Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
7375/20.3T8ALM.L1.S2
Nº Convencional: 4.ª SECÇÃO
Relator: RAMALHO PINTO
Descritores: REVISTA EXCECIONAL
ÓNUS DE ALEGAÇÃO
Data do Acordão: 06/01/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA EXCEPCIONAL
Decisão: NÃO ADMITIDA A REVISTA.
Sumário :
I - O recorrente que invoca, como fundamento de uma revista excepcional, as alíneas a) e b) do nº 1 do artigo 672º do CPC tem o ónus de indicar “as razões pelas quais a apreciação da questão é claramente necessária para uma melhor aplicação do direito” e/ou “as razões pelas quais os interesses são de particular relevância social”, sob pena de rejeição do recurso.

II - Não cumpre esse ónus o recorrente que se limita a, de forma vaga e genérica, invocar a segurança aeroportuária, no particular campo da segurança provada, não identificando, de forma autónoma e com as necessárias concretização e especificação, a questão ou as questões que pretende submeter ao STJ,  que justifiquem a intervenção deste.

Decisão Texto Integral:



Processo 7375/20.8T8ALM.L1.S2
Revista Excepcional
13/22

Acordam na Formação a que se refere o nº 3 do artigo 672.º do Código de Processo Civil da Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça:

... intentou acção especial de impugnação judicial da regularidade e licitude do despedimento, prevista nos artigos 98.º-B e ss. do Código de Processo de Trabalho, contra ICTS PORTUGAL EMPRESA DE SEGURANÇA PRIVADA, S.A.

Não tendo sido possível a conciliação, a Ré - empregadora apresentou articulado a fundamentar o despedimento.

O Autor -trabalhador contestou, pugnando pela declaração da ilicitude do despedimento e deduziu pedido reconvencional.

A Ré respondeu ao articulado do Autor, sustentando a licitude do despedimento e propugnando pela sua absolvição do pedido reconvencional.

Foi proferido despacho saneador e realizada a audiência de julgamento.

Foi proferida sentença com o seguinte dispositivo:

“A) Julgo procedente a impugnação da regularidade e licitude do despedimento, e em consequência declaro ilícito o despedimento de que o Autor foi alvo;

B) Condenar a Ré a pagar ao Autor a quantia de € 14.331,42 a título de indemnização por antiguidade em substituição da reintegração quantia calculada desde o despedimento até à presente data, mas à qual acrescem valores devidos até ao trânsito em julgado da presente decisão;

C) Condeno a Ré a pagar ao Autor a quantia que se vier a liquidar em execução de sentença a título de compensação pelo despedimento ilícito, quantia calculada desde o despedimento acrescida das quantias que se vencerem a este título até ao trânsito em julgado da presente sentença, às quais acrescem os juros legais desde a data da citação até efetivo e integral pagamento, e descontadas as quantias auferidas a título de subsídio de desemprego ou a outro título legalmente estabelecidas no art. 390º nº 2 do CT.

D) Condeno a Ré no pagamento de € 1.852,78 a título de trabalho suplementar.

E) Condeno a Ré no pagamento de € 383,62 a título de retribuição e proporcionais de férias, subsídio de férias e de natal, vencido em 31 de dezembro de 2020.

F) Quantia estas acrescidas de juros de mora vencidos e vincendos contados desde o vencimento de cada prestação e até integral pagamento.

Absolver a Ré do mais peticionado.”

A Ré interpôs recurso de apelação.

Por acórdão do Tribunal da Relação foi decidido julgar improcedente o recurso de apelação, com a confirmação da sentença recorrida.

A Ré interpôs recurso de revista excepcional, que fundamentou da seguinte forma:

- no corpo da alegação:

 “Inclusivamente, podem estar em causa interesses que causam alarme social, pelo que é imprescindível abordá-los ao nível da jurisprudência. Após os ataques terroristas do 11 de Setembro (de 2001), as medidas de segurança aeroportuária foram reforçadas, com rigorosos controlos de segurança incluindo de quem exerce funções no espaço ar. Estes controlos de segurança reportam-se com prevenção de actos de interferência ilícita, ou seja, reportam-se a regras e procedimentos que visam prevenir a ocorrência de actos ilícitos que coloquem em causa a segurança dos voos.

No caso concreto, está em causa o facto do trabalhar (vigilante da segurança privada) ter consigo um objectivo proibido (navalha) quando se preparava para entrar no espaço Ar.

Felizmente, o objecto foi deitado antes de entrar no Espaço Ar, tendo a Relação entendido que dos factos provados, não podemos considerar mais do que uma conduta negligente do trabalhador. A Relação concluiu que a conduta imputada ao trabalhador não é, por si só, suficientemente gravosa para se considerar inexigível a manutenção da relação laboral e, consequentemente, a opção pela sanção disciplinar mais gravosa, nomeadamente o despedimento com justa causa.

Salvo melhor opinião, discute-se uma questão de evidente e notória complexidade, no concerne à segurança aeroportuária, ao regime jurídico da vigilância privada, bem como na legislação laboral (ou seja, se o facto de ser vigilante APA e o facto de estar munido de um objecto proibido, sem que tenha alertado os colegas vigilantes desse facto, é não suficientemente grave que impendem a substância da relação laboral). Torna-se socialmente determinante apurar quando existe o risco de entrada de artefactos proibidos para o lado ar, nas condições alegadas e provados nos presentes autos, se se verifica a impossibilidade da subsistência da relação de trabalho, até pela quebra de confiança no trabalho do vigilante (que é, precisamente, a vigilância dentro do espaço ar).

É, assim, admissível, com fundamento nos pressupostos enunciados nas alíneas a) e b) do art. 672.º do Código do Trabalho, o recurso de revista excepcional interposto do acórdão da Relação que confirmou, sem voto de vencido, a sentença da 1ª instância que julgou procedente a acção interposta e que, em consequência, declarou ilícito o despedimento do trabalhador em discussão nos presentes autos”;

- e nas conclusões do recurso:

A) A questão se coloca tem em consideração a determinação se se o facto de um vigilante (com formação APA) tem, ou não, o dever de evitar entrar ao serviço com objectivos proibida face o que está previsto na legislação e normas supracitadas;

B) Tal circunstância constitui, salvo melhor opinião, uma discussão importante no âmbito do artigo 672.º, n.º 1, alíneas a) e b), nomeadamente porque está em causa uma questão cuja apreciação, pela sua relevância jurídica, é claramente necessária para uma melhor aplicação do direito e/ou estão em causa interesses de particular relevância social.

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Foi proferido despacho liminar, no qual se considerou: que o recurso é tempestivo; que a recorrente tem legitimidade; que estão preenchidas as demais condições gerais relativas à admissibilidade do recurso, bem como a existência de dupla conforme.

O processo foi distribuído a esta Formação, para se indagar se estão preenchidos os pressupostos para a admissibilidade da revista excepcional referidos nas alíneas a) e b) do nº 1 do artº 672º do Código de Processo Civil.

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Cumpre apreciar e decidir:

A revista excepcional é um verdadeiro recurso de revista concebido para as situações em que ocorra uma situação de dupla conforme, nos termos do artigo 671º, nº 3, do Código de Processo Civil.

A admissão do recurso de revista, pela via da revista excepcional, não tem por fim a resolução do litígio entre as partes, visando antes salvaguardar a estabilidade do sistema jurídico globalmente considerado e a normalidade do processo de aplicação do Direito.

De outra banda, a revista excepcional, como o seu próprio nome indica, deve ser isso mesmo- excepcional.

A Recorrente invoca como fundamento da admissão do recurso o disposto nas alíneas a) e b) do nº 1 do artigo 672º do Código de Processo Civil, que referem o seguinte:

“1 - Excecionalmente, cabe recurso de revista do acórdão da Relação referido no n.º 3 do artigo anterior quando:

a) Esteja em causa uma questão cuja apreciação, pela sua relevância jurídica, seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito;

b) Estejam em causa interesses de particular relevância social”.

Relativamente à primeira excepção à regra da irrecorribilidade em situações de dupla conforme, prevista na referida alínea, a) pode ler-se em anotação ao artº 672º do CPC, anotado por Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís F. P. Sousa (Almedina Vol. I, 2018), “Para esta primeira exceção são elegíveis situações em que a questão jurídica suscitada apresente um carácter paradigmático e exemplar, transponível para outras situações, assumindo relevância autónoma e independente em relação aos interesses das partes envolvidas. Na verdade, a intervenção do Supremo apenas se justifica em face de uma questão cujo relevo jurídico seja indiscutível, embora a lei não distinga entre questões que emergem do direito substantivo ou do direito adjetivo. Não bastará, pois, o mero interesse subjetivo da parte.»

Com maior desenvolvimento, Abrantes Geraldes (Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2018, 5.ª Edição, pág. 381) refere: “Outra linha de força aponta para a recusa da pretensão quando a decisão recorrida se enquadrar numa corrente jurisprudencial consolidada, denotando a interposição de recurso mero inconformismo perante a decisão recorrida.

As expressões adverbiais empregues na formulação normativa (“excecionalmente” e “claramente necessária”) não consentem que se invoque como fundamento da revista excecional a mera discordância quanto ao decidido pela Relação. Tão pouco bastará a verificação de uma qualquer divergência interpretativa, sob pena de vulgarização do referido recurso em situações que não estiveram no espectro do legislador.

Constituindo um instrumento processual em que fundamentalmente se pretendem tutelar interesses ligados à “melhor aplicação do direito”, a intervenção do Supremo apenas se justifica em face de questões cujo relevo jurídico seja indiscutível, o que pode decorrer, por exemplo, da existência de legislação nova cuja interpretação suscite sérias divergências, tendo em vista atalhar decisões contraditórias (efeito preventivo), ou do facto de as instâncias terem decidido a questão ao arrepio do entendimento uniforme da jurisprudência ou da doutrina (efeito reparador)”.

Por outro lado, e no que concerne à segunda excepção à regra da irrecorribilidade em situações de dupla conforme, prevista na referida alínea b), os autores já citados Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís F. P. Sousa (Almedina Vol. I, 2018), referem que “Na segunda exceção, por estarem em causa interesses de particular relevo social, serão de incluir ações cujo objeto respeite, designadamente, a interesses importantes da comunidade, à estrutura familiar, aos direitos dos consumidores, ao ambiente, à ecologia, à qualidade de vida, à saúde ou ao património histórico e cultural, valores que naturalmente se sobrepõem também ao mero interesse subjetivo da parte da admissibilidade do terceiro grau de jurisdição”.

Importa, no entanto e à partida, ter em conta que decorre do nº 2 do artigo 672.º do CPC que o Recorrente tem o ónus de indicar na sua alegação, sob pena de rejeição, “as razões pelas quais a apreciação da questão é claramente necessária para uma melhor aplicação do direito”, caso invoque a alínea a) do nº 1 do artigo 672º, e “as razões pelas quais os interesses são de particular relevância social”, quando o fundamento da revista excepcional reside no disposto na alínea b) desse nº 1.

Como se decidiu no Ac. deste Supremo Tribunal de 29/09/2021, proc. n.º 2948/19.0T8PRT.P1. S2, no recurso de revista excepcional devem ser indicadas razões concretas e objetivas reveladoras de eventual complexidade ou controvérsia jurisprudencial ou doutrinária da questão, com a consequente necessidade de uma apreciação excepcional com o objetivo de encontrar uma solução orientadora de casos semelhantes.

Ora, é manifesto que, no caso em apreço, a Recorrente não deu cumprimento a esse ónus de indicar as razões pelas quais é necessária a intervenção deste STJ.

Desde logo porque não é clara na identificação de qual dos pressupostos previstos nas citadas als. a) e b) justifica a intervenção deste Supremo Tribunal, abrangendo na sua alegação ambas as alíneas e não fazendo a necessária destrinça, nem esclarecendo a eventual abrangência por essas duas alíneas simultaneamente.

Por outro lado, limita-se (tão só no corpo da alegação, sem transposição para as conclusões do recurso) a invocar razões meramente genéricas, ligadas ao que apelida de “interesses que causam alarme social” e “uma questão de evidente e notória complexidade, no concerne à segurança aeroportuária, ao regime jurídico da vigilância privada, bem como na legislação laboral”, para depois se reportar única e exclusivamente ao caso concreto, referindo que “o facto de ser vigilante APA e o facto de estar munido de um objecto proibido, sem que tenha alertado os colegas vigilantes desse facto, é não suficientemente grave que impendem a substância da relação laboral”. E que “Torna-se socialmente determinante apurar quando existe o risco de entrada de artefactos proibidos para o lado ar, nas condições alegadas e provados nos presentes autos”.

Ou seja, alegações meramente genéricas quanto à segurança aeroportuária, no particular campo da segurança privada, não identificando a  recorrente, de forma autónoma e com as necessárias concretização e especificação, a questão ou as questões que pretende submeter ao STJ,  que justifiquem a intervenção deste, em sede de revista excepcional,  de modo a identificar, com as indispensáveis clareza e segurança,  a questão ou questões  cuja apreciação, pela sua relevância jurídica, sejam claramente necessárias para melhor aplicação do direito, ou  tenham que ver com interesses de particular relevância social.

É jurisprudência consolidada deste Supremo Tribunal que não bastam afirmações efectuadas de uma forma genérica e vaga, sendo  necessário explicitar, com argumentação sólida e convincente, as razões concretas e objetivas, suscetíveis de revelar a alegada relevância jurídica e social, não relevando o mero interesse subjetivo do recorrente, sendo necessário que o mesmo concretize com argumentos concretos e objectivos- cfr., entre outros, os acórdãos deste STJ de 11/05/2022, proc. 1924/17.1T8PNF.P1.S1, de 30/03/2022, Proc. n.º 5881/18.9T8MAI.P1.S2, de 17/03/2022, Proc. n.º 28602/15.3T8LSB.L2.S2, e de 11/05/2021, Proc. n.º 3690/19.7T8VNG.P1.S2

O que a Recorrente demonstra é o simples inconformismo com a decisão do Tribunal da Relação, pretendendo que este Supremo Tribunal dirima, em sede de recurso de revista, um conflito de natureza privada, consistindo na análise do comportamento considerado ilícito do Autor e a sua relevância em termos de apreciação de justa causa de despedimento.

Assim, e por não ter sido dado cumprimento ao ónus do nº 2 do artigo 672.º do CPC, não é admissível a revista excepcional.

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Decisão

Pelo exposto, acorda-se em indeferir a admissão da revista excepcional, interposta pela Ré / recorrente, do acórdão do Tribunal da Relação.

Custas pela Recorrente.

                                                          

Lisboa, 01/06/2022

Ramalho Pinto (Relator)

Mário Belo Morgado

Júlio Vieira Gomes