Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1893/14.0TBVNG.P1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: FERNANDA ISABEL PEREIRA
Descritores: RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
ACIDENTE DE VIAÇÃO
DIREITO A ALIMENTOS
DANOS FUTUROS
DANOS PATRIMONIAIS
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
DANOS REFLEXOS
CÁLCULO DA INDEMNIZAÇÃO
RECONSTITUIÇÃO NATURAL
DEVER DE ASSISTENCIA
ÓNUS DE ALEGAÇÃO
ÓNUS DA PROVA
MORTE
INTERPRETAÇÃO DA LEI
PRINCÍPIO DA IGUALDADE
INCONSTITUCIONALIDADE
ACIDENTE DE TRABALHO
LIMITE DA INDEMNIZAÇÃO
FACTOS NOTÓRIOS
Data do Acordão: 10/19/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDO PROVIMENTO PARCIAL À REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / FONTES DAS OBRIGAÇÕES / RESPONSABILIDADE CIVIL ( POR FACTOS ILÍCITOS ) / MODALIDADES DAS OBRIGAÇÕES / OBRIGAÇÃO DE INDEMNIZAÇÃO - DIREITO DA FAMÍLIA / CASAMENTO ( EFEITOS ) / OBRIGAÇÃO DE PRESTAR ALIMENTOS.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - INSTRUÇÃO DO PROCESSO / FACTOS NOTÓRIOS - PROCESSO DE DECLARAÇÃO / RECURSOS / RECURSO DE REVISTA / PODERES DE COGNIÇÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA.
Doutrina:
- Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, Curso de Direito da Família, vol. I, 2.ª ed., Coimbra Editora, 359.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 495.º, N.º3, 496.º, N.ºS 1 E 4, 562.º, 566.º, N.ºS 1, 2 E 3, 1672.º, 1675.º, N.º 1 DO 2009.º, N.º 1, AL. A).
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 412.º, N.º1, 674.º, N.º 3, 682.º, N.º 2.
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA (CRP): - ARTIGO 13.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

-DE 30.06.2009, 11.10.2011 E 11.12.2012, PROFERIDOS, RESPECTIVAMENTE, NOS PROCESSOS Nº 1999/05.3TBVCD.S1, Nº 57/09.9T2AND.S1 E Nº 40/08.1TBMMV.C1.S1, ACESSÍVEIS EM WWW.DGSI.PT .
-DE 12.10.2009, PROC. N.º 220/03.6TBSTB.E1, DE 14.10.2010, PROC. N.º 845/06.8TBVCD.P1.S1, E DE 31.01.2012, PROC. N.º 875/05.7TBILH.C1.S1, ACESSÍVEIS EM WWW.DGSI.PT .
-DE 02.07.2013, PROC. N.º 3557/07.1TVLSB.L1.S1, E DE 21.03.2013, PROC. N.º 2395/06.3TJVNF.P1.S1, EM WWW.DGSI.PT , E A JURISPRUDÊNCIA NELES CITADA.
-DE 02.12.2013, PROC. N.º 1110/07.9TVLSB.L1.S1, E DE 09.07.2015, PROC. N.º 1647/13.0TBBRG.G1.S1, ACESSÍVEIS EM WWW.DGSI.PT .
-DE 17.12.2015, PROC. Nº 1294/11.1TJVNF.G1.S1.
Sumário :
I - Numa acção de responsabilidade civil emergente de um acidente de viação em que ocorre o falecimento de um familiar dos demandantes, a quantificação do dano não patrimonial à luz dos critérios insertos no art. 496.º, n.º 1, do CC, é sempre difícil por envolver a valoração do sofrimento com a ruptura de laços afectivos devido à morte de um ente querido.

II - Sofrendo os autores, em consequência do falecimento do seu marido e pai, um choque emocional, a atribuição de uma indemnização pela Relação no montante de € 25 000 a cada uma das autoras, cônjuge e filha que viviam com o falecido, e de € 20 000 ao filho, mostra-se equilibrada e equitativa.

III - A indemnização do dano patrimonial futuro na vertente da privação de alimentos, prevista no n.º 3 do art. 495.º do CC, consagra uma excepção ao princípio geral de que só ao titular do direito violado ou do interesse imediatamente lesado assiste direito a indemnização, nele se abrangendo terceiros só reflexamente prejudicados com o evento danoso.

IV - A ruptura da relação familiar em circunstâncias completamente alheias à vontade de qualquer dos cônjuges, devida à actuação culposa de um terceiro causador do acidente de viação que vitimou um dos membros do casal e fez cessar, por essa razão, o cumprimento do dever de assistência, faz sobressair a obrigação de prestar alimentos, passando para o lesante o dever de, através da componente indemnizatória prevista no n.º 3 do citado art. 495.º do CC, ressarcir esse dano face à impossibilidade da desejável reconstituição natural.

V - Esta indemnização não tem por objecto a prestação de alimentos assente num vínculo de natureza familiar entre o credor da indemnização e a vítima tal como está perspectivado para o direito a alimentos consagrado nos arts. 2003.º e ss. do CC. Radica no casamento e, por isso, os critérios da sua atribuição divergem dos consignados nos normativos que regem a matéria dos alimentos, não sendo esta interpretação normativa violadora do princípio da igualdade, previsto no art. 13.º da CRP.

VI - Para alcançar a indemnização pela privação de alimentos em causa não é exigível a alegação e prova por parte do cônjuge sobrevivo (lesado) de que, na data do acidente de viação (evento danoso) recebia alimentos do falecido ou estava em condições de os receber, designadamente, do requisito da necessidade de alimentos.

VII - No cálculo de tal indemnização deve atender-se ao montante líquido do salário percebido pelo falecido, por decorrência da aplicação da teoria da diferença, consagrada no art. 566.º, n.º 2, do CC, bem como à esperança média de vida da vítima, por corresponder ao horizonte temporal durante o qual contribuiria, previsivelmente, para os encargos da vida familiar e para as despesas do cônjuge a título de alimentos no cumprimento do dever conjugal de assistência. Sobre o montante apurado, atendendo a que o recebimento imediato da totalidade da indemnização e por uma só vez possibilitará ao lesado a rentabilização do capital recebido, mostra-se ajustado aplicar uma redução de acordo com uma taxa na ordem de 1,5%, e não outra mais elevada por constituir facto notório que, na actualidade, são baixos os valores das remunerações resultantes do capital.

VIII - Por conseguinte, resultando da factualidade provada que: (i) o falecido tinha 53 anos à data do acidente; (ii) a esperança média de vida era de 77 anos; (iii) o seu rendimento anual ascendia a € 13 621; (iv) a ausência de culpa do falecido na ocorrência do acidente; e (v) a inexistência de rendimentos por parte da autora viúva, é de fixar o montante indemnizatório deste dano patrimonial futuro em € 160 000.

IX - A esta indemnização não há que deduzir qualquer quantia já paga pela responsável laboral para ressarcimento do dano futuro de acordo com as regras próprias do regime legal do acidente de trabalho, não podendo o lesante (ou a sua seguradora) desvincular-se unilateralmente da obrigação de pagar a indemnização a seu cargo decorrente do facto ilícito com o argumento de que um outro responsável já assegurou ou irá assegurar o ressarcimento do dano correspondente.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:


  

AA, Domingos BB, CC, propuseram contra a ré DD - Companhia de Seguros, SPA, a presente acção declarativa, com processo comum, pedindo a condenação desta no pagamento da indemnização de 422.728,59€, sendo € 302.636,09 para a autora AA, € 60.046,25 para o autor BB e € 60 046,25 para a autora CC, a título de indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais, acrescidos de juros e com dedução dos montantes que a Companhia de Seguros EE vier a pagar à autora AA.

Fundamentaram o pedido na ocorrência de acidente de viação causado por exclusiva culpa do segurado na ré e do qual resultou a morte de FF, marido da primeira autora e pai dos restantes.

Citada, a ré aceitou a culpa do seu segurado, mas impugnou os danos invocados e os valores peticionados.

Realizada a audiência de julgamento, foi proferida sentença, que:

 - condenou a ré a pagar à autora AA as quantias de 127.082,00€ e 18.000,00€; 

 - condenou a ré a pagar à autora CC a quantia de 24.000,00€;

 - condenou a ré a pagar ao autor BB a quantia de 15.000,00€;

 - condenou a ré a pagar aos autores a quantia de 78.000,00€.


O Tribunal da Relação do Porto, por acórdão de 10 de Novembro de 2015, julgou improcedente o recurso principal interposto pela ré DD – Companhia de Seguros e parcialmente procedente o recurso subordinado interposto pelos autores, e, em consequência, alterou a sentença recorrida pela seguinte forma:

«- a ré vai condenada a pagar à autora AA as importâncias de 209.271,00 (duzentos e nove mil duzentos e setenta e um euros) [II], de 25.000,00€ (vinte e cinco mil euros) [I], de 277,50€ (duzentos e setenta e sete euros e cinquenta cêntimos) [III] e de 1.625,00€ (mil seiscentos e vinte e cinco euros) [IV]:

 - a ré vai condenada a pagar à autora CC a importância de 25.000,00€ (vinte e cinco mil euros) [I];

 - a ré vai condenada a pagar ao autor BB a importância de 20.000,00€ (vinte mil euros) [I].

No mais mantém-se o decidido».


Recorreu, de novo, a ré, agora de revista, formulando na sua alegação de recurso a seguinte síntese conclusiva:

« I. O que haverá que compensar no dano não patrimonial próprio é a perda de um ente querido, mas valorado de forma objectiva, ao menos para todos os que se mostrem na mesma relação de proximidade familiar e de afecto para com o mesmo, e não a percepção, sempre imensamente subjectiva, discricionária e até, potencialmente, discriminatória e lesiva, ao menos nas relações entre eles, da dor decorrente dessa perda por cada um dos lesados (sofro mais, quero mais !!??).

II. Deverá, pois, a quantia arbitrada aos recorridos ser reduzida para as de € 18.000 para a recorrida AA, de € 15.000 para a recorrida CC e de € 15.000 para o recorrido BB, ou, se assim não se entender e no pior dos casos, no casos destes dois últimos, para a mesma quantia de € 20.000 para cada um deles, tudo quantias mais consentâneas com a prática jurisprudencial corrente.

III. Não ficaram provados os factos necessários para demonstrar a necessidade da recorrida AA de receber alimentos de seu falecido marido, nem que este os prestasse àquela, não bastando, para estes efeitos, a mera prova da qualidade de cônjuge, ou a mera prova do estatuto sócio-profissional daquela de doméstica, pelo que ao reconhecer o direito daquela a esses alimentos e ao impor à recorrente a sua indemnização, o tribunal a quo fez, salvo o devido respeito, uma errada aplicação do previsto nos art°s 342°, 495°/2, 564°/2, 56672, 2004°/ 1 e 2, 2009%, ai. a), 2015° e 2016°/1, todos do Código Civil, e violou ainda o princípio da igualdade previsto no art° 13° da Constituição, devendo a sua decisão, nessa parte, ser revogada.

IV. Se, porém, assim se não entender, então na quantificação do dano futuro de perda de alimentos daquela recorrida deverá ponderar-se o salário, do falecido, líquido de contribuições, para o Fisco e Segurança Social, numa percentagem não inferior a 30%, e não o seu salário bruto;

V. como rendimento/alimentos perdidos pela recorrida AA 50% daquele salário, e não apenas 25%;

VI. como termo ad quem do período de perda a indemnizar o da idade legal de reforma do falecido, a dos seus 65 anos, e não o da esperança média de vida daquele, muito menos fixada nos 77 anos, para além do mais por só até àquela idade da reforma é que o dano futuro de perda de rendimentos laborais — o que aqui se pretende ressarcir — se mostra previsível e, como tal, indemnizável, nos termos consagrados no art° 564°/2 do CC,

VII. o capital necessário a gerar o rendimento anual perdido, que se esgote no fim daquele período, necessariamente inferior, ao menos em 10%, ao da perda acumulada no período considerado, e não apenas esta perda acumulada;

VIII. uma diminuição desse capital em, pelo menos, 1/3 por ser entregue duma só vez, para evitar o enriquecimento injusto da recorrida, e não apenas em 10%;

IX. o abatimento do já recebido, de pensão laboral, pela recorrida para ressarcir o dano aqui em causa.

X. Em face disto a indemnização para ressarcir a perda futura de alimentos da recorrida não deverá exceder os € 28.469,44.

XI. Se, porém, assim se não entender, e por se justificar a igualdade de critérios em face daquele que, em ambos os foros, é um mesmo dano - o de perda futura de alimentos - deverá este ser fixado e quantificado com a mesma quantia arbitrada, para o efeito, nos autos de acidente de trabalho que também correram sobre o sinistro dos autos, não superior a € 76.609.58.

XII. Ao decidir como decidiu o tribunal recorrido fez, salvo o devido respeito, uma errada interpretação e aplicação do previsto nos art°s 342°, 495°/3, 566°/2, 1880°, 2004°, 2009°/l, ai a), 2015° e 2016° todos do Código Civil e ainda do art° 13° da Constituição, devendo a sua decisão ser alterada conforme atrás concluído».


Os autores contra-alegaram, pugnando pela improcedência da revista, e interpuseram recurso subordinado, deduzindo, no que a este concerne, as seguintes conclusões:

« III- Quanto aos "DANOS NÃO PATRIMONIAIS", considerando a alegação dos AA, considerando a factualidade provada e o decidido no acórdão recorrido, teria sido justo ter condenado a ré a pagar € 40.000,00 à autora AA e € 30.000,00 a cada um dos AA CC e BB, cujo pedido se reitera por não ter sido abalada, nem a sua fundamentação, nem a sua justeza.

IV - A decisão ora posta em crise pelos AA., interpretou erradamente o previsto, designadamente, nos artigos 483° n° 1, 495°, 496° n° 1 e 2 (Ia parte), 562°, 563° e 564° CC».

Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.


II. Fundamentos:

De facto:

Para o conhecimento do objecto do recurso importa destacar a seguinte facticidade ordenada sequencialmente, mas cuja numeração se mantém:

1) No dia 30/01/2013, pelas 05.46 horas, na E. N. n.º 1, Km. 292,409, …, Pedroso, Vila Nova de Gaia, ocorreu um embate entre os veículos de matrícula ...-...VM, segurado na Ré e conduzido pelo seu dono GG e o veículo de matrícula ...-...-AE, conduzido pelo seu dono, FF (acordo).

10) Em consequência do referido embate, FF faleceu pelas 06.40 horas devido a choque hipovolémico consequente de lesões traumáticas que resultaram de traumatismo violento, tendo sido negativos os exames de pesquisa de álcool etílico, estupefacientes e substâncias medicamentosas.

11) A Autora AA foi casada com FF em primeiras e únicas núpcias de ambos desde 14/02/1982, tendo nascido na constância do casamento os Autores BB e CC e sendo o agregado familiar, á data do embate, constituído por FF, sua mulher e filha.

34) A Autora AA nasceu em 29/12/1961 (documento de fls. 151), o Autor BB nasceu em 15/11/1982 (documento de fls. 102) e a Autora CC nasceu em 22/12/1989 (documento de fls. 104).

12) FF nasceu em 04/11/1959 (documento de fls. 133) e à data do embate era motorista da «HH, Lda.», conduzindo autocarros de transporte público de passageiros.

16) Familiares e amigos consideravam FF simpático e cordato.

17) O agregado familiar referido em 11) e avós festejavam juntos aniversários e épocas festivas, como natal e páscoa.

18) O mesmo agregado ao sábado e/ou domingo almoçavam e/ou jantavam juntos.

23) As Autoras AA e CC estão a ser acompanhadas a nível médico pelo sofrimento causado pela morte de marido e pai, respectivamente.

24) Os Autores sentiram um choque emocional com a notícia da morte de FF, chorando compulsivamente.

25) Actualmente os Autores ainda sofrem emocionalmente com a morte de FF.

26) A Autora CC ainda não aceitou a morte de seu pai, tendo sido quem recebeu a notícia da morte, vivendo um luto patológico, vivendo em intenso sofrimento, com perturbações de sono.

28) O casamento entre Autora AA e FF era harmonioso, sendo um casal feliz.

32) FF era um pai que acompanhava os filhos e procurava suprir as suas necessidades.

29) A Autora AA está triste com o falecimento do seu marido, tendo crises de choro e angústia intensas, tendo-se desvalorizado pessoalmente ao nível da imagem. Tem perturbações de sono, sofrendo de um quadro depressivo major grave.

30) O Autor BB sente-se responsável pelas Autoras AA e CC, vivenciando com ansiedade a perturbação psico-emocional das mesmas e tendo passado a viver com elas após a morte de seu pai.

31) Os Autores evitam falar da morte de FF entre si.

19) FF, fora das horas de serviço, cultivava legumes e produtos hortícolas, criava galinhas e cortava a sua própria lenha.

20) À data da sua morte, FF auferia salário mensal de € 604,00x14 meses a que acresciam € 55,00x11 meses e € 380,00x12 meses num total de € 13.621,00 (documento de fls. 136).

33) O Autor BB está desempregado.

34) A A Autora AA era doméstica à data da morte de FF, o que ainda sucede.

27) A Autora CC vivia com o pai e usufruía, em parte, dos rendimentos auferidos pelo mesmo, nomeadamente ajuda em alimentação, deslocações.

33) (…) até 12/06/2014 a Companhia de Seguros EE, S.A. pagou à Autora AA € 20 de despesas de transporte, € 5 533,68 de subsídio por morte e € 5 855,48  de pensões (documento de fls. 182).

35) Por contrato titulado pela apólice n.º … a Ré assumiu a responsabilidade pelo ressarcimento dos danos causados a terceiros pela circulação estradal do veículo de matrícula ...-...VM conforme fls. 116.


De direito:

1. Ultrapassada que está, em definitivo, nos autos a questão da culpa na produção do acidente que vitimou FF, marido da primeira autora e pai dos restantes, atribuída que foi pelas instâncias, sem divergência das partes, a culpa exclusiva do condutor do veículo automóvel seguro na ré, importa, em face das conclusões das alegações – delimitadoras do objecto do recurso, salvo questão de conhecimento oficioso –, decidir qual o valor da indemnização relativa aos danos não patrimoniais próprios sofridos pelos autores.

A 1ª instância considerou que, no caso concreto, o sofrimento “foi elevado já que todos os Autores, naturalmente, sentiram fortemente a perda do marido e pai; acresce que se afigura que estando a Autora AA (cônjuge) e CC (filha) com sinais de depressão e uma recusa de aceitação da morte (mais acentuada na filha) e que o autor BB também naturalmente sofre mas terá conseguido enfrentar essa realidade de forma menos depressiva”.

E, tudo ponderando, fixou em 18.000,00 € a indemnização à autora AA, em 24.000,00 à autora CC e em 15.000,00 € ao autor BB, valores que o Tribunal da Relação alterou para 25.000,00 quanto às duas primeiras autoras e para 20.000,00 € quanto ao terceiro autor.

Insurgiu-se a ré contra estes valores. Entende que os mesmos devem ser reduzidos, atribuindo-se à autora AA € 18.000 e € 15.000 a cada um dos autores CC e BB. Admite, quando muito, que se fixe em € 20.000 a indemnização para cada um dos filhos.

Por sua vez, os autores pugnam, no âmbito do recurso subordinado, pela atribuição dos valores peticionados, isto é, 40.000,00 € para a viúva AA e 30.000,00 € para cada filho.

Neste particular coincide o objecto dos recursos principal e subordinado, pelo serão apreciados conjuntamente.

Está em causa um dano não patrimonial indemnizável à luz dos critérios insertos no artigo 496º nº1 do Código Civil, cuja quantificação é sempre difícil por envolver a valoração do sofrimento com a ruptura de laços afectivos devido à morte de um ente querido em resultado de um acidente de viação.

Na fixação desta indemnização em dinheiro não pode prescindir-se do recurso à equidade, ou seja, à ponderação, prudencial e casuística, das circunstâncias do caso por apelo ao critério subsidiariamente previsto nos artigos 496º nº 4 e 566º n.º 3 do artigo do Código Civil.

No caso em apreço, perante a facticidade provada, a atribuição de indemnização no montante de 25.000,00 € a cada uma das autoras, cônjuge e filha do falecido FF, e de 20.000,00 € ao seu filho mostra-se equilibrada e equitativa, estando, por isso, isenta de censura. Não obstante a dor e sofrimento sentidos com a sua morte, com particular intensidade relativamente às autoras, como o evidenciam os factos provados, aqueles valores revelam-se adequados à finalidade compensatória deste tipo de indemnização e consentâneos com a jurisprudência deste Supremo Tribunal (cfr., por todos, o Acórdão de 31.01.2012, proc.875/05.7TBILH.C1.S1, in www.dgsi.pt/jstj).

Improcedem, neste particular, as conclusões das alegações quer da ré, quer dos autores.


2. A segunda questão a tratar prende-se com a quantificação do dano patrimonial futuro na vertente da privação de alimentos, dano que a ré nega existir por entender que a autora AA não logrou provar os respectivos pressupostos fácticos, ou seja, a facticidade necessária à demonstração da efectiva necessidade de alimentos na data em que ocorreu o sinistro ou de que os mesmos lhe eram prestados.

Sem razão, porém, pode adiantar-se já.

De harmonia com o disposto no nº 3 do artigo 495º do Código Civil têm direito a indemnização os que podiam exigir alimentos ao lesado ou aqueles a quem o lesado os prestava no cumprimento de uma obrigação natural.

Consagra-se neste normativo uma excepção ao princípio geral de que só ao titular do direito violado ou do interesse imediatamente lesado assiste direito a indemnização, nele se abrangendo terceiros só reflexamente prejudicados com o evento danoso.

A obrigação de prestar alimentos integra, a par do dever de contribuir para os encargos da vida familiar, o dever de assistência a que os cônjuges estão reciprocamente vinculados durante a vigência do matrimónio, em conformidade com o estabelecido nos artigos 1672º e 1675º nº 1 do mesmo Código Civil.

Afirmam Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira (Curso de Direito da Família, vol. I, 2ª ed., Coimbra Editora, pág. 359), que a obrigação de alimentos, praticamente, só se autonomiza do dever de contribuição para os encargos da vida familiar quando os cônjuges vivem separados, de facto ou de direito. Só quando cessa a vida familiar, ou seja, a comunhão de vida que caracteriza o casamento, surge em toda a sua plenitude o dever de prestar alimentos com fundamento legal também no artigo 2009º nº 1 al. a) do Código Civil.

Quando a relação matrimonial cessa devido à morte de um dos cônjuges em consequência de acidente de viação, exclusiva ou parcialmente, imputável a outrem, pondo-se dessa forma termo à vivência conjugal, verifica-se uma involuntária quebra do dever de assistência por facto culposo de terceiro, adquirindo, então, autonomia a componente do dever de prestação de alimentos.

A ruptura da relação familiar em circunstâncias completamente alheias à vontade de qualquer dos cônjuges, devida à actuação culposa de um terceiro causador do acidente de viação que vitimou um dos membros do casal e fez cessar, por essa razão, o cumprimento do dever de assistência, faz sobressair a obrigação de prestar alimentos, passando para o lesante o dever de, através da componente indemnizatória prevista no nº 3 do citado artigo 495º, ressarcir esse dano face à impossibilidade da desejável reconstituição natural (artigos 562º e 566º nº 1 do Código Civil).

Esta indemnização não tem por objecto a prestação de alimentos assente num vínculo de natureza familiar entre o credor da indemnização e a vítima tal como está perspectivado para o direito a alimentos consagrado nos artigos 2003º e seguintes do Código Civil. Radica no casamento e, por isso, os critérios da sua atribuição divergem dos consignados nos normativos que regem a matéria dos alimentos (vide neste sentido os Acórdãos deste Supremo Tribunal de 12.10.2009 (proc. 220/03.6TBSTB.E1), de 14.10.2010 (proc. 845/06.8TBVCD.P1.S), e, bem assim, o de 31.01.2012 já citado, acessíveis em www.dgsi.pt/jstj.

Neste caso, para alcançar a indemnização pela privação de alimentos prevista no referido nº 3 do artigo 495º não é exigível a alegação e prova por parte do cônjuge sobrevivo – lesado – de que, na data do acidente de viação (evento danoso) recebia alimentos do falecido ou estava em condições de os receber, designadamente, do requisito da necessidade de alimentos.

Esta interpretação normativa não é violadora do princípio da igualdade consagrado no artigo 13º da Constituição, como pretende a ré.

Não obstante a relevância constitucional de tal princípio, este não é absoluto. A Constituição não veda a diferenciação desde que existam razões que a justifiquem.

Não chega, portanto, invocar a violação do princípio da igualdade, que se traduz na exigência de tratamento igual para o que é igual e tratamento diferenciado para o que é diverso.

Ao contrário do que sustenta a ré, com escasso esforço argumentativo de suporte, a interpretação do segmento normativo em causa é conforme com aquele princípio, uma vez que, como se afirmou já, a indemnização em causa mais não traduz do que uma compensação dada à autora perante a inviabilidade de a recolocar na situação existente antes do acidente que causou a morte do marido.

A indemnização a título de perda de alimentos de que tratamos não assenta no vínculo familiar, como já referimos, não se submete aos requisitos, nem aos critérios de quantificação que regulam o direito a alimentos qua tale, não sendo caso de fazer aqui apelo ao princípio constitucional referido.

De qualquer modo, tendo a Relação extraído da materialidade provada presunção de facto sobre a carência de alimentos da autora Laurinda, no sentido de que, sendo a mesma doméstica à data do falecimento do marido, situação que se mantinha na data da propositura da acção, era desprovida de qualquer fonte de rendimento, presunção fáctica que não cabe no âmbito dos poderes deste Supremo Tribunal de Justiça sindicar (artigos 674º nº 3 e 682º nº 2 do Código de Processo Civil), verificado estaria sempre o direito à peticionada indemnização pela perda de alimentos, dano patrimonial futuro que se impõe quantificar.


3. Diverge também a ré dos critérios seguidos no acórdão recorrido para a determinação do quantum indemnizatório a esse título devido, defendendo que não deve exceder 28.469,44€ ou, quando muito, deverá circunscrever-se a quantia idêntica à que foi arbitrada nos autos de acidente de trabalho relativos ao sinistro dos autos, isto é, 76.609,58€.

A autora AA, a título de dano patrimonial futuro respeitante à perda de alimentos, peticionou a importância de 230.076,09 €. A sentença da 1ª instância fixou aquele dano em € 127.082,00. O acórdão recorrido quantificou-o em € 209.271,00.

No cálculo do montante indemnizatório a Relação tomou como referência os seguintes elementos:

a) a idade da vítima (53 anos);

b) a esperança média de vida (77 anos);

c) o rendimento anual do falecido (13.621,00€);

d) a ausência de culpa do falecido na ocorrência do acidente;

e) a inexistência de rendimentos por parte da autora.

Começou a ré por defender que no cômputo da indemnização deverá levar-se em linha de conta o salário líquido auferido pelo falecido e deverá considerar-se a esperança média de vida activa daquele (65 anos), e não a sua esperança média de vida.

Aceita-se a primeira observação da ré no sentido de que no cálculo da indemnização tem de atender-se ao montante líquido do salário percebido pelo falecido. Este entendimento decorre da aplicação da teoria da diferença consagrada no artigo 566º nº 2 do Código Civil (neste sentido cfr. os Acórdãos deste Supremo Tribunal de Justiça de 02.07.2013, proc. 3557/07.1TVLSB.L1.S1, e de 21.03.2013, proc. 2395/06.3TJVNF.P1.S1, in www.dgsi.pt/jstj, e, bem assim a jurisprudência neles citada).

Porém, e como se dá nota no acórdão recorrido, apenas resultou provado nos autos que o falecido FF na data da sua morte auferia o salário anual de € 13.621,00.

Aplicar uma dedução correspondente a 30% do salário considerado no auto de conciliação exarado no âmbito do processo relativo ao acidente de trabalho, cuja cópia faz fls. 135 a 137, como pretende a ré, sob pretexto de que de que aquele montante corresponde ao salário bruto seria extrair um facto não considerado pelas instâncias, o que extravasaria o âmbito das competências do Supremo Tribunal de Justiça, no que tange à fixação da matéria de facto, traçadas pelos artigos 674º nº 3 e 682º nº 2 do Código de Processo Civil.

Terá, por conseguinte, de tomar-se como base de cálculo o único montante apurado pelas instâncias como sendo o salário auferido pelo FF na data da sua morte, ou seja, o salário anual de 13.621,00€, e não a quantia anual de € 9.534,00 indicada pela ré.

No que concerne ao período de tempo a considerar no cálculo da indemnização, entendemos que deverá atender-se à esperança média de vida da vítima. Seria esse o horizonte temporal durante o qual contribuiria, previsivelmente, para os encargos da vida familiar e para as despesas da autora AA a título de alimentos no cumprimento do dever conjugal de assistência, não suscitando qualquer reparo o critério seguido pelo Tribunal da Relação ao tomar por referência os 77 anos de idade.

Com efeito, a esperança média de vida à nascença dos homens portugueses situa-se actualmente nos 77,16 anos (de acordo com os dados mais recentes disponibilizados na página da internet do Instituto Nacional de Estatística), sendo que, como é dito no acórdão recorrido, o falecido FF sempre receberia, pelo menos, uma pensão de reforma correspondente aos descontos efectuados após terminar a sua vida activa e, previsivelmente, poderia continuar a desempenhar ainda tarefas remuneradas com cariz de habitualidade, ao menos, até 70 anos de idade (vide Acórdãos destes Supremo Tribunal de 2 de Dezembro de 2013, proc. n.º 1110/07.9TVLSB.L1.S1 e de 9 de Julho de 2015, proc. n.º 1647/13.0TBBRG.G1.S1, acessíveis em www.dgsi.pt).

Assim considerando, aquele auferiria até aos 77 anos o montante global de 326.904,00 € (13.621,00 € x 24 anos).


Questiona também a ré a dedução de apenas 25% da retribuição anual a título de despesas que o falecido faria consigo próprio, sustentando que num agregado familiar constituído por aquele e pela autora AA seria de considerar que o mesmo despenderia consigo 50% dos rendimentos auferidos com o seu trabalho.

No acórdão recorrido não é explicado como se alcançou aquela dedução de 25%. Os factos provados mostram que na data do acidente a autora CC, vivia com o pai e usufruía, em parte, dos rendimentos auferidos pelo mesmo, nomeadamente, ajuda em alimentação e deslocações (factos 11 e 27).

Nada nos autos revela que tal situação se manteria no futuro, sendo natural e razoável, na ausência de outros elementos de facto, o entendimento de que se tratava de uma ajuda pontual e que esta autora, então com 23 anos de idade, se autonomizaria dos pais. Por tal razão, deverá considerar-se que o falecido FF repartiria o seu salário com a autora AA, tendo-se por adequada a afectação do mesmo às despesas próprias de cada um deles na proporção de 50% para cada um.

Concretizando, atinge-se o valor de 163.452,00 € [326.904,00€ - (326.904,00€ x 50%) x 24].

Vem-se entendendo que o recebimento imediato da totalidade da indemnização e por uma só vez possibilitará ao lesado a rentabilização do capital recebido, o que tem levado à redução do mesmo de modo a que aquele capital se encontre esgotado no final do prazo considerado.

Como já escrevemos no Acórdão deste Supremo Tribunal de 17.12.2015 (proc. nº 1294/11.1TJVNF.G1.S1), a fim de tornar menos discrepantes e mais justas e actuais as indemnizações devidas, têm sido aventados vários critérios e fórmulas de índole matemática, cujos resultados, todavia, devem ser tidos como meramente indicativos, intervindo a equidade e a ponderação de pertinentes elementos objectivos e subjectivos como elementos correctores dos resultados obtidos sempre que estes se revelem desajustados ao caso concreto.

Tem-se considerado, preponderantemente, que o critério que melhor acomoda as diferentes variáveis a ter em conta é o recurso a tabelas financeiras (foi a solução adoptada no Acórdão deste Supremo Tribunal de 5 de Maio de 1994, CJSTJ, tomo II, pág. 86, ulteriormente simplificada no Acórdão deste mesmo Supremo Tribunal de 4 de Dezembro de 2007), correspondendo ao cálculo de uma renda inteira imediata e descontando a taxa de juro.

O Tribunal da Relação teve por justificada a dedução correspondente à aplicação de uma taxa de 10% pelo recebimento imediato e integral da indemnização.

Os cálculos e operações devem ser tidos em consideração apenas como um ponto de partida. O esforço de concretização dos mesmos não dispensa a intervenção temperadora da equidade por força da qual serão tomados em consideração factores relevantes perante cada caso concreto com vista à fixação da indemnização devida.

Constitui um facto do domínio público e, por conseguinte, facto notório (artigo 412º nº 1 do Código de Processo Civil) que na actualidade são baixos os valores das remunerações resultantes da aplicação do capital.

Esta realidade, que não pode deixar de ser considerada, leva a que se tenha como excessiva a dedução, no caso presente, do equivalente à aplicação de uma taxa de 10% ao capital que constitui a indemnização por danos futuros. Uma tal dedução revelar-se-ia altamente penalizadora para o lesado e desfasada do contexto actualmente vivido.

Consideramos, por conseguinte, equitativa e ajustada a redução ao montante do capital a atribuir à autora AA a título de indemnização pela perda de rendimentos do correspondente a uma taxa na ordem de 1,5%, razão por que se fixa tal indemnização no montante de 160.000,00 €.

           

4. Não assiste também razão à ré quando vem afirmar que, sendo o montante indemnizatório superior ao que entende ser devido (28.469,44€), a indemnização não deverá ser superior à reconhecida e calculada para efeitos de direito laboral – 76.906,58€ -, uma vez que, na sua tese, o dano patrimonial de perda futura de alimentos é exactamente o mesmo em ambos os foros, cível e laboral.

Como se escreveu no acórdão recorrido, “o tribunal cível não se mostra vinculado aos critérios adoptados no processo de acidente de trabalho, não sendo despiciendo salientar a diferença de montantes que nas duas sedes foram obtidos, com patente desfavor para a sede laboral, em que a importância surge como bem mais diminuta”.

São diversos os critérios legais a observar nas duas jurisdições em caso de concurso de responsabilidade civil extracontratual e responsabilidade emergente de acidente de trabalho, cumprindo aplicar em cada um dos casos o regime jurídico que lhe é privativo.

A natural divergência do quantum indemnizatório arbitrado ao lesado para ressarcimento do mesmo dano, não contende com qualquer princípio constitucional, nomeadamente com o princípio da igualdade.

Já a solução propugnada pela ré consubstanciaria uma inaceitável desigualdade entre os lesados nos casos de acidente simultaneamente de trabalho e de viação e de acidente que não fosse também de trabalho.

Na verdade, uma tal solução conduziria a que, optando todos por exercer os seus direitos no foro cível com base no instituto da responsabilidade civil extracontratual, se veriam confrontados com a atribuição de indemnizações divergentes para ressarcimento do mesmo dano, de montante inferior no caso dos primeiros, se condicionado o seu cálculo aos critérios estabelecidos no direito laboral.

A menos que, como se escreveu no acórdão recorrido, “se considerasse – o que cremos absurdo - que em todas as situações indemnizatórias desta natureza, independentemente de se reportarem ou não a acidente de trabalho, os critérios a adoptar seriam os que objectivamente se acham consagrados na legislação laboral”.


5. Finalmente, defende a ré que ao valor desta indemnização terão de ser deduzidos os montantes recebidos pela autora AA a este título no âmbito do processo que correu termos pela jurisdição laboral, sob pena de eventual duplicação ou acumulação real de indemnizações traduzida no recebimento de uma indemnização no âmbito do acidente de trabalho e outra no campo da responsabilidade civil por facto ilícito.

Sobre esta concreta questão já se pronunciou o Supremo Tribunal de Justiça em diversos arestos, dos quais destacaremos, a título de exemplo, os Acórdãos de 30.06.2009, 11.10.2011 e 11.12.2012, proferidos, respectivamente, nos processos nº 1999/05.3TBVCD.S1, nº 57/09.9T2AND.S1 e nº 40/08.1TBMMV.C1.S1 (acessíveis em www.dgsi.pt/jstj).

Pronunciaram-se no sentido de que o dever de indemnizar os prejuízos decorrentes de um acidente de viação, que é simultaneamente de trabalho, recai, primeira e primordialmente, sobre o lesante que lhe deu causa, não cabendo ao responsável pela indemnização civil invocar a duplicação de indemnizações para se opor ao pagamento do que resulta da sua responsabilidade. Por conseguinte, terá de reconhecer-se o direito do lesado ao ressarcimento da totalidade do dano sofrido, cabendo a quem satisfez a indemnização laboral - entidade patronal/seguradora - o direito ao reembolso do que pagou ao lesado, dessa forma se obviando à acumulação de pensões ou indemnizações fixadas pelo acidente de trabalho com indemnizações arbitradas no domínio da responsabilidade civil extracontratual, seja com fundamento na culpa, seja com base no risco.

De acordo com esta doutrina, que se acolhe, o lesante (ou a sua seguradora) não pode desvincular-se unilateralmente da obrigação de pagar a indemnização a seu cargo decorrente do facto ilícito com o singelo argumento de que um outro responsável já assegurou, em termos transitórios, ou irá assegurar o ressarcimento do dano correspondente, sob pena de a dedução vir a beneficiar o próprio lesante, solução de todo inaceitável.

Não haverá, pois, que deduzir qualquer quantia já paga pela responsável laboral para ressarcimento do dano futuro em causa de acordo com as regras próprias do regime legal de acidente de trabalho, inscrevendo-se na titularidade da seguradora com quem foi celebrado o contrato de seguro de acidentes de trabalho o direito de ser reembolsada de qualquer pagamento realizado em caso de acumulação real de indemnizações.


Procedem, assim, apenas em parte as conclusões do recurso principal e improcedem na totalidade as do recurso subordinado.


III. Decisão:

Nesta conformidade, acorda-se em:

 - negar a revista interposta pelos autores;

 - conceder parcialmente a revista interposta pela ré e alterar o acórdão recorrido, condenando-se a ré a pagar à autora AA a quantia de € 160.000,00, a título de indemnização pela privação de alimentos, e mantendo-se o mesmo quanto ao mais nele decidido.


Custas do recurso principal por autores e ré, na proporção do respectivo decaimento, sendo as custas do recurso subordinado a cargo dos autores, sem prejuízo do apoio judiciário que a estes foi concedido.


Lisboa, 19 de Outubro de 2016


Fernanda Isabel Pereira (Relatora)

Maria dos Prazeres Beleza

Olindo Geraldes