispondo o imóvel de toda a documentação necessária para que pudesse ser outorgado o contrato-promessa e a respetiva escritura de compra e venda.

15 – O negócio não se concretizou porque os autores incumpriram as obrigações no contrato-promessa.

16 – Os autores, sabem nenhuma razão lhes assiste no fundamento que invocam porquanto o negócio que foi acordado era física e legalmente possível e não era nulo litigando de má-fé devendo, por isso, proceder-se à sua condenação como litigantes de má-fé.

NESTES TERMOS e nos mais de direito deve o presente recurso ser rejeitado por não ser admissível e se assim se não entender sempre o mesmo ser julgado não provado e improcedente, mantendo-se o que foi decidido no acórdão recorrido, sem prejuízo da condenação dos autores como litigantes de má-fé.”


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12) Admitido que foi o recurso de revista interposto e colhidos os Vistos dos Juízes Conselheiros que intervêm no julgamento, cumpre apreciar e decidir, ao que nada obsta.

Atendendo às conclusões das alegações do recurso de revista interposto pelos autores a única questão que importa decidir é a da nulidade do contrato promessa celebrado entre as partes por impossibilidade legal do seu cumprimento por parte da ré dado o seu objecto.

Comecemos por analisar a matéria de facto que resultou provada.


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FUNDAMENTAÇÃO

Parte I – Os Factos

São estes os factos considerados provados, e não provados, tal como descritos no acórdão recorrido:

A) Factos Provados

1. Em 31 de julho de 2014 foi emitida certificação energética para o imóvel em causa, válida até 31 de julho de 2024.

2. A ré/sociedade foi notificada pelos serviços de urbanismo da Câmara Municipal de ... de que, por despacho de 9 de agosto de 2017, fora aprovado um projeto de arquitetura, para alteração e ampliação do edifício existente na Rua ..., em ..., correspondente ao imóvel inscrito na matriz sob o nº ...42 e descrito sob o nº 2495/19..., da Conservatória de Registo Predial de ....

3. Em 22 de outubro de 2018, pela Câmara Municipal de ..., foi emitido alvará de construção nº .../2018, referente ao imóvel supra descrito, com validade até 23 de outubro de 2018.

4. Através de escritura pública de compra e venda datada de 3 de outubro de 2019, no Cartório Notarial de ..., sito na Rua ..., CC declarou que, pelo preço de € 130.000,00 (cento e trinta mil euros), já recebido, vendia à ré/sociedade, na qualidade de representante da sociedade "M...", o prédio em causa, o que esta declarou aceitar, declarando ainda que o referido prédio "não foi objeto de obras que implicassem licenciamento ou autorização camarária, mantendo a mesma configuração e composição desde sempre."

5. Na referida escritura foi consignada a exibição, além de outro documento, da "certidão emitida hoje pelo Cartório Notarial em ... da NotáriaDD, da escritura de compra e venda celebrada no Cartório em ... da Notária EE, celebrada em 22 de dezembro de 2014, exarada a folhas 125 e seguintes do competente Livro 30-A, na qual foi arquivada certidão emitida pela Câmara Municipal de ..., a 16/06/2014, que atesta que este prédio é de construção anterior a 7 de agosto de 1951, motivo pelo qual se dispensa a licença de utilização do mesmo".

6. A ré/sociedade tinha o objetivo de ali construir uma moradia bifamiliar.

7. Em 3 de outubro de 2019, CC solicitou prorrogação de prazo para execução de obras referentes ao alvará n.º .../2018, informando que se previa a conclusão da obra por mais 180 (cento e oitenta) dias.

8. Tendo pago as taxas devidas.

9. No documento escrito datado de 4 de outubro de 2019, denominado de "Contrato Promessa de Compra e Venda" em que foram intervenientes a ré/sociedade, devidamente representada por CC, na qualidade de primeira outorgante e FF, em representação dos autores, aí designados por segundos outorgantes, pode ler-se:

"Considerando que:

1. A primeira outorgante vai proceder à aquisição do prédio urbano para habitação com uma área total registada de 195,10 m2, área coberta 71, 20m2, sito em ..., freguesia de ..., concelho de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o na ...09 e inscrito na matriz predial urbano com o art. 2021 da freguesia de ..., adiante designado por "Imóvel ou moradia".

2. Está a ser desenvolvido um projeto de obras de edificação no Imóvel, um projeto de obras de edificação ao abrigo da licença de obras de construção nº .../2018 de 22 de outubro de 2018, válida até 23/10/2019.

3. Que parte da empreitada do projeto de obras já foi pago pela anterior proprietária do imóvel à sociedade J..., Unipessoal, Lda.

4. A Primeira Outorgante pretende vender e os Segundos Outorgantes pretendem comprar, em comum e partes iguais, o imóvel identificado no considerando 1, no estado em que se encontra, pelo preço de € 990.000,00 (novecentos e noventa mil euros) (...)".

10. De acordo com a cláusula 1.ª do mesmo acordo, a ré/sociedade prometeu vender aos autores ou a quem estes indicassem, até à data da outorga da escritura definitiva, o imóvel descrito.

11. De acordo com a cláusula 2.ª, do mesmo acordo, o preço pelo qual a ré/sociedade prometeu vender aos requerentes o prédio em causa foi de € 990.000,00 (novecentos e noventa mil euros).

12. De acordo com a alínea a), da cláusula 2.ª, do mesmo acordo, a título de sinal e princípio de pagamento, os autores entregariam à ré/sociedade, na data da outorga do referido acordo, a quantia de € 148.500,00 (cento e quarenta e oito mil e quinhentos euros), correspondente a 15% do imóvel, através de dois cheques visados, um, no montante de € 18.500,00 (dezoito mil e quinhentos euros) e outro, no valor de € 130.000,00 (cento e trinta mil euros).

13. Tendo tais montantes sido entregues, nessa data, à ré/sociedade.

14. E, de acordo com a alínea b), da cláusula 2.ª, do mesmo acordo, a título de reforço de sinal e parte de pagamento do preço, os autores entregariam à ré/sociedade a quantia de € 148.500,00 (cento e quarenta e oito mil e quinhentos euros), correspondente a 15% do imóvel, para o IBAN indicado e até ao dia 20 de dezembro de 2019.

15. O que fizeram no dia 27 de dezembro de 2019.

16. Por fim, nos termos da alínea c), da cláusula 2.ª, do mesmo acordo, o restante montante, de € 693.000,00 (seiscentos e noventa e três mil euros), seria pago à ré / sociedade na data de realização da escritura de compra e venda.

17. Do ponto 1, da cláusula 4.ª do referido acordo resulta que a escritura de compra e venda seria celebrada até ao final do mês de janeiro de 2020 (pese embora por lapso de escrita conste janeiro de 2019) em dia, local e cartório notarial do ... a definir pelos autores, que deveriam notificar a ré/sociedade, com 30 dias de antecedência, devendo a ré/sociedade facultar aos autores cópia da licença de construção válida.

18. No ponto 3, da clausula 4.ª do referido acordo ficou estabelecido que, com a celebração do mesmo, a ré/sociedade iria proceder à revogação do contrato de empreitada existente com vista à realização da construção que se encontra em curso e os autores celebrariam novo contrato de empreitada com a sociedade construtora.

19. No ponto 5, da mesma clausula 4.ª, consta a obrigação da ré/sociedade obter a certidão de isenção de licença de utilização, certidão do registo comercial, número de identificação de pessoa coletiva, certidão do registo predial e certificado energético.

20. Tal documento foi autenticado por advogado.

21. Após a assinatura do referido acordo, a representante legal da ré viajou de Portugal para o ... onde permaneceu até 8 de março de 2020.

22. Através da ap. 3215, de 9 de outubro de 2019, mostra-se registada a aquisição, provisória por dúvidas, da compra efetuada por CC à ré / sociedade.

23. O prédio em causa encontrava-se descrito como tratando-se de edifício térreo de tipologia T-dois, terraço exterior e logradouro.

24. Os autores tinham o objetivo de, posteriormente, ali construir uma moradia unifamiliar.

25. E sabiam que, para o efeito, teriam que submeter o projeto de alterações à consideração e aprovação da Câmara Municipal de ..., alterações essas que foram consentidas pela ré/sociedade.

26. Em data incerta, mas certamente antes do início de 2019, a casa anteriormente existente fora completamente demolida.

27. Em outubro de 2019, a obra já apresentava estrutura metálica para betonar e pilares, tendo sido executadas as fundações e parte dos muros.

28. Por despacho de 7 de fevereiro de 2020 foi aprovada a prorrogação do alvará nº 79/2018, em nome de CC, até 10 de agosto de 2020.

29. A ré sempre soube, aceitou e foi sendo posta ao corrente, pelos autores, acerca das dificuldades de obtenção de crédito bancário e documentação, bem como nas deslocações a Portugal (com a interdição, até 17 de abril de 2020, do tráfego aéreo com destino e a partir de Portugal de todos os voos de e para países que não integram a União Europeia e sujeição dos autores a confinamento no Dubai), resultantes das circunstâncias excepcionais geradas pela pandemia provocada pelo vírus COVID-19.

30. As partes encetaram negociações com vista à prorrogação do prazo para celebração da escritura definitiva, tendo como limite o dia 31 de dezembro de 2020.

31.Tendo sido negociada a outorga de uma adenda ao acordo inicial, mediante reforço de sinal pelos autores.

32. Para esse efeito, em 8 de março de 2020, a representante da ré, CC, viajou do ... para Portugal.

33. Porém, aquele acordo não se logrou concretizar.

34. Através da ap. 1372, de 8 de abril de 2020, a aquisição do imóvel em causa a favor da ré / sociedade foi convertida em definitiva.

35. Por via postal registada enviada a 22 de abril de 2020 e entregue a 23 de abril de 2020, a ré/sociedade remeteu aos autores, na pessoa da respetiva procuradora, carta registada com aviso de receção datada de 22 de abril de 2020 e entregue a 23 de abril de 2020, onde se pode ler:

"( .. .) Na medida em que os promitentes compradores deviam ter procedido à marcação e outorga da escritura de compra e venda até 31 de janeiro de 2020, sem que o tivessem efetuado, incumpriram com o acordado.

Foi-nos informalmente prometido que a escritura se realizaria até 31/03/2020, o que fez com que a representante da promitente vendedora se tivesse deslocado a Portugal de propósito para o efeito, no entanto, os promitentes compradores, mais uma vez, não procederam à marcação e realização da escritura de compra e venda.

Os promitentes compradores incumpriram com o acordado.

Esta situação como é fácil de perceber acarreta elevados prejuízos e transtornos.

Serve a presente para instar os promitentes-compradores a que procedam à marcação e outorga da escritura de compra e venda, com o consequente pagamento integral do preço acordado, até ao próximo dia 01 de junho de 2020, sendo que, se não o fizerem, se considera que houve incumprimento definitivo dos mesmos do acordado no referido contrato-promessa, com as legais consequências, nomeadamente a perda do sinal. ( …)”

36. À qual, o autor respondeu através de carta datada de 27 de abril de 2020, onde se lê:

"Estou a escrever-lhe em relação à carta que a minha advogada recebeu da sua empresa porque parece que os nossos advogados infelizmente não estão a chegar a lado algum (...) não é verdade que nos comprometemos a assinar a escritura final em 31 de março de 2020, por isso lamento que tenha vindo a Portugal com esta informação errada. Nós não concluímos o acordado porque não chegamos a lado algum com o seu advogado relativamente à data para a concretização.

(...) Como deve saber através dos advogados eu estou preparado para a escritura final de compra e venda quando, como você sabe desde o início, a minha hipoteca for aprovada e estiver pronta para ser assinada. No entanto, por causa da pandemia e, nos últimos 5-6 meses estou a ter dificuldades em fazer-lhes chegar toda a documentação necessária a tempo e horas, porque estou a viver permanentemente no ... estando confinado em casa porque não me é permitido, é-me muito difícil assinar informação necessária e importante e fazê-la chegar às entidades relevantes em Portugal. Infelizmente não há nada que eu nem você possamos fazer acerca disso uma vez que, com as novas leis parecem fazer toda a documentação mais difícil e estão são circunstâncias imprevistas que ninguém pode ou poderia controlar ou sequer prever quando assinámos o contrato promessa.

Quero que saiba que não tenho qualquer intenção em pôr fim ou incumprir o nosso contrato e estou a trabalhar, embora seja muito difícil, para ter a minha hipoteca aprovada e pronta a assinar.

Espero que possamos ver esta escritura final assinada até ao final do ano, se necessário, só por causa do meu processo de hipoteca, que você sabia desde o início que eu precisaria para pedir para isto.

(...) Para finalizar, eu estou agindo de boa-fé, tal como acredito que você também esteja a agir, por isso de acordo com o que lhe estou a escrever eu não posso comprometer para dia 1 de junho de 2020, porque infelizmente isso está fora do meu controlo. (...) Com o que está a acontecer pelo mundo (COVID-19) espero que todas e completas e totais condições para assinar a escritura antes do final do ano de 2020. (...)".

37. Por via postal registada enviada a 12 de maio de 2020 e entregue a 13 de maio de 2020, a requerida remeteu aos requerentes, na pessoa da respetiva procuradora, missiva datada de 12 de maio de 2020, da qual consta, além do mais, o seguinte:

"(...) Uma vez que os promitentes compradores não estão disponíveis para celebrar a escritura pública de compra e venda no prazo que lhe foi concedido para o efeito, ocorreu o incumprimento do contrato promessa por razões imputáveis aos promitentes compradores. (...)";

38. A procuradora dos autores remeteu carta datada de 13 de maio de 2020, devolvendo a correspondência que lhe tinha sido remetida pela ré/sociedade a que se refere no ponto 37., com menção de que não lhe era permitido "a discussão do assunto ou resposta direta (…) uma vez estando representada por Colega. O assunto prende-se antes de mais por questões de respeito profissional para com o Colega" e que não chegara a ler o seu conteúdo.

39. Em 12 de maio de 2020, o ... da Divisão de Urbanismo e Espaço Público, no uso de competências delegadas, com base no parecer onde se refere, além do mais, o facto do processo ter estado sem movimento desde 6 de agosto de 2020, por causa imputável a CC, determinou que a continuidade do processo fosse assegurada pela instrução do pedido de emissão de alvará de construção, mantendo-se todos os restantes elementos que constituem o processo válidos.

40. No dia 23 de junho de 2020, deu entrada na Câmara Municipal de ..., o projeto de alteração da obra, de acordo com as pretensões dos autores, em nome de CC, onde consta a assinatura "GG".

41. Os autores deram entrada do referido requerimento, através da sua advogada com o conhecimento da ré.

42. O qual foi instruído com o projeto de arquitetura para alteração de moradia bifamiliar para moradia unifamiliar, acompanhado de projetos de especialidades, datado de 29 de maio de 2020, da autoria do arquiteto HH.

43. Os autores foram mantendo contactos com o arquiteto para delinearem as alterações ao projeto inicial, sendo o mesmo arquiteto do primitivo projeto da ré.

44. Os autores sabiam que a obra se encontrava suspensa, por indicação da ré.

45. Em junho, a ré/sociedade solicitou à sociedade incumbida da construção da obra que retomasse a mesma, de acordo com o seu projeto inicial.

46. Solicitou ainda ao arquiteto a submissão, na Câmara Municipal de ..., do projeto de arquitetura inicial, em substituição do projeto dos requerentes.

47. Através de requerimento que deu entrada nos serviços da Câmara Municipal de ... em 23 de junho de 2020, a ré/sociedade solicitou o averbamento do processo de licenciamento em seu nome, em virtude da sua aquisição.

48. Em agosto de 2020 a obra apresentava o chão betonado, os pilares do rés-do-chão levantados e encontrava-se em fase de colocação de estrutura metálica para colocar a placa.

49. Em 11 de agosto de 2020, pelas 9h59, a mediadora II enviou email para o endereço de ...), onde se pode ler:

"(...) o comprador da F... está em Portugal e já tem os valores disponíveis para efetuar a escritura final, o advogado dele já informou o Dr. JJ de acordo com email abaixo mencionado; estamos só a aguardar a sua disponibilidade de datas para fazer a marcação. Agradecia que informasse o advogado da sua disponibilidade de agenda para efetuar a marcação. (…)”.

50. Através de carta, datada de 13 de agosto de 2020, dirigida pelo autor à ré / sociedade, aquele comunicou-lhe: "(…) marquei a escritura definitiva de compra e venda para dia 22 de setembro de 2020 no notário do Dr. KK às 10hOO, sito na Rua ..., telefone número ...84. Precisa de contactar o notário antes desta data para lhe fornecer todos os documentos relevantes e necessários para assinar a escritura.

Preciso de a avisar, por via desta carta, que se no dia 22 de setembro de 2020, pelas 1 Oh 00, não comparecer no notário Dr. KK para assinar o contrato final, assumiremos que perdeu o interesse no negócio e, de acordo com o contrato promessa assinado a 4 de outubro de 2019 e o Código Civil Português temos o direito de pedir o sinal em dobro do que pagamos (…)".

51. Em 14 de agosto de 2020, o autor marido, remeteu mensagem via WhatsApp para o contacto móvel da representante da ré, CC, informando que estavam prontos para outorgar a escritura definitiva, onde se pode ler: "Sexta feira, 14 de agosto

As mensagens e chamadas são encriptadas ponto a ponto. Ninguém fora desta conversa, nem mesmo o WhatsApp, pode ler ou ouvi-las. Toque para saber mais.

Olá CC sou o AA, o comprador da casa na .... Espero que se encontre bem. Será um prazer debater consigo e tentar encontrar uma data para a assinatura da escritura final. Apesar da situação do COVID, nós estamos prontos. Obrigado por tudo. "

52. A representante legal da ré regressou ao ... em 21 de agosto de 2020.

53. E a execução da obra retomou, por indicação da representante legal da ré.

54. Em 17 de setembro de 2020, pelas 14h32, a mediadora II enviou email para o endereço de ..., onde se pode ler:

" (...) O advogado dos compradores já tem todo o dinheiro para assinar a escritura final, a data da escritura final é no dia 22 de setembro às 10HOO no escritório do Notário em ... sito na Rua .... O seu advogado foi informado por carta registada com a notificação legal.

O cheque visado com o valor de €693.000 será emitido em nome da M..., proprietária do imóvel. (…)”

55. Ao qual, foi dada resposta, no mesmo dia, pelas l8h05m, com o seguinte teor: "ESTE ASSUNTO ESTÁ ENCERRADO OS ADVOGADOS SABEM E VOÇÊ TAMBÉM SABE. “

56. Em resposta, pelas 19h5lm, a referida mediadora dirigiu email para o endereço da representante legal da ré, onde se lê:

“( .. .) A única coisa que eu sei é que existe um contrato promessa e no qual já recebeu 30% e nesta altura a escritura já está marcada para a data abaixo mencionada e se não comparecer haverá consequências legais. Só estou a fazer o meu trabalho profissional que sempre fiz. ( …) “:

57. Em 21 de setembro de 2020, pelas 9h59m, a mediadora II enviou email para o endereço de ..., onde se pode ler:

“(...) Junto envio a cópia do cheque que já está no Notário para lhe ser entregue amanhã na assinatura da escritura.

Os compradores já pagaram os impostos nas finanças relacionados com a compra, portanto está tudo pronto para a celebração da escritura amanhã às 10HOO.

Se precisar de mim para a acompanhar, estou disponível para a acompanhar. Espero pela sua resposta. (…) “

58. No dia 22 de setembro de 2020, o notário Dr. LL emitiu certificado de acordo com o qual: "(...) a parte vendedora não enviou nem entregou no cartório a documentação exigida para a elaboração da minuta e celebração da escritura, nomeadamente: certidão de registo comercial da sucursal ou instrumento de representação da mesma, certidão de registo predial e caderneta do imóvel, licença de utilização do imóvel ou documento equivalente, certificado energético ou documento comprovativo que dispense o certificado energético;

- Tendo a parte compradora enviado por email, no dia de ontem, às dez horas, cópia da procuração dos compradores, cópias dos documentos de identificação dos compradores e cópia do cheque a utilizar no pagamento do preço;

- pelo que o cartório, por insuficiência de documentos, não elaborou ou preparou a minuta da escritura (...)"

59. E, no mesmo dia, o notário Dr. Bruno Torres Marcos emitiu ainda certificado de acordo com o qual, de acordo com o qual:

"(...) a escritura (…) não se realizou em virtude de a parte vendedora não ter comparecido ou não se fazer representar.

(…) A representante dos compradores, a referida GG, mais quis deixar consignado neste certificado que tentou proceder à emissão dos documentos únicos de cobrança do IMT e do Imposto de Selo devidos pela transmissão do imóvel, mas sem sucesso, em virtude da existência de dívidas fiscais por parte da vendedora, tal como informação que lhe foi prestada pelo Serviço de Finanças de ... - conforme declarou. (...)"

60. A ré/requerida sempre transmitiu aos autores que, para a transmissão do imóvel, não seria necessária licença de utilização.

61. A 2.ª prorrogação do prazo de execução das obras em curso no imóvel em causa veio a ser aprovada por despacho de 23 de setembro de 2020, até 11 de agosto de 2021.

62. Em novembro de 2020, a obra encontrava-se a ser executada de acordo com o projeto anterior da CC.

63. Através de apresentação 4 de 27 de novembro de 2020, encontra-se inscrita no registo comercial a alteração do local de representação permanente da firma requerida para Avenida ..., freguesia e concelho de ..., distrito de ..., operada por deliberação de 20-02-2020, publicada a ... de dezembro de 2020.

64. Através de documento datado de 15 de março de 2021, o serviço de Finanças de ...atestou que: "(…) face aos elementos disponíveis no sistema informático da Autoridade Tributária e Aduaneira (AT), ora) contribuinte abaixo indicado (a) tem a sua situação tributária regularizada, nos termos do artigo177.º-A e/ou nºs 5 e 12, do artigo 169.°, ambos do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT) (...) M... - SUCURSAL EM PORTUGAL (…)".


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B – Factos Não Provados

Foram dados com não provados os seguintes factos:

a. Com a assinatura do contrato promessa ocorreu a entrega da moradia, através de entrega de chave ou portão de acesso à mesma;

b. Em março de 2020, as partes haviam acordado na celebração da escritura definitiva;

c. Em 8/3/2020, a representante legal da ré foi confrontada com a pretensão dos autores de que a escritura se realizasse até 31/12/2020;

d. O que foi rejeitado pela ré, em virtude do prazo de renovação da licença de construção até 10/8/2020;

e. A ré fez depender a realização da escritura no dia 22/9/2020 do aumento do preço do imóvel;

f. A ré já tinha pago o valor total da empreitada com vista à execução da construção em curso;

g. A obra esteve suspensa desde outubro de 2019 por falta de indicações dos autores sobre os moldes em que deveria prosseguir;

h. Devido às restrições impostas pela pandemia e afazeres profissionais a representante legal da ré ficou impossibilitada de viajar entre Portugal e o Remo Unido até agosto de 2020; e,

i. Os autores sabiam que, em 22 de setembro de 2020, a representante legal da ré não se encontrava em Portugal.”


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Parte II – O Direito

1) Conforme resulta do que atrás ficou dito, após a prolação do acórdão de 12 de julho de 2022 conhecendo da questão então em apreciação – a procedência do pedido formulado pelos autores em via principal – a única questão que resta para decidir é a concernente ao pedido subsidiário e a da invocada nulidade do contrato promessa de compra e venda por inexistência de licença de utilização do imóvel prometido vender e consequente impossibilidade legal de cumprimento do objecto do negócio ou seja a transferência do direito de propriedade sobre o imóvel nessas condições.

Alegaram os autores ora recorrentes na petição inicial que a nulidade do contrato promessa decorria da impossibilidade legal de celebração do contrato de compra e venda prometido por inexistência de uma licença de utilização do imóvel para habitação, a qual, contrariamente ao estabelecido no texto do contrato promessa era obrigatória.

Estando apenas em causa a validade do contrato promessa celebrado, era patente para os autores que ele tinha um objecto legalmente impossível na medida em que seria necessária à celebração da escritura de compra e venda a licença de utilização do imóvel que não existia.

Por esse motivo o contrato promessa de compra e venda era nulo, como previsto no artigo 280.º n.º 1 do Código Civil, devendo a ré restituir o valor entregue pelos autores a título de sinal no contexto do contrato promessa.

Vejamos se assim é e se assiste aos autores a razão que o Tribunal da Relação lhe não reconheceu.

2) O artigo 410.º n.º 1 do Código Civil estipula que à convenção pela qual alguém se obriga a celebrar certo contrato são aplicáveis as disposições legais relativas ao contrato prometido exceptuadas, além do mais, as que, pela sua razão de ser, não se devam considerar extensivas ao contrato promessa.

Por sua vez o n.º 3 do mesmo preceito estabelece que, no caso de promessa respeitante à celebração de contrato oneroso de transmissão ou constituição de direito real sobre edifício, ou fracção autónoma dele, já construído, em construção ou a construir, o documento referido no número anterior 1 deve conter a certificação, pela entidade que realiza aquele reconhecimento, da existência da respectiva licença de utilização ou de construção.

A nulidade a que os autores se reportam está, na realidade, relacionada com o não cumprimento de uma das formalidades 2 do contrato promessa impostas pelo artigo 410.º n.º 3 do Código Civil – a certificação da existência de uma licença de utilização ou de construção do imóvel prometido vender.

3) Tentando clarificar os dados da questão decidenda, importa dizer desde já que a conclusão sobre se a omissão da formalidade exigida pelo artigo 410.º n.º 3 do Código Civil traduzida na inexistência de uma licença de utilização ou de construção é susceptível de invalidar o contrato promessa, depende do objecto do contrato, isto é, daquilo que as partes se comprometeram a contratar. Mais concretamente, a exigência de uma ou outra licença é alternativa, sendo exigível a licença de construção caso as partes convencionem transferir o direito de propriedade incidente sobre uma obra por concluir, iniciada ou não, e exigível uma licença de utilização do imóvel destinado à habitação se o que as partes convencionaram foi a transferência do direito de propriedade sobre imóvel ou fracção autónoma concluído e pronto a habitar.

Na verdade, como esclarecidamente escreve o Professor Fernando de Gravato Morais, “exige-se, em alternativa, a existência de licença de utilização do edifício – no caso de este se ter já concluído – ou a existência de licença de construção – na hipótese de não ter começado ou de não ter terminado a respectiva construção”.

4) Na sentença de primeira instância, apesar de não ter conhecido do pedido subsidiário, ficou claramente expressa – ainda que não assumisse relevo para a decisão a proferir – a distinção entre estas duas realidades e os seus efeitos, conforme estivesse em causa a validade do contrato promessa ou a possibilidade de celebração do contrato prometido: a inexistência de uma licença de construção não implicaria a nulidade do contrato promessa até porque a sua falta poderia ser sanada até à data da celebração da escritura de compra e venda; a subsequente celebração do contrato definitivo de compra e venda sem a necessária licença de utilização padeceria de nulidade por violação de normas legais imperativas que não poderia ser dispensada pela “vontade expressa das partes expressa no contrato promessa em que ambas manifestaram a vontade de futura transmissão do bem no estado e condições em que se encontrava à data da sua assinatura”.

A abordagem da questão feita no acórdão recorrido foi feita, e bem, na perspectiva da questionada validade do contrato promessa por inexistência de uma licença de construção.

E, na realidade o incumprimento da formalidade da inexistência de uma licença se reporta unicamente à licença de construção, até porque conforme já decidido nestes autos, o contrato promessa foi definitivamente incumprido pela ré em data anterior ao agendamento da escritura pública de compra e venda.

Vejamos, ademais, o que resulta dos factos que esclareço qual foi o conteúdo do acordo das partes ao celebrar o contrato promessa a que os autos aludem.

5) O contrato promessa a que estes autos se reportam já foi analisado no anterior acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça proferido em 12 de julho de 2022.

Escreveu-se nessa decisão, com interesse para a apreciação da questão que agora nos ocupa o seguinte:

“7 – (…)

Na petição inicial os autores alegaram que tinham celebrado com a ré em 4 de outubro de 2019 um contrato promessa de compra e venda de um imóvel que, à data, se encontrava em fase de construção segundo um projecto apresentado pela ré, e no estado em que ele se encontrava.

Sendo o objecto da transmissão acordada uma edificação em construção no estado em que se encontrava, bem se compreende que tenha sido convencionado que a outorga do contrato de compra e venda prometido ocorreria dentro de quatro meses, mais precisamente até ao final do mês de janeiro de 2020.

Atento o objecto do contrato que as partes se obrigaram a celebrar nada haveria que impedisse a sua celebração até essa data, cabendo aos promitentes compradores diligenciar pelo agendamento da escritura de compra e venda, ficando a ré responsável por facultar cópia da licença de construção em curso.”

E, mais adiante, a propósito da alegada recusa do cumprimento da obrigação da ré de transferir o direito de propriedade sobre o imóvel que os autores descortinaram no facto 55, também se disse que “as instruções dadas pela ré no sentido da prossecução da obra e a sua retoma de acordo com o projecto inicial não traduzem actos irreversíveis que impossibilitem o cumprimento da obrigação de transferir o direito de propriedade sobre o imóvel, mesmo que sejam susceptíveis – mantendo-se o seu interesse na celebração do contrato prometido – de vir a causar dificuldade aos futuros compradores na execução do seu próprio projecto de construção (…)”.

6) Está agora em causa a invalidade do contrato promessa no âmbito do qual foi entregue o sinal que os autores pretendem lhes seja restituído em resultado da invocada nulidade.

Ressalta de forma cristalina da matéria de facto provada, que o objecto do contrato promessa de compra e venda que as partes celebraram em 4 de outubro de 2019 não era a celebração de um contrato de compra e venda de uma moradia unifamiliar pronta a ser habitada, mas sim a celebração de um contrato de compra e venda de um edifício em construção.

Basta atentar nos seguintes factos, todos do conhecimento de ambas as partes:

A casa anteriormente existente no local foi demolida em data anterior ao início de 2019;

Em outubro de 2019, data da celebração do contrato promessa aqui em causa, a obra então em construção apresentava estrutura metálica para betonar e pilares, estando executadas as fundações e parte dos muros;

No texto do contrato promessa celebrado reconhecem as partes estar a ser desenvolvido um projecto de obras de edificação no imóvel ao abrigo de uma licença de construção (alvará n.º 79/2018), sendo o projecto relativo a uma moradia bifamiliar;

No texto do contrato promessa celebrado entre as partes (em 4 de outubro de 2019), ficou estabelecido que o contrato de compra e venda seria celebrado até ao final do mês de janeiro de 2020, devendo a ré facultar aos autores cópia da licença de construção válida;

No texto do contrato promessa de compra e venda celebrado entre as partes ficou acordado que com a celebração do contrato prometido a ré procederia à revogação do contrato de empreitada existente com vista à realização das obras de construção em curso e os autores celebrariam novo contrato de empreitada com a sociedade construtora, obrigando-se ainda a ré a obter certidão de isenção de licença de utilização.

Os autores tinham o objectivo de ali construir uma morada unifamiliar e sabiam que teriam que submeter o projecto de alterações que entendessem levar a cabo à Câmara Municipal de ....

7) Conforme alegam os autores na sua petição inicial, o objecto do contrato promessa celebrado entre as partes foi efectivamente a celebração de um contrato de compra e venda de um edifício ainda em construção, com um projecto de construção aprovado para uma moradia bifamiliar e que então se encontrava no estado evidenciado pelos documentos 11 e 18 anexos à petição inicial.

Os autores pretendiam, aliás, que a obra não prosseguisse de acordo com tal projecto já que era sua intenção alterar o projecto para construir, após a aquisição da obra em construção e a aprovação das alterações que entendessem, uma morada unifamiliar.

Só assim se consegue entender que, estando a construção do edifício no estado documentado nos autos tenha sido convencionado entre as a celebração do contrato de compra e venda prometido passados menos de quatro meses, período de tempo manifestamente insuficiente para a conclusão da obra.

8) É da própria natureza das coisas que a emissão de uma licença de utilização de um imóvel para habitação pressupõe a sua conclusão e a aptidão para ser usado para o fim a que se destina, a qual tem que ser comprovada pela entidade administrativa competente para a fiscalização das condições de habitabilidade e emissão da licença de utilização do imóvel para habitação.

Durante a fase de construção da obra, como reconhecem os autores na petição inicial, não pode a licença de utilização ser emitida, exigindo-se, como forma de combate à construção clandestina e à eficaz protecção dos consumidores que a obra em curso esteja devidamente licenciada. E nada mais.

Não faz, por isso, o menor sentido, nem resulta da letra ou do espírito do artigo 410.º n.º 3 do Código Civil que a validade da promessa de transferência da propriedade de um imóvel em construção esteja dependente da obtenção de uma licença de utilização do imóvel para habitação.

9) Sobre a nulidade do contrato promessa celebrado entre as partes, parte o acórdão recorrido do quadro normativo geral fornecido pelos artigos 280.º n.º 1 e 294.º do Código Civil, o qual é sinteticamente caracterizado da seguinte forma: São nulos os negócios jurídicos cujo objecto seja física e legalmente impossível, contrário à lei ou indeterminável bem como, salvo disposição legal, os celebrados contra disposição legal de carácter imperativo.

Especificamente quanto à validade da celebração do contrato promessa constitui seu requisito, se ele se reportar à constituição e transmissão de direito real sobre edifício para habitação ou fracção autónoma dele, já construído, em construção ou a construir, a certificação da existência de licença de utilização ou de construção, conforme se trate de edifício já construído ou ainda em construção.

Em qualquer caso, como salienta o Professor Fernando de Gravato Morais, a posterior emissão da respectiva licença por referência à data da celebração do contrato Promessa, “convalida a prévia inexistência”.

10) Nem outra coisa resulta do invocado artigo 2.º do Decreto-Lei 281/99, de 26 de julho, publicado, como revela o respectivo preâmbulo, para resolver as dúvidas de interpretação surgidas com o artigo 44.º n.º 1 da Lei 46/85 de 20 de setembro na redacção dada pelo Decreto-Lei 74/86, de 23 de abril.

Prevê o seu n.º 4 que, declarando o alienante que os prédios urbanos prometidos vender não se encontram concluídos e desde que tenham licença de construção em vigor, é bastante a exibição do alvará de licença de construção, independentemente do seu prazo de validade, sendo certo que no caso presente não é aplicável o n.º 5 do preceito em causa – nomeadamente porque não estava em causa a transmissão da construção de uma morada unifamiliar.

11) Como esclarecidamente se escreve no acórdão recorrido “o que foi objecto da promessa foi um prédio em construção” sendo certo que na data da celebração do contrato promessa não existia uma licença de construção da obra válida, já que a prorrogação do respectivo alvará apenas teve lugar no dia 3 de outubro de 2019, vindo a ser aprovada em 7 de fevereiro de 2020 (conforme factos descritos nos pontos 7 e 8 e 28).

Prossegue o acórdão recorrido analisando a situação: “A lei não prevê a sanção para a omissão daquela obrigação de apresentação de licença, a não ser a norma geral do art.º 294.º do Código Civil, já referido, que estipula que os negócios jurídicos celebrados contra disposição legal de carácter imperativo, são nulos, salvo nos casos em que outra solução resulte da lei.”

O incumprimento da formalidade consistente na falta de apresentação ou existência de uma licença de construção válida no momento da celebração do contrato promessa não tem como consequência imediata a nulidade do contrato em causa já que – como é pacífico na doutrina e na jurisprudência, a posterior emissão da indispensável licença de construção convalida o contrato

Daí que, como se exara no acórdão recorrido, a falta da licença de construção aquando da celebração do contrato promessa – ou a da licença de utilização se fosse esse o caso – constituindo formalidade a observar como disposto no artigo 410.º n.º 3 do Código Civil não traduza “uma impossibilidade legal absoluta e originária do seu objecto, pelo que é de afastar a nulidade prevista no artigo 280.º, n.º 1 e 401.º, nºs 1 e 3 do Código Civil,” só relevando se se mantiver na data da celebração do contrato de compra e venda.

12) No caso presente, repete-se, o que as partes acordaram foi na vinculação futura à transferência do direito de propriedade de um edifício em construção para o qual a respectiva licença de construção não se encontrava válida na data da celebração do contrato promessa, mas que viria a ser emitida em 7 de fevereiro de 2020, escassos dias depois da data inicialmente prevista para a celebração do contrato de compra e venda, permanecendo a licença de construção válida até agosto de 2020.

Com a obtenção da licença de construção do imóvel – única licença exigível no caso – ficou convalidado o contrato promessa celebrado entre as partes.

13) Em conclusão, o contrato promessa celebrado entre as partes tendo por objecto a futura transferência do direito de propriedade sobre o imóvel então em fase de construção, não padece de nulidade insanável nos termos defendidos pelos autores, permanecendo válido até à data em que, conforme já anteriormente decidido, foi definitivamente incumprido pelos autores.

O pedido formulado pelos autores em via subsidiária improcede, tal como decidido pelo acórdão recorrido, que nenhuma censura merece, sendo improcedente a revista interposta pelos autores.

Os recorrentes suportarão as custas relativas ao recurso de revista.


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DECISÃO

Termos em que, julgam improcedente o recurso de revista interposto pelos autores, confirmando integralmente o acórdão recorrido.

Os recorrentes, porque vencidos nesta instância de recurso suportarão as respectivas custas.

Lisboa e Supremo Tribunal de Justiça, 4 de julho de 2023


Manuel José Aguiar Pereira (relator)

Maria Clara Pereira de Sousa de Santiago Sottomayor

António Pedro de Lima Gonçalves

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1. O n.º 2 do artigo 410.º do Código Civil prevê a redução do acordo a escrito assinado pela parte que se vincula ou por ambas as partes.↩︎

2. Assim caracteriza a falta de licença de utilização ou construção o Professor Fenando de Gravato Morais no “Manual do Contrato Promessa” – Editora de Ideias – março de 2022 a página 279.↩︎