Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
3074/16.9T8STR.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: ROSA TCHING
Descritores: CONTRATO DE ARRENDAMENTO
RESOLUÇÃO
DIREITO DE PROPRIEDADE
PRINCÍPIO DA PRECLUSÃO
CASO JULGADO
ABSOLVIÇÃO DA INSTÂNCIA
CONTESTAÇÃO
RECONVENÇÃO
EXTENSÃO DO CASO JULGADO
DESOCUPAÇÃO
Data do Acordão: 11/30/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – PROCESSO EM GERAL / INSTÂNCIA / COMEÇO E DESENVOLVIMENTO DA INSTÂNCIA – PROCESSO DE DECLARAÇÃO / ARTICULADOS / CONTESTAÇÃO / EXECUÇÕES / SENTENÇA / VÍCIOS E REFORMA DA SENTENÇA / EFEITOS DA SENTENÇA / RECURSOS.
DIREITO CIVIL – DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / OBRIGAÇÕES EM GERAL / CUMPRIMENTO E NÃO CUMPRIMENTO DAS OBRIGAÇÕES / CUMPRIMENTO / IMPUTAÇÃO DO CUMPRIMENTO / CONTRATOS EM ESPECIAL / LOCAÇÃO / ARRENDAMENTO DE PRÉDIOS URBANOS / DISPOSIÇÕES ESPECIAIS DO ARRENDAMENTO PARA HABITAÇÃO / ÂMBITO DO CONTRATO.
Doutrina:
Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil”, Volume I, 56;
-Alberto dos Reis, Comentário ao Código de Processo Civil, Volume III, 97;
-Anselmo de Castro, Direito Processual Civil Declaratório, Volume III, 15, 16, 221 e 222;
-Castro Mendes, Direito Processual Civil, Volume II, 295 ; Manual de Processo Civil, 458;
-Lebre de Freitas e Robeiro Mendes, Código de Processo Civil, Anotado, Volume III, 649;
-Lebre de Fretas, Código de Processo Civil, Anotado, Volume II, 316 a 326;
-Lopes Cardoso, Código de Processo Civil, Anotado, anotação ao artigo 274.º;
-Lopes do Rego, Comentário ao Código de Processo Civil, Volume I, 2.ª Edição, 418, nota III;
-Luís Miguel de Andrade Mesquita, Reconvenção e Excepção no Processo Civil, O dilema da escolha entre a reconvenção e a excepção e o problema da falta de exercício do direito de reconvir, Almedina, 439, 440, 441e 450;
-Manuel de Andrade, in RLJ, Ano 70º, 232 e ss. ; Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 324;
-Maria José Capelo, A sentença entre a autoridade e a prova, 96 e ss.;
-Miguel Teixeira de Sousa, O Objecto da Sentença e Caso Julgado Material, in BMJ, n.º 325, 171 a 179 ; O estudo sobre a funcionalidade processual), 115, 151, 157, 204 e 205 ; Estudos Sobre o Novo Processo Civil, 574 e 575 ; blog do IPPC - Pape 199 - de 03.05.2016, https://blogippc.blgspot.pt/;
-Rodrigues Bastos, Notas ao Código de Processo Civil, Volume II, 31.
Legislação Nacional:
NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (NCPC): - ARTIGOS 266.º, N.º 1, 573.º, 576.º, N.º 2, 577.º, ALÍNEA I), 580.º, 581.º, 619.º, N.º1 E 621.º, N.º 1, 635.º, N.ºS 3, 4 E 5 E 639.º, 1.
ANTIGO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (ACPC): - ARTIGOS 494.º, ALÍNEA I) E 496.º, ALÍNEA A).
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 784.º E 1093.º, N.º 1, ALÍNEA A).
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 21-10-1993, IN CJ, STJ, ANO I, TOMO III, 84;
- DE 12-01-1995, IN CJ, STJ, ANO III, TOMO I, 19;
- DE 10-10-2010, PROCESSO N.º 1999/11.7TBGMR.G1.S1;
- DE 10-10-2012;
- DE 23-01-2014, PROCESSO N.º 3076/03.5TVPRT.P1.S1;
- DE 29-05-2014, PROCESSO N.º 1722/12.9TBBCL.G1.S1;
- DE 21-10-2014, PROCESSO N.º 4772/05.8TBSTS.S1;
- DE 25-11-2014, PROCESSO N.º 5443/12.4TBBRG.G1.S1;
- DE 24-03-2015, PROCESSO N.º 966/07.0TBTNV.C1.S1.
Sumário :
I. Tendo as autoras peticionado a resolução do contrato de arrendamento relativo a duas fracções de que alegaram ser proprietárias bem como a condenação dos réus no pagamento das rendas vencidas e vincendas e na desocupação e entrega imediata daquelas fracções, arrogando-se estes igualmente proprietários das ditas fracções com base em factualidade já deles conhecida no momento da contestação, sobre os mesmos impendia o ónus  de deduzir  reconvenção para afastar o risco da futura preclusão, por força do caso julgado que viesse a constituir-se sobre a decisão favorável àquelas.

 

II. Não o tendo feito, a autoridade do caso julgado inerente à decisão que resolveu o contrato de arrendamento relativo a duas fracções autónomas e condenou os réus a desocupá-las e entregá-las às autoras no pressuposto de serem estas as respetivas proprietárias, faz precludir o direito destes de, através de nova acção, peticionarem o reconhecimento do seu alegado direito de propriedade sobre tais fracções com base naquela mesma fatualidade.

III. Ocorrendo identidade de sujeitos, de pedido e de causa de pedir, é de admitir a eficácia extraprocessual do caso julgado formal se o fundamento que ditou a decisão de absolvição da instância vier a repetir-se no novo processo, sendo lícito opor neste segundo processo a exceção dilatória de caso julgado.   

Decisão Texto Integral:
Acordam na 2.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça




I – Relatório


AA e marido, BB instauraram a presente ação declarativa comum contra Heranças Indivisas de CC e DD, representadas pelas únicas e universais herdeiras, EE e FF, pedindo que seja:


a) reconhecido e declarado o direito de propriedade dos autores sobre duas lojas amplas de rés-do-chão destinadas a comércio, designadas pelas letras “A” e “C”, ambas no prédio urbano sito na Rua …, em …, freguesia de Fátima, concelho de Ourém, inscrito na respectiva matriz sob o art.2…6 e descrito na Conservatória do Registo Predial de Ourém sob o número 81.


b) decretado o cancelamento da inscrição predial a favor das rés resultante da Ap. 3 de 2008/04/29.


Alegaram, para tanto e em síntese, que em 1980 e1981, o CC vendeu ao autor marido as ditas frações autónomas, onde a autora mulher, desde 1981, passou a exercer a sua actividade de comércio de calçado, pronto-a-vestir, malas de viagem e carteiras de senhora.

Desde então, os autores ocupam as referidas fracções, de forma continuada e ininterrupta, na convicção de serem os seus legítimos donos, à vista de toda a gente e sem a oposição de quem quer que seja, pelo menos, até outubro de 2010.

Não obstante, através de documento escrito, datado de 15 de março de 1982, o CC ter declarado dar de arrendamento à autora mulher cada uma das fracções “A” e “C”, tal documento foi feito com o objectivo de evitar o pagamento de uma coima e liquidação adicional de imposto de sisa, no montante e 736.972$00, referente  ao valor da sisa devida pela aquisição da fracção “A”.

Mais alegaram que, na ação de despejo, a invocação do direito de propriedade tem natureza reconvencional e que, sendo facultativa a dedução de reconvenção, não só não lhes é oponível o argumento da preclusão da defesa como nada os impede de proporem a presente ação.   


2. Contestaram as rés, sustentando que os factos alegados pelos autores já foram apreciados e decididos nos embargos de execução nº 1293/10.0TBVNO-C, pelo que o tribunal não pode voltar a discutir nesta ação os mesmos factos sob pena de violação da autoridade do caso julgado formado na sentença proferida na ação declarativa nº 1293/10.0TBVNO.

Mais argumentaram existir identidade, quanto aos sujeitos, objecto e pedido, entre a presente ação e a ação nº 1621/11.1TBVNO, onde foi decidida a absolvição das rés da instância por verificação da exceção de caso julgado.

Concluíram pugnando pela extinção da instância por força da exceção da autoridade de caso julgado e pela condenação dos autores em multa e indemnização por litigância de má fé ou, em alternativa, pela condenação dos mesmos na taxa sancionatória prevista no art. 531º do CPC.


3. Notificados os autores para, no prazo de 10 dias, exercerem o contraditório relativamente à invocada exceção da autoridade de caso julgado e litigância de má fé, sustentaram os autores a improcedência desta exceção e do pedido de condenação por litigância de má fé.


4. Proferido despacho saneador, nele considerou-se precludido o direito dos autores proporem a presente acção e procedente a exceção de caso julgado, absolvendo-se os réus da instância. Mais se decidiu pela improcedência do pedido de condenação dos autores como litigantes de má fé.

8. Inconformados com esta decisão, vieram os autores interpor recurso de revista per saltum para o Supremo Tribunal de Justiça, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões, que se transcrevem:

« 1. Aludindo à figura da preclusão, o Tribunal entende que a revelia dos aqui Autores na acção declarativa nº 1293/10.0TBVNO  [melhor identificada em a) de 2 da petição inicial] os impede de agora invocarem o direito de propriedade sobre as fracções identificadas em 1 da petição inicial.

2. Em processo civil, o princípio da preclusão está associado ao princípio da concentração da defesa na contestação, nos termos do qual o réu deve verter na contestação todos os argumentos defensionais de que disponha.

3. À luz dos princípios da concentração e da preclusão, fica prejudicada a hipótese de invocação posterior de matéria impeditiva (e modificativa ou extintiva) do direito feito valer na acção.

4. O Tribunal laborou em erro ao reconduzir a invocação do direito de propriedade sobre uma coisa à defesa por excepção peremptória impeditiva (“factos impeditivos”, conforme ficou exarado).

5. Na verdade, se o demandado pretender invocar o direito de propriedade sobre uma coisa, tal invocação tem óbvia natureza reconvencional, na medida em que está fazendo valer uma pretensão própria e autónoma, o que é típico da reconvenção.

6. Porque assim, visto que os princípios da concentração e da preclusão só operam relativamente à matéria defensional, não faz sentido falar em preclusão quanto à (não) invocação do direito de propriedade pelo réu.

7. Dito de outro modo, nada obsta a que, em momento posterior e em acção própria, aquele que foi demandado venha a invocar factos constitutivos do (seu) direito de propriedade, tanto mais que, nos termos da lei, a reconvenção tem natureza facultativa.

8. Embora tendo ambas por base o trânsito em julgado de uma decisão, a excepção de caso julgado e a autoridade do caso julgado são figuras distintas.

9. A excepção de caso julgado orienta-se pelo objectivo de impedir a repetição de causas, tomadas estas segundo o critério da tríplice identidade, isto é, identidade de sujeitos, do pedido e da causa de pedir – por isso se fala em efeito negativo, já que o caso julgado impede nova apreciação do mérito.

10. A autoridade do caso julgado conduz à necessidade de respeitar uma decisão anteriormente proferida, dispensando-se a dita tríplice identidade – assim se fala em efeito positivo, já que a primeira decisão se impõe como pressuposto incontornável da segunda decisão de mérito.

11. Quando se invoca a excepção de caso julgado, do que se trata é de afirmar que o Tribunal se deve recusar a proferir decisão sobre o mérito da causa, isto é, sobre o fundo da questão.

12. Tudo isso porque se verifica uma repetição de causas, tomada esta repetição à luz da incontornável tríplice identidade – em ambas as acções, serão os mesmos os sujeitos, o pedido e a causa de pedir.

13. E quando se invoca a autoridade do caso julgado, do que se trata é de sinalizar a necessidade de, na segunda acção, o Tribunal respeitar uma decisão anteriormente proferida.

14. O reconhecimento da excepção de caso julgado, dado que esta se trata de uma excepção dilatória, determina, nos termos legais, um juízo de absolvição da instância.

15. Por sua vez, o reconhecimento da autoridade do caso implica que, na decisão de mérito a proferir em certa causa, se respeite o anteriormente decidido noutra causa.

16. Conforme resulta da lei, a absolvição da instância não obsta a que seja proposta nova acção quanto ao mesmo objecto.

17. O mesmo é dizer que uma decisão desta natureza, porque não decide do mérito da causa, não é susceptível de gerar caso julgado.

18. A decisão de absolvição da instância proferida nestes autos conduz a uma situação absurda, pois isso pressuporia a anterior prolação de uma decisão sobre o mérito da causa.

19. No caso vertente, a decisão anterior a que o Tribunal se refere decretou somente a absolvição da instância, não tendo, por conseguinte, apreciado o mérito da respectiva causa, razão pela qual também não é passível de gerar caso julgado.

20. Consequentemente, nada obsta à instauração da presente acção, na qual deverá ser proferida uma decisão que aprecie materialmente o direito de propriedade que os aqui Autores invocam, e invocam a título originário, relativamente às fracções identificadas em 1 da petição inicial.

21. E isto é tanto mais assim quanto não é possível dizer que, na acção referida em a) de 2 da petição inicial, na qual os aqui Autores eram demandados e incorreram em revelia operante, foi decidida a favor das aqui Rés (e então demandantes) a questão do direito de propriedade sobre as ditas fracções.

22. Aliás, naquela acção, que visava a resolução de um pretenso contrato de arrendamento, as aqui Rés (aí demandantes) não se arrogaram proprietárias nem formularam qualquer pretensão de reconhecimento de um direito de propriedade sobre as fracções alegadamente locadas.

23. Acresce que, naquela acção, que foi julgada procedente em regime de revelia operante, a sentença não se pronunciou sobre a questão da propriedade das ditas fracções – nem podia fazê-lo, sob pena de nulidade, por força do chamado princípio do pedido, que limita o julgamento ao peticionado.

24. Não pode olvidar-se que a mera invocação da segurança jurídica é susceptível de encobrir situações de manifesto abuso, as quais não podem merecer tutela jurisdicional.

25. No presente caso, o simples apelo à sentença proferida na acção referida em a) de 2 da petição inicial, com a tese de que tudo ficou resolvido ali, equivale a caucionar uma conduta absolutamente abusiva e censurável das aqui Rés.

26. Mostra-se violado o disposto nos arts. 278º, nº1, al. e), 279º, nº 1, 577º, al. i), 580º, 581º e 619º do Código de Processo Civil, impondo-se a revogação da decisão recorrida, com o prosseguimento da lide para apreciação do pedido formulado na petição inicial».


                       

11. Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.



***



II. Delimitação do objecto do recurso


Como é sabido, o objeto do recurso determina-se pelas conclusões da alegação do recorrente, nos termos dos artigos 635.º, n.º 3 a 5, 639.º, n.º 1, do C. P. Civil, só se devendo tomar conhecimento das questões que tenham sido suscitadas nas alegações e levadas às conclusões, ainda que outras, eventualmente, tenham sido suscitadas nas alegações propriamente ditas[1] .


Assim, a esta luz, as questões a decidir traduzem-se em saber se:


1ª- a decisão proferida no âmbito da anterior  ação declarativa nº 1293/10.0TBVNO – resolução do contrato de arrendamento  e condenação das rés no pagamento das rendas vencidas e incendas relativas às fracções “A” e “C” -  faz precludir o direito dos autores de, através, da presente ação peticionarem  o reconhecimento  do seu alegado  direito de propriedade sobre estas duas fracções;


2ª- a decisão proferida na acção declarativa nº nº 1621/11.1TBVNO constitui caso julgado  obstativo do conhecimento de mérito da presente ação.



***



III. Fundamentação


3.1. Fundamentação de facto


Com base nos documentos juntos a fls. 34 a 173 dos presentes autos, consideram-se assentes os seguintes factos:


1º- Heranças indivisas de CC e DD, intentaram contra AA e BB ação declarativa de condenação, com processo sumário, que correu termos pelo 1º Juízo do Tribunal Judicial de ..., com o nº 1293/10.0TBVNO, alegando, para tanto e em síntese, que do acervo hereditário que as integra fazem parte as fracções “A” e “C” do prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº 81/19851219, tendo as mesmas sido dadas de arrendamento por CC e DD à ré, AA, em 27 de abril de 1982 e pelo período de um ano, renovável por iguais períodos, mediante a renda mensal de € 10,00, ao tempo Esc.2.000$00.

E porque a ré não liquidou qualquer renda desde 26 de novembro de 2002 e não fez, quanto a elas, qualquer depósito liberatório, pediram fosse decretada a resolução do referido contrato de arrendamento e a condenação dos réus a pagar solidariamente a quantia de € 900,00 referente às rendas vencidas, bem como as vincendas até despejo efectivo do prédio.


2º- Procedendo-se à citação dos réus, vieram estes contestar, deduzindo também reconvenção.

 

3º- Na sua resposta, as autoras invocaram a extemporaneidade da contestação, requerendo o seu desentranhamento dos autos.


4º- Pela Srª Juíza foi proferido despacho que, tendo em conta que a citação dos réus ocorreu em 30.09.2010 e que o prazo para apresentação da contestação expirou em 25.10.2010, considerou extemporânea a contestação dos réus apresentada em 02.11.2010, determinando o desentranhamento dos autos quer da contestação e seus documentos, quer dos articulados subsequentemente apresentados.


5º- E, após notificação deste despacho às partes, proferiu, em 13.09.2011, sentença em que, dando como demonstrados os factos constitutivos do direito das autoras, alegados na petição inicial, por falta de contestação dos réus, regularmente citados, e aderindo aos fundamentos de direito plasmados na petição inicial, nos termos do disposto no art. 784º do CPC e  do art. 1093º, nº1, al. a) do CC, na versão aplicável aos autos,  julgou procedente a ação nº 1293/10.0TBVNO e, consequentemente:

a) declarou «a resolução  do contrato de arrendamento  por não pagamento das rendas, sendo, na sequência, os Réus AA e BB condenados na desocupação e entrega imediata das fracções autónomas designadas pelas letras  “A” e “C” do prédio urbano descrito  na Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº 8…/1 inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 2…6 e sito na Rua …, nº4, …, Fátima, correspondendo as fracções a entregar à primeira e terceira lojas do rés-do-chão a contar do lado direito do prédio»

b) condenou « os Réus AA e BB na obrigação solidária de pagamento às autoras do montante de € 1050,00 a título de rendas vencidas, bem como  das vincendas à razão de € 10,00 mensais  até à entrega do locado livre e devoluto».


6º- Inconformados com esta decisão, os réus interpuseram recurso para o Tribunal da Relação de … que, por acórdão proferido em 18.09.2012 e transitado em julgado em 24.10.2012, julgou improcedente a apelação, confirmando a sentença recorrida.


7º- Vieram, então, AA e marido, BB, intentar contra EE e FF, na qualidade de herdeiras de CC e DD, ação declarativa que correu termos pelo 2º Juízo do Tribunal Judicial de …, com o nº 1621/11.1TBVNO, pedindo o reconhecimento de que são os donos e legítimos possuidores das fracções autónomas designadas pelas letras “A” e “C” do prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o nº 8…/1…9, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 2…6, e que fosse decretada a nulidade da declaração negocial de arrendamento e do registo predial a favor das rés.

Alegaram, para tanto e em síntese, que:

Em 1980 e 1981, CC vendeu ao autor marido as fracções A e C do prédio urbano da Freguesia de Fátima, Ourém, descritas na matriz com o nº 2…6, onde a autora mulher, desde 1981, passou a exercer a sua actividade de comércio de calçado, pronto-a-vestir, malas de viagem e carteiras de senhora.

Mais alegaram que o contrato de arrendamento celebrado entre o CC e a autora mulher foi simulado, tendo em vista ocultar da Fazenda Nacional o contrato de compra e venda anteriormente firmado.


8º- Citadas, as rés contestaram, sustentando traduzir esta ação uma contestação extemporânea à ação declarativa nº 1293/10.0TBVNO que correu termos pelo 1º Juízo do Tribunal Judicial de ….


9º- Na ação nº 1621/11.1TBVNO e em 20.05.2013, foi proferido despacho saneador que, considerando não poderem os autores, vencidos na ação nº 1293/10.0TBVNO, cuja decisão se tornou definitiva pelo respetivo trânsito em julgado, contornar a imodificabilidade dessa decisão através desta ação com recurso aos meios de defesa que não deduziram e podiam ter deduzido na ação nº 1293/10.0TBVNO, julgou procedente a exceção de autoridade do caso julgado e, em consequência, absolveu as rés da instância.


10º- Inconformados com esta decisão, dela recorreram os autores AA e marido, BB, para o Tribunal da Relação de …, que, por acórdão proferido em 18.02.2014, julgou improcedente o recurso e confirmou a decisão recorrida.


11º- Por apenso à execução da sentença proferida na ação nº 1293/10.0TBVNO, os ora autores AA e marido, BB, deduziram embargos de executado com o nº 1293/10.0TBVNO-C, alegando, para além do mais, que em 1980 e1981, o CC vendeu ao autor marido as ditas frações autónomas, onde a autora mulher, desde 1981, passou a exercer a sua actividade de comércio de calçado, pronto-a-vestir, malas de viagem e carteiras de senhora.

Desde então, os autores ocupam as referidas fracções, de forma continuada e ininterrupta, na convicção de serem os seus legítimos donos, à vista de toda a gente e sem a oposição de quem quer que seja, pelo menos, até outubro de 2010.

Não obstante, através de documento escrito, datado de 15 de março de 1982, o CC ter declarado dar de arrendamento à autora mulher cada uma das fracções “A” e “C”, tal contrato foi simulado, tendo em vista evitar o pagamento de uma coima e liquidação adicional de imposto de sisa, no montante e 736.972$00, referente ao valor da sisa devida pela aquisição da fracção “A”.


12º- Nestes embargos de executado foi proferida, em 02.10.2015, sentença que considerando, para além do mais, que « os factos extintivos, sejam a aquisição das aludidas fracções, quer pela via da usucapião ( cfr. artigos  8º e 46º a 55º da petição –ponto 6 dos factos provados), quer pela via da aquisição por compra ao falecido  José Justino  das Neves ( cfr. artigos 12º a 14º da petição – ponto 6 dos factos provados),  são factos cujo momento de verificação ocorreu anteriormente ao encerramento da discussão e, estes não têm cabimento na previsão legal da alínea g) do art. 729º do nCPC, pois só os posteriores o têm», julgou improcedentes os embargos de executado e determinou o prosseguimento da execução.


13º- Inconformados com esta decisão, os embargantes dela interpuseram recurso para o Tribunal da Relação de Évora, que em 02.06.2016, proferiu acórdão que julgou improcedente a apelação, confirmando a sentença impugnada.



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3.2. Fundamentação de direito



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3.2.1. Conforme já se deixou dito, suscita-se na presente revista a questão de saber se a decisão transitada em julgado, proferida no âmbito da anterior ação nº 1293/10.0TBVNO faz precludir o direito dos autores de instaurarem a presente ação.

E, por outro lado, se a decisão transitada, proferida no âmbito da anterior ação nº 1621/11.1TBVNO, constitui caso julgado que obste ao conhecimento de mérito da presente ação.

No sentido afirmativo pronunciou-se a decisão recorrida, considerando, essencialmente, que a absolvição das rés da instância na presente ação por virtude da decisão definitiva proferida na ação nº 1293/10.0TBVNO é justificada por efeito da autoridade do caso julgado desta sentença, enquanto que, relativamente à decisão proferida na ação nº 1621/11.1TBVNO, tal extinção impõe-se pela procedência da exceção de caso julgado.

Estamos, pois, em face de dois efeitos distintos da mesma realidade jurídica – o caso julgado material (cfr. arts. 619º e 621º do NCPC).

Com efeito, enquanto que a exceção de caso julgado comporta um efeito negativo de inadmissibilidade da segunda ação, obstando a nova decisão de mérito da causa e impondo ao juiz a absolvição do réu da instância ( cfr. art. 576º, nº 2 do NCPC), a autoridade do caso julgado tem, antes, o efeito positivo de impor a primeira decisão à segunda decisão de mérito[2].

Dito de outro modo e nas palavras de Miguel Teixeira de Sousa[3], a exceção de caso julgado tem por finalidade «evitar que o órgão jurisdicional, duplicando as decisões sobre idêntico objecto processual, contrarie na decisão posterior o sentido da decisão anterior ou repita na decisão posterior o conteúdo da decisão anterior: a excepção de caso julgado garante não apenas a impossibilidade de o tribunal decidir sobre o mesmo objecto duas vezes de maneira diferente (Zweierlei), mas também a inviabilidade de o tribunal decidir sobre o mesmo objecto duas vezes de maneira idêntica (Zweimal) ».

 Diversamente, « quando vigora como autoridade de caso julgado, o caso julgado material manifesta-se no seu aspecto positivo de proibição de contradição da decisão transitada: a autoridade do caso julgado é o comando de acção ou a proibição de omissão respeitante à vinculação subjectiva à repetição no processo subsequente do conteúdo da decisão antecedente».

Por outro lado, enquanto a exceção de caso julgado pressupõe uma identidade entre os objectos dos dois processos, implicando sempre a identidade de sujeitos, de pedido e de causa de pedir (cfr. arts. 580º e 581º, do NCPC), a autoridade de caso julgado, pode funcionar independentemente da verificação desta tríplice identidade, pressupondo, todavia, a decisão de determinada questão que não pode voltar a ser discutida e exigindo sempre uma identidade subjetiva, isto é,  que a decisão  ou as decisões tomadas na primeira ação vinculem os tribunais em ações posteriores entre as mesmas partes[4].  

E isto assim acontece porque, tal como se refere no Acórdão do STJ, de 10.10.2010 (revista nº 1999/11.7TBGMR.G1.S1), « o trânsito em julgado de uma qualquer decisão de mérito é susceptível de produzir outros efeitos, mais difusos, mas não menos importantes quando se trata de relevar os valores da certeza e da segurança jurídica que qualquer sistema deve buscar e proteger».

Surge, assim, ligada ao instituto do caso julgado, a figura da preclusão[5] que, no que tange aos meios de defesa, decorre do princípio da concentração da defesa na contestação consagrado no art. 573º do NCPC, ao impor que toda a defesa deve ser deduzida na contestação (nº 1), salvo os casos de defesa superveniente (nº 2).

Deste modo, apresentada a contestação, fica, a partir desse momento, precludida a invocação pelo réu, quer de outros meios de defesa, quer dos meios que ele não chegou a deduzir e até mesmo daqueles que ele poderia ter deduzido  com base num direito seu[6].

Acentuando o efeito que a preclusão produz sobre o próprio ato omitido, escreve Miguel Teixeira de Sousa, no blog do IPPC[7] - Pape 199- de 03.05.2016 que, «neste contexto, a preclusão pode ser definida como a inadmissibilidade da prática de um acto processual pela parte depois do prazo peremptório fixado, pela lei ou pelo juiz, para a sua realização».

E, estabelecendo a correlatividade entre o ónus de concentração e da preclusão, afirma que « a) Quando referida a factos, a preclusão é correlativa não só de um ónus de alegação, mas também de um ónus de concentração: de molde a evitar a preclusão da alegação do facto, a parte tem o ónus de alega todos os factos relevantes no momento adequado […].

A correlatividade entre o ónus de concentração e a preclusão significa que, sempre que seja imposto um ónus de concentração, se verifica a preclusão de um facto não alegado, mas também exprime que a preclusão só pode ocorrer se e quando houver um ónus de concentração. Apenas a alegação do facto que a parte tem o ónus de cumular com outras alegações pode ficar precludida.

Se não for imposto à parte nenhum ónus de concentração, então a parte pode escolher o facto que pretende alegar para obter um determinado efeito e, caso não o consiga obter, pode alegar posteriormente um facto distinto para procurar conseguir com base nele aquele efeito. […]» .

Por sua vez, analisando as “relações mútuas” entre a preclusão e caso julgado, conclui [8] que « o caso julgado apenas impede a alteração da decisão transitada com base num fundamento precludido.     

Em contrapartida, em relação a um fundamento que não se encontra precludido, o caso julgado  não realiza nenhuma função de estabilização. Muito pelo contrário: o caso julgado pode ser modificado ou até destruído por um fundamento não precludido».


*

Neste contexto, invocam os autores, nas suas alegações de recurso, que, operando os princípios da concentração e da preclusão apenas quanto à matéria de defesa e não se reconduzindo o pedido de reconhecimento do direito de propriedade sobre uma coisa à defesa por excepção peremptória impeditiva nem sendo obrigatória a dedução de reconvenção, não pode resultar da sua não dedução qualquer efeito preclusivo, sendo, por isso, oportuna a formulação, através da presente ação, do pedido de reconhecimento do seu direito de propriedade sobre as fracções “A” e “C”, por via da aquisição por usucapião e da compra e venda, sem que tal seja impedido pelo facto de, na ação nº 1293/10.0TBVNO, ter sido declarado resolvido o contrato de arrendamento relativo àquelas fracções e de terem sido condenados a entregá-las às ora rés.

Vejamos, então, se sobre os réus na ação nº 1293/10.0TBVNO ( e ora autores), impendia o ónus de  dedução do pedido reconvencional de reconhecimento do seu direito de propriedade sobre as ditas fracções, o que nos remete para a necessidade de enfrentar a problemática da chamada “reconvenção necessária  ou compulsiva”  e da preclusão.

Ou seja, impõe-se decidir se, sendo legalmente admissível a reconvenção, a falta de exercício do direito de reconvir impedirá o réu de propor, futuramente, uma ação autónoma para fazer valer o seu pretenso direito material que através de uma ação independente.

E a este respeito diremos, desde logo, que se é certo ter a reconvenção, em regra, natureza facultativa, o que constitui entendimento pacífico na doutrina[9] e parece resultar claro da letra do artigo 266º, nº1 do NCPC, na medida em que ao estabelecer que «o réu pode, em reconvenção deduzir pedidos contra o autor», inculca a ideia de que ao réu, demandado em determinada acção, assiste a liberdade de optar entre aproveitar a mesma instância processual para formular uma pretensão contra o autor ou fazer valer essa pretensão através da propositura de uma ação autónoma,  também não deixa de ser verdade que, por vezes, após o trânsito  em julgado da sentença, o réu fica impedido de exercer, através de ação separada e distinta o seu direito.

E porque assim acontece, segundo Luís Miguel de Andrade Mesquita[10] , importa estabelecer a distinção entre a  reconvenção facultativa (permissive counterclaim) e a reconvenção necessária ou compulsiva (compulsory counterclaim).

É que , enquanto que, no primeiro caso,  o não uso da faculdade de dedução de reconvenção não tem, em princípio, qualquer interferência negativa na consistência do direito material de que o réu seja titular, já no segundo, «a faculdade de reconvir transforma-se num ónus, na medida em que o réu necessita de reconvir para afastar o risco de futura preclusão do direito, por força  do caso julgado que venha a constituir-se sobre a decisão favorável ao autor»[11] .     

Trata-se, entre outras, de situações em que, no dizer de Manuel de Andrade[12] , «uma vez julgada procedente uma acção, nela se afirmando competir ao autor certo direito, com base em certo acto ou facto jurídico, a força e autoridade do caso julgado impedirá mais tarde, por qualquer motivo não superveniente se possa vir impugnar aquele direito, com isto negando ou por  qualquer forma se intentando prejudicar bens  correspondentes por aquela decisão reconhecidos ao autor»

E, daí concluir este mesmo autor que, nestes casos, o réu « tem de invocar todos os meios de defesa que lhe possam assistir, quer dizer, todos os factos susceptíveis de comprovarem que o direito do autor não se constituiu validamente ( factos impeditivos), ou que sofreu alteração ou mesmo deixou de subsistir (factos modificativos ou extintivos)», e  até mesmo os que poderia ter deduzido com base num direito seu, valendo, neste sentido, a máxima segundo a qual o caso julgado «cobre o deduzido e o dedutível» ou « tantum judicatum quantum disputatum vel disputari debebat» [13] .   

No mesmo sentido, Miguel Mesquita[14] adverte o réu, que se considere titular de qualquer pretensão contra o autor, para o facto de, no momento em que contesta, não deixar de formular, para si mesmo, a seguinte pergunta: « o caso julgado que eventualmente  venha a incidir sobre uma decisão favorável ao demandante será susceptível de se transformar num obstáculo  ao futuro exercício  do meu direito através de uma acção independente?

Sendo a resposta afirmativa, necessita de reconvir para afastar o risco da futura preclusão do direito, por força do caso julgado que venha a constituir-se sobre a decisão favorável ao autor. O réu reconvirá para se livrar de um prejuízo futuro e eventual (não certo): o prejuízo da preclusão do seu direito».

E nem se diga, como o fazem os ora recorrentes que, não se reconduzindo o pedido reconvencional de reconhecimento do direito de propriedade sobre uma coisa à defesa por excepção peremptória afastada fica a possibilidade de fazer operar quanto a ela o princípio da preclusão dos meios de defesa.

É que se é certo, como se afirma no citado Acórdão do STJ, de 10.10.2012 que, « em princípio, o efeito preclusivo dos meios de defesa apenas abarca o que constitui matéria de excepção que integre factos modificativos ou extintivos apostos à pretensão do autor, excluindo as pretensões autónomas», o que se nos apresentava,  na ação nº 1293/10.0TBVNO, era precisamente uma situação de falta de autonomia, na medida em que a invocação da aquisição  do direito de propriedade sobre as referidas fracções, por via da usucapião e por via de compra e venda apresentava-se com natureza impeditiva não só do  reconhecimento do direito de propriedade invocado pelas ora rés como também  da condenação dos ora autores na entrega às mesmas das referidas fracções.  

Vale tudo isto por dizer que, no fundo, os factos em que tal reconvenção assentaria não deixam de revestir carácter de defesa, não escapando, por isso, ao efeito preclusivo resultante da autoridade do caso julgado.

Ora, tendo as ora rés peticionado na ação nº 1293/10.0TBVNO a resolução do contrato de arrendamento relativo às duas fracções de que se arrogaram ser proprietárias  bem como a condenação dos ora autores no pagamento das rendas vencidas e vincendas e na desocupação e entrega imediata destas,  temos por certo que, arrogando-se estes igualmente proprietários das ditas fracções com base em factualidade já deles conhecida no momento da contestação, sobre os mesmos impendia  o ónus de deduzir reconvenção para afastar o risco da futura preclusão, por força do caso julgado que viesse a constituir-se sobre a decisão favorável àquelas.

Não o tendo feito, porquanto, por decisão transitada, foi a sua contestação/reconvenção mandada desentranhar dos autos, por extemporaneidade, e tendo as ora rés logrado obter, na ação nº1293/10.0TBVNO, por sentença transitada em julgado, a entrega das ditas fracções no pressuposto de que as mesmas eram as respetivas proprietárias, inquestionável se torna que a autoridade de caso julgado projetada por esta sentença, impede que os ora autores venham, com base em factos que podendo ser deduzidos em sua defesa, o não foram, afetar o seu teor, ficando, deste modo, precludido o direito dos ora autores instaurarem a presente ação.

Daí nenhuma censura merecer, nesta parte, a decisão recorrida.  


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3.2.2. Mas, à parte este efeito preclusivo decorrente da autoridade do caso julgado formado pela sentença proferida no processo nº 1293/10.0TBVNO, importa, agora, indagar  se a decisão definitiva proferida na ação declarativa nº 1621/11.1TBVNO constitui caso julgado obstativo do conhecimento de mérito da presente ação.


No sentido afirmativo, decidiu a sentença recorrida, considerando verificada a exceção de caso julgado e absolvendo as rés da instância.

Isto porque entendeu que, tendo a decisão transitada na ação declarativa nº 1621/11.1TBVNO julgado procedente a exceção (inominada) de autoridade do caso julgado formada pela decisão definitiva e proferida no processo nº 1293/10.0TBVNO (que reconheceu às ora rés o direito de propriedade sobre as sobreditas fracções “ A” e “C” e condenou os ora autores  na sua restituição àquelas), impedindo, por isso,  os ora autores de peticionar naquela ação o reconhecimento da aquisição originária  do seu alegado direito de propriedade  sobre as mesmas fracções e a condenação das ora rés na sua entrega, não podiam os ora autores voltar a propor nova ação, contra as ora rés, com a mesma  pretensão e fundamentos.


No sentido negativo pronunciam-se os autores/recorrentes, argumentando, por um lado, que a procedência da exceção dilatória  de caso julgado ditada pela sentença transitada e proferida na ação declarativa nº 1621/11.1TBVNO, determinou tão somente a  absolvição da instância, pelo que, não se tratando de uma decisão de mérito da causa, é a mesma insusceptível de  gerar caso julgado material.

E, por outro lado, que não obstando a absolvição da instância à instauração de uma nova ação nenhum impedimento legal existe à instauração da presente ação com vista ao reconhecimento da aquisição originária do seu alegado direito de propriedade sobre as referidas fracções “ A” e “C”.


*

Vejamos, então, que efeitos tem a decisão proferida na ação nº 1621/11.1TBVNO, já transitada em julgado, na sorte da presente ação.

Como é consabido, em processo declarativo, o ato decisório pode incidir, essencialmente, sobre as condições processuais de existência e de admissibilidade da ação e sobre as condições materiais de tutela jurídica do objecto da ação, o que, obviamente, se repercute nos efeitos da decisão.

Daí a razão para a distinção consagrada nos artigos 619º e 620º do NCPC entre caso julgado formal e caso julgado material.

Assim, enquanto o nº 1 do citado art. 620º dispõe que « as sentenças e os despachos que recaiam unicamente sobre a relação processual têm força obrigatória dentro do processo», o nº 1 do art. 619º  estatui que « transitada em julgado a sentença ou o despacho saneador que decida do mérito da causa, a decisão sobre a elação material controvertida fica a ter força obrigatória dentro do processo e fora dele nos limites fixados nos artigos 580º e 581º (…) ».

E daí também a razão para, em consonância com este regime, se estabelecer a distinção, no nº1 do art. 279º, que « a absolvição da instância não obsta a que se proponha outra acção sobre o mesmo objecto».

Por outro lado, definindo a atual natureza da exceção do caso julgado, impõe-se, desde logo, referir que se é certo que até à reforma de 1995, levada a cabo pelo DL nº 329-A/95 , de 12.12 e pelo DL nº 180/96, de 2.09, entendia-se que a figura jurídica do chamado “caso julgado” configurava uma exceção peremptória, conforme disponha o art. 496º, al. a) do ACPC, a verdade é que, na esteira do defendido pela doutrina[15],  este entendimento veio a ser modificado com a citada reforma, em consequência, do que a exceção do “caso julgado” passou a integrar expressamente  as chamadas exceções dilatórias, a par  da litispendência – cfr. art. 494º, al. i) do ACPC  e art. 577º, al. i) do NCPC -, o que bem se compreende pois  ambas as exceções contemplam situações de repetição da mesma causa.

Assim, dada a natureza adjectiva da exceção dilatória de caso julgado, passou a mesma a integrar-se nas condições processuais da ação, isto é, nas condições suficientes e necessárias para poder recair sobre a ação uma decisão de mérito, constituindo, nas palavras de Miguel Teixeira de Sousa[16], um pressuposto processual negativo: « Se o objecto da decisão transitada for idêntico ao do processo subsequente, isto é, se ambas as acções possuírem a mesma causa de pedir e nelas for formulado o mesmo pedido, o caso julgado vale, no processo posterior, como excepção de caso julgado (…). Coerentemente com a dupla proibição de contradição e de repetição, o tribunal da acção posterior deve abster-se de qualquer pronúncia sobre o mérito».

No mesmo sentido defende Lopes do Rego[17], qualificando a exceção de caso julgado como dilatória, que «verificando-se a repetição de uma causa objectiva e subjectivamente idêntica a outra já definitivamente julgada, deve o juiz abster-se de conhecer do respectivo mérito, já que só por esta forma se evita que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior ».  

Donde se ter de considerar a exceção dilatória do caso julgado como um pressuposto processual necessário a um normal e regular desenvolvimento processual, na medida em que há que assegurar não existir repetição de ações com o mesmo objecto e entre as mesmas partes.  

Ora, comparando a ação  nº 1621/11.1TBVNO com a presente acção, não  se questiona a identidade nem dos sujeitos e nem do pedido e da causa de pedir, porquanto num e noutro processo os mesmos autores demandam as mesmas rés, pedindo, no essencial, o reconhecimento do direito de propriedade dos autores sobre as fracções autónomas designadas pelas letras  “A” e “C” do prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial de Ourém sob o nº 8…/1…9, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 2…6 e o cancelamento do registo a favor das rés e, invocando,  como causa de pedir, a aquisição, por via da usucapião e por via da compra, em 1980 e 1981,  por parte do autor marido a CC bem como a nulidade do contrato de arrendamento celebrado entre este e a autora mulher.

Donde se ter de concluir pela verificação dos pressupostos da exceção de caso julgado.

Todavia, porque  o despacho saneador, proferido na ação declarativa nº 1621/11.1TBVNO e transitado em julgado, na consideração de que os autores, vencidos na ação nº 1293/10.0TBVNO, cuja decisão se tornou definitiva pelo respectivo trânsito em julgado, não podiam contornar a imodificabilidade dessa decisão através desta ação com recurso aos  meios de defesa que não deduziram e podiam ter deduzido naquela mesma ação, julgou procedente a exceção de autoridade do caso julgado e, em consequência, absolveu as rés da instância, impõe-se indagar se tal decisão constitui, ou não, motivo impeditivo da instauração da presente ação.

Sustentam os recorrentes que a decisão de absolvição da instância proferida na ação nº 1621/11.1.TBVNO, ainda que transitada em julgado, constitui mero caso julgado formal, não tendo, por isso, valor fora do processo em que foi proferida.

Trata-se, porém, de uma asserção que não é absoluta, pois, desde há muito, alguma doutrina vem defendendo a possibilidade de, em algumas situações, ser atribuída eficácia extraprocessual ao caso julgado formal, subordinando, contudo, essa eficácia à verificação de identidade das partes e da “matéria adjectiva” (no tocante a pressupostos processuais positivos insanáveis) em contexto processual idêntico (identidade da “individualização da causa”)[18].

Nesta linha de orientação, Anselmo de Castro[19], advoga essa eficácia extraprocessual do caso julgado formal se ocorrer a repetição da causa com a falta do mesmo pressuposto que originou a absolvição da instância, designadamente quando esteja em causa um pressuposto que coenvolva interesses materiais.

Daí que, na esteira deste entendimento, que se perfilha, se se absolveu da instância por certo fundamento e se este se repete no novo processo, é lícito opor neste segundo processo a exceção dilatória de caso julgado.

Ora, posto que na ação declarativa nº 1621/11.1TBVNO, a decisão de absolvição da instância das ora rés foi ditada pelo reconhecimento da autoridade do caso julgado decorrente da sentença proferida na ação nº 1293/10.0TBVNO, que, tal como se deixou dito no ponto 3.2.1, se projeta também na presente ação, onde os autores pretendem fazer valer contra as mesmas rés a mesma pretensão e os mesmos fundamentos invocados naquela ação nº 1621/11.1TBVNO, manifesto se torna concluir pela verificação e procedência da exceção de caso julgado.


Improcedem, pois, todas as conclusões dos recorrentes, não merecendo qualquer censura a sentença recorrida que, por isso, será de manter.



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III – Decisão

Pelo exposto, acorda-se em julgar improcedente o recurso de revista interposto pelos autores. AA e BB, confirmando-se a sentença recorrida.

Custas da revista e na 1ª instância a cargo dos autores recorrentes.


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Supremo Tribunal de Justiça, 30 de novembro de 2017

 (Texto elaborado e revisto pela Juíza relatora).

Maria Rosa Oliveira Tching (Relatora)

Rosa Maria Ribeiro Coelho

João Luís Marques Bernardo

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[1] Vide Acórdãos do STJ de 21-10-93 e de 12-1-95, in CJ. STJ, Ano I, tomo 3, pág. 84 e Ano III, tomo 1, pág. 19, respectivamente.
[2] Neste sentido, cfr. Acórdão do STJ, de 23.01.2014 ( revista  nº 3076/03.5TVPRT.P1.S1)
[3] In, “Objecto da Sentença  e Caso Julgado Material”, publicado no BMJ, nº 325, págs. 171ª 179.
[4] Neste sentido, cfr. Acórdãos do STJ,  de 25.11.2014 (revista nº 5443/12.4TBBRG.G1.S1) e de 24.03.2015 (revista nº 966/07.0TBTNV.C1.S1).
[5] Que segundo o Acórdão do STJ, de 29.05.2014 (proc. nº 1722/12) pode integrar-se no âmbito da autoridade do caso julgado, valendo, então, os contornos próprios desta. Já para Teixeira de Sousa, ainda que a preclusão possa operar através do caso julgado, ela assume autonomia, porque dele se emancipou (cfr. “Preclusão e Caso Julgado”, publicado no blogue do IPPC, 2016).
[6] Neste sentido, cfr. Acórdãos do STJ, de 21.10.2014 (agravo nº 4772/05.8TBSTS.S1) e de 29.05.2014 (revista nº 1722/12.9TBBCL.G1.S1).
[7] https://blogippc.blgspot.pt/.
[8] Na pág. 10.
[9] Cfr. Alberto dos Reis, in, “Comentário ao Código de Processo civil”, Vol. III, pág. 97; Anselmo de Castro, in, “ Direito Processual civil declaratório”, Vol. III, pág. 222, nota 2; CSTRO Mendes, n, “ Direito Processual Civil”, Vol. II, pág. 295; Lebre de Freitas e Robeiro Mendes, in, “ Código de Processo Civil, Anotado”, Vol. III, pág. 649; Rodrigues Bastos, in, “Notas ao Código de Processo Civil”, Vol. II, pág. 31; Lopes Cardoso, em anotação ao art. 274º, in, “ Código de Processo Civil, anotado” e Abrantes Geraldes, in, “Temas da reforma do processo civil”, Vol. I, pág. 56.
[10] Cfr. In “Reconvenção e Excepção no Processo Civil [O dilema da escolha entre a reconvenção e a excepção e o problema da falta de exercício do direito de reconvir], Almedina, págs. 439 e 450.
[11] Cfr. Luís Miguel de Andrade Mesquita, in “Reconvenção e Excepção no Processo Civil [O dilema da escolha entre a reconvenção e a excepção e o problema da falta de exercício do direito de reconvir], Almedina, págs. 440 e 441.
[12] In, RLJ, ano 70º, págs. 232 e segs.
[13] Cfr. Manuel de Andrade , in, “Noções Elementares de processo civil” , Coimbra Editora , pág. 324.
[14] Cfr.  In “Reconvenção e Excepção no Processo Civil [ O dilema da escolha entre a reconvenção e a excepção e o problema da falta de exercício do direito de reconvir], Almedina, pág. 440 e 441.
8[15] Cfr. Anselmo de Castro, in, “Direito Processual Civil Declaratório”, Vol. III, págs. 221 e 222; Lebre de Fretas, in, Código de Processo Civil, Anotado, Vol. II, págs. 316 a 326; Miguel Teixeira de Sousa, in, “O Objecto da Sentença e o Caso Julgado Material ( O estudo sobre a funcionalidade processual), págs. 115, 151, 204 e 205.
[16] In, “Estudos Sobre o Novo Processo Civil”, págs. 574 e 575.
[17] In, “Comentário ao Código de Processo Civil”, Vol. I, 2ª ed., pág. 418, nota III.
[18] Sobre a questão, vide. Miguel Teixeira de Sousa, in “O objecto da sentença e o caso julgado material”, págs. 157 e segs ; Maria José Capelo in, “A sentença entre a autoridade e a prova”, págs. 96 e segs e Castro Mendes , in, “Manual de Processo Civil”, pág. 458.
[19] In, “Direito Processual Civil Declaratório”, Vol. III, Almedina, págs. 15 e 16