Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1668/17.4T8PVZ.P1.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: BERNARDO DOMINGOS
Descritores: CONTRATO DE ARRENDAMENTO
RENDA
INCUMPRIMENTO PARCIAL
RESOLUÇÃO DO NEGÓCIO
ABUSO DO DIREITO
BOA -FÉ
PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE
Data do Acordão: 11/21/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL – DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / CUMPRIMENTO E NÃO CUMPRIMENTO DAS OBRIGAÇÕES / NÃO CUMPRIMENTO / FALTA DE CUMPRIMENTO E MORA IMPUTÁVEIS AO DEVEDOR / IMPOSSIBILIDADE DO CUMPRIMENTO / IMPOSSIBILIDADE PARCIAL.
Doutrina:
- António Menezes Cordeiro, Da Boa Fé no Direito Civil, Vol. II, Colecção Teses, Liv. Almedina, Coimbra 1984, p. 662;
- Brandão Proença, Lições de cumprimento e não cumprimento das obrigações, 2011, p. 292;
- Cunha de Sá, Abuso de Direito, Liv. Almedina, Coimbra, 1997, p. 95, 165 e 171;
- Fernando Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos, Liv. Almedina, Coimbra, 2000, p. 103 e ss.;
- J. A. Reis, Código de Processo Civil Anotado, Vol. V, p. 56;
- Jorge M. Coutinho de Abreu, Do Abuso de Direito, Liv. Almedina, Coimbra, 1983, p. 55 a 60;
- Menezes Cordeiro, Da Boa Fé no Direito Civil, Colecção Teses, Liv. Almedina, 1997 (reimpressão), p.771 e ss. ; Tratado de Direito Civil Português, I (Parte Geral), Tomo I, Liv. Almedina, 1999, p. 203 e ss.;
- Miguel Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, Lex, Lisboa, 1997, p. 460-461;
- Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. II, 3ª ed. revista e actualizada, p. 61;
- Rabindranath Capelo de Sousa, O Direito Geral de Personalidade, Coimbra Editora, 1995, p. 530.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 802.º, N.º 2.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

- DE 03-07-1997, IN BMJ N.º 469, P. 486 E SS..


-*-


ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO:

- DE 17-04-2008, PROCESSO N.º 0831655, IN WWW.DGSI.PT.
Sumário :
I – O disposto no nº2 do art.º 802º do CC, constitui um afloramento do principio geral do direito de que no cumprimento da obrigação, assim como no exercício do direito correspondente, devem as partes proceder de boa fé e por isso não pode deixar de ser aplicável ao contrato de arrendamento.

II – Sendo o incumprimento parcial, objectivamente de escassa relevância para o credor, não lhe asiste o direito de resolver o contrato com tal fundamento.

III – Num quadro em que o inadimplemento parcial por parte do arrendatário é de montante e importância reduzida, sendo que os valores anuais da renda ultrapassam os €77.000,00 (setenta e sete mil euros), exigir a resolução do contrato de arrendamento nestas condições, excede manifestamente os ditames da boa fé e bem assim os do fim social e económico do direito, por ser manifesta a desproporção entre o exercício do direito da A. a ver resolvido o contrato de arrendamento e decretado o despejo e a quantia em dívida por parte do arrendatário

IV – Nestas circunstâncias o exercício do direito à resolução do contrato é abusivo e consequentemente ilegítimo.

Decisão Texto Integral:
ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

2ª SECÇÃO CÍVEL





*




Relatório[1]



«AA Imobiliária, S.A. instaurou contra BB Importação Exportação - Unipessoal, Lda., CC e DD a presente acção declarativa com processo comum, pedindo a declaração de resolução do contrato de arrendamento que celebrou com os réus, por falta de pagamento de rendas, e a condenação da 1ª ré a entregar-lhe o imóvel objecto desse contrato.

Impetra ainda a condenação solidária dos RR. a pagar-lhe a quantia de 77.415,80 €, correspondente às rendas não pagas, bem como as rendas vencidas e vincendas desde a data da propositura da acção até ao trânsito em julgado da sentença que decrete a resolução do contrato de arrendamento.

Para substanciar tais pretensões alegou ter celebrado com a 1.ª R., enquanto arrendatária, e com os 2.ºs RR., enquanto fiadores, um contrato de arrendamento de um imóvel de que é proprietária cujas prestações da renda relativas aos meses de Dezembro de 2016 a Novembro de 2017 não foram pagas em virtude de a 1.ª R apenas ter procedido ao depósito mensal de 7.000,00 €, cuja não aceitação entretanto comunicou à R., e não de 7.037,80 € que resultaram da respectiva actualização conforme a havia informado.

Citados os RR., admitiram o não pagamento do valor correspondente à actualização da renda para o ano de 2017 nos alegados meses de Dezembro de 2016 a Dezembro de 2017, afirmando que, apesar da comunicação da A. de não aceitação de valor inferior ao resultante da actualização para o ano de 2017, sempre a 1ª R. procedeu ao pagamento da quantia mensal de 7.000,00 €, e, como tal, o pedido da totalidade das prestações relativas aos apontados meses é infundado, sendo antes o valor em dívida de apenas €427,70.

Acrescentam que em virtude de a 1ª R. ter, no ínterim, procedido ao depósito de 855,40 € - correspondente, na sua perspectiva, à soma dos valores da renda em dívida com a indemnização devida -, verifica-se a caducidade do direito à resolução do contrato que a autora pretende fazer valer nesta ação.

Pugnam ainda pela improcedência da ação invocando a escassa importância da lesão do interesse da A..

A A. respondeu dizendo que apenas o pagamento integral das rendas e da indemnização faz caducar o direito de resolução do senhorio e que sendo o número de prestações em falta superior a 4 meses não há lugar à possibilidade de o arrendatário impedir a resolução contratual por via da cessação da mora que, em todo o caso, teria de ocorrer até 22 de Janeiro de 2018.

Realizada audiência prévia, veio a ser proferida decisão que, afirmando a caducidade do direito de resolução na sequência de depósito liberatório realizado pela 1ª ré, «julgo[u] extinta a instância por inutilidade superveniente da lide no que respeita ao pedido de resolução do contrato de arrendamento celebrado entre as partes e consequente desocupação e entrega do arrendado e ao pedido de condenação na quantia de 427, 70 €, e no mais julgo[u] a acção improcedente e absolv[eu] os RR. do pedido».


*


Inconformada com o decidido, apelou a A. para o Tribunal da Relação do Porto, tendo este julgado parcialmente procedente o recurso, considerando não liberatório o depósito efectuado pela ré, contudo não decretou a resolução do contrato nem o despejo, por considerar que tendo havido incumprimento parcial e sendo o mesmo de escassa relevância para o credor, nos termos do nº 2 do art.º 802 do CC, não lhe assistia o direito de resolver o contrato de arrendamento.

Mais uma vez irresignada com o decidido, veio a A. interpor recurso de revista, tendo rematado as suas alegações com as seguintes


Conclusões:


«A) A Recorrida foi avisada por escrito e pela recorrente de que a renda paga não era a totalidade e como tal não a podia aceitar.

B) A renda teria de ser paga no primeiro dia útil do terceiro mês anterior ao que disser respeito, na sede da primeira ou por transferência bancária.

C) Estamos perante um contrato de locação e pela qual uma das parte se obriga a proporcionar à outra o gozo temporário de certo imóvel contra o pagamento de uma renda.

D) Se tal não ocorre o arrendatário constitui-se em mora

E) Constituindo-se o arrendatário em mora tem a senhoria o direito a exigir as rendas em mora, acrescido do direito à resolução.

F) A única forma de evitar a resolução é: o arrendatário depositar as rendas em divida, acrescido de 50% sobre a totalidade das rendas.

G) O direito a depositar a parte em divida acrescido de 50 % sobre este valor é regime excecional e não é seguramente o caso destes autos, pois que: a recorrida “repete” o não pagamento da totalidade da renda durante um ano, mesmo advertida por escrito de tal e da não aceitação da renda (que era paga por transferência bancária).

H) Retenha-se o seguinte “a recorrida só não pagou a renda fixada” por lapso de organização”,- vide artigo 4 da contestação - e mesmo avisada por escrito para o efeito, nem sequer faz o pagamento da renda vencida em Dezembro de 2017, que com a atualização passou a ser de € 7.116, 62. - vide 20 da Douta Sentença de 1ª Instância.

I) O incumprimento da recorrida é continuo, voluntário e querido.

J) Os recorridos nem sequer podem fazer uso do que dispõe o art.º 1048º do C. C., ou seja, depositar as rendas em dívida acrescidas de 50 %, dado o não pagamento das rendas durante quatro vezes num ano.

L) Não é de aplicar a denominada a lesão de escassa importância, pois que: havendo normas específicas, sobretudo com a alteração legal de 2012, não se aplica o que consta do artigo 802º- 2 do C. C., mas sim e tão só o que consta dos artigos 1038º, 1040º, nºs 3 e 4, 1048º e 183º- todos do C.C..

M) O atual artigo 1083º tem a redacção dada pela Lei nº 31/2012, diferenteda anterior e HOJE é categórico e imperativo (só HÁ INCUMPRIMENTO TOTAL E NÃO PARCIAL).

N) Deve, pois, ser alterado o Douto Acórdão em recurso, dado que os recorridos apenas podiam evitar a resolução desde que depositassem a parte das rendas em divida acrescido de 50 % sobre a totalidade das rendas.


*


Não houve resposta da parte contrária.

*

**



Na perspectiva da delimitação pelo recorrente[2], os recursos têm como âmbito as questões suscitadas nas conclusões das alegações (art.ºs 635º nº 4 e 639º do novo Cód. Proc. Civil)[3], salvo as questões de conhecimento oficioso (n.º 2 in fine do art.º 608º do novo Cód. Proc. Civil).

Das conclusões acabadas de transcrever decorre que a questão objecto do recurso se limita a saber se no caso é aplicável o regime previsto no art.º 802º nº 2 do CC e na afirmativa, se as circunstâncias do caso permitem excluir o direito da A. de ver resolvido o contrato de arrendamento celebrado com a 1ª ré.


*

Dos factos


Nas instâncias foram considerados provados os seguintes factos:

«1. A. e R. celebraram entre si, aos 14 de Outubro de 2011, Contrato de Arrendamento para Fins Não Habitacionais.

2. Nesse contrato intervieram: a A. como senhoria e a Ré sociedade como arrendatária, e os 2.ºs Réus como fiadores.

3. Tendo estes declarado no contrato o seguinte: “12.1. Pelos terceiros foi dito que prestam a sua fiança ao bom e total cumprimento deste contrato e em consequência assumem a obrigação de procederem ao pagamento das rendas bem como a indemnizar a primeira em consequência da violação de qualquer cláusula deste contrato.” “Assumem tal obrigação como devedores principais, pelo período de vigência do contrato, renunciando desde já ao benefício da excussão prévia.”.

4. O Objecto do arrendamento é o prédio urbano composto por edifício de rés-do-chão, sito no lugar de …, da freguesia e concelho de …, descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o n.º 02476 e inscrito na matriz sob o artigo 2529 com licença de utilização n.º 277 emitida pela Câmara Municipal de … aos 04.09.1973.

5. O arrendado destinava-se ao exercício do comércio.

6. O prazo é de 10 (dez) anos, tendo o seu início em 15.10.2011 e o seu termo em 14.10.2021.

7. A renda anual foi fixada em € 84.000,00€ (oitenta e quatro mil euros) a pagar em duodécimos de 7.000,00€ (sete mil euros) no primeiro dia útil do terceiro mês anterior ao que disser respeito, na sede da primeira ou por transferência bancária.

8. Mais ficou acordado que “Caso a segunda cumpra pontualmente o pagamento das rendas durante três anos consecutivos, findo este período, a primeira, desde já declara e aceita receber até ao décimo ano de vigência do contrato, onze meses de renda em cada ano”.

9. O que efectivamente sucedeu.

10. Desde 15.10.2014 que a R. arrendatária apenas pagou onze rendas por ano.

11. Mais acordaram que “A renda será actualizada anualmente e de acordo com os factores de actualização aplicáveis aos arrendamentos para fins não habitacionais, sem necessidade de interpelação”.

12. No ano de 2017 a renda foi actualizada para o montante de € 7.037,80 (sete mil trinta e sete euros e oitenta cêntimos).

13. Tendo sido aplicado à renda vigente o coeficiente de 1.0054 para o ano de 2017.

14. A actualização foi comunicada à Ré arrendatária em 13.10.2016, por carta registada com aviso de recepção.

15. Tendo a R. sido informada que as rendas vencidas em Dezembro de 2016 e as subsequentes vencidas nos meses de 2017 passariam a ser no valor de 7.037,80€.

16. Não obstante ter sido informada da actualização em causa, a R. arrendatária sempre procedeu apenas ao depósito da renda ilíquida de € 7.000,00 nos meses de Dezembro de 2016 a Novembro de 2017.

17. Por carta registada com aviso de recepção a R. foi informada que a A. não aceitaria mais o pagamento de renda inferior ao que resultava da actualização realizada para ao ano de 2017.

18. Mesmo assim a R. nada fez.

19. Aos 11 de Outubro de 2017 foi enviada à R. arrendatária carta para actualização da renda relativa ao ano de 2018 e de acordo com os coeficientes aí previstos, designadamente, 1.0112.

20. Passando, as rendas vencidas em Dezembro de 2017 e meses seguintes e relativas a Fevereiro de 2018 e daí em diante no valor de 7.116,62 mensais.


*


Em consonância com os elementos constantes dos autos (cfr. documento nº 3 junto com a contestação), resultou igualmente demonstrado que, em 9 de janeiro de 2018, a 1ª ré efectuou depósito na Caixa EE no montante de €855,40, indicando como motivo para a sua realização “ação judicial relativa a acerto de rendas Dez./16 a Dez./17”.

*


Do Direito


No acórdão recorrido considerou-se que o depósito efectuado pela R. não era liberatório, ao contrário do que decidira a 1ª instância, por entender que o valor da indemnização deveria ser no montante de 50% de todas as rendas em mora e não apenas 50% da diferença entre o valor das rendas pagas e o valor devido. Esta decisão transitou em julgado.

Apesar de ter considerado não liberatório o depósito, não decretou a impetrada resolução do contrato. Constatou que efectivamente estavam preenchidos os pressupostos objectivos previstos no nº 3 do art.º 1083º do CC. Porém, uma vez que a Ré tinha suscitado a questão da aplicabilidade ao caso do disposto no nº 2 do art.º 802 do CC, a Relação apreciou a questão de saber se, mesmo estando preenchidos os requisitos (técnicos) que integram o fundamento de resolução por falta de pagamento de rendas, a dimensão do incumprimento da ré arrendatária (duma pequena parte das rendas devidas), será obstáculo a que se decrete a resolução do ajuizado contrato de arrendamento, por aplicação da regra enunciada no nº 2 do art. 802º.

Analisando tal problemática, considerou que «..contrariamente à posição sustentada pela apelante, não se antolha razão válida que obstaculize o recurso ao aludido normativo em matéria arrendatícia, pois o mesmo encerra um princípio geral do direito das obrigações, rectius, um princípio geral da resolução dos contratos.

Dispõe o referido normativo que “[O] credor não pode, todavia, resolver o negócio, se o não cumprimento parcial, atendendo ao seu interesse, tiver escassa importância”.

Assim, de acordo com tal comando normativo, se aquilo que o contraente deixou de satisfazer apresentar para o outro escassa importância, a faculdade de resolução deve considerar-se excluída, sendo que, a este propósito, a doutrina pátria[4] tem enfatizado que esta disposição se funda no princípio geral, expresso no nº 2 do art. 762º, de que as partes, no cumprimento da obrigação, assim como no exercício do direito correspondente, devem proceder de boa-fé.

Daí que, em concretização desse princípio, se venha entendendo[5] que o nº 2 do art. 802º constitui uma válvula de segurança que obsta à resolução do contrato sempre que, sem embargo da verificação técnica de um fundamento legal de resolução, a parcela não cumprida da prestação tiver um carácter insignificante, na perspectiva do senhorio, sendo que a afirmação dessa “escassa importância” deve ser aferida por um critério objectivo: a gravidade do incumprimento resultará da projecção do concreto inadimplemento (da sua natureza e da sua extensão) no interesse actual do credor, ou seja, deverá ser aferido pelas utilidades concretas que a prestação lhe proporciona ou proporcionaria.

Será esta a situação que os autos patenteiam?

Vejamos.

Como emerge do tecido fáctico apurado, em causa está o não pagamento pontual pela arrendatária dum diferencial de renda mensal que importa tão-somente na quantia de €37,80 (o que corresponde a pouco mais de 0,5% da respectiva renda mensal). E se é facto que tal situação perdurou cerca de um ano, certo é, também, que a ré passou a liquidar a renda já em conformidade com a actualização legal, sendo que o montante total em dívida desses meses de mora se cifrou na quantia global de €472,70, quantia essa que desde janeiro de 2018 se encontra depositada e acrescida da “penalização” de 50%.

Nesse contexto, afigura-se-nos, pois, que o inadimplemento da arrendatária deve ser qualificado de “escassa importância”, nada se indiciando nos autos - a autora não o alegou, sequer - que permita afirmar que aquela, por qualquer forma, tivesse em mente qualquer propósito de fraude ou intenção provocatória da senhoria (justificando, antes o seu ato, por “lapso de organização”), do mesmo modo que não vem alegada factualidade capaz de demonstrar que o não recebimento do valor da parte das prestações incumpridas a tenha prejudicado de forma minimamente relevante».

E daí concluíram que «a impetrada resolução do ajuizado contrato de arrendamento, com fundamento num incumprimento que reputamos de “escassa importância”, seria totalmente injustificada, de acordo com os ditames da boa-fé, surgindo assim tal sanção como manifestamente desproporcionada face ao incumprimento temporário registado», pelo que julgaram improcedente o pedido de resolução do contrato e o consequente despejo.

A recorrente pugna pela inaplicabilidade da disciplina constante do nº 2 do art.º 802º do CC, fundamentalmente por considerar que o regime legal da resolução do contrato de arrendamento por falta de pagamento de rendas, designadamente quando, como é o caso, a mora é superior a quatro meses, é um regime excepcional que não consente sequer a caducidade do direito com o depósito previsto no art.º 1041º do CC e muito menos a aplicação do regime geral.

Respeitamos a posição da recorrente mas não podemos concordar com ela!

Efectivamente não lhe assiste qualquer razão quando sustenta que no caso de haver mora superior a quatro meses não assiste ao locatário o direito de fazer caducar o direito à resolução do contrato depositando as rendas em dívida acrescidas de 50% do respectivo valor a título de indemnização. Na verdade sendo a resolução pedida em acção judicial o locatário sempre terá a faculdade de purgar a mora e fazer caducar o direito à resolução do contrato, nos termos do disposto no art.º 1048º Nº 1 do CC, ou seja, pagando, depositando ou consignando em depósito, até ao termo do prazo da contestação, as somas devidas, acrescidas da indemnização a que se reporta o art.º 1041 do mesmo diploma. É certo que só o poderá fazer uma única vez na vigência do mesmo contrato, mas isso é quanto basta para afastar o argumento da recorrente no sentido de que o regime legal para a falta de pagamento de rendas por período superior a quatro meses confere ao senhorio um direito potestativo de resolução do contrato, que não admite excepções. Como se viu não é assim! E também não tem razão quando sustenta que não pode fazer-se apelo ao regime geral de resolução dos contratos e muito menos ao regime constante do nº 2 do art.º 802º do CC, reportado ao incumprimento ou impossibilidade de cumprimento parcial e que “o credor não pode resolver o negócio, se o não cumprimento parcial, atendendo ao seu interesse, tiver escassa importância”.

Sabemos que há quem defenda que a mencionada regra apenas se aplica aos contratos de execução instantânea, excluindo os de execução continuada, como o contrato de arrendamento, por se entender que nestes um incumprimento, ainda que de menor importância, pode legitimar a resolução se, pela sua natureza, e pelas circunstâncias de que se rodeou, for de molde a fazer desaparecer a confiança do credor no cumprimento das prestações subsequentes. Ao que acresce o facto de o contrato de arrendamento ser celebrado intuitu personae, estando-lhe subjacente uma relação de confiança recíproca entre os contraentes, que resultaria abalada com um incumprimento, mesmo parcial. Entendem os defensores desta tese que neste âmbito não há espaço para a valoração pelo devedor, pelo credor ou pelo juiz, da gravidade da violação contratual, para, em função do resultado dessa apreciação, admitir ou excluir o direito de resolução.

E quando admitem que se possa ponderar a gravidade do incumprimento, como pressuposto do direito de resolução, relacionada com algumas das obrigações que emergem do contrato de arrendamento, já não a admitem quando esteja em causa a prestação fundamental do arrendatário, considerando como tal o pagamento da renda convencionada, dado que a mora deste superior a três meses, na economia jurídica do contrato, perturba sempre de forma grave a relação contratual e torna inexigível a manutenção do contrato de arrendamento (art. 1083.º/3).

Argumentam que o entendimento contrário conduziria ao resultado absurdo e indesejável da exclusão do direito de resolução no tocante a contratos de arrendamento com rendas de valor baixo, insignificante ou mesmo vil.

Assim, não haveria razão para com base no diminuto valor da prestação devida não satisfeita, recusar ao senhorio o direito de resolução do contrato[6].

Ao invés e tal como se decidiu no acórdão recorrido, entendemos que a mencionada norma é aplicável ao contrato de arrendamento, por se tratar de um princípio geral da resolução dos contratos que as normas específicas da locação não afastam, antes aceitam, conforme decorre do n.º 1 do art. 1083º/1 CC, ao dizer que “qualquer das partes pode resolver o contrato, nos termos gerais de direito, com base em incumprimento pela outra parte”, dessa forma aceitando o princípio geral contido no n.º 2 do art. 762º: “No cumprimento da obrigação, assim como no exercício do direito correspondente, devem as partes proceder de boa fé”.

Tal como se decidiu no acórdão recorrido e na jurisprudência aí citada, também o acórdão da RP de 17.04.2008, Proc. 0831655 disponível in www.dgsi.pt, considerou que a aplicabilidade da mencionada norma constitui uma válvula de segurança que obsta à resolução do contrato de arrendamento, sempre que, mesmo que em termos técnicos a situação provada constitua fundamento legal de resolução, a parcela não cumprida da prestação traduza um prejuízo de “escassa importância” para o senhorio[7].

Também este Supremo Tribunal já teve o ensejo de se pronunciar sobre a matéria tendo-o o feito no sentido da aplicabilidade da regra estabelecida no art.º 802º nº 2 do CC. Com efeito ponderou-se no acórdão do STJ, de 3.7.1997, publicado no BMJ nº 469, pág. 486 e seguintes, proferido sobre caso de resolução de contrato de arrendamento que do disposto nos artigos 762º nº 2 (“no cumprimento da obrigação, assim como no exercício do direito correspondente, devem as partes proceder de boa fé”) e 334º do Código Civil (“é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”), resulta que “o direito de resolução conhece como limite o incumprimento parcial, atendendo ao interesse do credor, apreciado através de «critério objectivo», ser de escassa importância, de tal sorte que aquela gravosa consequência, a da resolução do contrato, face aos ditames da boa fé, deixa de encontrar justificação”.

O disposto no nº2 do art.º 802º do CC, constitui um afloramento do principio geral do direito de que no cumprimento da obrigação, assim como no exercício do direito correspondente, devem as partes proceder de boa fé e por isso não pode deixar de ser aplicável ao contrato de arrendamento. E sendo aplicável, temos de concordar que, no caso dos autos tal normativo tem plena aplicação e não consente o reconhecimento do direito à resolução do contrato de arrendamento celebrado entre a A. e a 1ª ré, porquanto o incumprimento da ré, no contexto do contrato e dos montantes envolvidos é objectiva e indiscutivelmente de escassa importânciae consequentemente não pode reconhecer-se ao A. o impetrado direito de resolver o contrato de arrendamento, como bem se decidiu no acórdão recorrido.


*


Do abuso do Direito

Mas ainda que assim não se entenda, sempre haverá que aferir se, nas circunstâncias do caso, exigir/consentir a resolução do contrato de arrendamento, não constitui um abuso do direito por o seu exercício exceder manifestamente os limites da boa fé e por haver um manifesto desequilíbrio objectivo no exercício do direito, por via da desproporcionalidade entre a vantagem auferida pelo titular e o sacrifício imposto ao arrendatário, quando o que está em causa é uma violação sem relevo de monta, para o senhorio, enquanto para o arrendatário o prejuízo é total, porquanto perde o uso do prédio.

Quando, no exercício de um direito os limites da boa fé são excedidos, tal exercício pode ser ilegítimo por constituir um abuso do direito (art.º 334º do CC). A boa fé a que se refere o art.º 334º do Cód. Civil é a boa fé objectiva [8], ou seja o princípio pelo qual o sujeito deve actuar como pessoa de bem, honestamente, com lealdade. Neste sentido a boa fé não versa sobre factores atinentes, directamente, ao sujeito, mas diz respeito a elementos que, enquadrando directamente o seu comportamento, se lhe contrapõem, vale não como um estado de espírito subjectivo mas como um princípio normativo, pelo qual todos devem actuar como pessoas de bem, num quadro de honestidade, correcção, probidade e lealdade de forma a não defraudar as legítimas expectativas e a confiança gerada nos outros e ainda na proibição de « venire contra factumproprium», ou aquilo a que os alemães chamam « Verwirkung[9]» com que se veta o exercício de um direito ou de uma pretensão, por o titular não os ter exercido durante muito tempo e, por isso, ter criado na contraparte uma fundada expectativa de que tais direitos já não seriam exercidos, revelando-se posteriormente, um posterior exercício manifestamente desleal e intolerável. É isto que acontece nos vários tipos de « factapropria», v.g. o abuso da nulidade por vícios formais de alguém que, apesar disso o cumpre ou aceita o cumprimento realizado pela outra parte (inalegabilidades formais)[10] ou na proibição de o credor recusar a prestação apta a satisfazer o seu interesse apesar de não estar inteiramente de acordo com as estipulações contratuais (v.g., ligeira ou insignificante ultrapassagem do prazo ou a falta de entrega de uma diminuta importância em dinheiro numa vultuosa obrigação pecuniária __ cf. art.º 802º, n.º 2 do Cód. Civil) ou ainda na proibição de se invocar a « excepção do não cumprimento do contrato » (art.º 428º do Cód. Civil) quando a falta do inadimplente não seja de tal modo grave que justifique a recusa de cumprir da outra parte [11].

No caso e como bem se salienta na decisão recorrida, em causa está o não pagamento pontual pela arrendatária dum diferencial de renda mensal que importa tão-somente na quantia de €37,80 (o que corresponde a pouco mais de 0,5% da respectiva renda mensal). E se é facto que tal situação perdurou cerca de um ano, certo é, também, que a ré passou a liquidar a renda já em conformidade com a actualização legal, sendo que o montante total em dívida desses meses de mora se cifrou na quantia global de €472,70, quantia essa que desde janeiro de 2018 se encontra depositada e acrescida da “penalização” de 50%, sendo que a renda anual devida era de €77.415,80 (setenta e sete mil quatrocentos e quinze euros e oitenta cêntinos) e a renda efectivamente paga de dezembro de 2016 a dezembro de 2017, foi de €77.000,00 (setenta e sete mil euros). Ora neste quadro em que o inadimplemento parcial é de montante e importância tão reduzida, não podemos deixar de concordar que exigir a resolução do contrato de arrendamento nestas condições, excede manifestamente os ditames da boa fé e bem assim os do fim social e económico do direito por ser manifesta a desproporção entre o exercício do direito da A. a ver resolvido o contrato de arrendamento e decretado o despejo e a quantia em dívida. Assim e nesta perspectiva haverá abuso do direito e consequentemente será ilegítimo deferir a pretensão da A., de ver decretada a resolução do contrato de arrendamento.


*


Em síntese:

I – O disposto no nº2 do art.º 802º do CC, constitui um afloramento do principio geral do direito de que no cumprimento da obrigação, assim como no exercício do direito correspondente, devem as partes proceder de boa fé e por isso não pode deixar de ser aplicável ao contrato de arrendamento.

II – Sendo o incumprimento parcial, objectivamente de escassa relevância para o credor, não lhe asiste o direito de resolver o contrato com tal fundamento.

III – Num quadro em que o inadimplemento parcial por parte do arrendatário é de montante e importância reduzida, sendo que os valores anuais da renda ultrapassam os €77.000,00 (setenta e sete mil euros), exigir a resolução do contrato de arrendamento nestas condições, excede manifestamente os ditames da boa fé e bem assim os do fim social e económico do direito, por ser manifesta a desproporção entre o exercício do direito da A. a ver resolvido o contrato de arrendamento e decretado o despejo e a quantia em dívida por parte do arrendatário

IV – Nestas circunstâncias o exercício do direito à resolução do contrato é abusivo e consequentemente ilegítimo.


*


Concluindo

Pelo exposto, acorda-se na improcedência da revista e confirma-se o acórdão recorrido.

Custas pela recorrente.

Notifique e registe.

Lisboa em 21 de novembro de 2019.

José Manuel Bernardo Domingos (Relator)

João Luís Marques Bernardo


António Abrantes Geraldes

_______

[1] Parcialmente transcrito do acórdão recorrido.
[2] O âmbito do recurso é triplamente delimitado. Primeiro é delimitado pelo objecto da acção e pelos eventuais casos julgados formados na 1.ª instância recorrida. Segundo é delimitado objectivamente pela parte dispositiva da sentença que for desfavorável ao recorrente (art.º 684º, n.º 2 2ª parte do Cód. Proc. Civil antigo e 635º nº 2 do NCPC) ou pelo fundamento ou facto em que a parte vencedora decaiu (art.º 684º-A, n.ºs 1 e 2 do Cód. Proc. Civil, hoje 636º nº 1 e 2 do NCPC). Terceiro o âmbito do recurso pode ser limitado pelo recorrente. Vd. Sobre esta matéria Miguel Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, Lex, Lisboa –1997, págs. 460-461. Sobre isto, cfr. ainda, v. g., Fernando Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos, Liv. Almedina, Coimbra – 2000, págs. 103 e segs.
[3] Vd. J. A. Reis, Cód. Proc. Civil Anot., Vol. V, pág. 56.
[4]Cfr., inter alia, PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, in Código Civil Anotado, vol. II, 3ª ed. revista e actualizada, pág. 61 e BRANDÃO PROENÇA, in Lições de cumprimento e não cumprimento das obrigações, 2011, pág. 292.
[5] Assim, na jurisprudência, entre outros, acórdãos desta Relação de 13.10.2009 (processo nº 2721/06.TJPRT.P1), de 23.04.2007 (processo nº 0751620) e de 19.12.2006 (processo nº 0622668), acessíveis em www.dgsi.pt; na doutrina, GRAVATO MORAIS, ob. citada, pág. 216, onde justifica o recurso a essa regra, entre outros argumentos, pelo facto de a consequência da resolução para o arrendatário – o despejo do locado – ser desequilibrada perante o pouco relevante incumprimento.
[6]Cfr. acórdão da Relação do Porto de 10.11.2009, Proc. 456/08.3TBPFR.P1, disponível in www.dgsi.pt
[7] No mesmo sentido vejam-se os ac. s da RP de 13/10/2009, Proc. 2731/06.2TJPRT.P1,de 25/11/2010, proc. nº  2983/08.3TBMTS.P1 e ainda o Ac. da R. Lisboa de 14/09/2006, proc. nº 3867/2006-2, todos acessíveis in www.dgsi.pt..
[8]Num sentido subjectivo boa fé é essencialmente um estado ou situação de espírito de que se retiram consequências favoráveis. É o estado ou situação de espírito que se traduz no convencimento da licitude de certo comportamento ou na igno­rância da sua ilicitude. O que se visa aqui é uma actuação em boa fé. Num sentido objectivo visa-se um actuação segundo a boa fé. Vd. Cunha de Sá, Abuso de Direito, Liv. Almedina, Coimbra - 1997, pág. 165 e 171; Rabindranath Capelo de Sousa, O Direito Geral de Personalidade, Coimbra Editora - 1995, pág. 530; António Menezes Cordeiro, Da Boa Fé no Direito Civil, Vol. II, Colecção Teses, Liv. Almedina - Coimbra 1984, pág. 662.
[9]De « verwiken », v.t., incorrer em, perder. Verwirkung, « perda prescrição, caducidade, perempção, vencimento ». A tradução mais expressiva e apropriada é aqui é « exercício inadmissível do direito ». Ligado ao § 242 do B.G.B. __ [Leistungnach Treu undGlauben] « O devedor está obrigado a efectuar a prestação como exigem a fidelidade e a boa fé em atenção aos usos do tráfico ». __ o instituto da « Verwikung » proíbe, no âmbito de uma relação preexistente, que o titular de um direito o venha fazer valer em contradição com a conduta anterior, porque tal se afigura inadmissível perante os deveres de correcção e de boa fé vigentes na relação que seriam violados por tal exercício. Vd. Cunha de Sá, Abuso de Direito, Liv. Almedina, Coimbra - 1997, pág. 95.
[10]Vd. Menezes Cordeiro, Da Boa Fé no Direito Civil, Colecção Teses, Liv. Almedina – 1997 (reimpressão), págs.771 e segs.; e Tratado de Direito Civil Português, I (Parte Geral), Tomo I, Liv. Almedina – 1999, págs. 203 e segs.
[11]Vd. Jorge M. Coutinho de Abreu, in « Do Abuso de Direito », Liv. Almedina, Coimbra-1983, págs. 55 a 60.