Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
02B440
Nº Convencional: JSTJ00000148
Relator: JOAQUIM DE MATOS
Descritores: LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ
Nº do Documento: SJ200204040004402
Data do Acordão: 04/04/2002
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL LISBOA
Processo no Tribunal Recurso: 3721/01
Data: 05/24/2001
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Área Temática: DIR PROC CIV.
Legislação Nacional: CPC95 ARTIGO 456.
Sumário : Litiga de má fé quem, em alegação de recurso, invoca vários acórdãos os quais na realidade são contrários à sua pretensão.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

I - A, id. a fls. 2, intentou acção de despejo contra B, Lda, aí id., pedindo se decida a resolução do contrato de arrendamento documentado a fls. 5 a 11, a entrega imediata do locado livre e devoluto de pessoas e bens e também a condenação da R. no pagamento das rendas vincendas até efectiva entrega das chaves, alegando os factos articulados na petição inicial, aqui tidos por reproduzidos na íntegra.
Citada a R. contestou como se vê de fls.19 a 21, respondendo o A. como consta de fls. 30 a 33.
A fls. 36 e 37 julgou-se procedente a acção e condenou a R. no pedido.
Inconformada, a R. apelou para a Relação de Lisboa que, como resulta de fls. 70 a 72, julgou improcedente o recurso e manteve o decidido na 1ª Instância.
Discordando, a R. interpôs agravo para este Supremo, nos termos do art. 678º, nº 4, do CPCivil, recurso a processar de acordo com os arts. 732-A e 732-B desse Código pela necessidade de fixar jurisprudência sobre duas questões que têm tido tratamento diverso nos Tribunais e, a concluir, sugeriu que essa fixação se faça com as seguintes redacções: sobre a 1ª questão, "faltando documento no processo, designadamente por se ter extraviado, em que assenta o pedido do Autor ou a defesa do Réu, deverá o Tribunal, nos termos do disposto no art. 508º- 2, do CPC, convidar a parte a apresentar o documento essencial de que a lei faça depender o prosseguimento da causa"; e, quanto à 2ª questão, "se o Tribunal, ao decretar a penhora, ordenar que a mesma se efectue com o encerramento do estabelecimento ficando o inquilino sem a posse do mesmo, tal facto constitui caso de força maior impeditivo da resolução do contrato por parte do senhorio com o fundamento previsto na alínea h) do nº 1 do art. 64º do RAU".
A A., notificada do requerido pela R., disse ser o recurso manifestamente infundado e como tal não dever ser admitido.
Tal agravo não foi admitido e a recorrente foi condenada como litigante de má fé na multa de 50000 escudos na base do entendimento de que a sua conduta "não pode deixar de ser considerada, se não dolosa, pelo menos negligentemente grave".
Deste despacho agravou a R. recorrente que, pedindo o provimento do recurso e a revogação da condenação por litigância de má fé, alegou o que se contém de fls. 107 a 108 verso com as conclusões seguintes:
1. As Instâncias, ao não apreciarem o documento que a recorrente juntou aos autos e deles desapareceu, quando lhes cabia ordenar oficiosamente a sua junção (art. 508º, nº 2, do CPC), cometeram nulidade (art. 201º do CPC), não lhes sendo lícito também, sem ler o documento, concluir que a penhora não impede a laboração do estabelecimento;
2. Se o documento junto aos autos tivesse sido apreciado pelas Instâncias - estas tinham concluído que o encerramento do estabelecimento se devia ao facto de um tribunal ter ordenado que a penhora se fizesse com mudança de fechaduras e com a entrega do estabelecimento a terceiro depositário, ficando a inquilina sem a sua posse e sem o poder manter aberto - a acção tinha de ser julgada improcedente e a recorrente absolvida, pois o encerramento se devia a caso de força maior;
3. Ao procurar que lhe seja feita a devida Justiça a recorrente, que sempre liquidou as rendas embora sem usufruir do estabelecimento, não está a alterar a verdade dos factos, nem a fazer uso reprovável do processo e apenas procura reagir, legalmente, contra uma ilegalidade que põe em causa o seu legítimo direito e evitar grossos prejuízos; e
4. Ao condenar a ora recorrente como condenou e pelos fundamentos que invocou, o Tribunal a quo não fez a devida apreciação do disposto mo art. 456º do CPCivil e seus legais fundamentos.
Contra-alegando o A. recorrido diz que a R. insiste numa actuação plena de má fé e que, além da multa, pelos prejuízos que a actuação lhe tem causado face ao protelar do trânsito em julgado da decisão e às consequências daí derivadas quanto a "honorários dos mandatários" e à impossibilidade de "tirar os devidos rendimentos de um bem desta qualidade", deve a mesma R. ser condenada a indemnizá-la na quantia de 500000 escudos.
Notificada, a R. recorrente nada disse.
II - Após os vistos, cumpre decidir:
A - Factos:
1. O A. recorrido é dono do prédio urbano sito no Largo Marechal Carmona, lote k, no Bairro da Memória, freguesia de Odivelas;
2. Por contrato celebrado em 12 de Setembro de 1968, o pai do A. deu de arrendamento à R. recorrente a fracção A do referido prédio, com início em 1 de Agosto de 1968, para o exercício da indústria e comércio de perfumes e produtos de toucador.
3. Desde meados de Novembro de 1997, a R. recorrente deixou de manter o estabelecimento instalado no locado aberto, conservando-o desde então encerrado, com papeis colados nos vidros e ar de abandono.
B - Direito:
O objecto deste recurso encontra-se delimitado pelas conclusões formuladas pela Recorrente na sua alegação mas, para lá do resultante dessas conclusões, haverá que apreciar igualmente se a mesma incorreu em litigância de má fé ao interpor recurso para este Supremo Tribunal, como sustenta o aqui Recorrido.
Para tal fim analisaremos primeiramente os pressupostos e os efeitos da condenação por litigância de má fé, ainda que o façamos de forma sumária e para enquadrar a nossa decisão.
De seguida, verificaremos se a Recorrente litigou ou não de má fé e se a sanção aplicada é ou não adequada.
Finalmente, apreciaremos ainda o novo pedido de condenação por litigância de má fé deduzido pelo Recorrido.
No seguimento do que acaba de referir-se, diremos:
Os pressupostos da litigância de má fé encontram-se regulados no art. 456º do CPCivil, podendo distinguir-se aqueles que têm natureza subjectiva, daqueles que têm natureza objectiva.
Há litigância de má fé quando estão simultaneamente reunidos pressupostos das duas mencionadas naturezas.
Quanto aos pressupostos subjectivos da condenação por litigância de má fé cabe lembrar nesta sede que tradicionalmente só havia litigância de má fé quando pelo menos uma das partes tivesse agido com dolo.
A partir de 1 de Janeiro de 1997 - e como corolário de uma maior relevância concedida aos deveres de cooperação aquando das alterações introduzidas pela Reforma de 1995/1996 - os pressupostos subjectivos da litigância de má fé alargaram-se e assim agora quem actuar com negligência grosseira também pode e deve ser condenado como litigante de má fé.
Quanto aos pressupostos objectivos da condenação por litigância de má fé é de distinguir a má fé substancial da má fé instrumental: haverá má fé substancial se "o litigante usa de dolo ou má fé para obter decisão de mérito que corresponde à verdade e à justiça" e haverá má fé instrumental se "a parte procura sobretudo cansar e moer o seu adversário, ou somente pelo espírito de fazer mal, ou na expectativa condenável de o desmoralizar, de o enfraquecer, de o levar a uma transacção injusta" - Cfr. Alberto dos Reis, in CPC Anotado, vol. II, págs. 263-264).
Nos termos do art. 456º do CPCivil, deve ser condenado como litigante de má fé todo aquele que deduz pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não podia ignorar (art. 456º, n.º 2, al. a), do CPCivil).
Deve ainda ser condenado como litigante de má fé quem tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa (art. 456º, n.º 2, al. b), do CPCivil).
Deve também ser condenado como litigante de má fé aquele que tiver violado gravemente o dever de cooperação (art. 456º, n.º 2, al. c), do CPCivil).
Por fim, deve ser condenado como litigante de má fé aquele que tiver feito uso do processo ou dos meios processuais com fins manifestamente ilegais (art. 456º, n.º 2, al. d), do CPCivil).
A litigância de má fé pode levar à aplicação de duas sanções: a multa e a indemnização.
Dará lugar à aplicação de uma multa processual que pode ser decidida oficiosa-mente ou a requerimento da contraparte.
Tal multa deve ser fixada pelo juiz entre 2 e 100 UCs (art. 102º, al. a), do CCJudiciais), mas a sua decisão não pode ser arbitrária, devendo ser tomada com base na maior ou menor intensidade da culpa revelada pelo agente e na sua condição económica. O juiz também deve proceder a análise ou projecção das consequências danosas da actuação do litigante.
Por outro lado, a litigância de má fé pode também conduzir à condenação no pagamento de uma indemnização.
A indemnização atribuída pode assumir duas modalidades distintas.
Numa primeira modalidade, usualmente designada por indemnização simples, quem for condenado como litigante de má fé deverá liquidar à contraparte o valor das despesas originadas pela litigância de má fé, incluindo os honorários dos advogados e dos técnicos (art. 457º, n.º 1, al. a), do CPCivil); e
Numa segunda modalidade, normalmente designada por indemnização agravada, a indemnização deverá abarcar essas despesas e os demais prejuízos sofridos pela parte contrária como consequência directa ou indirecta da má fé (art. 457º, n.º 1, al. b), do mesmo Código).
Tanto num caso como noutro só serão indemnizáveis as despesas e os prejuízos em que se tenha incorrido em virtude de um comportamento gravemente negligente ou doloso da contraparte.
O juiz deve optar entre as duas modalidades de indemnização referidas com base na gravidade da infracção perpetrada, sendo irrelevante nesta sede a condição económica do litigante de má fé.
Quando haja negligência grosseira, o juiz deve atribuir a indemnização simples e quando se demonstre que houve dolo, o juiz deve optar pela indemnização agravada - Cfr. Abrantes Geraldes, in Temas Judiciários, vol. I, pág. 335.
Focadas as principais regras legais relativas à litigância de má fé, é chegado o momento de nos determos sobre o caso em apreço e apreciarmos a bondade do recurso.
A R. recorrente foi condenada como litigante de má fé pela Relação de Lisboa por ter citado diversos arestos contrários à sua pretensão, sustentando que os mesmos lhe eram favoráveis. Tal citação implicaria - de acordo com o entendimento do Tribunal recorrido - que a R. recorrente não poderia ignorar a falta de fundamento da sua pretensão. Também de acordo com a Relação de Lisboa a invocação dos arestos em causa não podia deixar de configurar um uso manifestamente reprovável do processo.
Defendendo-se da condenação por litigância de má fé, a R. recorrente alega que não existe fundamento para o despejo decretado e que foi vítima de flagrante injustiça. Diz também que as Instâncias cometeram diversas nulidades processuais por não terem tido em consideração o termo de penhora ora junto aos autos e por não terem ordenado oficiosamente a sua junção ...
Assistir-lhe-á razão?
É para nós evidente que a resposta não pode deixar de ser negativa.
Antes de mais, é de salientar que a argumentação expendida pela Recorrente nas suas alegações de recurso erra o respectivo alvo.
Efectivamente, a R. recorrente não foi condenada como litigante de má fé pela forma como se defendeu na acção de despejo. E também não incorreu em litigância de má fé por suscitar quaisquer nulidades processuais. Aliás, mesmo que as Instâncias tivessem cometido nulidades processuais, que não cometeram, estas estariam sanadas dado que a R. recorrente não as arguiu nos termos e nos prazos legalmente previstos (arts. 201º e 205º do CPCivil)...
Sobre o fundamento pelo qual tinha sido condenada por litigância de má fé, a Ré recorrente pura e simplesmente remeteu-se ao silêncio. E acerca dos arestos que citou abundantemente perante a Relação de Lisboa, nem uma palavra!
As alegações de recurso apresentadas pela R. recorrente, são na verdade absolutamente inoperantes, e tanto bastaria para que o recurso improcedesse.
De todo o modo, sempre acrescentamos que, ao contrário do que a R. recorrente sustenta, a decisão da Relação de Lisboa é perfeitamente ajustada. Quando muito terá pecado por defeito no montante da multa. De facto, julgamos que é difícil conceber qualquer atitude das partes mais gravosa do que a de invocar erroneamente arestos judiciais. Gravosa ... e também algo infantil, já que é fácil de detectar. Bastará consultar os arestos mencionados pela própria R. recorrente para nos apercebermos que não lhe assiste razão e que esta procura iludir os julgadores!
Assim consideramos absolutamente acertada a condenação da R. recorrente como litigante de má fé.
Entrando na análise da terceira e última das questões que enunciámos, podemos avançar desde já que em nosso entender o pedido de condenação por litigância de má fé deduzido pelo A. recorrido não deve proceder.
Segundo o A. recorrido, a R. recorrente deve ser condenada por litigância de má fé por tentar adiar o trânsito em julgado da decisão recorrida.
Não cremos todavia que lhe assista razão, porquanto apenas faltava dilucidar se a R. recorrente litigou de má fé. No que se refere ao decretamento do despejo, a decisão da Relação de Lisboa não podia sequer ser impugnada. Já transitou em julgado e já era exequível mesmo antes da prolação deste acórdão. Isto é: o recurso interposto pela R. recorrente de que estamos a conhecer não podia retardar - e não retardou - o trânsito em julgado do acórdão da Relação de Lisboa que confirmou a decisão de decretamento do despejo proferida pelo Tribunal da comarca de Lisboa.
Assim sendo, forçoso é reconhecer que interposição e alegação deste recurso em nada prejudicaram a tramitação dos autos, assim como é incontornável concluir que tais actos não podem ter causado quaisquer danos ao A. recorrido.
III - Assim, nega-se provimento ao agravo, com custas pela R. recorrente.

Lisboa, 4 de Abril de 2002
Joaquim de Matos,
Ferreira de Almeida,
Barata Figueira.