Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
125/97.8IDSTB-A.S1
Nº Convencional: 3ª SECÇÃO
Relator: VINÍCIO RIBEIRO
Descritores: HABEAS CORPUS
PRISÃO ILEGAL
PRESCRIÇÃO DAS PENAS
REVOGAÇÃO DA SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA
Data do Acordão: 02/28/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: HABEAS CORPUS
Decisão: INDEFERIDO
Área Temática:
DIREITO PENAL – CONSEQUÊNCIAS JURÍDICAS DO FACTO / PENAS / SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA DE PRISÃO / EXTINÇÃO DA RESPONSABILIDADE CRIMINAL / PRESCRIÇÃO DAS PENAS E DAS MEDIDAS DE SEGURANÇA.
DIREITO PROCESSUAL PENAL – MEDIDAS DE COACÇÃO / MODOS DE IMPUGNAÇÃO.
Doutrina:
-Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, Ed. Notícias, 1993, p. 329 e 330.
Legislação Nacional:
CÓDIGO PENAL (CP): - ARTIGOS 50.º, N.ºS 1 E 5, 122.º, N.ºS 1, ALÍNEA D) E 2.
CÓDIGO DE PROCESSO PENAL (CPP): - ARTIGO 222.º, N.º 2, ALÍNEA B).
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 30-09-1992, IN BMJ 419, P. 493;
- DE 27-09-1995, IN BMJ 449, P. 84;
- DE 17-05-2000, IN CJ, XX, TOMO II, P. 197;
- DE 01-06-2006, PROCESSO N.º 06P2055;
- DE 20-12-2006, PROCESSO N.º 06P4705;
- DE 01-02-2007, PROCESSO N.º 07P353;
- DE 31-07-2008, PROCESSO N.º 2536/08;
- DE 08-01-2015, PROCESSO N.º 130/14.1YFLSB.S1;
- DE 11-02-2015, PROCESSO N.º 18/15.9YFLSB.S1;
- DE 17-03-2016, PROCESSO N.º 289/16.3JABRG;
- DE 30-03-2016, PROCESSO N.º 37/15.5GOBVR.S1;
- DE 06-04-2016, PROCESSO N.º 135/04.0IDAVR-C.S1;
- DE 21-07-2016, PROCESSO N.º 216/16.8PKLSB-A.S1.


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ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA:


- DE 30-04-1984, IN BMJ 344, P. 457.


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ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA:


- DE 17-05-1994, IN CJ, XIX, TOMO III, P. 292.


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ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO:


- DE 21-11-2012, PROCESSO N.º 83/95.3TBPFR-E.P1.
Sumário :
I  -   O prazo de prescrição da pena principal só começa a correr com o trânsito em julgado da decisão de revogação da suspensão da execução da pena (n.º 2 do art. 122.º do CP).

II -  Não é defensável a posição que, em abstracto, defende a aplicação do disposto na la. d) do art. 122.º do CP (prazo de 4 anos) à pena de substituição (pena de suspensão da execução da pena de prisão). Meter no mesmo caldeirão, da citada al. d), todas as penas de suspensão da execução da pena de prisão, que podem oscilar entre o prazo de 1 e 5 anos (art. 50.º, n.º 5, do CP – prazos de suspensão) e que, também, podem substituir penas de prisão até 5 anos (n.º 1 do art. 50.º), é algo que pode contender, além do mais, com o próprio princípio da culpa. Na al. d) cabem todas as penas de prisão (inferiores a 2 anos, suspensas ou não na sua execução, e penas de multa) não abrangidas nas als. anteriores.

III -  A partir do momento em que a pena de substituição (suspensão da execução da pena de prisão) é revogada, através de decisão transitada, estamos perante uma pena de prisão a enquadrar, consoante a sua moldura, numa das als. do art. 122.º, n.º 1, do CP.

IV -    Durante o prazo da pena de suspensão (pode ir de 1 a 5 anos), o decurso da prescrição fica suspenso. Só começa a correr com o trânsito da decisão que aplicar a pena (n.º 2 do art. 122.º do CP). O ponto fulcral a atender é o do momento do trânsito em julgado do despacho que revoga a suspensão da execução da pena de prisão.

Decisão Texto Integral:

            I. RELATÓRIO


a) Pedido

«AA, arguido nos autos à margem referenciados, vem, mui respeitosamente, apresentar a sua Petição de Habeas Corpus

Nos termos e pelos seguintes fundamentos:
1. Por decisão transitada em julgado no dia 06-01-2004, pela prática dos seguintes crimes: 1 crime de Fraude fiscal, p.p. pelo art.º 23º do Dec. Lei n.º 20-A/90 e Dec. Lei 394/93, de 24/11, praticado em 04-01-1995; 1 crime de Abuso de confiança fiscal, p.p. pelo art.º 24º do Dec. Lei n.º 20-A/90 e Dec. Lei 394/93, de 24/11, praticado em 04-01-1995; o arguido foi condenado na pena única e global de 2 anos, cuja execução foi suspensa pelo período de quatro anos.
2. Contudo, a referida suspensão tinha como condição a imposição de pagamento a Autoridade Tributária, no prazo de 2 anos o valor de 106.804,77 euros
3. Por douto despacho que transitou em julgado em 20.06.2010, foi revogada a suspensão da referida pena.
4. Salvo o devido respeito, deve-se dizer que a aplicação da pena efectiva de prisão, resultante da revogação da suspensão concedida, mostra-se como inadmissível.
Senão vejamos,

5. Computando o lapso temporal decorrido, no caso concreto, desde o trânsito em julgado da decisão de revogação da pena suspensa (ocorrido em 20.06.2010), altura em que se iniciou o prazo de prescrição da pena de prisão e o cumprimento dos mandados de detenção do arguido para cumprimento de pena (ocorrido em 20.12.2017) é manifesto que já decorreu o prazo prescricional a que alude o art. 122, nº 1, al. d) do CP
6. Ora, como se refere, entre outros, no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 26 de outubro de 2010 (publicado em www.dgsi.pt), “a suspensão da execução da pena como pena de substituição que é pressupõe que a sentença que a aplica determine, previamente, a pena principal (de prisão) concretamente aplicável ao caso e que vai ser substituída e só a revogação da suspensão determinará o cumprimento dessa pena principal (de prisão).
“Assim, só com a decisão que revogue a pena substitutiva de suspensão e determine a execução da prisão se inicia o prazo de prescrição desta pena principal.”
Importa, no entanto, que tal decisão de revogação seja proferida dentro do prazo prescricional da pena suspensa, autónomo do prazo de prescrição da pena principal substituída (cfr. em idêntico sentido, o acórdão do STJ de 13 de fevereiro de 2014 e o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 4 de julho de 2013, in www.dgsi.pt).
7. Ora, tendo a decisão de revogação da suspensão sido proferida depois do decurso do prazo de prescrição da pena de substituição, em 20.06.2010 (data do trânsito em julgado do despacho revogatório) iniciou-se novo prazo de prescrição, pelo que a pena prescreveria em 20 de Junho de 2014.

8. A partir do momento em que a suspensão da execução da pena de prisão foi revogada, e atempadamente, a pena que o arguido passou a ter que cumprir é a de prisão, como a pena de prisão só pode ser cumprida a partir do trânsito em julgado do despacho que operou aquela revogação é a partir dessa data que se contam os 4 anos da prescrição da pena.

9. Efectivamente, como se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 09/10/2013 o art. 122.º do CP estabelece no seu nº 2 que “O prazo de prescrição começa a correr no dia em que transitar em julgado a decisão que tiver aplicado a pena”, que pode não ser, necessariamente, o dia em que transitar em julgado a sentença condenatória (Cf. P. P. de Albuquerque, in “Comentário do Código Penal”, pág. 384).

No caso de condenação em pena suspensa que depois é revogada, “a decisão que aplica a pena” resulta duma conjugação, da fixação na sentença condenatória, da pena de prisão substituída, com a decisão que revoga a suspensão. Dada a indispensabilidade desta decisão revogatória, para que a pena de prisão se aplique, o prazo de prescrição só pode contar-se a partir dela.

10. Dispõe o artigo 122°, n° 1, al. d), do Código Penal que as restantes penas que não cabem nas alineas a) b) e c) daquele artigo, que prescrevem no prazo de 4 anos.
11. Isto porque é de extrema importância que o instituto de prescrição mantenha um intocável coesão que inspire um sentimento de Segurança Jurídica, não se deixando atingir por formalismos e expedientes contrários às garantias constitucionais do arguido.
12. O habeas corpus é uma providência excepcional que visa garantir a liberdade individual contra os abusos de poder consubstanciados em situações de detenção ou prisão ilegal, com suporte no artigo 31° da CRP, que o institui como autêntica garantia constitucional de tutelada liberdade.
13. No caso em apreço, conhece aplicabilidade o fundamento da alínea b) – prisão por facto pelo qual a lei a não permite.
14. Decorridos que sejam os períodos das diversas alíneas do n° 1 deste artigo e do n° 3 do artigo 126°, sem que tenha sido executada a pena, não é razoável o prolongamento do constrangimento ao criminoso por um crime cuja repercussão social vai diminuindo pelo esquecimento em que o envolve o tempo decorrido. E mais: “a prescrição ocorre pelo simples lapso de tempo“ –Código Penal Anotado – Manuel Leal Henriques e Manuel Simas Santos.
15. Assim sendo, não pode deixar de se reconhecer fundamento à presente providência de habeas corpus.
16. Sendo ainda de realçar que, o arguido desde a data da sua condenação se afastou definitivamente da prática de crimes, estando perfeitamente inserido, social e familiarmente
17. Pelo que a condenação que agora se pretende ser-lhe aplicável sempre lhe traria consequências negativas indesejáveis, nomeadamente, decorrentes da convivência com outros reclusos.
18. Tendo, assim, ocorrido a prescrição da pena, a prisão não está pendente, não podendo ser executada. Não havendo pena de prisão exequível, a situação de prisão do requerente é ilegal, fundando-se em facto pelo qual a lei a não permite.
Nestes termos e nos mais de direito que v. Exa mui doutamente suprirá, deverá a presente Petição HABEAS CORPUS ser julgado procedente, por provada, e em consequência determinar-se a imediata restituição do Arguido à liberdade, uma vez que este se encontra recluso em cumprimento de pena prescrita.


Pelo exposto, requer-se a V.as Ex.as o deferimento do peticionado habeas corpus, declarando ilegal a prisão e ordenando a libertação imediata do Requerente, e se fará
JUSTIÇA!»

b) Informação

   Pelo Mmo Juiz do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, Juízo Central Criminal de Almada, Juiz 1, foi prestada, em 22/2/2018, a informação prevista no n.º 1 do art. 223.º do CPP do seguinte teor:

«Nos termos dos arts.222º e 223º nº1 do Cód.Proc.Penal informa-se VªExa que o arguido Carlos Alberto Mendes Oliveira foi julgado e condenado nos presentes autos por acórdão proferido a fls.416 a 424 transitado em julgado em 6 de Janeiro de 2004 (certidão de fls.426) pela prática de três crimes de fraude fiscal e nove crimes de abuso de confiança fiscal na pena única de três anos de prisão, cuja execução foi suspensa pelo período de quatro anos.

Ainda antes do termo do período de suspensão (que ocorreria a 6 de Janeiro de 2008), concretamente a 23/08/2007 foi proferida decisão a fls.571 a 574 que, não só, declarou perdoado um ano de prisão à pena principal, como revogou o período de suspensão determinando-se o cumprimento do remanescente de dois anos de prisão. Ora, porque o arguido não foi logo notificado desse despacho, tendo havido interposição de recurso pelo MºPº relativo ao trânsito do mesmo despacho, aí se sustentando ocorrer o trânsito independentemente da notificação pessoal do arguido, o Tribunal da Relação por Douto Acórdão de fls.609 a 619 veio entender a necessidade da referida decisão de revogação da suspensão ser notificada ao arguido, notificação essa que vem a ocorrer em 9/06/2010 (fls.691 e 692), o que determinou o trânsito da decisão que revogou a suspensão para cumprimento da pena de 2 anos de prisão efectiva na data de 29/06/2010 (despacho de fls.694)

Portanto, nos presentes autos, embora se inicie o prazo prescricional da pena suspensa – pena de substituição (suspensão decretada pelo período de 4 anos) a partir de 6 de Janeiro de 2008 correspondente ao termo do período da suspensão da pena (e não antes, por estar em vigor o período de suspensão e, por isso, interrompido o respectivo prazo de prescrição da pena suspensa cfr.art.126º nº1 alínea a) do Cód.Penal), quando ocorre o trânsito da decisão de fls.571 a 574 que revogou a suspensão, em Junho de 2010, inicia-se, por sua vez, o novo prazo prescricional de 10 anos da pena principal de 2 anos de prisão efectiva, conforme dispõe expressamente o art.122º nº1 alínea c) do Cód.Penal, não estando em causa qualquer prazo de 4 anos, porque a alínea d) do aludido preceito não é, a nosso ver, subsumível a uma pena principal de 2 anos de prisão efectiva (como pretende a defesa), tudo isto, aliás de acordo com a jurisprudência que é citada pela petição de Habeas Corpus.

O ponto fundamental, é que, quando a decisão que revoga a suspensão transita em Junho de 2010, ainda estava em curso o prazo prescricional na pena suspensa (iniciado em 6 de Janeiro de 2008, data do fim da suspensão), entendendo nós que o prazo prescricional dessa pena de 3 anos de prisão suspensa por 4 anos, corresponde a 10 anos por aplicação da alínea c) do nº1 do art.122º do Cód.Penal, não devendo ser aplicada a alínea d) do nº1 do mesmo art.122º. Cremos que a referência legal “nos restantes casos” da alínea d) do nº1 do art.122º não se aplica somente a penas substitutivas (v.g.penas de multa, penas de trabalho a favor da comunidade), também se aplica a penas principais de prisão, desde que inferiores a 2 anos. Por outro lado, subsumir invariavelmente penas suspensas ao prazo prescricional de 4 anos da alínea d) apenas porque é uma pena substitutiva, ofende a ratio do instituto da prescrição, concretamente nas situações em que o período da suspensão tem a duração de 3, 4 ou 5 anos. Não raras vezes cominam-se penas de 5 anos de prisão suspensos por 5 anos e nesse casos, entender que o prazo prescricional é de 4 anos, atinge frontalmente a economia do instituto da prescrição que, como pressuposto negativo de punição, visa criar uma margem suficiente que, no mesmo passo, evite com equilíbrio, por um lado, o excessivo tempo sem que se inicie a respectiva execução (para que permaneçam válidas as exigências de prevenção especial) e simultaneamente, por outro lado, a ausência do condenado que obstaculiza ao cumprimento da pena (como foi manifestamente o caso dos autos) não pode prejudicar irremediavelmente a execução da mesma como uma necessidade da Justiça. E é nesse equilíbrio que o legislador, na temporalidade das penas, sempre exprimiu uma economia dos prazos prescricionais, no mínimo, pelo dobro dos tempos de prisão, precisamente para contrabalançar aqueles dois interesses opostos, evitando tempos excessivos lesivos para a utilidade da pena, ao mesmo tempo que visou conceder o tempo suficiente para tornar possível a execução da pena perante a indisponibilidade criada pelo arguido.

Por outro lado, quanto à interpretação do “nomen juris” da pena de prisão aludida nas alíneas a) a c) do nº1 do art.122º do Cód.Penal, não pode esquecer-se que a dicotomia entre penas de prisão e penas substitutivas é uma classificação doutrinária que o legislador não assumiu expressamente no catálogo das penas previstas parte geral do Código (não obstante as possibilidades previstas no art.43º do Cód.Penal), e não pode a doutrina reclamar os foros do princípio da legalidade a todas as classificações que procede, sendo certo que na alínea d) do nº1 do art.122º o legislador não refere a classificação ou a categorias da penas substitutivas, ou seja, quando expressa a pena de prisão não quer opor “a contrario” as penas substitutivas. Acresce que os tempos das penas de prisão estão directamente associados aos tempos de suspensões e são sobre essas expressões temporais que o legislador faz a gestão dos prazos de prescrição previstos nas alíneas a) a d) do nº1 do art.122º.

O problema está no nº3 do art.126 do Cód.Penal determinando que as interrupções ocorridas na execução da pena, não excedem metade do prazo prescricional, portanto, não obstante o período de suspensão de 4 anos decorrer (assim se executando essa pena), a prescrição de 4 anos corre ao mesmo tempo e aí se esgota, somente sobrando mais 2 anos, o que no caso dos autos, significaria um desequilíbrio manifesto na gestão de interesses dilemáticos que a prescrição sempre procede. Neste processo, forçar a aplicação da alínea d) do nº1 do art.122º, determina que somente subsistiriam dois anos após o termo da suspensão, por facto inteiramente imputável ao arguido que se indisponibilizou aos contactos, interpretação que ofende o instituto da prescrição por ser totalmente desproporcionada. Mais insólito seria o caso, não raro, em que suspensões por 5 anos, com prazos prescricionais de 4 anos, cria situações anacrónicas.

Como o arguido vem a ser detido a 20/12/2017 cfr.fls.902 e 902 verso (e não antes porque se multiplicaram nos autos inúmeras diligências para localizar o arguido e executar os respectivos mandados de detenção) para cumprimento da pena de dois anos de prisão, entende este Tribunal que o prazo prescricional de 10 anos, que se encontrava em curso, se interrompe nessa data da detenção com inicio do cumprimento de pena (cfr.art.126º nº1 alínea a) do Cód.Penal), inexistindo, salvo melhor entendimento, qualquer fundamento que inquine a validade da actual situação prisional do arguido que se mantém em cumprimento de pena, cuja liquidação se mostra homologada conforme expediente de fls.939 a 941.

É quanto me cumpre informar, a VªExa,

com a mais elevada consideração e respeito.»


*********

Convocada a secção criminal, notificados o Ministério Público e o defensor, realizou-se audiência, tudo em conformidade com o disposto nos n.ºs 1, 2 e 3 do artigo 223.º do CPP.

Terminada a audiência, a secção reuniu para deliberar (artigo 223.º, n.º 3, 2.ª parte, do CPP), fazendo-o nos termos que se seguem.

II. FUNDAMENTAÇÃO

Matéria fáctica



   Os factos a considerar são os que constam da informação prestada pelo Mmo Juiz, e dos presentes autos que se condensam, nomeadamente, conforme segue.

- O arguido foi condenado, por acórdão, do então Círculo Judicial do Barreiro, de 28/11/2003, decisão transitada em julgado em 6/1/2004, pela prática de vários crimes de fraude fiscal e abuso de confiança fiscal, na pena de 3 anos de prisão, suspensa na sua execução por 4 anos.

- Mais tarde, por decisão de 23/8/2007, e portanto ainda antes do termo do período de suspensão que ocorreria em 6/1/2008 (decisão essa só transitada em 29-6-2010, por força de recurso para a Relação de Lisboa relacionada com a questão de saber se era necessária a notificação pessoal do arguido) foi perdoado um ano de prisão e também revogada a suspensão da execução da pena.

- O arguido só foi detido em 20/12/2017.

Apreciação do pedido

Cumpre apreciar.

O STJ tem um entendimento consolidado relativamente à figura da providência de Habeas Corpus, como ressalta da sua jurisprudência (cfr., a título de exemplo, Acs. STJ de 20 de Dezembro de 2006, Proc. 06P4705, Rel. Sousa Fonte, sumariado na nota 1, de 1 de Fevereiro de 2007, Proc. 07P353, Rel. Pereira Madeira, sumariado na nota 1,de 31 de Julho de 2008, Proc. 2536/08‑3.ª, Rel. Armindo Monteiro, sumariado na nota 1,de 8 de Janeiro de 2015, Proc. 130/14.1YFLSB.S1, Rel. Raul Borges, de 11 de Fevereiro de 2015, Proc. 18/15.9YFLSB.S1, Rel. Pires da Graça, de 17/3/2016, Proc. 289/16.3JABRG, Rel. Manuel A. Matos, de 30 de Março de 2016, Proc. 37/15.5GOBVR.S1, Rel. Oliveira Mendes). 

A mesma é encarada como medida extraordinária, excepcional e remédio de urgência perante ofensas graves à liberdade, que se traduzam em abuso de poder, ou por serem ofensas sem lei ou por serem grosseiramente contra a mesma, não constituindo recurso dos recursos e ainda menos um recurso contra os recursos.

Não se destina a sindicar decisões judiciais, nomeadamente a impugnar nulidades ou irregularidades processuais, que só em recurso ordinário devem ser apreciadas.
Conforme se escreve no Ac STJ de 30 de Março de 2016, Proc. 37/15.5GOBVR.S1, Rel. Oliveira Mendes, a propósito desta providência excepcional de habeas corpus «este Supremo Tribunal vem enfaticamente afirmando[5], não constitui um recurso sobre actos de um processo, designadamente sobre actos através dos quais é ordenada e mantida a privação de liberdade do arguido, nem um sucedâneo dos recursos admissíveis, estes sim, os meios ordinários e adequados de impugnação das decisões judiciais. Por outro lado, como este Supremo Tribunal também tem referido em vários acórdãos[6], está-lhe vedado substituir-se ao tribunal que ordenou a prisão que está na base da petição de habeas corpus em termos de sindicar os fundamentos que a ela subjazem, ou seja, de conhecer da bondade da respectiva decisão, visto que se o fizesse estaria a criar um novo grau de jurisdição, igualmente lhe estando vedado apreciar eventuais anomias processuais situadas a montante ou a jusante da decisão que ordenou a prisão, a menos que a situação de privação da liberdade subjacente ao pedido de habeas corpus consubstancie um inequívoco abuso de poder ou um erro grosseiro na aplicação do direito.». (idem, do mesmo Relator, Ac STJ de 21 de Julho de 2016, Proc. 216/16.8PKLSB-A.S1).

Refere o artigo 222.º do Código de Processo Penal:

«1 - A qualquer pessoa que se encontrar ilegalmente presa o Supremo Tribunal de Justiça concede, sob petição, a providência de habeas corpus.

2 - A petição é formulada pelo preso ou por qualquer cidadão no gozo dos seus direitos políticos, é dirigida, em duplicado, ao Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, apresentada à autoridade à ordem da qual aquele se mantenha preso e deve fundar-se em ilegalidade da prisão proveniente de:

a) Ter sido efetuada ou ordenada por entidade incompetente;

b) Ser motivada por facto pelo qual a lei a não permite; ou

c) Manter-se para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial.».

    


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O arguido fundamenta o seu pedido de Habeas Corpus na ilegalidade da sua prisão (alínea b), do n.º 2 do cit. art. 222.º do CPP), derivada da circunstância de, em seu entender, a pena de prisão de encontrar prescrita (art. 122.º, n.º 1, alínea d) do CP; prazo de prescrição de 4 anos).

O prazo de prescrição da pena afere-se pela pena originária inicialmente aplicada na decisão condenatória e não pela pena resultante de eventual e posterior aplicação de medidas de clemência, nomeadamente os perdões constantes das leis de amnistia (Acs. RL de 30/4/1984, BMJ 344, pág. 457; Ac. RE de 17/5/1994, CJ, XIX, T. III, pág. 292; Ac. RP de 21/11/2012, Proc. 83/95.3TBPFR-E.P1, Rel. Eduarda Lobo; Ac. STJ de 30/9/1992, BMJ 419, pág. 493; Ac. STJ de 27/9/1995, BMJ 449, pág. 84; Ac. STJ de 17/5/2000, CJ, XX, T. II, pág. 197; Ac. STJ de 1/6/2006, Proc. 06P2055, Rel. Pereira Madeira).

No caso, deve ser tida em conta a pena originária de 3 anos (e não a de 2 anos derivada do perdão concedido), embora na situação em análise o prazo de prescrição seja similar nas duas hipóteses.

Em segundo lugar, também parecer ser consensual que o prazo de prescrição da pena principal só começa a correr com o trânsito em julgado da decisão de revogação da suspensão da execução da pena (v. n.º 2 do art. 122.º CP).

Já menos consensual parece ser o do prazo de prescrição das penas de prisão suspensas na sua execução.

A pena de suspensão da execução da pena de prisão[1] é uma pena de substituição[2], sendo estas actualmente configuradas como verdadeiras penas autónomas (Figueiredo Dias (Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, Ed. Notícias, 1993, pág. 329).

A pena de suspensão da execução da pena de prisão, como pena de substituição, pode terminar pelo seu cumprimento após o decurso do prazo (art. 57.º do CP) ou pode terminar por força da sua revogação (art. 56.º do CP).

Uma pena só é de substituição enquanto subsiste, enquanto substitui. A partir do momento em que é revogada (é a hipótese a considerar nestes autos), estamos perante uma pena de prisão pura e simples, isto é, perante a pena substituída.

Não se nos apresenta defensável a posição que, em abstracto, defende a aplicação do disposto na alínea d) do art. 122.º do CP (prazo de 4 anos) à pena de substituição (pena de suspensão da execução da pena de prisão)[3].

Meter no mesmo caldeirão, da cit. alínea d), todas as penas de suspensão da execução da pena de prisão, que podem oscilar entre o prazo de 1 e 5 anos (art. 50.º, n.º 5 do CP--prazos de suspensão) e que, também, podem substituir penas de prisão até 5 anos (n.º 1 do cit. art. 50.º), é algo que pode contender, além do mais, com o próprio princípio da culpa[4].

Na referida alínea d) cabem todas as penas de prisão (inferiores a dois anos, suspensas ou não na sua execução, e penas de multa) não abrangidas nas alíneas anteriores.

Com a revogação ressurge, reaviva, a pena de prisão substituída, que é a pena originária. E é a esta (pena de prisão/pena originária) que deve atender-se, como vimos atrás, para efeitos de prescrição. Sendo de atender à pena principal, o regime é o da pena principal e não o da pena de substituição, que foi revogada.

Conforme se escreve no Ac. STJ de 6/4/2016, Proc. 135/04.0IDAVR-C.S1, Rel. Santos Cabral «I - A partir do momento em que a suspensão da execução da pena de prisão foi revogada, e atempadamente, a pena que o arguido passou a ter que cumprir é a pena de prisão em que foi condenado. II - A partir do trânsito em julgado do despacho que operou essa revogação, a prescrição da pena a atender é a prescrição da pena de prisão pois que é a única em relação à qual se pode colocar, nessa altura, a questão da respectiva execução e não perante a pena cominada na primitiva sentença condenatória, de suspensão de execução da pena de prisão, a qual se encontra revogada[5].

A partir do momento em que a pena de substituição (suspensão da execução da pena de prisão) é revogada, através de decisão transitada, estamos perante uma pena de prisão a enquadrar, consoante a sua moldura, numa das alíneas do art. 122.º, n.º 1 do CP[6].

E a revogação implica o cumprimento da pena de prisão fixada na sentença (art. 56.º, n.º 2 CP) sem qualquer desconto[7].

Durante o prazo da pena de suspensão (pode ir de 1 a 5 anos), o decurso da prescrição fica suspenso. Só começa a correr com o trânsito da decisão que aplicar a pena (n.º 2 do art. 122.º do CP).

O ponto fulcral a atender é o do momento do trânsito em julgado do despacho que revoga a suspensão da execução da pena de prisão.

Podem existir complicações processuais, que façam com que o despacho revogatório não ocorra no período correcto.

Na verdade, não faltam casos em que o mesmo é exarado vários anos depois de esgotado o prazo da suspensão, ou em que o trânsito em julgado do despacho revogatório, embora tal despacho tenha ocorrido em tempo, como no caso dos presentes autos, só transita já bastante depois do decurso do prazo normal da suspensão.  

No caso dos autos, dado que a pena de prisão, inicialmente suspensa na sua execução, é de 3 anos, o prazo de prescrição é de 10 anos (art. 122.º, n.º 1, alínea c) do CP).

Assim, quer se conte o prazo de prescrição desde 6/1/2008 (data do termo do prazo de suspensão da execução da pena) até 29/6/2010 (data do trânsito da decisão revogatória da suspensão) (2 anos, 5 meses e 23 dias), e desde 29/6/2010 até 20/12/2017 (data em que o arguido foi detido) (7 anos 5 meses e 22 dias), o que perfaz 9 anos 11 meses e 15 dias, quer se entenda que se deve contar apenas a partir do trânsito da decisão revogatória (29/6/2010) até à data da detenção (20/12/2017), é manifesto que o prazo de 10 anos ainda se não havia esgotado aquando da prisão do requerente[8].

           

III. DELIBERAÇÃO

    Atento o exposto, delibera-se indeferir o pedido de habeas corpus, apresentado por AA, por falta de fundamento bastante (art. 223.º, n.º 4, alínea a) do CPP).

             

Custas pelo requerente, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC (artigo 8.º, n.º 9 e Tabela III anexa ao RCP—DL 34/2008, de 26/2, na redacção do DL 52/2011, de 11 de 13 de Abril).

                 

Supremo Tribunal de Justiça, 28 de Fevereiro de 2018

Vínicio Ribeiro (Relator)

Gabriel Catarino

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[1]Sobre a origem e evolução da suspensão da execução da pena de prisão, cfr., por todos, Ac. STJ 8/2012, DR I S. de 24/10/2012.

[2] O STJ já se pronunciou, várias vezes sobre a problemática das penas de substituição, nomeadamente nos arestos de fixação de jurisprudência a seguir mencionados:

«IX. Enunciada a evolução legislativa que a matéria em apreço concita, pondere-se que embora as penas previstas no CP sejam passíveis de vários critérios distintivos, o mais comum é o que distingue entre penas principais e acessórias, sendo aquelas reduzidas à pena de prisão e às pecuniárias ou de multa (art.ºs 41 e 47.º, isto quanto às pessoas singulares), e multa e dissolução, com referência às pessoas colectivas (art.º 90.º-A).

As penas principais são as directamente aplicáveis, as únicas que podem por si sós constar das normas incriminatórias, as que são expressa e individualizadamente previstas para sancionamento dos tipos de crimes; conexamente com estas desenham-se as penas substitutivas, substituindo, como o nome indica, as principais, cominadas em lugar daquelas, tanto na aplicação judicial, como previsto no art.º 43.º do CP, para a substituição da prisão por multa e 48.º, do CP, quanto à substituição da pena de multa, como ainda na execução da pena de prisão, nestas se incluindo

o regime de permanência na habitação (art.º 44.º, do CP), a prisão por dias livres (art.º 45.º, do CP), o regime de semidetenção (art.º 46.º, do CP), a suspensão da execução da pena (art.º 50.º, do CP) e a suspensão com regime de prova (art.º 53.º, do CP) — cfr. Direito Penal Português, III, pág. 85, Prof. Germano Marques da Silva.

A aptidão reconhecida para tais penas poderem substituir qualquer uma das penas principais concretamente determinadas, radica no movimento político-criminal de luta contra a aplicação das penas de prisão de curta duração, a partir do final do séc. XIX, dos escritos de Boneville de Marsangy (em 1864) em França e von Lizt na Alemanha, em 1889.» (extracto do Ac. STJ 12/2013, DR I S. de 16/10/2013).

«Ora, quando, uma vez determinada a medida concreta da pena principal, o juiz escolhe aplicar uma pena de substituição, terá ao seu dispor um leque variado de penas de substituição: umas privativas da liberdade, como por exemplo a prisão por dias livres ou o regime de semidetenção, e outras não privativas da liberdade (também designadas como penas de substituição em sentido próprio) como a suspensão da execução da pena de prisão, ou a pena de multa.

As penas de substituição caracterizam-se como sendo aplicadas em vez da pena principal, constituindo pena principal a pena que está expressamente prevista no tipo legal de crime, o que no nosso ordenamento jurídico se reduz à pena de prisão e à pena de multa, no que respeita às penas aplicáveis às pessoas singulares 7.» (extracto do Ac. STJ 7/2016, DR I S. de 21/3/2016).

[3]Diverge-se, por isso, do entendimento constante dos Acs. deste STJ de 13/2/2014, Proc. 1069/01.6PCOER-B.S1, Rel. Manuel Braz e de 5/8/2016, Proc. 11/02.1PCPTS-A.S1, Rel. Helena Moniz e de outros arestos das Relações (v. lista constante do Ac. RL de 19/9/2017, Proc. 86/12.5PGLRS-A.L1-5., Rel. Margarida Bacelar).
[4] Sabido como é que a culpa não serve de critério para a escolha da pena de suspensão da execução, mas serve para a determinação da medida da mesma (Cfr. Figueiredo Dias (Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, Ed. Notícias, 1993, pág. 330).
[5] Também neste sentido apontam os Acs. do STJ de 19/4/2007, Proc. 07P1431, Rel. Pereira Madeira e de 19/7/2007, Proc. 2834/07, Rel. Oliveira Mendes, respectivamente com o seguinte sumário:

«I - Uma pena de dois anos e dois meses de prisão aplicada em cúmulo jurídico só prescreve, no termo do prazo de dez anos, contados do dia do trânsito em julgado da decisão que a aplicou – art.º 122.º, n.º 1, c), e n.º 2, do Código Penal – sendo para o efeito irrelevante a medida das penas parcelares.

II - Entre o momento da prolação da sentença condenatória e o da revogação da suspensão da pena, por incumprimento da condição imposta, a execução da pena de prisão ora aplicada não podia legalmente ser iniciada, pelo que, durante tal período de tempo, o prazo prescricional se manteve suspenso nos termos do n.º 1, a), do artigo 125.º do Código Penal.» (do Ac. STJ de 19/4/2007).

«I - Num caso em que a arguida foi condenada, pela prática de dois crimes de falsificação de documento, na pena única de 2 anos e 4 meses de prisão, cuja execução foi suspensa pelo período de 3 anos, sob condição, vindo tal suspensão a ser, posteriormente, revogada por falta de cumprimento da condição a que ficou subordinada, a contagem do prazo prescricional (da pena), atenta a circunstância de estarmos perante pena de prisão resultante de pena de substituição, é feita a partir do trânsito em julgado da decisão que revogou a pena de suspensão.

II - Com efeito, previamente à revogação inexistia, verdadeiramente, pena de prisão, antes uma pena de substituição, consabido que a suspensão da execução da prisão não representa um simples incidente, ou, mesmo, só uma modificação da execução da pena, mas uma pena autónoma e portanto, na sua acepção mais restrita e exigente, uma pena de substituição.

III - Por outro lado, a pena a considerar para efeitos de prescrição é a pena única ou conjunta aplicada, qual seja a de 2 anos e 4 meses de prisão, cujo prazo de prescrição é o previsto na al. c) do n.º 1 do art. 122.° do CP (10 anos).

IV - O perdão de pena nada tem a ver com o facto – sequer com a sua dignidade penal –, mas unicamente com a efectividade da sanção, sendo que, como medida de clemência que é, se limita a reduzir a pena aplicada, razão pela qual não tem a virtualidade de alterar a pena, designadamente a sua gravidade e dignidade penal, tão-somente o seu quantum de cumprimento.

V - Destarte, a pena a ter em conta para efeitos de contagem do prazo de prescrição não pode deixar de ser a pena de prisão inicial (em que se converteu a pena de substituição) antes da aplicação do perdão.

VI - Neste sentido se tem pronunciado este STJ, considerando que os prazos de prescrição das penas são referidos à pena aplicada ao crime na sentença condenatória e não à pena residual que o condenado terá que cumprir por efeito do perdão concedido.» (do Ac. STJ de 19/7/2007).
[6] Prisão inferior a 2 anos--prazo de prescrição de 4 anos (alínea d), do cit. art. 122.º; prisão entre os dois anos e inferior a 5 anos-- prazo de prescrição de 10 anos (alínea c) do cit. art.); prisão de 5 anos-- prazo de prescrição de 15 anos (alínea b) do cit. art.).
[7] Regime diferente do consagrado por exemplo no n.º 5 do art. 46.º ou no n.º 1 do art. 49.º, ambos do CP.
[8] Diferente seria a solução se se defendesse o prazo de prescrição da alínea d) do n.º 1 do art. 122.º do CPP (4 anos).