Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
06A3687
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: SEBASTIÃO PÓVOAS
Descritores: DESPACHO DE APERFEIÇOAMENTO
NULIDADES
Nº do Documento: SJ200611210036871
Data do Acordão: 11/21/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Sumário : 1) O nº2 do artigo 266º do CPC traduz um afloramento do princípio geral da cooperação a permitir que o juiz interpele as partes sobre determinados pontos do processo, em termos de clarificar a sua vontade processual.

2) Na fase de pré-saneamento e para que o juiz fique habilitado a expurgar o não essencial e a só condensar o pertinente, deve convidar as partes a suprirem irregularidades dos articulados ou a juntarem documento essencial (nº2 do artigo 508º CPC) - dever vinculado ou obrigação - e pode endereçar convite para suprimento de imprecisões discursivas ou concretização de matéria de facto já alegada (nº3 do artigo 508º) - dever não vinculado ou mera faculdade.

3) O nº2 destina-se ao suprimento de anomalias dos próprios articulados enquanto o nº3 à correcção de deficiências da exposição "quo tale", embora a nova versão tenha de se conter na causa de pedir inicial ou nos limites da defesa.

4) Não pode, por esta via, suprir-se uma ineptidão da petição, mas, apenas, outras irregularidades ou deficiências puramente processuais, que não aspectos substantivos ou materiais.

5) A omissão do núcleo essencial da "causa petendi" não é suprível pela via do despacho de aperfeiçoamento.

6) A omissão de convite - não vinculado (nº3 do artigo 508º CPC) - a aperfeiçoamento não integra nulidade processual.
Tanto mais que a parte que dá causa à necessidade de aperfeiçoamento daria, por consequência, causa a eventual nulidade nunca podendo argui-la face ao disposto no nº2 do artigo 203º do CPC, que consagra o princípio da auto-responsabilidade.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

"AA" intentou, no 3º Juízo da Comarca da Maia, acção, com processo ordinário, contra BB - na qualidade de único herdeiro de CC - e "ISSS - Centro Nacional de Pensões".

Pediu o seu reconhecimento como titular do direito a alimentos da herança do falecido CC; o reconhecimento de que a herança não tem bens que permitam prestar alimentos; a condenação do Réu ISSS a pagar-lhos na qualidade de titular do direito ás prestações por morte do falecido.

A 1ª Instância julgou a acção improcedente, essencialmente por não ter sido alegado e provado que a Autora não pudesse obter alimentos do cônjuge, ou ex cônjuge, dos descendentes, dos ascendentes ou dos irmãos - artigos 2009º e 2020º nº1 do Código Civil.

Na sequência de apelação da Autora, a Relação do Porto confirmou o julgado.

Inconformada, recorre de novo assim concluindo as suas alegações:

- A presente acção foi considerada improcedente porque se considerou que a Apelante não alegou (nem provou) factos que permitissem que um dos requisitos legais necessários para o efeito fosse apreciado pelo Tribunal.

- Requisito esse que consiste em não poder a Apelante obter os alimentos de nenhuma das pessoas mencionadas nas alíneas do artigo 2009º do CC.

- Todos os demais requisitos legais foram considerados verificados.

- No entanto, prescreve o artigo 508º nºs 1, alínea b) e 2, do CPC, que verificando-se que os articulados carecem de requisitos legais, deve o Meritíssimo Juiz convidar a parte a aperfeiçoar o mesmo.


- O que manifestamente não sucedeu, pelo que estamos perante um erro/omissão.

- De facto, prescreve o artigo 508º nºs 1, alínea b) e 2 do CPC, que verificando-se que os articulados carecem de requisitos legais, deve o Meritíssimo Juiz convidar a parte a aperfeiçoar o mesmo.

- Uma vez que as instâncias deixaram de se pronunciar sobre questões que deveriam ter apreciado, a saber, a necessidade de proferir um Despacho de Convite ao Aperfeiçoamento, verifica-se uma clara nulidade do Acórdão, a qual se invoca - artigos 716º e 668º nº 1, alínea d), 1ª parte, ambos do CPC, com todas as consequências legais.

- Mesmo que assim não se entendesse, o que só academicamente se admite, teremos que ter presente que a Recorrente não foi convidada para o efeito, o que sempre se traduziria numa verdadeira nulidade - artigo 201º nºs 1 e 2 do CPC.

- Tanto mais que essa falta influi decisivamente na decisão da causa, como sucedeu.

- Assim, como resulta da conjugação das disposições dos artigos 201º e 508º, ambos do CPC, deverá este Tribunal, revogar o douto Acórdão e, consequentemente, a sentença no respeitante à sua parte decisória e fazer baixar o processo para que, no tocante ao requisito legal em falta na petição inicial, seja proferido Despacho de Convite ao Aperfeiçoamento da petição inicial, nos termos e para os efeitos do artigo 508º nºs 1, alínea b) e 2 do CPC.

- Pelo exposto, foram violadas as normas constantes dos artigos 508 e 201, ambos do CPC.

- Se, mesmo assim, se continuasse a não entender, o que só academicamente se admite, sempre se teria que considerar, que houve uma errada interpretação e (in)aplicação do disposto no artigo 508º do CPC.

- O que só por si terá de, face à imperiosa aplicação daquele normativo, acarretar a revogação do Acórdão e, consequentemente, da sentença no respeitante à sua parte decisória e fazer baixar o processo para que, no tocante ao requisito legal em falta na petição inicial, seja proferido

Despacho de Convite ao Aperfeiçoamento da petição inicial, nos termos e para os efeitos do artigo 508º, nºs 1 alínea b) e 2 do CPC.

Contra alegou o Instituto da Solidariedade e Segurança Social em defesa do julgado.

Foram colhidos os vistos.

Conhecendo,

1- Despacho de aperfeiçoamento.
2- Nulidade.
3- Conclusões.

1- Despacho de aperfeiçoamento.

1.1- O âmbito do recurso foi limitado pela recorrente a duas questões: se o despacho de aperfeiçoamento é proferido no exercício de um poder vinculado; se a omissão desse despacho acarreta nulidade.
São, por isso, curiais algumas considerações sobre a natureza do despacho de aperfeiçoamento.
Caracteriza-se por um convite do juiz - cujo não acolhimento pela parte "sibi imputet" - nunca é definitivo por sempre ser seguido de outro que ponha termo a esse ponto controvertido.
"Acentua o princípio da cooperação que, hoje, é basilar no processo civil - artigos 266º, 519º, 519º A, 1, 535º, 569º nº 1 a), 569º nº2, 612º nº1, 645º nº1 v.g). A omissão desse dever é sancionada (artigo 456º nº2, c))". - Acórdão do STJ de 6 de Julho de 2006 - 06 A1838 - do mesmo Relator.
São dois os preceitos nucleares sobre o despacho de aperfeiçoamento.
O nº2 do artigo 266º do CPC. ("O juiz pode, em qualquer altura do processo, ouvir as partes, seus representantes ou mandatários judiciais, convidando-os a fornecer os esclarecimentos sobre a matéria de facto ou de direito que se afigurem pertinentes e dando-se conhecimento à outra parte dos resultados da diligencia.") e os nºs 2 e 3 do artigo 508º ("2. O juiz convidará as partes suprir as irregularidades dos articulados, fixando o prazo para o suprimento ou correcção do vicio, designadamente quando careçam de requisitos legais ou a parte não haja apresentado documento essencial ou de que a lei faça depender o prosseguimento da causa; 3- Pode ainda o juiz convidar qualquer das partes a suprir as insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada, fixando prazo para apresentação de articulado em que se complete ou corrija o inicialmente produzido").
O primeiro dos preceitos citados reporta-se à prestação de esclarecimentos para que o juiz possa, no acompanhamento e direcção do processo, arredar quaisquer dúvidas sobre a lide, designadamente perante situações de falta de clareza do raciocínio discursivo, quer quanto à matéria de facto quer quanto ao direito.
É, como se disse, um afloramento do princípio geral da cooperação a permitir que o julgador interpele as partes para que o esclareçam sobre determinados pontos do processo, em termos de clarificar a sua vontade processual.
Diferente é o propósito dos nºs 2 e 3 do artigo 508º da lei adjectiva.
Agora, e na fase de pré-saneamento, o juiz para que fique habilitado a expurgar o não essencial e a só condensar o pertinente, deve (nº2) convidar as partes a suprirem irregularidades dos articulados ou juntarem documento essencial ou condicionante do seguimento da lide e pode (nº3) proceder a convite suprimento de insuficiências ou imprecisões discursivas ou concretização de matéria de facto já alegada.
Desde logo ressalta que - embora sempre no uso dos poderes da alínea b) do nº1 do artigo 508º - ali (nº2) há uma obrigação do juiz, enquanto o nº3 consagra uma mera faculdade (cf. Cons. Pais de Sousa e Cardona Ferreira, in "Processo Civil", 1997, 39 e Acórdão do STJ de 22 de Junho de 2005 - 05 A1781 - ao referir que, no segundo caso, "não está o legislador a fazer qualquer imposição ao juiz, mas a conceder-lhe uma mera faculdade, dentro do âmbito dos seus poderes discricionários, que ele poderá utilizar ou não, conforme entenda em face das circunstancias do caso, no sentido de sanar a falta de articulação de factos relevantes para a decisão.").
Detenhamo-nos no "distinguo" entre as situações do nº2 e do nº3.

1.2- Com a reforma do processo civil o despacho pré-saneador é o primeiro momento em que o juiz contacta com o litígio após as partes produzirem os seus articulados, e sem qualquer distinção para o articulado introdutório do demandante e o articulado resposta do demandado.
Antes da reforma de 1995 e na vigência do artigo 477º do Código de Processo Civil, o juiz, perante a petição inicial, proferia um despacho liminar que, se anómalo, podia ter a natureza de aperfeiçoamento.

E, então, já se distinguia entre o corrector de irregularidades e o aperfeiçoador de deficiências.
Entendia-se ser irregular a petição que não podia ser recebida por falta de requisitos legais ou por não ser acompanhada de documentos essenciais (cf. Profs. A. Varela in "Manual de Processo Civil", 1984, 251 e Castro Mendes, "Direito Processual Civil II", 1969, 118).
Nestes casos o poder do juiz era vinculado, no sentido de ter de usar do despacho de aperfeiçoamento.
Perfilar-se-ia uma petição deficiente se ocorriam omissões susceptíveis de comprometer o êxito da acção, sendo que, nestes casos, o convite do juiz não era destinado a garantir a procedência mas, apenas, ao esclarecimento de qualquer aspecto decisivo para a sorte da lide.
Como refere o Prof. Teixeira de Sousa, "o articulado é deficiente quando contenha insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto, isto é, quando nele não se encontrem articulados todos os factos principais ou a sua alegação seja ambígua ou obscura (in "Estudos sobre o novo processo civil", 304).
No essencial estes conceitos mantêm-se no sistema actual que alterou o momento do convite estendendo-o para além da petição inicial.
Assim o convite ao suprimento das irregularidades (nº2 do artigo 508º) destina-se à correcção de anomalias dos próprios articulados, enquanto que o convite ao suprimento das deficiências tem por objectivo sanar insuficiências, ou imprecisões na exposição "quo tale", embora a nova versão tenha de se conter na causa de pedir inicial e nos limites da defesa, tratando-se de articulado de resposta. (cf., a propósito, a Dr.ª Paula Costa e Silva, apud "Saneamento e Condensação no novo processo civil": a fase da audiência preliminar", in "Aspectos do novo processo civil", 1997, 232; Des. Abrantes Geraldes, in "Temas da reforma do processo civil", 1999, 58).
Mas não pode, por esta via, e como acima se disse, ser suprida uma petição inepta nos termos do artigo 193º do CPC.
Este principio já constava do nº1 do artigo 477º, a remeter para o nº1 do artigo 474º.
De outra banda, há que acautelar o principio da igualdade das partes e não permitir que uma delas seja privilegiada "ensinando-se-lhe" o modo de articular para obter êxito na acção ou na defesa.
E embora, hoje, o convite ao aperfeiçoamento possa agora ser dirigido a qualquer das partes (recorde-se o Prof. Antunes Varela: "admitir que o juiz pudesse convidar o autor a completar ou a corrigir irregularidades ou deficiências da petição, capazes de comprometerem o êxito da acção, especialmente sabendo que de igual faculdade não gozava o julgador perante as irregularidades ou deficiências de que, em seu entender, padecesse a contestação, pareceria, à primeira vista, pelo menos, envolver uma abertura unilateral de uma porta destinada a salvar o autor de um fracasso inevitável da sua pretensão" - in RLJ nº 3871 - 131/2), o facto de, no caso da petição deficiente, não ser vinculado ("pode ainda o juiz...") é susceptível de criar um desequilíbrio no processo com "ajuda" a uma das partes que, de outro modo, veria naufragar a sua pretensão.
A atitude do juiz, nesta área não vinculada, pode, de certo modo, representar a antecipação da decisão criando duvidas sobre a sua ulterior absoluta imparcialidade.
Para esse perigo também alertou o Prof. A. Varela (RLJ - nº 3880, 198) ao dizer que "não é, positivamente, alargando a orbita dessa intromissão na área do mérito da causa a todos os articulados e a todas as espécies de irregularidades substantivas deles, no primeiro banho de processo dado ao juiz, que aquele perigo de aparente parcialidade, ou de juízo precipitado do julgador se desvanece ou se some por completo." (cf. ainda, a propósito, o Prof. Lebre de Freitas "Introdução ao Processo Civil. Conceito e princípios gerais à luz do código revisto", 1996, 105, 106, 64 e 65).
Acautelando, em absoluto, a equidistância e imparcialidade do julgador, o convite, não vinculado, a que se refere o nº3 do artigo 508º do CPC, deve destinar-se a corrigir as deficiências puramente processuais do articulado ("insuficiências ou imprecisões na exposição", que têm a ver com a exposição em si mesma, com o mero raciocínio discursivo; ou "concretização da matéria de facto alegada", a prender-se com um elencar de factos equívocos, difusos ou imprecisos) em termos de permitir ao juiz uma rigorosa e unívoca selecção ulterior da matéria relevante para a decisão.
Não pode ser utilizada para a parte suprir aspectos substantivos ou materiais (v.g ónus de alegação e prova de elementos constitutivos do seu direito) tal como - e agora por tal ser causa de ineptidão - para indicar o pedido ou concretizar a "causa petendi".

1.3- "In casu", a Autora não alegou a impossibilidade de obter alimentos dos seus parentes referidos nas alíneas a) a d) do nº 1 do artigo 2009º do Código Civil.
Tratava-se de um elemento constitutivo do seu direito, integrador da causa de pedir.
Sendo, e como acima se disse, o aperfeiçoamento destinado a corrigir deficiências adjectivas, "só deve ter lugar quando se trate de meras imprecisões ou insuficiências, e não quando a omissão se traduza em falta do núcleo essencial da causa de pedir ou de defesa por excepção, a que se reportam os artigos 193º, nº2, alínea a) e 489º do Código de Processo Civil" (Acórdão do STJ de 16 de Outubro de 2003 - 03B3103).
Não há, assim, que censurar a não prolação de despacho corrector.

2- Nulidade.

A omissão do despacho de aperfeiçoamento não acarretaria, ainda que diferentemente se entendesse, qualquer nulidade.
Tratando-se de poder não vinculado, a sua não prolação não se traduz na omissão de um acto imposto por lei pelo que não se está perante situação do nº1 do artigo 201º do CPC.
De qualquer modo, o artigo 203 nº2 da lei processual dispõe que não pode arguir a nulidade a parte que lhe deu causa.
Trata-se da consagração do princípio da auto responsabilidade.
Suportando as partes as consequências da sua menos cuidada actuação processual. (Veja-se, no mesmo sentido, o Acórdão deste STJ de 24/10/2006 - Pº 3576/06).
Ora tendo sido os Autores que, ao omitirem à alegação de parte da causa de pedir, teriam dado causa à necessidade de aperfeiçoamento, mesmo que tal constituísse nulidade nunca a poderiam arguir.
É esta a jurisprudência do STJ (v.g, Acórdãos de 22 de Junho de 2005 - 05 A1781 - e de 16 de Outubro de 2003, acima citado) que não vemos razão para abandonar.
Improcedem assim as conclusões da alegação.

3- Conclusões.

Pode concluir-se que:

a) O nº2 do artigo 266º do CPC traduz um afloramento do princípio geral da cooperação a permitir que o juiz interpele as partes sobre determinados pontos do processo, em termos de clarificar a sua vontade processual.
b) Na fase de pré-saneamento e para que o juiz fique habilitado a expurgar o não essencial e a só condensar o pertinente, deve convidar as partes a suprirem irregularidades dos articulados ou a juntarem documento essencial (nº2 do artigo 508º CPC) - dever vinculado ou obrigação - e pode endereçar convite para suprimento de imprecisões discursivas ou concretização de matéria de facto já alegada (nº3 do artigo 508º) - dever não vinculado ou mera faculdade.
c) O nº2 destina-se ao suprimento de anomalias dos próprios articulados enquanto o nº3 à correcção de deficiências da exposição "quo tale", embora a nova versão tenha de se conter na causa de pedir inicial ou nos limites da defesa.
d) Não pode, por esta via, suprir-se uma ineptidão da petição, mas, apenas, outras irregularidades ou deficiências puramente processuais, que não aspectos substantivos ou materiais.
e) A omissão do núcleo essencial da "causa petendi" não é suprível pela via do despacho de aperfeiçoamento.
f) A omissão de convite - não vinculado (nº3 do artigo 508º CPC) - a aperfeiçoamento não integra nulidade processual. Tanto mais que a parte que dá causa à necessidade de aperfeiçoamento daria, por consequência, causa a eventual nulidade nunca podendo argui-la face ao disposto no nº2 do artigo 203º do CPC, que consagra o princípio da auto-responsabilidade.

Destarte, acordam negar provimento ao recurso.

Custas pela recorrente, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia.

Lisboa, 21 de Novembro de 2006
Sebastião Póvoas
Moreira Alves
Alves Velho