Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
15973/18.9T8SNT-A.L1.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: JOSÉ RAINHO
Descritores: QUALIFICAÇÃO DE INSOLVÊNCIA
INSOLVÊNCIA CULPOSA
INIBIÇÃO DO FALIDO
GERENTE
INTERDIÇÃO DO EXERCÍCIO DE ATIVIDADE
COMÉRCIO
Data do Acordão: 07/05/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA (COMÉRCIO)
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO.
Sumário :

I- Mostrando-se que a sociedade insolvente jamais providenciou no sentido de ser mantida contabilidade, tendo existido à margem do cumprimento de tal obrigação legal, ocorre fundamento para a qualificação da insolvência como culposa, nos termos da alínea h) do n.º 2 do art. 186.º do CIRE.

II- Nesta situação é ajustado fixar em 3 anos o período de inibição do afetado gerente para o exercício do comércio.

Decisão Texto Integral:


Processo n.º 15973/18.9T8SNT-A.L1.S1

Revista

Tribunal recorrido: Tribunal da Relação ...

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Acordam no Supremo Tribunal de Justiça (6ª Secção):

I - RELATÓRIO

Na sequência da declaração de insolvência de Mind Level, Lda. (Juízo de Comércio ...), apresentou-se a Credora Aubay Portugal, S.A. a requerer a qualificação da insolvência como culposa, indicando como pessoa a afetar o gerente da Insolvente, AA.

O Administrador da Insolvência e o Ministério Público pronunciaram-se no sentido da qualificação da insolvência como culposa.

Não foi apresentada qualquer oposição.

Seguindo o procedimento seus termos, veio, a final, a ser proferida sentença que qualificou como culposa a insolvência. Mais foi decidido:

(i) Declarar afetado pela qualificação o gerente AA;

(ii) Declarar o afetado inibido pelo período de 3 anos para administrar patrimónios de terceiros e para o exercício do comércio, bem como para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de atividade económica, empresa pública ou cooperativa;

(iii) Condenar o afetado a indemnizar a credora reclamante Aubay Portugal, S.A. no montante de € 39.133,44, acrescido de juros comerciais desde a data do vencimento de cada uma das faturas (descritas nos factos provados) até efetivo pagamento.

Inconformado com o assim decidido, apelou o afetado AA.

Fê-lo sem êxito, pois que a Relação ..., restringindo embora os fundamentos jurídicos que haviam levado à qualificação da insolvência como culposa, manteve a sentença recorrida.

Mantendo-se inconformado com tal desfecho, pede o afetado AA revista.

Introduziu o recurso como revista excecional.

Neste Supremo a competente formação admitiu o recurso assim interposto.

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São as seguintes as conclusões que o Recorrente extrai da sua alegação (excluem-se as três primeiras, que se referem à admissão excecional da revista, assunto já ultrapassado):

4. No Acórdão recorrido considera-se que verificada a circunstância de inexistir (ou deixar de existir) contabilidade organizada não há que indagar se ocorreu, fruto dessa omissão, prejuízo para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor.

5. Da factualidade provada, com relevância os pontos 29, 30 e 31, não era possível ao Tribunal a quo concluir pela verificação do fundamento enunciado na al. h) do n.º 2 do art. 186.º do CIRE.

6. Em sentido contrário, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 02-03-2021, proferido no âmbito dos autos com o n.º 3071/16.4T8STS-F.P1.S1 considera que a omissão do dever de manter contabilidade organizada, apesar de corresponder a um comportamento negligente, não conduz per si à declaração de uma insolvência culposa, exigindo-se que “tenha havido por banda da devedora um qualquer comportamento tendente a esconder, alterar, ou adulterar as contas da empresa, por forma a dar a entender um giro comercial diverso do existente e muito menos que tivesse fugido às regras gerais do POC, porquanto foi pura e simplesmente omitida, nem tão pouco se indicia que esta omissão tivesse implicado um prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira da devedora.”

7. A omissão do dever de manter a contabilidade organizada não acrescentou ao Requerente qualquer prejuízo para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor.

8. Não decorre da factualidade provada que, com a omissão do dever de manter contabilidade organizada, a Requerida tenha assumido um qualquer comportamento com vista a ocultar, manipular ou alterar as contas da empresa, nem tão-pouco essa omissão implicou um relevante prejuízo para a compreensão da situação patrimonial e financeira da Requerida.

9. No preenchimento da al. h) do n.º 2 do art. 186.º do CIRE, o aplicador deve exigir densidade factual suficiente para considerar satisfeita a expressão “em termos substanciais” e/ou “com prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor”.

10. O Requerente, credor único da insolvente, prestou serviços de consultoria informática à Requerida, com vista à conceção de uma plataforma de recolha e gerenciamento de dados, sendo que apenas com o aluguer dessa plataforma, pela Requerida aos seus futuros clientes, a sociedade estaria em condições de efetivamente entrar em “atividade”.

11. A Requerente sabia que a Requerida estava numa fase de implementação, que não tinha clientes (nem podia ter, pois que a plataforma de recolha e gerenciamento de dados que estava a ser desenhada pela Requerente era essencial para esse efeito), e, consequentemente, não tinha qualquer valor faturado.

12. O capital social da Requerida (€ 100,00) era pouco garantístico.

13. A atividade económica envolve riscos, tanto maiores quanto menor a antiguidade e o diminuto capital social das sociedades com as quais se realiza comércio.

14. No momento em que os serviços foram prestados (mesmo que incompletos e nunca entregues), já a Requerida se encontrava numa situação de omissão do cumprimento de manter contabilidade organizada, não tendo esse facto inviabilizado a opção da Requerente em aceitar a referida prestação de serviços.

15. A questão que se coloca à douta apreciação deste Supremo Tribunal, é saber se a omissão do dever de manter contabilidade organizada, tal como consta dos autos, reveste a substancialidade exigida pelo art. 186.º, n.º 2, al. h), do CIRE, e se aquela omissão consubstanciou prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira.

16. Não é o caso!

17. O douto Acórdão recorrido deverá, com efeito, ser substituído por outro que considere não preenchida a referida al. h) do n.º 2 do art. 186.º do CIRE, e em consequência julgue a insolvência da Requerida como fortuita.

18. A Relação recorrida, apesar de revogar parcialmente a sentença da 1.ª Instância, deixando cair duas das três causas qualificadoras que aquela instância havia julgado procedentes, conclui, com manifesto erro, que a medida de inibição para o exercício do comércio de três anos deve manter-se inalterada.

19. Fixando, assim, o período de inibição com fundamentação distinta daquela expendida pela 1.ª Instância.

20. A fundamentação do Tribunal a quo quanto à medida da inibição para o exercício do comércio é manifestamente insuficiente.

21. A 1.ª Instância, na fixação em três anos do período de inibição do ora Recorrente, teve em linha de conta o facto de o Tribunal entender preenchido o escopo de três presunções de insolvência culposa.

22.A Relação recorrida considerando verificar-se (ainda que com erro) apenas uma circunstância qualificadora da insolvência, ao abrigo do disposto no art. 186.º, n.º 2, al. h) do CIRE, ainda assim aplica o mesmo período de inibição para o exercício do comércio – três anos.

23.O Tribunal recorrido violou os princípios da adequação e da proporcionalidade, princípios com dignidade constitucional.

24.A medida de inibição aplicada sempre terá de ser reduzida ao mínimo legal.

25.O Acórdão recorrido violou, assim sendo, o disposto nos artigos 186.º, n.º 2, al. h), 189.º, n.º 2, al. b), ambos do CIRE, e artigo 607.º, n.ºs 3 e 4 do CPC.

Termina dizendo que o acórdão recorrido deve ser revogado na parte em que julgou verificados os pressupostos de aplicação da al. h) do n.º 2 do art. 186.º do CIRE, sendo substituído por decisão que qualifique a insolvência como fortuita.

A assim se não entender, mais diz, deverá a medida de inibição para o exercício do comércio aplicada ser reduzida para o mínimo legal.

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A Credora Aubay Portugal, S.A. contra-alegou, concluindo pela improcedência do recurso.

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Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

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II - ÂMBITO DO RECURSO

Importa ter presentes as seguintes coordenadas:

- O teor das conclusões define o âmbito do conhecimento do tribunal ad quem, sem prejuízo para as questões de oficioso conhecimento, posto que ainda não decididas;

- Há que conhecer de questões, e não das razões ou argumentos que às questões subjazam;

- Os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do ato recorrido.

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São questões a conhecer:

- Se a insolvência deve ser qualificada como fortuita;

- Subsidiariamente, se o período de inibição para o exercício do comércio deve ser reduzido.

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III - FUNDAMENTAÇÃO

De facto

O acórdão recorrido elenca como provados os factos seguintes (após as alterações a que procedeu à matéria de facto):

1. Por sentença proferida nos autos principais, em 06/12/2018, transitada em julgado, foi decretada a insolvência de Mind Level, Lda., com fundamento na insuficiência de bens penhoráveis para pagamento do crédito do exequente verificada em processo executivo movido contra o devedor.

2. Por decisão proferida nos autos principais, em 05/11/2019, foi declarado encerrado o processo de insolvência por insuficiência da massa insolvente.

3. O gerente da sociedade desde a sua criação, em 30/12/2015, foi o sócio AA.

4. A requerida é uma sociedade por quotas que tem por objeto a gestão e exploração de plataformas web, portais web e equipamentos informáticos ao serviço de tecnologias de informação, bem como a gestão de base de dados e a promoção e divulgação online.

5. O capital social da requerida encontra-se fixado em € 100,00, encontrando-se dividido por duas quotas, uma com o valor nominal de € 5,00 da titularidade do sócio AA e outra no valor nominal de € 95,00 da titularidade da sociedade A..., Unipessoal, Lda., NIPC ..., com sede na Rua ..., ..., ... ..., cujo objeto consiste na gestão de participações económicas, compra e venda de participações e importação e exportação.

6. O seu capital social assume o valor de € 500,00 pertencendo integralmente a AA, que é também o seu único gerente.

7. Entre 28/02/2017 e 30/06/2017 a requerente prestou serviços de consultadoria informática à requerida, por solicitação desta.

8. Na sequência dos serviços prestados, a requerente emitiu as seguintes faturas: (i) Fatura n.º ...96, emitida em 28/02/2017, vencida em 30/03/2017, no valor de € 3.546,34; (ii) Fatura n.º ...84, emitida em 31/03/2017, vencida em 30/04/2017, no valor de € 5.347,06; (iii) Fatura n.º ...66, emitida em 31/03/2017, vencida em 30/04/2017, no valor de € 2.137,74; (iv) Fatura n.º ...26, emitida em 30/04/2017, vencida em 30/05/2017, no valor de € 8.222,80; (v) Fatura n.º ...98, emitida em 30/06/2017, vencida em 30/07/2017, no valor de € 8.009,02; e ainda a (vi) Fatura n.º ...99, emitida em 30/06/2017, vencida em 30/07/2017, no valor de € 11.870,48.

9. A requerida não procedeu ao pagamento de nenhuma das mencionadas faturas, não obstante ter sido interpelada para o efeito, pelo que em 28/08/2017 a requerente apresentou requerimento de injunção contra a requerida, com o número de processo 80487/17...., na qual peticionou (i) o pagamento por esta do montante em dívida decorrente do não pagamento das faturas, no valor de € 39.133,44; (ii) juros moratórios vencidos à data da interposição da injunção, no montante de € 602,79 e (iii) despesas de procuradoria e honorários do mandatário, no valor de € 400,00, o que perfez o valor global de € 40.289,23.

10. Foi atribuída força executiva ao requerimento de injunção em 22/11/2017.

11. Em 29/11/2017, a requerente intentou ação executiva para pagamento de quantia certa contra a requerida, tendo como título executivo a referida Injunção, peticionando o montante de € 41.052,60, correspondente aos valores peticionados na injunção acrescidos do valor dos juros desde a data da apresentação de requerimento de injunção (28/08/2017) até à data da apresentação do requerimento executivo (25/11/2017).

12. A instância executiva, que correu termos no Juiz ... do Juízo de Execução ..., sob o n.º processo 25848/17...., e na qual não foi apresentada oposição pela requerida, foi julgada extinta em 26/06/2018, em virtude da inexistência de bens suscetíveis de penhora para pagamento do crédito.

13. eliminado

14. Inexistem quaisquer registos públicos referentes a prestações de contas realizada pela requerida.

15. Não foi realizada pelo gerente da requerida qualquer prestação de contas referente à atividade comercial do ano civil de 2016 e 2017.

16. eliminado

17. Subsiste a dívida comercial da Insolvente para com a Requerente, no montante de € 39.133,44.

18. Não existem quaisquer registos públicos referentes a um qualquer ato de prestação de contas realizado pela Insolvente, no Portal da Justiça relativo a publicações on-line de atos societários e de outras entidades.

19. Não foi realizado pelo gerente da Insolvente qualquer prestação de contas referente ao fim da atividade comercial do ano civil de 2016, bem como do ano de 2017.

20. eliminado

21. Tais prestações de contas foram omitidas de forma consciente pela Insolvente e seu gerente.

22. eliminado

23. Foi remetida pelo administrador judicial BB em 20/09/2019 uma carta registada com aviso de receção ao sócio-gerente da insolvente, AA, para a morada constante do registo comercial da sociedade – ... ... –, tendo a mesma sido devolvida com a indicação “não atendeu”.

24. Em 26/09/2019 foi feita uma deslocação por um colaborador do administrador judicial à morada/sede da sociedade, constatando-se que a sociedade já não estava no local.

25. Em 04/10/2019 foi feita uma deslocação por um colaborador do administrador judicial à morada do requerido constante de Certidão do Registo Comercial – ... ... –, não tendo sido encontrado ninguém na morada.

26. Foi solicitado ao serviço de finanças, em 20/09/2019, informações sobre bens imóveis e o contacto do contabilista certificado da sociedade, não tendo o administrador judicial obtido resposta quanto ao contacto do contabilista certificado.

27. Foi solicitada informação ao Banco de Portugal, em 20/09/2019, com vista a apurar a existência de contas bancárias em nome da insolvente.

28. Foi solicitada informação à conservatória do registo automóvel, em 20/09/2019, sobre a existência de viaturas em nome da sociedade.

29. A sociedade Mind Level, Lda. iniciou a sua atividade para efeitos fiscais em 12/01/2016, tendo registado junto da Autoridade Tributária e Aduaneira como contabilista certificado, desde essa data, CC.

30. O referido contabilista certificado declarou o início de atividade junto da Autoridade Tributária e Aduaneira e entregou as declarações periódicas do IVA dos 1.º e 2.º trimestres de 2016, nada mais tendo sido feito no que concerne às obrigações contabilísticas e fiscais da sociedade.

31. O gerente da sociedade Mind Level, Lda. comunicou ao contabilista certificado que prescindia dos respetivos serviços, não tendo pago quaisquer serviços de contabilidade.

32. A sociedade Mind Level, Lda. não apresentou a IES de qualquer exercício.

33. Nem apresentou a declaração modelo 22 do IRC de qualquer exercício.

34. O pedido de declaração de insolvência da devedora Mind Level, Lda., foi apresentado em juízo em 17/09/2018.

35. A devedora foi citada nos termos do art. 29º do CIRE por carta registada com prova de depósito na respetiva sede.

36. Foi expedida, para notificação da sentença que decretou a insolvência de Mind Level, Lda. a AA, carta dirigida à morada ... ..., por carta expedida em 06/12/2018 (cfr. ofício de notificação ref.ª ...93, de 06/12/2008, constante dos autos principais).

37. Tal correspondência foi devolvida, com a menção “não reclamado” em 2019-01-04.

38. Apresentaram-se a reclamar créditos no prazo fixado para o efeito: - Aubay Portugal, SA – crédito comum no valor de € 43.038,45.

De direito

A insolvência foi qualificada como culposa pelo acórdão recorrido com fundamento exclusivo (na medida em que foram arredados os outros demais fundamentos acolhidos na sentença da 1ª instância) na primeira hipótese prevista na alínea h) do n.º 2 do art. 186.º do CIRE: incumprimento em termos substanciais da obrigação de manter contabilidade organizada. Efetivamente, pode ler-se do acórdão recorrido que “Temos apurada nos autos uma conduta omissiva do gerente – a não manutenção de contabilidade organizada entre 2016 e 2017, que resulta dos factos apurados nºs 29, 30 e 31. Tendo a devedora dispensado os serviços do prestador de serviços de contabilidade, a mesma não foi elaborada, sendo a obrigação legal devida durante toda a existência da sociedade, com ou sem atividade.

Ou seja, de entre as três hipóteses contempladas na alínea h), temos preenchida a primeira, ou seja, o incumprimento substancial de manter contabilidade organizada.”

Na perspetiva no Recorrente os factos provados não permitem concluir pela verificação de um tal fundamento.

Mas, quanto a nós, carece de razão.

Estabelece a citada norma que considera-se sempre culposa a insolvência do devedor que não seja uma pessoa singular quando os seus administradores, de direito ou de facto, tenham incumprido em termos substanciais a obrigação de manter contabilidade organizada, mantido uma contabilidade fictícia ou uma dupla contabilidade ou praticado irregularidade com prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor.

Estão aqui previstas, pois, várias hipóteses, que são distintas e independentes entre si: (i) incumprimento em termos substanciais da obrigação de manter contabilidade organizada; (ii) manutenção de uma contabilidade fictícia ou de uma dupla contabilidade; (iii) prática de irregularidade que implique prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor.

Centrando-nos pois nessa primeira hipótese, que é a que nos interessa, é exato o que afirma o acórdão recorrido, quando afirma que:

“No caso de a empresa não ter contabilidade organizada, o prejuízo para a compreensão da situação do devedor é total: a situação do devedor não pode, por forma nenhuma, ser alcançada pela contabilidade. É irrelevante que a empresa não tenha atividade ou bens porque ninguém de fora consegue perceber se é essa ou não a situação. (…) A lei prevê, o incumprimento substancial da obrigação de manter contabilidade organizada como circunstância qualificadora. Tal permite excluir pequenas falhas – um hiato de transição entre contabilistas, uma falha do sistema informático, períodos de férias dos funcionários encarregues do lançamento de documentos, só para dar alguns exemplos – e considerar como integrando esta alínea a omissão quando frustre os objetivos legais, ou seja, quando impossibilite o acesso a informação útil que permita a tomada conscienciosa de decisões. Quando esses trabalhos param e não são retomados num curto espaço de tempo, podemos considerar que há incumprimento substancial. (…) [T]endo sido apurado que a contabilidade deixou de ser organizada, não havia que apurar, diferentemente do que defende o recorrente se havia prejuízo para a compreensão da situação do devedor, porque esse prejuízo é inerente à factualidade apurada.

Efetivamente, face ao facto do ponto 30 vemos que a sociedade Insolvente - que foi criada em 30 de dezembro de 2015, sendo o Recorrente sócio e o gerente - nada diligenciou no que concerne às obrigações contabilísticas inerentes à sociedade. Isto é, jamais providenciou no sentido de ser mantida uma contabilidade organizada, tendo a sociedade existido à margem do cumprimento de tal obrigação legal (estabelecida, e nomeadamente, pelo Sistema de Normalização Contabilística, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 158/2009, pelo art. 123.º do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas e pelo art. 29.º do CComercial, e pressuposta naturalmente em várias normas do CSComerciais, como sejam as dos art.s 65.º e 263.º).

E, de outro lado - e como resulta da supra transcrita passagem do acórdão recorrido - impõe-se concluir que ficou necessariamente criado um prejuízo para a compreensão da situação da sociedade, na medida em que não se tratou de uma falha temporária ou circunstancial no cumprimento da apontada obrigação de manutenção de contabilidade organizada, mas sim de uma omissão absoluta de manutenção de toda e qualquer contabilidade.

Daqui que, e como adequadamente se mostra escrito na sentença da 1ª instância, podemos dizer que a sociedade “apesar de ter contratado serviços a terceiras entidades (pelo menos à requerente e ao contabilista, que ainda abriu a atividade junto da Autoridade Tributária e Aduaneira e apresentou duas declarações de IVA “a zeros”), não procedeu à organização e tratamento contabilístico desses elementos, não efetuando, também, a entrega das competentes declarações fiscais, donde se retira que incumpriu a obrigação de manter contabilidade organizada, incumprimento que foi substancial porquanto se tratou de um incumprimento geral, ou seja, a total omissão de elaboração das demonstrações financeiras e cumprimento das obrigações fiscais, designadamente todas as IES e todas as declarações de IRC e a grande maioria das declarações de IVA.”

Dito isto logo se vê que não se regista qualquer contradição entre o acórdão recorrido, e cuja bondade se está aqui a confirmar, e o acórdão deste Supremo a que se reporta o Recorrente, aliás subscrito (como segundo adjunto) pelo relator do presente acórdão. No caso desse outro acórdão tratava-se de um incumprimento temporário ou circunstancial da obrigação de manter contabilidade organizada, e daqui que se inculcava a existência de uma mera situação de irregularidade contabilística. Esta a sua ratio decidendi basilar. Já no caso vertente do que se trata é bem de uma omissão total de contabilidade ao longo do tempo em que a sociedade existiu, e é dentro desse pressuposto (essa a ratio decidendi) que se justifica concluir por um incumprimento em termos substanciais da referida obrigação. A enquadramentos factuais diferentes, decisões diferentes. O que nada tem de estranho ou de contraditório.

Improcede pois tudo o que em contrario do que fica dito sustenta o Recorrente (aliás, em parte, com base em factos que nem sequer estão provados, logo inatendíveis).

Mais defende o Recorrente, agora a título subsidiário, que a circunstância de o acórdão recorrido ter levado em linha de conta para a qualificação da insolvência como culposa apenas um dos três fundamentos em que se fundou a sentença da 1ª instância deveria ter provocado a redução do período de inibição para o exercício do comércio que a sentença fixara.

Mas, quanto a nós, também aqui carece de razão.

É exato que o acórdão recorrido descartou dois dos três fundamentos de insolvência culposa em que se apoiara a sentença da 1ª instância.

Porém, tal como o Recorrente coloca a questão, pareceria que esta deveria ser de natureza puramente quantitativa (algo semelhante a uma regra de três simples que envolvesse grandezas diretamente proporcionais). A verdade é que não encontramos fundamento jurídico para estabelecer necessariamente uma relação, proporcional ou não, entre o peso da condenação judicial e o número de fundamentos jurídicos em que ela possa repousar.

Claro que a magnitude da condenação na inibição do exercício do comércio tem de ser correlacionada com a magnitude ou extensão dos factos imputados ao afetado (de outro modo não se compreenderia o estabelecimento legal de um período de inibição compreendido entre um mínimo e um máximo), mas isso é muito diferente de estabelecer uma relação quantitativa necessária entre o tempo de inibição e o número de fundamentos jurídicos que intervieram na qualificação da insolvência.

Na realidade, o que conta para o caso é única e simplesmente a avaliação global que se faz dos factos que coenvolvem o afetado, e não o número de fundamentos legais que são usados para a qualificação da insolvência como culposa. O que, diga-se, retira qualquer nexo à alegação do Recorrente no sentido de que estariam a ser postos em causa os princípios constitucionais da proporcionalidade e da adequação.

Colocadas as coisas deste modo, como devem ser colocadas, afigura-se que o acórdão recorrido ajuizou adequadamente aí onde entendeu que o período de inibição para o exercício do comércio estabelecido na sentença da 1ª instância (3 anos) deveria ser mantido. Efetivamente, o desvalor jurídico do comprovado comportamento do ora Recorrente, não sendo embora de enorme gravidade, não deixa ainda assim de ser grave. Deste modo, justifica-se plenamente, dentro da escala legal, a imposição de um tal período de inibição, aliás muito próximo do período mínimo estabelecido nessa escala (2 anos).

Também neste segmento deve improceder, pois, o recurso.

IV - DECISÃO

Pelo exposto acordam os juízes neste Supremo Tribunal de Justiça em negar a revista, confirmando o acórdão recorrido na parte impugnada.

Regime de custas:

O Recorrente é condenado nas custas do presente recurso.

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Lisboa, 5 de julho de 2022

José Rainho (Relator)

Graça Amaral

Maria Olinda Garcia

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Sumário (art.s 663.º, n.º 7 e 679.º do CPCivil).