Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
421/14.1TYVNG.P2.S1
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: MARIA OLINDA GARCIA
Descritores: ANULAÇÃO DE DELIBERAÇÃO SOCIAL
CONVALIDAÇÃO
PODERES DO TRIBUNAL
APROVAÇÃO DE CONTAS
IRRECORRIBILIDADE
CUMPRIMENTO
DECISÃO JUDICIAL
LEGITIMIDADE ACTIVA
LEGITIMIDADE ATIVA
QUESTÃO NOVA
ABUSO DO DIREITO
CONHECIMENTO PREJUDICADO
Data do Acordão: 05/14/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO DAS SOCIEDADES – APRECIAÇÃO ANUAL DA SITUAÇÃO DA SOCIEDADE / REGIME ESPECIAL DE INVALIDADE DAS DELIBERAÇÕES.
DIREITO CIVIL – RELAÇÕES JURÍDICAS / EXERCÍCIO E TUTELA DOS DIREITOS / ABUSO DO DIREITO.
Doutrina:
- Ana Maria Rodrigues e Rui Pereira Dias, Anotação ao Art.69º do Código das Sociedades Comerciais Anotado, Vol. I, p. 814 e 815;
- Ana Maria Rodrigues, Prestação de Contas e Regime Especial de Invalidade das Deliberações previsto no art.69º do CSC, Miscelâneas n.6 (2010), p. 148 e ss.;
- Coutinho de Abreu, Anotação ao art.62º do Código das Sociedades Comerciais, Vol. I, p. 707 e ss.;
- Rui Pinto, Notas ao Código do Processo Civil, Vol. I, 2.ª ed., p. 64.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DAS SOCIEDADES COMERCIAIS (CSC): - ARTIGO 69.º, N.º 2.
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 334.º.
Sumário :

I - O cumprimento da decisão judicial que, com base no art. 69.º, n.º 2, do CSC, impõe o prazo de três meses para reforma das contas, constitui dever do órgão legalmente obrigado à apresentação das contas.

II - O ato de correção das contas (delas retirando o elemento considerado irregular) deve ser submetido ao poder de controlo do tribunal, pois este mantém o poder para concluir se a sua anterior determinação foi cumprida ou se não se verificou esse cumprimento, caso em que será decretada a invalidade da deliberação.

Decisão Texto Integral:


I. RELATÓRIO

1. AA, propôs ação de anulação de deliberações sociais, sob a forma de processo comum, contra “BB, S.A.”, pedindo a anulação da deliberação social que aprovou o relatório e contas do exercício de 2013, tomada na reunião da assembleia geral de 28 de março de 2014, que fundamentou na violação do dever de informação, na irregular aprovação do relatório e contas pelo Conselho de Administração e na constituição de uma provisão irregular nas contas da ré.

2. Foi proferida sentença pelo tribunal de 1ª instância que julgou a ação improcedente e absolveu a ré do pedido contra ela formulado pelo autor.

3. Por não se conformar com esta decisão o autor interpôs recurso de apelação, pugnando pela revogação da sentença e substituição por outra que julgasse a ação procedente.

4. O tribunal da Relação do Porto julgou o recurso parcialmente procedente e alterou a sentença recorrida, fixando o prazo de 3 (três) meses para a ré proceder à reforma das contas do exercício de 2013, no respeitante à constituição da provisão irregular identificada, sob pena de anulação das contas.

5. Concluiu-se, nesse acórdão, como se transcreve: “que a provisão constituída pela Ré nas contas apresentadas é irregular, já que, por um lado, o fundamento nelas apresentado não é verdadeiro e, por outro lado, o verdadeiro fundamento não pode levar à constituição de uma provisão.

Como se viu, é anulável a deliberação que aprove contas irregulares, de acordo com o art. 69.º do C.S.C., contudo, o caso em presença está claramente contido na segunda parte da previsão desta norma, já que pode considerar-se um caso de pouca gravidade ou fácil correcção, uma vez que é apenas um pequeno ponto das contas que se encontra viciado, pelo que a anulação das contas só será decretada se as mesmas não foram reformadas no prazo que o juiz fixar.

Nestes termos, fixa-se em 3 (três) meses o prazo para a R. proceder à reforma das contas do exercício de 2013, no que respeita à constituição da provisão irregular identificada, sob pena de anulação das contas, alterando-se a sentença recorrida em conformidade.”

6. Não se conformando com essa decisão, a ré interpôs recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, o qual negou a revista e confirmou o acórdão recorrido.

7. Entretanto (antes da decisão do STJ), prevenindo a hipótese de o recurso de revista não obstar à imediata eficácia da decisão proferida pelo Tribunal da Relação, a ré dirigiu requerimento ao tribunal de 1ª instância, informando ter dado cumprimentos ao ordenado no acórdão proferido ou, se assim não se entendesse, que fosse considerado que a conduta do autor, ao votar contra a reforma das contas de 2013, revelava não existir um interesse atendível do mesmo que justificasse a anulação da deliberação de aprovação daquelas contas.

Fundamentou o requerido nos seguintes termos:

«- Prevenindo a eventualidade de se entender que o recurso de revista interposto não obsta à imediata eficácia da decisão proferida pela Relação, a R., através do seu Conselho de Administração, procedeu, no prazo de 3 meses fixado no acórdão, à reformulação das contas do exercício de 2013, tendo delas retirado a constituição da provisão julgada irregular no acórdão de 7 de Dezembro de 2016.

- A R. junta também cópia dos documentos de prestação de contas reformulados pelo seu Conselho de Administração, como Doc. n.º 3.

- Desta forma, o Conselho de Administração da R. praticou os actos que de sua parte eram necessários para dar cumprimento à determinação constante do acórdão da Relação do Porto — sem prejuízo de este poder ainda vir a ser, como espera, revogado pelo Supremo Tribunal de Justiça.

- Deve acrescentar-se que o Conselho de Administração da R. submeteu as contas assim reformuladas a deliberação da Assembleia Geral da BB, que teve lugar em 13 de Março de 2017.

- Nessa Assembleia Geral, os accionistas da BB, por unanimidade, decidiram não aprovar a reforma das referidas contas.

- Entre os accionistas da BB presentes ou representados na Assembleia Geral esteve o próprio A., que votou contra a reforma proposta pelo Conselho de Administração (cfr. cópia da acta da referida Assembleia Geral, de que se protesta juntar cópia como Doc. n.º 4).

- Pese embora os accionistas da BB, incluindo o A., tenham entendido não aprovar a reforma das contas proposta pelo Conselho de Administração em conformidade com o decidido no acórdão de 7 de Dezembro de 2016, o Conselho de Administração da R., enquanto destinatário da ordem contida nessa decisão, considera ter por esta via dado cumprimento à mesma, pelo que entende que não deverá anular-se a deliberação de aprovação das contas relativas ao exercício de 2013.

- Caso assim não se entenda, afigura-se que o facto de ter sido rejeitada pelo A., em Assembleia Geral, a reforma das contas no sentido de delas se retirar a constituição da provisão impugnada pelo A. nesta acção sempre levará, também, a que não exista fundamento para se anular a deliberação de aprovação das contas da R. de 2013.

- Na verdade, a única irregularidade que a Relação julgou existir nas contas relativas a 2013 foi a constituição da sobredita provisão; ora, não tendo o A. querido aprovar a reforma das contas de modo a que delas se retirasse tal provisão, deve entender-se que não existe um interesse atendível do A. que justifique a anulação da deliberação de aprovação daquelas contas”»

Juntou o relatório do Conselho de Administração relativo a “Reforma das contas do exercício de 2013, conforme decisão do Tribunal da Relação do Porto – 3ª secção (Acórdão proferido em 13 de Dezembro de 2016, no âmbito do processo n.º 421/14.1TYVNG.P1” e Parecer do fiscal único.

8. O autor respondeu a esse requerimento (a fls.538 dos autos), dizendo que os acionistas não aprovaram as contas do exercício de 2013 reformuladas, que o Conselho de Administração lhes submeteu, e que manteve o seu sentido de voto por continuar a entender que as contas padecem dos outros vícios por si apontados. Concluiu que só aparentemente a ré cumpriu o estabelecido pelo tribunal, uma vez que não aprovou as contas de 2013 devidamente reformadas, já que é a Assembleia Geral o órgão competente para deliberar sobre as contas do exercício, e, assim, defendeu o prosseguimento dos autos para que fosse decretada a anulação das contas.

9. A ré juntou a ata da sua Assembleia Geral de 20.04.2017, da qual consta como ponto único da ordem de trabalhos: “Deliberar sobre a reforma das contas do exercício de 2013, conforme decisão do Tribunal da Relação do Porto – 3ª secção (Acórdão proferido em 13 de Dezembro de 2016, no âmbito do Processo n.º 421/14.1TYVNG.P1).” Mais dela resulta que “todos os accionistas votaram contra a proposta da reforma”.

Daquela ata consta que: o autor levantou dúvidas sobre o que estava efetivamente a votar, afirmando que pretendia mudar o sentido de voto e que votava a favor da reforma das contas em cumprimento da decisão judicial, após o que voltou a suscitar as mesmas dúvidas, tendo sido referido pela Secretária da mesa “que estava a votar-se uma proposta concreta de reforma de contas, conforme determinação do Tribunal da Relação do Porto, e não se a assembleia aceitaria em abstrato a reforma. O Presidente da mesa sufragou este esclarecimento, após o que instou o autor sobre o seu sentido de voto, ao que este referiu votar contra a proposta apresentada.

10. Por requerimento de fls.569 dos autos, o autor veio informar o tribunal que o STJ havia confirmado o acórdão do TRP, de 07.12.2016 (que tinha estabelecido um prazo de 3 meses para a reformulação das contas), e, consequentemente, voltou a requerer o prosseguimento dos autos para que fosse decretada a anulação das contas.

11. Em apreciação dos requerimentos do autor e da ré, o Tribunal da 1ª instância, a fls.584 dos autos, proferiu a seguinte decisão “resulta da posição das partes e dos requerimentos apresentados que a ré, ainda antes da prolação do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, reformulou as contas do exercício de 2013, retirando das mesmas a constituição da provisão no valor de 100.000,00 euros, criada pelo Conselho de Administração da ré e aprovada na assembleia geral de 28 de Março de 2014, considerada irregular pelo Tribunal da Relação do Porto. Assim sendo, estando cumprido o ordenado, nada mais há, a nosso ver, a apreciar, estando esgotado o poder jurisdicional (art. 613º, n.º 1, do CPC), indeferindo-se, por isso, tudo o demais requerido.”

12. Não se conformando com aquela decisão, o autor interpôs recurso de apelação pedindo a revogação da decisão recorrida e a sua substituição por outra que declarasse a anulação da deliberação social de aprovação das contas de 2013, tomada na reunião da Assembleia Geral de 28.03.2014, por não terem as contas sido reformuladas pela ré nos termos ordenados pelo Tribunal.

13. A ré contra-alegou defendendo a manutenção da decisão da primeira instância.

14. O Tribunal da Relação do Porto decidiu julgar o recurso interposto pelo autor totalmente procedente, anulando a deliberação da ré, de 20 de março de 2014, que aprovou o relatório e contas do exercício de 2013. Lê-se neste acórdão:

«impõe-se a revogação do despacho recorrido que se substitui por decisão que anula a deliberação da R. de 20/03/2014 que aprovou o relatório e contas do exercício de 2013, por irregularidade das contas aí apresentadas, que não foram reformadas no prazo fixado pelo tribunal, nos termos do art.º 69.º n.º 2 do C.S.C

15. Não se conformando com a decisão do Tribunal da Relação do Porto, a ré/recorrente interpôs o presente recurso de revista, em cujas alegações formulou as seguintes conclusões
«1.ª O Conselho de Administração da Ré procedeu, no prazo de 3 meses fixado no acórdão da Relação, à reformulação das contas do exercício de 2013, tendo delas retirado a constituição da provisão julgada irregular no acórdão de 7 de Dezembro de 2016.
2.ª Desta forma, o Conselho de Administração da BB, enquanto destinatário da ordem contida no acórdão da Relação do Porto, deu cumprimento à mesma, pelo que não há fundamento para que se anule a deliberação de aprovação das contas relativas ao exercício de 2013.
3.ª Por essa razão, a Ré sustentou e sustenta que deve ser mantida a decisão da Primeira Instância que considerou ter sido cumprido o ordenado pela Relação.
4.ª  Ainda que se entenda que o facto de as contas expurgadas da provisão não terem sido aprovadas pela Assembleia Geral da Ré impede que se considere cumprida a ordem da Relação, deve decidir-se, face ao voto expresso pelo Autor na Assembleia Geral de 13 de Março de 2017, que este não tem legitimidade nem interesse atendível em peticionar a anulação da deliberação de aprovação das contas de 2013 ou, pelo menos, que o recurso por ele interposto do despacho da Primeira Instância o faz cair em abuso do direito.
5.ª Quando, depois de reformuladas as contas de modo a delas se retirar a provisão, estas foram novamente submetidas à Assembleia Geral da BB, o Autor votou contra a sua aprovação — votando, aliás, no sentido que fez vencimento.
6.ª Ora, tendo o Autor votado com os demais accionistas da BB no sentido de rejeitar retirar das contas de 2013 a constituição da provisão, deve entender-se que o Autor não tem legitimidade, por não ter nisso um interesse atendível, para insistir na anulação da deliberação que aprovou contas cujo único vício reconhecido pelo Tribunal é esse mesmo, da constituição da provisão.
7.ª Sendo inequívoco que o único sentido útil desta acção, depois do decidido pela Relação do Porto, é o de se eliminar da ordem jurídica uma deliberação que aprovou umas contas que contêm como único vício uma provisão julgada irregular, não pode ter um interesse atendível em prosseguir esse objectivo aquele que votou contra a aprovação de tais contas expurgadas desse mesmo vício.
8.ª Ainda que não se entenda que o Autor deixou de ter legitimidade e interesse para prosseguir com a impugnação, certo é que a sua conduta o faz cair em contradição inadmissível com o voto emitido na Assembleia Geral de 13 de Março de 2017 e, portanto, em venire contra factum proprium.
9.ª Se, quando foi chamado a pronunciar-se, como accionista, sobre a reformulação das contas feita em respeito pela decisão da Relação, o Autor a rejeitou, não pode depois, sem contravenção dos comandos do princípio da boa fé, vir, na pele de Autor nesta acção, pugnar pela anulação da deliberação com fundamento no facto de alegadamente a sociedade não ter acatado essa mesma decisão da Relação!


10.ª Ao decretar a anulação da deliberação da Assembleia Geral da Ré, o acórdão recorrido violou, por errada interpretação e aplicação, as normas:
    - do art. 69.º, n.º 2, do Código das Sociedades Comerciais, que devia ter sido aplicada com o sentido de ter sido dado cumprimento ao determinado pela Relação;
   - do art. 30.º, n.ºs 1 e 2, do C. P. C., que deveriam ter sido aplicadas com o sentido de o Autor ter deixado de ter interesse atendível que justificasse a sua legitimidade para prosseguir com o pedido de anulação da deliberação da Ré;
  - do art. 334.º do Código Civil, que deveria ter sido aplicado com o sentido de que o Autor, ao pedir que se anule a deliberação da Ré por alegadamente esta não ter acatado a ordem de reforma das contas por via da eliminação da provisão nelas constituída, incorre em contradição inadmissível com o seu comportamento anterior de rejeição da aprovação das contas assim reformadas.
     Termos em que deverá julgar-se procedente o recurso e, consequentemente, revogar-se a decisão recorrida e não se anular a deliberação da Assembleia Geral da Ré de 20 de Março de 2014, que aprovou o relatório e contas do exercício de 2013

16. O autor/recorrido apresentou contra-alegações, nas quais sustentou, em síntese, a manutenção do acórdão recorrido, confirmando-se a anulação da deliberação social de aprovação das contas do ano de 2013, tomada na reunião da assembleia geral de 20 de março de 2014.

II. ANÁLISE DO RECURSO E FUNDAMENTOS DECISÓRIOS

1. O objeto do recurso:

Sendo o objeto do recurso delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente, são as seguintes as questões que daí emergem:
1.1. Saber se o acórdão recorrido, ao decretar a anulação da deliberação da Assembleia Geral da Ré (considerando que não havia sido dado cumprimento ao anteriormente determinado pelo TRP) fez errada aplicação do art.69º, n. 2, do Código das Sociedades Comerciais;

 1.2. Saber se a decisão recorrida fez errada aplicação do art.30º, n.1 e n.2 do CPC, por não ter entendido que o autor tinha perdido a legitimidade para prosseguir com o pedido de anulação da deliberação da Ré, (por ter deixado de ter interesse atendível).

1.3. Saber se o acórdão recorrido fez errada aplicação do art.334º do CC, por não declarar o abuso de direito do autor.

2. Factualidade relevante para a fundamentação:

Os factos provados com interesse para a decisão das questões que integram o objeto do presente recurso são os que constam do relatório supra apresentado.

3. O direito aplicável:

3.1. A primeira questão suscitada pela recorrente é a de saber se o acórdão recorrido, ao decretar a anulação da deliberação da Assembleia Geral da ré (considerando que não havia sido dado cumprimento ao anteriormente determinado pelo TRP) fez errada aplicação do art.69º, n. 2, do Código das Sociedades Comerciais.   

O acórdão recorrido sumariou a fundamentação da decisão desta questão nos seguintes termos:

«- Estando em causa a invalidade de uma deliberação da sociedade pelo facto de ter aprovado contas irregulares, o suprimento do vício apontado pelo tribunal mediante o mecanismo previsto no art. 69.º n. 2 do C.S.C., só se concretiza com uma nova deliberação da R. que aprove as contas relativas ao mesmo exercício, desta vez devidamente corrigidas.

- Não é dado cumprimento ao disposto na norma em questão quando a Assembleia Geral da sociedade delibera não aprovar a reforma das contas, não obstante o Conselho Geral tenha providenciado pela elaboração das contas corrigidas.

- Admiti-lo seria subverter a razão de ser da norma, já que continuaria a subsistir uma deliberação anterior inválida a aprovar contas irregulares».

O problema central em análise é, assim, o de saber se houve ou não reforma das contas, no prazo fixado pelo acórdão do TRP, de 07.05.2016 (confirmado pelo STJ), nos termos do art.69º, n.2 do CSC e, consequentemente, se subsistia ou não fundamento para anular a deliberação da ré de 20.03.2014, que tinha aprovado o relatório e contas do exercício de 2013.

Na perspetiva da ré/recorrente, a determinação contida no acórdão do TRP de 07.05.2016 teria sido cumprida pelo Conselho de Administração da Ré, dado que este procedeu atempadamente à reformulação das contas do exercício de 2013, delas retirando a constituição da provisão julgada irregular pelo referido acórdão. A recorrente entende, assim, que aquela determinação judicial se dirigia ao Conselho de Administração da ré, e que a irregularidade se encontrava automaticamente sanada, deixando de existir fundamento para anular a deliberação de aprovação das contas respeitantes ao exercício de 2013.

O acórdão em revista entendeu que tal comportamento do Conselho de Administração da ré não era suficiente para se considerar cumprida a decisão judicial que determinou a reformulação das contas, porquanto aquela alteração teria de ser submetida à Assembleia Geral, dado ser esta o órgão com competência para aprovar contas.

Vejamos se foi feita a correta aplicação do direito e especificamente do art.69º, n.2 do CSC.

3.1.1. Para além do regime geral sobre deliberações nulas, previsto no art.56º do CSC, e do regime geral sobre deliberações anuláveis, previsto no art.58º, consagra-se no art.69º um regime especial de invalidade das deliberações sobre prestação de contas[1].

O art.69º, n.2 do CSC consagra um particular regime de invalidade de deliberações que aprovem contas “em si mesmo irregulares”, que constituam “casos de pouca gravidade ou fácil correção”.

Não está agora em causa analisar o conceito de contas irregulares (cuja delimitação não é tarefa fácil), nem tão-pouco cuidar de saber o que são irregularidades de pouca gravidade ou fácil correção[2], porque, no caso concreto, o relevo normativo destas questões se encontra definitivamente encerrado, dada a existência de decisão transitada em julgado que, nos presentes autos, aplicou o art.69º, n.2 do CSC.

Importa apenas apurar se as contas que assim foram consideradas (pelo ac. do TRP de 07.12.2016, confirmado pelo STJ) se encontram ou não expurgadas da parte que as tornava irregulares.

Tendo-se entendido que a irregularidade era de pouca gravidade e de fácil correção, decidiu-se, naquele acórdão, conceder o prazo de 3 meses para que as contas fossem corrigidas no respeitante à constituição da provisão (de €100.000,00) considerada irregular, sob pena de anulação da deliberação. O referido acórdão identificou o potencial fundamento de invalidade da deliberação e apontou o caminho da sua correção.

Tendo a ré (através do seu Conselho de Administração) procedido à reforma das contas, delas retirando a provisão que o tribunal tinha considerado irregular, importa saber se desapareceu ipso factum o fundamento de anulabilidade que o tribunal tinha identificado. Ao eliminar a parte viciada, a ré procedeu a uma operação, de certo modo, equiparável a uma “convalidação” de um ato anulável, passando, a partir daí a existir uma deliberação expurgada de um ponto que havia sido judicialmente considerado irregular.

Todavia, importa ainda saber se essa correção teria de ser submetida a uma nova assembleia geral, como fez a ré, ou se tal não seria necessário, e qual a importância do que se aí se deliberou para a solução do problema em análise. 

3.1.2. O facto de o Conselho de Administração ter submetido as contas reformuladas a deliberação da Assembleia Geral, em 13.03.2017, constitui um elemento que parece introduzir alguma confusão no percurso destinado à regularização das contas de 2013, dado que essa assembleia era desnecessária para efeitos do cumprimento do que judicialmente havia sido decidido.

O cumprimento da decisão judicial constituía dever do órgão legalmente obrigado à apresentação das contas, ou seja, o Conselho de Administração. O ato de correção das contas (delas retirando o elemento considerado irregular) inscreve-se ainda no âmbito do mecanismo judicial de controlo dessa regularidade e deve dirigir-se, em primeiro lugar, ao tribunal, pois é este que mantém o poder para concluir se a sua anterior determinação foi cumprida ou se não se verificou esse cumprimento, caso em que será decretada a invalidade da deliberação posta em causa.  

Ao pronunciar-se sobre o requerimento no qual a sociedade ré informa que deu cumprimento ao que havia sido judicialmente ordenado, o tribunal não deverá, agora, ter em conta outros possíveis fundamentos de invalidade da deliberação, que não integraram a base da ordem de correção judicial. O que o tribunal tem de apurar é se a correção apresentada permite ou não concluir que a irregularidade anteriormente identificada foi removida. Este segundo momento do exercício do poder judicial de controlar a regularidade da deliberação tem, assim, um objeto especificamente delimitado. 

Tendo sido retirada das contas a provisão cuja constituição tinha sido judicialmente declara irregular, deve concluir-se – como concluiu o tribunal de primeira instância – que deixou de existir o potencial fundamento de anulabilidade da deliberação que aprovou as contas de 2013.

 Deverá, assim, entender-se que o acórdão em revista não fez a correta aplicação do art.69º, n.2 do CSC quando anulou a deliberação que tinha aprovado as contas de 2013, depois da correção daquela irregularidade, baseando-se em argumentos respeitantes ao procedimento deliberativo da assembleia geral de 2017, invocando quer as dúvidas suscitadas pelo autor nesse ato, quer o próprio resultado desta deliberação.

3.1.4. Por outro lado, a assembleia geral de 20.04.2017 não se destinou a renovar uma deliberação inválida, ou seja, a substituir uma deliberação por outra não viciada, comportável na hipótese prevista pelo art.62º, n.2 do CSC[3]. Mas tão-só a aprovar a correção das contas que havia sido decidida com base no art.69º, n.2[4], pois essa assembleia geral teve como ponto único da ordem de trabalhos: “Deliberar sobre a reforma das contas do exercício de 2013, conforme decisão do Tribunal da Relação do Porto – 3ª secção (Acórdão proferido em 13 de Dezembro de 2016, no âmbito do Processo n.º 421/14.1TYVNG.P1).”

Ainda que teoricamente se pudesse ver na assembleia geral de 2017 uma hipótese de renovação da deliberação, comportável na previsão do art.62º, n.2 do CSC, o facto de tal deliberação não ter sido aprovada não faria cessar o potencial fundamento de anulabilidade judicialmente apontado e, consequentemente, dispensar a intervenção do tribunal destinada a concluir se existiu ou não remoção da irregularidade da primeira deliberação.

Apenas na hipótese de essa deliberação ter sido aprovada se poderia colocar a questão de saber que impacto teria na hipótese específica do art.69º, n.2, ou seja, se se manteria ou não a necessidade de o tribunal se pronunciar sobre o cumprimento da determinação judicial de regularização das contas (parecendo, à primeira vista, que deixaria de existir interesse processual)[5].

3.2. A segunda e a terceiras questões trazidas pela recorrente ao presente recurso apresentam, em certa medida, caráter inovador, pois no acórdão recorrido não foi expressamente analisada a questão da falta de legitimidade do autor (embora tivesse sido considerada a questão da falta de interesse), nem, tão-pouco, foi referida a questão do eventual abuso de direito do autor, que a recorrente agora invoca (mas que não integrou o objeto da apelação, nem foi requerida a ampliação do seu âmbito). 

Sobre a alegada falta de interesse do autor na prossecução da ação, entendeu-se o seguinte na decisão recorrida: “não se diga, como alega a Recorrida, que o facto do A. na Assembleia Geral ter votado contra, revela que o mesmo não tem um interesse atendível na anulação da anterior deliberação que aprovou as contas. Tal ilação não tem factos relevantes onde se alicerçar. Desde logo o teor da acta da Assembleia revela a existência de dúvidas para o A. quanto ao que estava a votar.

Além do mais, pode haver outras razões que fundamentem o desacordo do A. com as contas apresentadas, como é patente pela avaliação dos argumentos por si invocados como fundamento do pedido formulado na presente acção.

Resta ainda a circunstância da deliberação de aprovação das contas nem sequer ter ficado dependente do seu voto favorável, uma vez que foi unânime a não aprovação da reforma das contas do exercício de 2013 devidamente corrigidas. Mesmo que o A. tivesse votado favoravelmente, as contas reformadas não tinham sido aprovadas em Assembleia»

3.3. Quanto à questão da legitimidade processual do autor para requerer o prosseguimento dos autos, a fim de se conhecer da anulação das contas (requerimentos de fls. 538 e 569), embora no acórdão recorrido não tivesse sido analisada expressamente a questão da perda da legitimidade processual à luz do art.30º do CPC (que não foi explicitada nas contra-alegações da apelação), foi, todavia, conhecida a questão da perda de interesse do autor no prosseguimento dos autos para se conhecer da anulação das contas. Assim, admitindo, que a questão do interesse em agir pode estar, pelo menos teoricamente, subjacente à questão da legitimidade processual, passaremos a conhecer da questão.

A legitimidade processual do autor, assente no interesse direto em demandar, emergente da utilidade derivada da procedência da ação, é um pressuposto processual que o autor deve cumprir no momento da apresentação da petição inicial. Por outro lado, trata-se de um requisito que permite dar expressão ao princípio da igualdade das partes, e que cumpre a função de “assegurar que são partes processuais os sujeitos a que se destinam os efeitos materiais da sentença[6]

Ora, se no momento em que a ação foi proposta o autor tinha legitimidade processual, tendo interesse direto em demandar, porque (em termos teóricos) a procedência ou improcedência da ação afetará os seus interesses, e não tendo deixado de ser sujeito da relação material controvertida, tal como configurada na petição inicial, o autor não perde a sua legitimidade processual por, no decurso da ação, ter eventualmente alterado o sentido do seu voto na assembleia geral da ré, independentemente do maior ou menor interesse que o resultado da ação passe a ter para o autor. Acresce que a legitimidade processual não coincide, necessariamente, com a presença do interesse em agir, como é demonstrado pelas soluções que se encontram plasmadas nos artigos 533º, n.4 e 535, n.2, c) e d) do CPC.

Acresce que o sentido de voto do autor (na assembleia geral de 2017) não põe em causa a legitimidade processual que lhe é reconhecida pelo art.59º, n.1 do Código das Sociedades Comerciais, pois do sentido do seu voto não resultou (nem expressa nem tacitamente) a aprovação da deliberação inicialmente impugnada.

3.4. Suscitou ainda a recorrente a questão de saber se o acórdão recorrido fez errada aplicação do art.334º do CC, por não declarar o abuso de direito do autor, dado que este, ao pedir a prossecução dos autos tendo em vista a anulação da deliberação da Ré, por não ter acatado a ordem de reforma das contas, incorreria em contradição com o seu comportamento anterior de rejeição da aprovação das contas reformadas.

           Ora, como supra referido, a questão do abuso de direito do autor é agora suscitada nas alegações de revista da recorrente como uma questão nova, pois não se trata de questão que tivesse sido apreciada pelo acórdão recorrido. A simples alegação da falta de interesse do autor em prosseguir a ação de anulação da deliberação não é suficiente para se ver aí a construção da figura do abuso de direito.

           Acresce que a segunda e terceira questão, suscitadas pela recorrente, mesmo que pudessem ter alguma oportunidade processual, perderiam o seu relevo argumentativo face ao entendimento que já se deixou explanado no primeiro ponto do objeto, o qual conduz à procedência do recurso.

Conclui-se, assim, que o acórdão recorrido não fez a correta aplicação do direito pertinente, e especificamente do art.69º, n.2 do Código das Sociedades Comerciais.

III. DECISÃO: Pelo exposto, acorda-se em conceder a revista, revogando-se o acórdão recorrido, ficando a prevalecer a decisão da primeira instância.

Custas pelo recorrido.

Lisboa, 14 de maio de 2019,

Maria Olinda Garcia (Relatora)

Raimundo Queirós

Ricardo Costa

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[1] Sobre tais diferenças de regime, veja-se Ana Maria Rodrigues, “Prestação de Contas e Regime Especial de Invalidade das Deliberações previsto no art.69º do CSC”, in Miscelâneas n.6 (2010), pág. 148 e seguintes.
[2] Sobre a dificuldade de delimitação destes conceitos legais, vd. Ana Maria Rodrigues e Rui Pereira Dias, in Anotação ao Art.69º do Código das Sociedades Comerciais Anotado, Vol. I, [pág.814].
[3] Sobre o âmbito desta hipótese, vd., por exemplo, Coutinho de Abreu, Anotação ao art.62º do Código das Sociedades Comerciais, Vol. I, pág.707 e seguintes.
[4] Sobre a diferença entre as hipóteses previstas no art.69º, n.2 e no art.62º, n.2, afirmam Ana Maria Rodrigues e Rui Pereira Dias: “Dado que a anulabilidade também pode cessar quando os sócios renovem a deliberação anulável mediante outra deliberação (art.62º, 2), perguntar-se-ia se, afinal, os casos do n.1 e do n.2 [do art.69º] não estariam em pé de igualdade em termos do seu regime jurídico. Subsiste, porém, a seguinte diferença: ao passo que a renovação depende do impulso dos sócios, que deliberam de novo (para o que podem ou não requerer um prazo ao tribunal: art.62º, 3), a reforma das contas no prazo judicialmente fixado depende do impulso do juiz, que só decretará a anulação se a sua ordem de reforma não for devida e oportunamente cumprida”; in Anotação ao art.69º do CSC, Vol.I, pág. 815.
[5] De qualquer modo, subsistiria ainda a questão de saber se apenas as deliberações anuláveis por vício de procedimento poderiam ser renovadas, como aponta Coutinho de Abreu, in Anotação ao art.62º do CSC, Vol. I, pág. 709.
[6] Rui Pinto, Notas ao Código do Processo Civil, Vol. I (2ª ed), pág.64.