Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
3926/13.8TJCBR-G.C1.S1
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: MARIA OLINDA GARCIA
Descritores: INSOLVÊNCIA
EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
RECURSO DE REVISTA
REGIME APLICÁVEL
OPOSIÇÃO DE ACÓRDÃOS
LEI APLICÁVEL
REJEIÇÃO DE RECURSO
Data do Acordão: 02/12/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NÃO TOMADO CONHECIMENTO DO OBJETO DE RECURSO
Área Temática:
DIREITO FALIMENTAR – DISPOSIÇÕES INTRODUTÓRIAS / RECURSOS.
Doutrina:
- António Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Sentença Cível, Apêndice, 2014, 2.ª Edição, Almedina, p. 326.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DA INSOLVÊNCIA E DA RECUPERAÇÃO DE EMPRESAS (CIRE): - ARTIGO 14.º.
LEI N.º 79/2017: - ARTIGO 6.º, N.º 6.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA:

- DE 18-10-2016, RELATOR FONTE RAMOS, IN HTTP://WWW.DGSI.PT.
Sumário :

I. O acórdão que o recorrente indica como fundamento e o acórdão recorrido não foram proferidos na vigência da mesma legislação, embora em ambos se trate a questão de saber quando tem inicio o período durante o qual o insolvente fica obrigado à cedência do rendimento disponível. 

II. O acórdão recorrido é proferido na vigência do regime transitório estabelecido no n. 6 do art.6º da Lei n.79/2017, enquanto o acórdão indicado como fundamento é proferido antes da entrada em vigor desse regime.

III. Não tendo os dois acórdãos em confronto sido proferidos no domínio da mesma legislação, no que respeita à contagem do tempo necessário para efeitos de exoneração do passivo restante, não se verificam os pressupostos de admissibilidade da revista exigidos pelo art.14º do CIRE, ficando vedado a este tribunal conhecer do objeto do recurso.

Decisão Texto Integral:

I. RELATÓRIO

1. AA apresentou-se à insolvência e requereu que lhe fosse concedida a exoneração do passivo restante.

Por decisão proferida em 09 de janeiro de 2014, veio o requerente a ser declarado insolvente. 

Em 12 de março de 2015, foi admitido o pedido de exoneração do passivo restante, nos termos que se transcrevem:

“Nestes termos profere-se despacho inicial de admissão do pedido de exoneração do passivo restante, determinando que, durante os cinco anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência, designado período da cessão, o rendimento disponível (ou seja, todos os rendimentos que o devedor venha a auferir, qualquer que seja a sua fonte – artigo 239.º, n.º 3, do CIRE) que o insolvente AA venha a auferir, após o presente despacho, se considera cedido a fiduciário – nomeando-se fiduciário, desde já, o Sr. Administrador da Insolvência.

Consigna-se que o apuramento respeitante a esse rendimento disponível deverá ser alvo de acordo entre o insolvente e o fiduciário.

O insolvente deverá ceder quantia que poderá situar-se a partir do montante equivalente ao salário mínimo nacional (…) e o valor máximo que, por regra, não deve exceder três vezes o salário mínimo nacional”.

2. Em 06 de fevereiro de 2018, foi proferida a decisão que se transcreve:

 “De harmonia com o disposto no art. 6º, n. 6 do DL. n. 79/2017, de 30.06, o período de cessão do rendimento disponível teve início em 01.07.2017.

Assim, e atento o decidido no despacho que admitiu liminarmente a exoneração do passivo restante, determino que se notifique o fiduciário para, no prazo de 10 dias, vir aos autos informar qual o montante fixado por acordo quanto ao rendimento disponível.

Notifique.”.

3. Inconformado com tal decisão, o insolvente interpôs recurso de apelação para o Tribunal da Relação de Coimbra, pedindo a revogação daquele despacho e a sua substituição por outro que consignasse que o período de cessão se tinha iniciado em 12.3.2015.

4. Por acórdão de 10.07.2018, a segunda instância decidiu julgar o recurso de apelação improcedente, mantendo a decisão recorrida.

5. Não se conformando com aquela decisão, o insolvente interpôs recurso de revista, ao abrigo do art.14º do CIRE, em cujas alegações formulou as seguintes conclusões:

 «1. No dia 12.03.2015, o Venerando Tribunal ad quo proferiu despacho de deferimento do pedido de exoneração do passivo restante oportunamente requerido, o qual é designado no Código de Insolvência e Recuperação de Empresas (CIRE) como despacho inicial de exoneração do passivo restante.

2. Despacho esse que, segundo se crê, dá início ao chamado período de cessão, de 5 anos, período durante o qual os insolventes estão sujeitos a determinados deveres e obrigações, designadamente, a de ceder o seu rendimento disponível ao fiduciário, com vista a ser-lhes concedida, a final, a exoneração do passivo restante.

3. Sucede, porém, que, não foi este o entendimento professado pelo Venerando Tribunal de 1ª Instância, nem assim (…) no Acórdão de 06.02.2018, ora recorrido.

4. Com efeito, os referidos Tribunais, ao mesmo tempo que professaram o entendimento que o período de cessão apenas se inicia com o despacho de encerramento do processo de insolvência, o qual tem lugar, necessariamente, após a liquidação do ativo da massa insolvente, ao abrigo do Decreto-Lei n.º 79/2017, de 30 de junho, acabaram por determinar que o período de cessão se iniciou a partir de 01.07.2017, data da entrada em vigor do referido Diploma, independentemente da liquidação do ativo estar, ou não, concluída.

5. O que, nos seus próprios termos e nos do Diploma em referência, nos parece ser contraditório; uma decisão com a qual o Recorrente não pode conformar-se, sendo assim objeto do presente recurso de revista.

6. Por sua vez, de acordo com o decidido no Acórdão fundamento, entendimento com o qual concordamos, o período de cessão inicia-se com Despacho Inicial ou liminar de exoneração do passivo restante, momento a partir do qual o Insolvente passa a estar obrigado a ceder o seu rendimento disponível ao fiduciário.

7. Não podendo, nos termos legais aplicáveis, essa e outras obrigações prolongarem-se por mais de 5 anos, conforme professado no Douto Acórdão Recorrido.

8. O Decreto-Lei n.º 79/2017, de 30 de junho, teve como principal intuito aclarar o referido regime legal, nomeadamente, com a introdução do regime transitório estabelecido.

9. O regime transitório, designadamente no artigo 6.º, n.6, não atendeu aos interesses e princípios jurídicos aplicáveis, ou seja, o início do período de cessão apenas está dependente do Despacho Inicial de Exoneração do passivo restante, e não se encontra dependente do facto de o ativo da massa insolvente já tenha sido liquidado ou não.

10. Isto sob pena de os insolventes que requerem a exoneração do passivo restante e que têm bens penhoráveis estarem longos anos à espera do início do período de cessão, dados os longos períodos dos processos de liquidação, podendo esta arrastar-se por diversos anos.

11. E os insolventes que, por seu lado, não possuírem nenhum bem para liquidação verem iniciado o período de cessão de imediato.

12. Recorde-se que o instituto da exoneração do passivo restante visa a revitalização da vida económica e financeira dos insolventes ao fim do período de cessão, ou seja, ao fim de 5 anos.

13. Concluindo-se assim que nunca poderia ter-se como momento determinante para dar início ao período de cessão o despacho de encerramento absoluto do processo de insolvência.

14. O Tribunal recorrido proferiu uma decisão contrária ao Acórdão-fundamento, isto no domínio da mesma legislação e referente à mesma questão fundamental de direito.

15. De facto, em causa está, indubitavelmente, a interpretação dos artigos 230.º, n.º 1, al. e), 235º, 237º, al. b) e 239.º, todos do CIRE.

16. A referida decisão proferida no acórdão recorrido encontra-se em oposição frontal com outras decisões sobre a mesma questão fundamental de direito proferida pelos nossos tribunais superiores, ao abrigo da mesma legislação, sem que sobre essa questão tenha recaído acórdão uniformizador de jurisprudência, designadamente em oposição ao acórdão fundamento.

17. O circunstancialismo fáctico relevante para a apreciação da questão de direito aqui em crise é substancialmente idêntico.

18. Confrontado com a situação fáctica supra descrita, entendeu o acórdão fundamento – a nosso ver, muito bem – confirmar a decisão de Primeira Instância, propugnando que o período de cessão se iniciou quando foi determinada a cessão dos rendimentos disponíveis para a fidúcia.

19. Ambos os acórdãos versam sobre a mesma questão fundamental de direito, isto é, a determinação do momento em que se deve considerar iniciado o período de cessão, quando, apesar de ter sido proferido o Despacho Inicial de Exoneração do Passivo Restante, não haja sido ainda declarado o encerramento do processo.

20. O acórdão recorrido e o acórdão fundamento proferiram, sobre a mesma referida questão, respostas frontalmente contraditórias.

21. A questão de direito sobre a qual se verifica a referida controvérsia é fundamental e determinante para o resultado de um e outro processo, designadamente, quanto ao momento da concessão da exoneração do passivo restante, na medida em que, no caso do acórdão recorrido, caso se tivesse perfilhado o entendimento pugnado pelo Recorrente (e adotado no acórdão fundamento), concluir-se-ia que o período de cessão terminaria no ano 2020 e não apenas no ano 2022.

22. Por fim, um parênteses para referir que quando a lei exige que a questão tenha sido decidida pelo acórdão recorrido e pelo acórdão-fundamento “no domínio da mesma legislação” significa apenas que “a divergência deve verificar-se num quadro normativo substancialmente idêntico, posto que a mera alteração ou revogação da norma que concretamente foi interpretada não constitua impedimento à revista excecional, desde que, na sua substância, o quadro normativo se mantenha inalterado” (cfr. Recursos no Novo Código de Processo Civil, Sentença Cível (Apêndice), António Santos Abrantes Geraldes, 2014, 2.ª edição, Almedina, pág. 326).

23. Apesar de o acórdão recorrido ter sido proferido na vigência do Decreto-Lei n.º 79/2017, de 30 de junho, que ainda não estava em vigor quando foi proferido o Acórdão fundamento, deverá atentar-se que, quanto à questão de fundo sub judice, designadamente, a questão de saber se o período de cessão se pode iniciar antes do encerramento absoluto do processo, antes da liquidação e do rateio, o Acórdão recorrido se baseou no regime estabelecido anteriormente ao referido diploma.

24. Sendo certo, além do mais, que o referido diploma apenas veio esclarecer, conforme abaixo melhor se explicará, o regime jurídico que já resultava do CIRE. Isto posto:

25. Numa construção jurídica que julgamos infeliz, o legislador montou no CIRE um regime ao abrigo do qual, o início do período de cessão está dependente de uma declaração judicial de encerramento do processo, previsão normativa esta que veio gerar confusão entre a Doutrina e Jurisprudência, de que é demonstrativo o Douto Acórdão recorrido.

26. Sustenta-se a tese que ora se propugna desde logo no artigo 230.º, n.1, al e), cuja redação se mantém inalterada desde a entrada em vigor da Lei n.º 16/2012, de 20 de abril, e, portanto, desde data anterior à instauração dos presentes autos.

27. Salvo melhor opinião, havendo ainda bens a liquidar ao abrigo do apenso de liquidação, o juiz deverá declarar o seu encerramento aquando do despacho inicial do incidente de exoneração do passivo restante.

28. Havendo assim a possibilidade de encerrar-se o processo de insolvência para efeitos de início do período de cessão, no entanto, havendo ainda bens prosseguindo a liquidação destes, não se encerrando em absoluto o processo de insolvência com o despacho inicial.

29. Aliás, foi esta a intenção do legislador ao inserir a alínea e) do n.1 do artigo 230.º do CIRE.

30. Apenas dessa forma se compreende que o legislador tenha estabelecido na alínea a) do referido n.1 do artigo 230.º, que o juiz deverá declarar o encerramento do processo após a realização do rateio final, e, na referida alínea e) tenha estabelecido que o juiz deverá de igual modo encerrar o processo no despacho inicial de exoneração.

31. Com efeito, se o despacho de encerramento do processo a que o legislador se refere nos supratranscritos artigos 235.º, 237.º, al. b) e 239.º, n. 2, fosse o despacho de encerramento proferido após o rateio final, as normas contidas nas duas referidas alíneas seriam coincidentes, deixando a alínea e) de fazer qualquer sentido.

32. O Decreto-Lei n.º 79/2017, de 30 de junho, designadamente, com o artigo 233.º, n.7 veio esclarecer que a declaração de encerramento a que se referem os artigos 235.º, 237.º, al. b) e 239.º, n.2, determinante para o início do período de cessão, não requer a prévia liquidação dos bens do activo da massa insolvente, e o consequente rateio.

33. Não obstante o regime professado pelo referido artigo 233.º, n.7, do CIRE, instituído pelo Decreto-Lei n.º 79/2017, de 30 de junho, tal diploma veio estabelecer um regime transitório o qual é aplicável a todos os processos pendentes, o que não se consegue sequer compreender.

34. A referida disposição, como já referido, é violadora do princípio da igualdade previsto no artigo 13.º da CRP, que impõe que a solução jurídica aplicável a situações iguais deve ser a mesma, devendo ser diversa a solução jurídica aplicáveis a situações diferentes.

35. Sendo evidentemente diversa, para efeitos de contagem do período de cessão, a situação de um processo em que o despacho inicial de exoneração do passivo restante ocorreu, por exemplo, quatro anos antes da entrada em vigor do referido Decreto-Lei, e a situação de um processo em que o despacho inicial de exoneração do passivo restante ocorreu um mês antes.

36. Assim, deverá a norma transitória, artigo 6.º, n.6 do Decreto-Lei n.79/2017, de 30 de junho, ser declarada inconstitucional devendo o regime transitório a aplicar aos processos pendentes à data de entrada do referido diploma determinar-se com referência aos interesses estabelecidos pela norma material instituída por este diploma, contida no artigo 233.º, n.7 do CIRE.

37. Determinando-se assim que, para efeitos de início de contagem do período de exoneração do passivo restante, se deverá tomar em consideração a data de prolação do Despacho Inicial de Exoneração do Passivo Restante. Sem conceder:

38. Importa referir que, independentemente de ser proferido o despacho de encerramento do processo para efeitos de início do período de cessão, este não poder durar mais de cinco anos.

39. O Despacho Inicial de Exoneração do Passivo Restante proferido nos presentes autos decretou expressamente que os rendimentos que o insolvente, aqui Recorrente, viesse a auferir após o referido despacho se consideravam cedidos ao fiduciário.

40. Conforme é possível verificar, designadamente da parte que realçamos, o Venerando Tribunal de 1.ª Instância, ao proferir o referido Douto Despacho, já há muito transitado em julgado, determinou que os rendimentos que o insolvente, aqui Recorrente, viesse a auferir após o referido despacho se consideravam cedidos ao fiduciário.

41. Sendo de atentar, para este efeito, que não se determinou em tal despacho que, a partir do mesmo, o insolvente deveria entregar o seu rendimento disponível ao fiduciário, mas sim estabeleceu-se que, de modo automático, tais rendimentos se deveriam considerar cedidos ao fiduciário.

42. Assim, para lá do regime legal aplicável, conforme se professou supra, deverá atender-se ao Despacho inicial de exoneração do passivo restante proferido sub judice, do qual resulta, de forma expressa, que o período de cessão se iniciou logo após o trânsito do mesmo.

43. Pelo que, também por este motivo, deverá ser desconsiderado o Douto Acórdão recorrido na parte em refere que o período de cessão se deverá ter por iniciado em 01.07.2017, devendo considerar-se que o mesmo se iniciou em 12.03.2015, atento o disposto no artigo 625.º, n.1 e 2, do CPC, relativa a casos julgados contraditórios.

44. Concluindo-se assim, também por este motivo, que o Venerando Tribunal a quo errou na aplicação da referida norma transitória prevista no artigo 6.º, n.6, do Decreto-Lei n. 79/2017, de 30 de junho, a qual deveria ter reconhecido e declarado inconstitucional, uma vez que, atento o despacho inicial de exoneração do passivo restante que foi proferido nestes autos, deverá considerar-se que o período de cessão se iniciou a partir da sua prolação, em 12.03.2015.

Motivo pelo qual deverá ser julgado procedente o presente recurso e substituído o despacho proferido em 06.02.2018 pelo Tribunal de 1.ª Instância por outro que determine que o período de cessão se iniciou no dia 12.03.2015. Assim decidindo, V. Exªs. farão, como sempre, inteira Justiça!»

6. Não foram apresentadas contra-alegações.

II. ANÁLISE DO RECURSO

A questão prévia da admissibilidade do recurso:

1.  O incidente de exoneração do passivo restante, sendo tramitado nos próprios autos de insolvência, rege-se pelo especial regime de recursos previsto no artigo 14º, n.1 do CIRE.

Determina esta norma que:

“No processo de insolvência e nos embargos opostos à sentença de declaração de insolvência, não é admitido recurso dos acórdãos proferidos por tribunal da relação, salvo se o recorrente demonstrar que o acórdão de que pretende recorrer está em oposição com outro, proferido por alguma das Relações ou pelo Supremo Tribunal de Justiça, no domínio da mesma legislação e que haja decidido de forma divergente a mesma questão fundamental de direito e não houver sido fixada pelo Supremo, nos termos dos artigos 686º e 687º do Código de Processo Civil, jurisprudência com ele conforme”.

2.Trata-se de um regime específico, que se afasta das regras regais do recurso de revista bem como das regras da revista excecional.

O art.14º do CIRE estabelece a regra da não admissibilidade do terceiro grau de jurisdição em litígios respeitantes ao processo de insolvência, tendo em vista, sobretudo, a celeridade deste tipo de processo.

           Tal propósito legislativo foi expressamente formulado no preambulo (ponto 16) do DL n.53/2004 (que aprovou o CIRE), onde se afirma:

           “A necessidade de rápida estabilização das decisões judiciais, que no processo de insolvência se faz sentir com particular intensidade, motivou a limitação do direito de recurso a um grau apenas, salvo nos casos de oposição de acórdãos em matéria relativamente à qual não exista ainda uniformização de jurisprudência”.

3. O recorrente tem o ónus de demonstrar a similitude das hipóteses a que respeitam os acórdãos em confronto e a diversidade de decisões proferidas, que revelem uma divergente aplicação das mesmas normas a idênticos problemas jurídicos, à luz do mesmo quadro legal.

4. O acórdão que o recorrente indica como fundamento, acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 18.10.2016 (relator Fonte Ramos)[1], e o acórdão recorrido não foram proferidos na vigência da mesma legislação, embora em ambos se trate a questão de saber quando tem inicio o período de 5 anos (referido no art.235º do CIRE), no qual o insolvente fica obrigado à cedência do rendimento disponível. 

5. Sobre a exoneração do passivo restante rege o art.235º do CIRE, nos seguintes termos:

Se o devedor for uma pessoa singular, pode ser-lhe concedida a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste, nos termos das disposições do presente capítulo

Estabelece o art. 237º (processamento subsequente) que:

“A concessão efectiva da exoneração do passivo restante pressupõe que: (…)

b) O juiz profira despacho declarando que a exoneração será concedida uma vez observadas pelo devedor as condições previstas no artigo 239.º durante os cinco anos posteriores ao encerramento do processo de insolvência, neste capítulo designado despacho inicial;”

6. Estas duas normas (que não foram alteradas pela Lei n.79/2017) indicam claramente que o período de 5 anos se inicia com o encerramento do processo de insolvência.

Quanto ao momento do encerramento, resulta do art.230º, n.1, alínea e) uma regra de tendencial coincidência entre o momento do encerramento do processo e a prolação do denominado despacho inicial[2].

Veio, porém, a constatar-se que, por vezes, a prolação do despacho inicial, ao qual se refere o art.237º, alínea b), não acontecia em simultâneo com o encerramento do processo, prolongando-se esta fase para além daquele despacho inicial.

Surgiram, então, as dificuldades interpretativas quanto a saber se aquele prazo de 5 anos se contava a partir do referido despacho inicial ou apenas do posterior momento do encerramento.

O acórdão indicado como fundamento foi proferido neste quadro legislativo.

7. Quadro este que foi alterado com a publicação do DL n.79/2017 (entrado em vigor em 01.07.2017)[3].

No que à questão do encerramento do processo interessa, foi acrescentado, por aquele diploma, o n.7 do art.233º, com o seguinte teor:

7 - O encerramento do processo de insolvência nos termos da alínea e) do n.º 1 do artigo 230.º, quando existam bens ou direitos a liquidar, determina unicamente o início do período de cessão do rendimento disponível.

8. Todavia, esta norma, que parece admitir o início da contagem do prazo de 5 anos com a prolação do referido despacho inicial, não teve aplicação imediata aos processos em cursos[4]. Mas o legislador também não disse que aos processos em curso se continuava a aplicar a legislação anterior. Se tal tivesse acontecido, estaríamos perante quadros legislativos idênticos quando foi proferido o acórdão recorrido.

9. O legislador optou por criar um quadro legislativo específico, de natureza transitória, aplicável aos processos em curso, que era o regime vigente quando foi proferido o acórdão recorrido.

Trata-se do regime estabelecido no n. 6 do art.6º (norma transitória) da Lei n.79/2017:

“6. Nos casos previstos na alínea e) do n.º 1 do artigo 230.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 53/2004, de 18 de março, em que não tenha sido declarado o encerramento e tenha sido proferido o despacho inicial de exoneração do passivo restante, considera-se iniciado o período de cessão do rendimento disponível na data de entrada em vigor do presente decreto-lei”.

Este diploma entrou em vigor no dia 1 de julho de 2017 (como estabelece o seu art.8º).

10. Conclui-se, assim, claramente que os dois acórdãos em confronto não foram proferidos no domínio da mesma legislação, no que respeita à contagem do prazo relevante para efeitos de exoneração do passivo restante. Deste modo, não se verificando os pressuposto de admissibilidade da revista exigidos pelo art.14º do CIRE, fica vedado a este tribunal conhecer do objeto do recurso  

III. DECISÃO: Pelo exposto, acorda-se em que este tribunal não pode tomar conhecimento do objeto do recurso.

Custas pelo recorrente

Lisboa, 12 de fevereiro de 2019

Maria Olinda Garcia (Relatora)

Catarina Serra

Fonseca Ramos

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[1]http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/95ebaa56ea6018f7802580720050d5fc?OpenDocument

[2] Estabelece o art.230º (Quando se encerra o processo)

1. Prosseguindo o processo após a declaração de insolvência, o juiz declara o seu encerramento: (…)

 e) Quando este ainda não haja sido declarado, no despacho inicial do incidente de exoneração do passivo restante referido na alínea b) do artigo 237.º
[3] Como se lê no art.8º do DL n.79/2017
[4] Caso tivesse aplicação imediata, daí resultaria uma contagem de tempo retroativa nos processos onde já tinha havido despacho inicial mas ainda não havia despacho de encerramento.