Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
3577/17.8T8ALM.L1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: NUNO PINTO OLIVEIRA
Descritores: DECLARAÇÕES DE PARTE
VALOR PROBATÓRIO
PRINCÍPIO DA LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA
Data do Acordão: 06/19/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – PROCESSO DE DECLARAÇÃO / SENTENÇA / ELABORAÇÃO DA SENTENÇA / RECURSOS / RECURSO DE REVISTA / FUNDAMENTOS DO RECURSO.
Doutrina:
- António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil anotado, vol. I — Parte geral e processo de declaração (artigos 1.º a 702.º), Livraria Almedina, Coimbra, 2018, p. 529-532;
- João de Matos Antunes Varela, José Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de processo civil, 2.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 1985, p. 523-528;
- José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil anotado, vol. II — Artigos 362.º a 626.º, 3.ª ed., Livraria Almedina, Coimbra, 2018, p. 307-310;
- Luís Filipe Pires de Sousa, Declarações de parte. Uma síntese, in WWW:< http://www.trl.mj.pt/PDF/As%20declaracoes%20de%20parte.%20Uma%20sintese.%202017.pdf >;
- Maria dos Prazeres Beleza, A prova por declarações de parte: uma desnecessária duplicação das alegações das partes ou uma prova útil?, p. 21;
- Rui Pinto, Código de Processo Civil anotado, vol. I — Artigos 1.º a 545.º, Livraria Almedina, Coimbra, 2018, p. 669-682.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 608.º, N.º 2, 635.º, N.º 4, 639.º, N.º 1, 663.º, N.º 2 E 674.º, N.º 3.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 05-05-2015, PROCESSO N.º 607/06.2TBPMS.C1.S1;
- DE 04-06-2015, PROCESSO N.º 3852/09.5TJVNF.G1.S1;
- DE 14-12-2016, PROCESSO N.º 2604/13.2TBBCL.G1.S1;
- DE 12-07-2018, PROCESSO N.º 701/14.6TVLSB.L1.S1;
- DE 12-02-2019, PROCESSO N.º 882/14.9TJVNF-H.G1.A1.
Sumário :
Ainda que se considere que, como regra, as declarações de parte não são, só por si, suficientes para suportar uma decisão sobre um facto, sempre deverá ressalvar-se uma excepção para os casos em que a natureza dos factos a provar torne inviável outra prova.
Decisão Texto Integral:
ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA



I. — RELATÓRIO


        

1. AA, residente na Rua de …, n …, …, …, BB, residente na Rua …, n …, lote …, Quinta …, …, e CC, residente na Rua …, n …, …, …, na qualidade de herdeiras da herança indivisa do falecido DD, propuseram acção declarativa sob a forma de processo comum contra EE e FF, ambos residentes na Rua …, n …, …, …, pedindo que:

     I. — fosse declarada a nulidade do contrato de mútuo celebrado entre o falecido DD e os Réus EE e FF;

    II. — fossem os Réus condenados à restituição da quantia de €193.718,00, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos, à taxa legal de 4% ao ano, a contar desde a data de citação dos Réus e até efectivo e integral pagamento.


  2. As Autoras AA, BB e CC alegaram, em síntese, que o falecido DD emprestou aos Réus EE e FF, em meados de 1998, a quantia total de esc: 38.837.000$00 — que corresponde a 193.718,00 euros —; que, como garantia do pagamento os Réus entregaram ao falecido os cheques que as Autoras juntam aos autos; e que os cheques nunca foram apresentados a pagamento em virtude de os Réus não possuírem condições económicas e financeiras para restituírem a quantia emprestada.

     Em virtude da relação de amizade que unia o falecido DD e os Réus EE e FF, aquele acordou com estes que a quantia seria paga quando os Réus tivessem disponibilidade económica.

    DD, entretanto, faleceu e os Réus, apesar de instados pelas Autoras, nunca procederam ao pagamento da quantia.


   3. Os Réus EE e FF contestaram, alegando, em síntese, que tinham uma relação de negócios com o falecido DD; que recebiam cheques pré-datados de clientes; que, como necessitavam de liquidez, entregavam ao falecido DD os cheques pré-datados dos clientes para que DD lhes entregasse o valor titulado pelos cheques, contra pagamento de uma “comissão”; que o falecido DD apresentava os cheques daqueles clientes a pagamento e ficava com a quantia que cada um dos cheques titulava; que o falecido DD exigia, como garantia, que os Réus lhe entregassem cheques por si emitidos; e que, como que os cheques dos clientes entregues pelos Réus tivesse obtido boa cobrança, os Réus nada deviam.


  4. A 1.ª instância julgou totalmente improcedente a acção e, consequentemente, absolveu os Réus da totalidade do pedido.


  5. Inconformadas, as Autoras AA, BB e CC interpuseram recurso de apelação.


  6. O Tribunal da Relação de Lisboa, por maioria, concedeu provimento parcial ao recurso e revogou a sentença recorrida, nos seguintes termos:


“Nos termos supra expostos, acordam conceder parcial provimento ao recurso e em consequência revogam a sentença recorrida na parte em que julgou totalmente improcedente o pedido de restituição formulado pelas Autoras e condenou estas integralmente em custas, que nessa parte se substitui pelo presente acórdão que julga a acção parcialmente procedente por provada e em consequência condena os RR. a restituírem às Autoras a quantia de £35.100.41 (trinta e cinco mil e cem curos e quarenta e um cêntimos), acrescida de juros de mora à taxa legal desde a citação e até integral pagamento, com custas por Autoras e Réus na proporção de 4/5 para as primeiras e 1/5 para os segundos, mantendo-se a sentença na parte em que declarou a nulidade dos contratos de mútuo e julgou improcedente o pedido de restituição quanto aos valores parcelares correspondentes a 4.600.000$00 (quatro milhões e seiscentos mil escudos) e de 27.200.000$00 (vinte e sete milhões e duzentos mil escudos)”.


  7. Inconformados, Autoras e Réus interpuseram recurso de revista.


   8. As Autoras AA, BB e CC finalizaram a sua alegação com as seguintes conclusões:


A. As Recorrentes AA, BB e CC, não se conformando com o segmento decisório do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, que julgou improcedente o pedido de restituição quanto aos valores parcelares correspondentes a 4.600.000$00 e de 27.200.000$00, vêm interpor recurso parcial da decisão, apenas no que respeita a este segmento, para o Supremo Tribunal de Justiça, nos termos conjugados dos artigos 627.°, n.° 1, 629.°, n.° 1, 631.°, n.° 1, 635.°, n.° 2, 637.°, n.° 1, 638.°, n.° 1, 671.°, n.°s 1 e 3, a contrario, 675.°, n.° 1, e 676.°, n.° 1, todos do CPC, por considerarem que o mesmo padece dos seguintes vícios:

i) Violação e errada aplicação da lei de processo, nomeadamente, dos artigos 414.° e 466.°, ambos do CPC, por via da alínea b) do n.° 1 do artigo 674.° do mesmo diploma legal; e,

ii) Erro na apreciação da prova e na fixação dos factos materiais da causa, por ofensa de disposição que fixe a força de determinado meio de prova, nos termos do n.° 3 do artigo 674.° do CPC.

B. As declarações de parte, enquanto meio de prova, são um meio frágil, falível, que desde sempre foi alvo de manifestas reservas e críticas por partes dos agentes judiciais, sobretudo, do julgador.

C. O n.º 3 do artigo 466.º do CPC, que disciplina o regime jurídico das declarações de parte, refere que “[o] tribunal aprecia livremente as declarações das partes, salvo se as mesmas constituírem confissão”.

D. Visando as declarações de parte, na maioria das vezes, fazer prova de factos que beneficiam a parte que se disponibiliza para a sua prestação, é natural que o ponto de vista exposto pelo sujeito processual em apreço, naquelas declarações, seja parcial, interessado e irremediavelmente coincidente com a versão dos factos já exposta nos articulados.

E. Posto isto, é natural que as referidas declarações devam merecer as maiores reservas em sede de apreciação e valoração da prova pelo Mm.º Juiz que assiste à prestação de declarações.

F. Comparada com outros meios de prova, nomeadamente, a prova por confissão, feita nos articulados ou por via de depoimento de parte, ou a prova pericial, é irredutível que a prova por declarações de parte é um meio de prova mais frágil, que deverá sempre ser sopesado por outros meios de prova que corroborem a versão dos factos trazida pela parte a juízo, atribuindo-lhe credibilidade.

G. A melhor doutrina processualista tem vindo a reforçar esta ideia sobre a fragilidade das declarações de parte enquanto meio de prova que, necessariamente, deve ser sempre corroborado por meio de prova mais cabal, nomeadamente, testemunhal, documental, ou outro, que apresente versão dos factos conforme com a da parte que presta declaração.

H. As Recorrentes são da opinião que a prova por declarações de parte deve ser sempre atendida como um meio de prova complementar, ou seja, como prova subsidiária, necessariamente corroborada por outros meios mais desinteressados e imparciais, que permitam ao Juiz firmar convicções sobre os factos objecto de pleito.

I. De acordo com o artigo 414.º do CPC “[a] dúvida sobre a realidade de um facto e sobre a repartição do ónus da prova resolve-se contra a parte a quem o facto aproveita”, como tal, se o Douto Tribunal, perante os diferentes meios de prova produzidos em juízo, considerar que subsistem dúvidas sobre a realidade de um facto, a referida dúvida resolve-se contra a parte a quem o facto aproveita.

J. A análise do artigo 414.º do CPC tem particular interesse quando conjugado com a força a atribuir às declarações de parte, nos termos do n.º 3 do artigo 466.º do CPC, na medida em que, sendo este meio de prova parcial e interessado, e havendo dúvidas sobre a realidade de factos abordados naquelas declarações, o Mm.º Juiz deverá resolver a dúvida contra a parte a quem o facto aproveita.

K. Entendem as Recorrentes que o Douto Tribunal a quo, em sede de decisão sobre a matéria de facto, violou os preceitos incertos nos artigos 414.º e 466.º, ambos do CPC, quando deu como provado, na alínea L, o pagamento dos valores de 4.600.000$00 e 27.200.000$00 com base, tão só, nas declarações de parte da Ré FF.

L. Se a prova da existência do contrato de mútuo cabia às ora Recorrentes, por outro lado, a prova do seu pagamento, enquanto facto extintivo do direito invocado pelas Recorrentes, nos termos do n.º 2 do artigo 342.º do CC, cabia aos Réus.

M. Tendo em conta que a testemunha GG nada sabia sobre o pagamento da quantia reclamada pelas Autoras, então, resulta manifesto que os Doutos Tribunais de primeira e segunda instância deram como provado o pagamento das quantias de 4.600.000$00 e 27.200.000$00, tendo, tão só, por base, o depoimento de parte da Ré FF.

N. Constam dos autos meios de prova apresentados pelas Autoras, mormente, as suas declarações de parte, os cheques emitidos pelo Réu marido, a carta testamento, a minuta de contrato de mútuo, entre outros, que contrariam ou, pelo menos, geram dúvidas relativamente à credibilidade do depoimento de parte da Ré, no segmento em que refere que as quantias reclamadas pelas Autoras se encontram integralmente pagas.

O. Entendem as Recorrentes que, confrontando as declarações de parte da Ré FF com os demais meios de prova trazidos aos autos pelas ora Recorrente, seria impossível ao Douto Tribunal da Relação de Lisboa afirmar, com certeza bastante, que as quantias de 4.600.000$00 e 27.200.000$00 foram pagas pelos Réus com base em cheques pré-datados de clientes seus.

P. Importa referir que não se trata aqui de sindicar a livre convicção das instâncias relativamente aos factos controvertidos, mas tão-só perceber se era possível, tendo em conta os factos que teve conhecimento, não ter ficado com dúvidas quanto a saber se, efectivamente, aquelas quantias já haviam sido pagas pelos Réus a DD, tendo tão só como meio de prova as declarações de parte da Ré.

Q. Apesar das declarações de parte da Ré estarem sujeitas à livre apreciação do julgador, parece irrazoável extrair exclusivamente das suas palavras a prova deste facto, sobretudo porque se tratou de um depoimento cheio de incongruências.

R. Os Réus nunca lograram juntar cópia dos cheques pré-datados alegadamente entregues aquando da celebração do contrato de mútuo em discussão nos presentes autos, assim como do comprovativo do seu desconto.

S. Não é crível que apenas socorrendo-se das palavras da Ré FF, o tribunal a quo não tenha ficado com dúvidas quanto ao referido facto controvertido.

T. Refere os n.ºs 1 e 2 do artigo 342.º do CC que “[à]quele que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado”, ao passo que “a prova dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito invocado compete àquele contra quem a invocação é feita”, isto é, é sobre o devedor demandado que recai o ónus da prova de que esse modo de extinção da obrigação efectivamente ocorreu ou se verificou.

U. Não existem dúvidas sobre a repartição do ónus da prova, visto que é evidente que cabia aos Réus provar o pagamento das quantias mutuadas por DD, o que não fizeram.

V. Mas existem, na óptica das ora Recorrentes, manifestas dúvidas sobre o efectivo pagamento das quantias mutuadas, visto que é notório que defronte apenas das palavras da Ré FF o tribunal a quo nunca poderia almejar a convicção segura de que os Réus pagaram as quantias mutuadas, desprovido de outros meios de prova que corroborassem essa convicção.

W. Por existir a dúvida, esta, ao abrigo do disposto no artigo 414.º do CPC, deveria ter sido resolvida contra a parte a quem o facto aproveita, o que não sucedeu, visto que o Douto Tribunal da Relação de Lisboa deu como provado o pagamento das referidas quantias, que aproveitou tão só os Réus, pelo que, ao assim decidir, o tribunal a quo violou o disposto no artigo 414.º do CPC, quando conjugada com o n.º 3 do 466.º do CPC.

X. Pelo que, deverá o acórdão sub judice, na parte em que considerou provado o pagamento das quantias de 4.600.000$00 e 27.200.000$00, ser revogado e substituído por outro cujo processo de apreciação e cognição da prova respeite o disposto nos artigos 414.º e 466.º, n.º 3, ambos do CPC.

Y. A boa aplicação dos preceitos supra citados irá acarretar a necessária dúvida ao julgador sobre o efectivo pagamento das quantias de 4.600.000$00 e 27.200.000$00, como tal, daí advirá a necessidade de proceder à supressão da alínea L dos factos dados como provados, na redacção que lhe foi conferida pelo Douto Tribunal da Relação de Lisboa.

Z. Deste modo, entendem as ora Recorrentes que pode o Supremo Tribunal de Justiça alterar a decisão sobre a matéria de facto fixada pelo Douto Tribunal da Relação de Lisboa e, consequentemente, retirar a alínea L) do elenco dos factos dados como provados.

AA. Caso seja entendimento do douto tribunal ad quem que não é permitido ao Supremo Tribunal de Justiça, na sequência da apreciação da questão jurídica apresentada, alterar a decisão proferida pelas instâncias quanto à matéria de facto, mais se requer que o processo volte ao tribunal recorrido, nos termos do n.º 3 do artigo 682.º do CPC, para que o Douto Tribunal da Relação de Lisboa altere a decisão sobre a matéria de facto em conformidade com a decisão a tomar pelo Supremo Tribunal de Justiça e, consequentemente, retire a alínea L) dos factos dados como provados.

BB. Pauta o n.º 2 do artigo 342.º do CC que “[a] prova dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito invocado compete àquele contra quem a invocação é feita”, como tal, cabia aos Réus fazer prova do pagamento do(s) mútuo(s), enquanto facto extintivo do direito invocado pelas ora Recorrentes.

CC. Para prova do pagamento das quantias reclamadas pelas ora Recorrentes, os Réus apresentaram como único meio de prova as declarações de parte da Ré FF.

DD. O ónus de prova que incumbia aos Réus, por via da aplicação do n.º 2 do artigo 342.º do CC, não foi cumprido, na medida em que as declarações de parte da Ré FF desprovidas de outro meio probatório que corrobore a versão trazida a juízo pela Ré, jamais seriam aptas para, em singelo, fazer prova do pagamento de quantia superior a € 100.000,00.

EE. Face ao incumprimento manifesto do n.º 2 do artigo 342.º do CC, entendem as ora Recorrentes que a decisão recorrida ofendeu disposição expressa da lei que fixou a força de determinado meio de prova, que advém da conjugação do citado preceito com o disposto no n.º 3 do artigo 674.º do CPC, na medida em que o juízo cognitivo levado a cabo pelo julgador, sob a égide do n.º 3 do artigo 674.º do CPC, de modo algum poderia considerar cumprido o ónus de prova do pagamento que recaia sobre os Réus, ao abrigo do disposto no n.º 2 do artigo 342.º do CC.

FF. Nos termos do n.º 3 do artigo 674.º do CPC, é possível ao Supremo Tribunal de Justiça, em recurso de revista, apreciar o erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa.

GG. As Recorrentes entendem que o facto que consta na Alínea L, que assumiu no Douto Tribunal da Relação de Lisboa a redacção “Os dois primeiros cheques a que aludem as alíneas D) e J) nunca foram apresentados a pagamento pelo falecido DD em virtude dos cheques pré-datados dos clientes dos Réus, que foram entregues pelos Réus ao falecido DD, terem obtido pagamento”, deve ser retirado do elenco de factos dados como provados ou, caso assim não se entenda, ser substituído pela seguinte redacção, “Os cheques a que aludem as alíneas D) e J) nunca foram apresentados a pagamento.

HH. As Recorrentes entendem que do conjunto da prova produzida não se conclui que existiu pagamento por parte dos Réus das quantias referidas, como o acórdão sob recurso entendeu.

II. O falecido DD nunca deixou de tentar a cobrança do montante que os Réus lhe deviam, apesar de sua doença, como resulta das declarações de parte das ora Recorrentes e do testemunho do senhor HH.

JJ. Não existiria razão para um homem que passou por diversos internamentos médicos e que sempre demonstrou ser uma pessoa de elevado aprumo moral e honestidade, insistir na satisfação de uma dívida inexistente.

KK. A própria Ré FF confirma que existiu por parte do falecido DD tentativas de cobrar os cheques em apreço.

LL. Das declarações de parte da Ré percebe-se uma clara contradição no seu depoimento, uma vez que primeiro refere que o falecido DD “várias vezes” questionou sobre o pagamento dos valores em dívida, durante o período temporal compreendido entre o encerramento do negócio dos réus e o óbito do senhor DD, para, logo em seguida dizer que ele nunca ligou a pedir o valor que constava nos cheques e, posteriormente, reforçar que já tinha prestado contas “antes” ao falecido e à Autora AA.

MM. Os cheques de 4.600.000$00 e 27.200.000$00 não foram levados a pagamento pelo falecido DD devido à relação de amizade que existia entre as partes e não por o valor que os mesmos titulavam ter sido pago.

NN. O falecido DD tentou solucionar, por si, a situação, ao procurar conversar com os Réus para pedir o pagamento do montante que deviam, como decorre das declarações de parte das ora Recorrentes e do depoimento da testemunha HH.

OO. Não parece, ao contrário do que o douto Tribunal faz entender, que o falecido DD tenha ficado inerte em relação à cobrança do montante de 4.600.000$00 e 27.200.000$00 que lhe era devido.

PP. Inclusive pediu ao seu genro, o senhor HH, para elaborar uma minuta de contrato de mútuo onde consta o valor de 38.000.000$00, quantia que corresponde, grosso modo, à soma dos três cheques em discussão, documento junto em audiência de julgamento.

QQ. Foi junto aos autos pelas Autoras um documento que o falecido DD teria escrito por volta de 2015 em que elenca capital investido, bens e dívidas que possuía, como forma de instruir os seus familiares para o após a sua morte, que o Douto Tribunal da Relação de Lisboa designou de forma simplificada por “carta testamento”.

RR. Em tal documento temos explícito que para além do capital que tinha emprestado aos Réus, existia ainda outra dívida de 7.037.000$00, pois em 18 de Agosto de 1998, os Réus dirigiram-se ao IPO, porquanto o falecido estava ali internado, e o falecido DD passou-lhes um cheque com aquele montante, o qual, como se deu como provado, foi depositada em conta dos réus.

SS. A melhor interpretação a fazer do referido escrito é, sem dúvida, a interpretação literal da vontade do falecido, segundo a qual, existe um determinado valor de capital em dívida que não especifica, ao qual acresce o valor de 7.037.000$00, ou seja, este último valor não é o único valor em dívida.

TT. Questiona-se qual seria a razão de o falecido DD ter constantemente ligado e ido à casa dos réus, solicitado ao seu genro que elaborasse um contrato de mútuo em que constasse que já existia um valor mutuado de 38.000.000$00 e, finalmente, elaborado um documento para os seus herdeiros e no qual, além de especificamente mencionar os outros empréstimos refere ainda o cheque de 7.037.000$00, do qual tinha cópia do depósito, indicando ainda o local onde os outros cheques se encontravam, se sabia que o único cheque em dívida era este último, no valor de 7.037.000$00.

UU. O falecido DD respeitou a relação de amizade que tinha com os Réus e procurava conversar com estes para que, por si próprios, pagassem o que deviam.

VV. Não o tendo feito, quis o falecido deixar aos seus herdeiros a possibilidade de estes recuperarem o valor mutuado.

WW. Não foi produzida qualquer prova documental de que os Réus tenham realizado os pagamentos que alegam, ao contrário, as Autoras apresentaram não só os cheques, como o documento que o seu falecido pai e marido elaborou e onde confirmou a existência de uma dívida dos réus para consigo no valor de 38.000.000$00.

XX. Da prova documental que foi produzida, e a partir da análise crítica dos documentos e das declarações de parte e das testemunhas, não se consegue extrair que se verificou o pagamento dos valores de 4.600.000$00 e 27.200.000$00.

YY. Ainda sobre o documento junto aos autos que o falecido DD elaborou para os seus herdeiros, o tribunal a quo declara, como mais um motivo no sentido da inexistência da dívida, que só há referência explícita ao cheque de 7.037.000$00, do qual tinha o senhor DD cópia, sendo que não especifica os demais montantes, que somavam valor mais elevado e, portanto, conclui o tribunal a quo teria necessariamente” de estar mencionado.

ZZ. Cabe referir que o documento produzido pelo falecido DD é apenas uma declaração de vontade, expressão da autonomia privada, pelo que, não há aqui que ser aplicadas regras formais, pelo que não há exigência do que deveria ou não estar mencionado.

AAA. Apenas podemos supor que a quantia de 7.037.000$00 foi especificamente mencionada por ter a transação ocorrido numa situação especial, enquanto o falecido DD estava hospitalizado, enquanto que as demais, sendo contratadas em situações distintas, não ficaram guardadas na memória do falecido de forma tão esclarecedora mas, ainda assim, estavam igualmente documentadas com os cheques juntos com a Petição Inicial.

BBB. Em face do exposto, deve a matéria de facto dada como provada no ponto L ser suprimida ou, em alternativa, ser substituída pela seguinte redacção “L - Os cheques a que aludem as alíneas D) e J) nunca foram apresentados a pagamento.”

CCC. Retirando-se da referida supressão ou alteração as naturais cominações jurídicas, nomeadamente, a condenação dos Réus no pedido de restituição dos valores parcelares correspondentes a 4.600.000$00 e 27.200.000$00, que acrescerão ao valor em que os Réus já foram condenados de € 35.100,41, em conformidade com a declaração de voto vencido anexa ao acórdão sub judice.

Nestes termos e nos demais de direito que V. Exas doutamente suprirão, deve o presente recurso de revista ser julgado totalmente procedente e, em consequência, ser revogado o acórdão sub judice, na parte em que considerou provado o pagamento das quantias de 4.600.000$00 e 27.200.000$00, sendo substituído por decisão, cujo processo de apreciação e cognição da prova respeite o disposto nos artigos 414.º e 466.º, N.º 3, ambos do CPC,

E, em consequência,

Deve o Douto Tribunal Ad Quem alterar a decisão sobre a matéria de facto fixada pelo Douto Tribunal A quo e, nessa esteira, retirar a alínea L) do elenco dos factos dados como provados, ou, caso assim não se entenda, ordenar que o processo volte ao tribunal recorrido, nos termos do N.º 3 do artigo 682.º do CPC, para que o Douto Tribunal da Relação de Lisboa altere a decisão sobre a matéria de facto em conformidade com a decisão a tomar pelo Supremo Tribunal de Justiça e, consequentemente, aquele tribunal retire a alínea L) dos factos dados como provados.

Subsidiariamente,

Deve o Douto Tribunal Ad Quem, nos termos do N.º 3 do artigo 674.º do CPC, suprimir o Ponto L da matéria de facto dada como provada ou, em alternativa, ser aquela alínea substituída pela redacção seguinte “Os cheques a que aludem as alíneas D) e J) nunca foram apresentados a pagamento.”

Procedendo os pedidos anteriores, devem os Réus ser condenados no pedido de restituição dos valores parcelares correspondentes a 4.600.000$00 e 27.200.000$00, acrescidos de juros à taxa legal de 4 % ao ano desde a data da citação até efectivo e integral pagamento, que acrescerão ao valor em que os Réus já foram condenados de € 35.100,41.

Assim farão V. Exas. a tão almejada justiça.


  9. Os Réus EE e FF finalizaram a sua alegação com as seguintes conclusões:


1. — Não podem os ora Recorrentes aceitar a condenação de restituir o valor de 7.037.000$00 (€35.100,41) com base numa carta “testamento” redigida pelo Falecido no ano 2015, na qual menciona que os RR. lhe devem tal quantia.

2. — Trata-se de um documento particular que se circunscreve no âmbito das declarações (de ciência ou de vontade) que nela constam como feitas pelo subscritor.

3. — Tal documento, diferentemente do documento autêntico, que provém de uma entidade dotada de fé pública, não prova os factos que nele sejam narrados (Acórdão do STJ de 09/12/2008, Processo: 08A3665).

4. — As Recorridas também não provaram que efetivamente o cheque em crise não foi pago, pois até desconheciam por completo os negócios do falecido pai.

5. — Apesar de não ter sido impugnada a autoria desse documento, daí não resulta, necessariamente, que os factos compreendidos nas declarações dele constantes se hajam de considerar provados.

6. — Trata-se de uma mera declaração unilateral por parte do falecido e que nada prova que antes ou mesmo depois tal dívida não tenha sido paga.

7. — Conforme foi explicitado pela Ré, ora Recorrente, o cheque dos 7.037.000$00, não foi depositado na conta dos Recorrentes, mas sim de terceiros e foi pago tal valor ao falecido por transferência bancária.

8. — O falecido como tinha vários “negócios” com diversas pessoas, certamente não se apercebeu do pagamento do mesmo.

9. — No Acórdão em exame pode-se ler “Independentemente de tudo o que dizemos poder ter tido outros contornos, e de tudo o que dizemos poder ser entendido como dúvidas, então isto significa que na questão do cheque de sete mil contos não temos uma certeza razoável de que seja verdade o que a Ré disse, temos o elemento contraditório da carta testamento, e por isso não podemos dar como provado que o cheque de sete mil contos foi pago por meio de cheques de clientes dos RR.”

10. — O Acórdão recorrido não deixa de reconhecer a falência sublinhada, socorrendo-se num sentimento de dúvida, também ele sem base em factos precisos e objetivos e de mero raciocínio teórico.

11. — Pelo que resulta violado o disposto no artigo 224 nº1 do Código Civil, “A declaração negocial que tem um destinatário torna-se eficaz logo que chega ao seu poder ou é dele conhecida; as outras, logo que a vontade do declarante se manifesta na forma adequada”.

12. — Ofendendo a razoabilidade, o bom senso e a boa fé.

Deve pois ser admitido o presente Recurso de Revista e no final ser julgado procedente, revogando-se o Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, com as legais consequências.


  10. Corridos os vistos, cumpre apreciar e decidir.


   11. Como o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente (cf. arts. 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cf. art. 608.º, n.º 2, por remissão do art. 663.º, n.º 2, do Código de Processo Civil), as questões a decidir, in casu, relacionam-se com os factos dados provados com as alíneas D) e L).


D) EE emitiu a favor de DD os seguintes cheques:

— Cheque n.º 16…, no valor de quatro milhões e seiscentos mil escudos;

— Cheque n.º 25…, no valor de vinte e sete milhões e duzentos mil escudos;

— Cheque n.º 31…, no valor de sete milhões e trinta e sete mil escudos, tudo conforme documentos juntos a folhas 09 e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.

 L) Os dois primeiros cheques a que aludem as alíneas I) e J) nunca foram apresentados a pagamento pelo falecido DD em virtude [de os] cheques pré-datados dos clientes dos Réus, que foram entregues pelos Réus ao falecido DD, terem obtido pagamento.


   Coordenando-se as alíneas D) e L), conclui-se que não se dá como provado que o cheque n.º 31…, no valor de sete milhões e trinta e sete mil escudos, tenha obtido pagamento.

      Em primeiro lugar, pergunta-se se a convicção do tribunal sobre o facto de os cheques n.º 16…, no valor de quatro milhões e seiscentos mil escudos, e n.º 25…, no valor de vinte e sete milhões e duzentos mil escudos, terem obtido pagamento pode sustentar-se esclusivamente sobre um depoimento de parte (recurso interposto pelas Autoras).

       Em segundo lugar, pergunta-se se a convicção do tribunal sobre o facto de o cheque de o cheque n.º 31…, no valor de sete milhões e trinta e sete mil escudos, não ter obtido pagamento pode sustentar-se exclusivamente sobre um documento particular, sobre uma “carta-testamento”, escrito pelo falecido DD (recurso interposto pelos Réus).


II. — FUNDAMENTAÇÃO


         OS FACTOS


   12. A 1.ª instância deu como provados os factos seguintes.


A - DD faleceu no dia 29 de Maio de 2016, deixando como únicos herdeiros legitimários a sua cônjuge AA e as suas filhas BB e CC.

B - DD emitiu o cheque no 38…, com a data de 18 de Agosto de 1998, no valor de sete milhões e trinta e sete mil escudos conforme documento junto a folhas 09 dos autos e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.

C – O cheque a que alude a alínea B) foi depositado na conta dos Réus.

D – EE emitiu a favor de DD os seguintes cheques:

— Cheque n.º 16…, no valor de quatro milhões e seiscentos mil escudos;

— Cheque n.º 25…, no valor de vinte e sete milhões e duzentos mil escudos;

— Cheque n.º 31…, no valor de sete milhões e trinta e sete mil escudos, tudo conforme documentos juntos a folhas 09 e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.

E - DD era amigo dos Réus.

F – Por carta datada de 15 de Novembro de 2016 as Autoras interpelaram os Réus para que procedessem ao pagamento da quantia de €193.718,00.

G – Entre o falecido DD e os Réus foi celebrado um acordo verbal mediante o qual estes entregavam àquele cheques pré-datados emitidos por clientes dos Réus e em troca o falecido DD entregava aos Réus as quantias apostas nos cheques dos clientes dos Réus, mediante o pagamento de uma quantia não concretamente apurada por parte dos Réus ao falecido DD.

H – Na sequência do constante da alínea G), o falecido DD exigia ainda aos Réus a emissão e entrega de cheques como garantia do valor total dos cheques pré-datados dos clientes dos Réus.

I – Na sequência do constante nas alíneas G) e H), o falecido DD, em meados do ano de 1998, adiantou aos Réus a quantia total de esc: 38.837.000$00 (que corresponde a €193.718,00), tendo para o efeito aquele emitido dois cheques no valor, respectivamente, de esc: 4.600.000$00, esc: 27.200.000$00 e o cheque a que alude a alínea B).

J - Os cheques a que alude a alínea D) foram entregues a DD como garantia na sequência do constante da alínea G) e H) e nunca foram apresentados pelo falecido DD a pagamento.

L – Os cheques a que aludem as alíneas D) e J) nunca foram apresentados a pagamento pelo falecido DD em virtude dos cheques pré-datados dos clientes dos Réus, que foram entregues pelos Réus ao falecido DD, terem obtido pagamento.


  13. Em contrapartida, a 1.ª instância deu como não provados os factos seguintes:


1 – A não apresentação dos cheques a que alude a alínea D) a pagamento deveu-se ao facto dos Réus não possuírem condições para proceder ao seu pagamento.

2 – Tendo sido acordado entre o falecido DD e os Réus que estes entregariam àquele as quantias assim que possuíssem condições para proceder ao pagamento.


    14. O Tribunal da Relação de Lisboa alterou a redacção das alíneas I) J) e L), passando a ter a seguinte redacção:


I) O falecido DD, em meados do ano de 1998, adiantou aos Réus a quantia total de esc: 38.837.000$00 (que corresponde a f193.718A0), tendo para o efeito aquele emitido dois cheques no valor  respectivamente, de esc: 4.600.000$00, esc: 27.200.000$00, estes na sequência do constante nas alíneas G) e H), e o cheque a que alude a alínea B).

J) Os cheques a que alude a alínea D) foram entregues a DD como garantia, os dois primeiros mencionados na alínea D) na sequência do constante da alínea G) e H), e nunca foram apresentados pelo falecido DD a pagamento”.

L) Os dois primeiros cheques a que aludem as alíneas I) e J) nunca foram apresentados a pagamento pelo falecido DD em virtude [de os] cheques pré-datados dos clientes dos Réus, que foram entregues pelos Réus ao falecido DD, terem obtido pagamento”.


   15. Face à alteração feita pelo Tribunal da Relação de Lisboa, os factos dados como provados foram os seguintes:


A - DD faleceu no dia 29 de Maio de 2016, deixando como únicos herdeiros legitimários a sua cônjuge AA e as suas filhas BB e CC.

B - DD emitiu o cheque no 38…, com a data de 18 de Agosto de 1998, no valor de sete milhões e trinta e sete mil escudos conforme documento junto a folhas 09 dos autos e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.

C – O cheque a que alude a alínea B) foi depositado na conta dos Réus.

D – EE emitiu a favor de DD os seguintes cheques:

 — Cheque n.º 16…, no valor de quatro milhões e seiscentos mil escudos;

— Cheque n.º 25…, no valor de vinte e sete milhões e duzentos mil escudos;

— Cheque n.º 31…, no valor de sete milhões e trinta e sete mil escudos, tudo conforme documentos juntos a folhas 09 e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.

E - DD era amigo dos Réus.

F – Por carta datada de 15 de Novembro de 2016 as Autoras interpelaram os Réus para que procedessem ao pagamento da quantia de €193.718,00.

G – Entre o falecido DD e os Réus foi celebrado um acordo verbal mediante o qual estes entregavam àquele cheques pré-datados emitidos por clientes dos Réus e em troca o falecido DD entregava aos Réus as quantias apostas nos cheques dos clientes dos Réus, mediante o pagamento de uma quantia não concretamente apurada por parte dos Réus ao falecido DD.

H – Na sequência do constante da alínea G), o falecido DD exigia ainda aos Réus a emissão e entrega de cheques como garantia do valor total dos cheques pré-datados dos clientes dos Réus.

I) O falecido DD, em meados do ano de 1998, adiantou aos Réus a quantia total de esc: 38.837.000$00 (que corresponde a f193.718A0), tendo para o efeito aquele emitido dois cheques no valor respectivamente, de esc: 4.600.000$00, esc: 27.200.000$00, estes na sequência do constante nas alíneas G) e H), e o cheque a que alude a alínea B).

J) Os cheques a que alude a alínea D) foram entregues a DD como garantia, os dois primeiros mencionados na alínea D) na sequência do constante da alínea G) e H), e nunca foram apresentados pelo falecido DD a pagamento.

L) Os dois primeiros cheques a que aludem as alíneas I) e J) nunca foram apresentados a pagamento pelo falecido Francisco Lagoa em virtude [de os] cheques pré-datados dos clientes dos Réus, que foram entregues pelos Réus ao falecido DD, terem obtido pagamento.


        O DIREITO


    16. O art. 674.º, n.º 3, do Código de Processo Civil é do seguinte teor:


O erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objeto de recurso de revista, salvo havendo ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova.


    Como se escreve, p. ex., nos acórdãos de 14 de Dezembro de 2016 — proferido no processo n.º 2604/13.2TBBCL.G1.S1 —, de 12 de Julho de 2018 — proferido no processo n.º 701/14.6TVLSB.L1.S1 — e de 12 de Fevereiro de 2019 — proferido no processo n.º 882/14.9TJVNF-H.G1.A1 —,


“… o erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa escapa ao âmbito dos poderes de cognição do Supremo Tribunal de Justiça (artigos 674º nº 3 e 682º nº 2 do Código de Processo Civil), estando-lhe interdito sindicar a convicção das instâncias pautada pelas regras da experiência e resultante de um processo intelectual e racional sobre as provas submetidas à apreciação do julgador. Só relativamente à designada prova vinculada, ou seja, aos casos em que a lei exige certa espécie de prova para a demonstração do facto ou fixa a força de determinado meio de prova, poderá exercer os seus poderes de controlo em sede de recurso de revista” [1].


“… está vedado ao STJ conhecer de eventual erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa, apenas lhe sendo permitido sindicar a actuação da Relação nos casos da designada prova vinculada ou tarifada, ou seja quando está em causa um erro de direito (arts. 674.º, n.º 3, e 682.º, nº 2)” [2].


    Face ao art. 674.º, n.º 3, cada uma das duas questões deve reformular-se.

     Com a primeira questão, pergunta-se se a circunstância de a convicção do tribunal sobre o facto de os cheques n.º 16…, no valor de quatro milhões e seiscentos mil escudos, e n.º 25…, no valor de vinte e sete milhões e duzentos mil escudos, terem obtido pagamento se sustentar exclusivamente sobre um depoimento de parte envolve ofensa de uma disposição expressa da lei sobre a admissibilidade ou sobre o valor de um meio de prova; com a segunda questão, pergunta-se se a circunstância de a convicção do tribunal sobre o facto de o cheque n.º 31…, no valor de sete milhões e trinta e sete mil escudos, não ter obtido pagamento se sustentar exclusivamente sobre uma carta-testamento escrita pelo falecido DD envolve ofensa de uma disposição expressa da lei sobre a admissibilidade ou sobre o valor de um meio de prova.


   17. Os princípios gerais sobre a admissibilidade e sobre o valor das declarações de parte constam do art. 466.º do Código de Processo Civil [3]. O n.º 1 do art. 466.º pronuncia-se sobre a admissibilidade [4] e o n.º 3, sobre o valor das declarações de parte, dizendo que


O tribunal aprecia livremente as declarações das partes, salvo se as mesmas constituírem confissão.


    Os princípios gerais sobre o valor dos documentos e, dentro dos documentos, dos documentos particulares, esses, constam do art. 376.º do Código Civil:


1. — O documento particular cuja autoria seja reconhecida nos termos dos artigos antecedentes faz prova plena quanto às declarações atribuídas ao seu autor, sem prejuízo da arguição e prova da falsidade do documento.

2. — Os factos compreendidos na declaração consideram-se provados na medida em que forem contrários aos interesses do declarante; mas a declaração é indivisível, nos termos prescritos para a prova por confissão.

3. — Se o documento contiver notas marginais, palavras entrelinhadas, rasuras, emendas ou outros vícios externos, sem a devida ressalva, cabe ao julgador fixar livremente a medida em que esses vícios excluem ou reduzem a força probatória do documento.


   O n.º 3 do art. 466.º do Código de Processo Civil e o n.º 2 do art. 376.º do Código Civil devem em todo o caso relacionar-se com o n.º 5 do art. 607.º do Código de Processo Civil [5]:


 O juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto; a livre apreciação não abrange os factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, nem aqueles que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão das partes.


   18. As Autoras alegam que circunstância de a convicção do tribunal sobre o facto de os cheques n.º 16…, no valor de quatro milhões e seiscentos mil escudos, e n.º 25…, no valor de vinte e sete milhões e duzentos mil escudos; terem obtido pagamento, se sustentar exclusivamente sobre um depoimento de parte envolve ofensa de três disposições da lei — do art. 342.º do Código Civil e dos arts. 414.º e 466.º do Código de Processo Civil. 

      Os Réus, esses, não alegam que a circunstância de convicção do tribunal sobre o facto de o cheque n.º 31…, no valor de sete milhões e trinta e sete mil escudos, não ter obtido pagamento se sustentar exclusivamente sobre um documento particular, sobre uma “carta-testamento” escrita pelo falecido DD, envolva a ofensa de nenhuma disposição da lei — alegam, tão-só, que envolve ofensa da “razoabilidade”, do “bom senso” e / ou da “boa fé” [6].


    19. Os argumentos deduzidos do art. 342.º do Código Civil e do art. 414.º do Código de Processo Civil devem excluir-se, por serem em concreto irrelevantes.

     Os dois artigos pronunciam-se sobre o problema do ónus da prova e o problema do ónus da prova pressupõe que o tribunal não tenha formado uma convicção — e, no caso, o tribunal formou uma convicção sobre o facto de os cheques terem, ou não obtido, pagamento.

          Excluídos os argumentos deduzidos do art. 342.º do Código Civil, deve concluir-se duas coisas:

           

   20. Em primeiro lugar, a circunstância o tribunal recorrido ter formado a sua convicção sobre o facto de os cheques n.º 16…, no valor de quatro milhões e seiscentos mil escudos, e n.º 25…, no valor de vinte e sete milhões e duzentos mil escudos, terem obtido pagamento a partir de declarações de parte não envolve ofensa de nenhuma disposição expressa da lei.

     O art. 466.º, n.º 3, em ligação com o art. 607.º, n.º 5, do Código de Processo Civil, está no centro de uma controvérsia entre duas teses; está no centro de uma controvérsia entre a tese de que as declarações de parte não são, e não podem ser suficientes, e a tese de que as declarações de parte são, ou podem ser, suficientes para sustentar uma decisão sobre um facto.

     Considerar-se que as declarações de parte não são, e que não podem ser, suficientes significaria que não são um meio de prova como outro qualquer; que só podem funcionar antes ou depois dos demais meios de prova, com carácter supletivo [7]; considerar-se que as declarações de parte são, ou que podem ser, só por si suficientes, significaria que são um meio de prova como outro qualquer — e que, “como outro qualquer, pode suportar só por si uma decisão sobre um facto” [8] [9].

   Significaria uma normalização do valor probatório das declarações de parte [10].

      Em todo o caso, ainda que se considere que, como regra, as declarações de parte não são, só por si, suficientes para suportar uma decisão sobre um facto [11], sempre se ressalvará uma excepção para os casos “em que a natureza dos factos a provar torne inviável outra prova” [12].

       Ora o caso sub judice é precisamente um dos casos em que a natureza dos factos a provar torna inviável uma prova mais segura — e, porque mais segura, mais valiosa.

        Como se diz na fundamentação do acórdão recorrido,


“sendo a prova por declarações de parte, ou a prova que sobra de depoimento de parte na parte em que não se obtém confissão, um meio de prova particularmente falível, porque naturalmente comprometido, e devendo pois ser levado em conta com particular reserva, no entanto, num caso como o presente, a decisão do tribunal assentará precisamente e mais essencialmente — e ainda antes da aplicação, pelo tribunal, das regras sobre o ónus de prova […] — na apreciação de dois meios de prova de idêntico valor e igual comprometimento, ou seja, de igual falta de isenção”.


   Face a uma adequada interpretação do princípio da livre apreciação das declarações de parte, não pode dar-se provimento ao recurso interposto pelas Autoras.


   21. Em segundo lugar, a circunstância de o tribunal recorrido ter formado a sua convicção sobre o facto de o cheque n.º 31…, no valor de sete milhões e trinta e sete mil escudos, não ter obtido pagamento a partir de um documento particular, a partir de uma “carta-testamento” escrita pelo falecido DD, não envolve ofensa de nenhuma disposição expressa da lei.

       O art. 376.º do Código Civil distingue a prova da declaração (n.º 1) e a prova dos factos compreendidos na declaração (n.º 2) — e, em relação à prova dos factos compreendidos na declaração, distingue a prova dos factos desfavoráveis ao declarante e a prova dos demais factos (ou seja, a prova dos factos favoráveis ao declarante e a prova dos factos neutros) [13].

       Quanto à prova dos factos desfavoráveis ao declarante, o n.º 2 do art. 376.º do Código Civil estabelece uma regra especial — a regra de que se consideram provados — e, quanto aos demais factos, favoráveis ao declarente ou neutros, o n.º 2 do art. 376.º não estabelece nenhuma regra especial, remetendo para a regra geral — “o documento é livremente apreciado pelo julgador” [14].

      Os factos compreendidos na declaração, na “carta-testamento”, escrita pelo falecido DD são factos favoráveis ao declarante — e, como os factos compreendidos na declaração fossem favoráveis ao declarante, o tribunal pode apreciá-la livremente.

      Face ao princípio da livre apreciação dos documentos particulares para efeitos da prova de factos compreendidos na declaração e favoráveis ao declarante, consignado no art. 376.º do Código Civil, não pode dar-se provimento ao recurso interposto pelos Réus.  


  22. Finalmente, os argumentos deduzidos da boa fé, do bom senso ou da razoabilidade devem excluir-se, por não serem susceptíveis de apreciação pelo Supremo Tribunal de Justiça.

   Entrar na apreciação da boa fé, do bom senso ou da razoabilidade da decisão da matéria de facto seria sair do domínio da prova vinculada para “sindicar a convicção das instâncias”, para sindicar se as “regras da experiência” ou o “processo intelectual e racional sobre as provas submetidas à apreciação do julgador” — coisa que o Supremo Tribunal de Justiça não pode e, em todo o caso, não deve fazer (art. 374.º, n.º 3, do Código de Processo Civil, a contrario sensu).


III. — DECISÃO


   Pelo exposto, nega-se provimento aos recursos e confirma-se o acórdão recorrido.

   Custas pelos Recorrentes.


Lisboa, 19 de Junho de 2019


Nuno Manuel Pinto Oliveira (Relatora)

Paula Sá Fernandes

Maria dos Prazeres Beleza

___________

[1] Cf. do Supremo Tribunal de Justiça de 14 de Dezembro de 2016 — processo n.º 2604/13.2TBBCL.G1.S1.

[2] Cf. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12 de Julho de 2018  — processo n.º 701/14.6TVLSB.L1.S1.

[3] Sobre a interpretação do art. 466.º do Código de Processo Civil, vide desenvolvidamente José Lebre de Freitas / Isabel Alexandre, anotação ao art. 466.º, in: Código de Processo Civil anotado, vol. II — Artigos 362.º a 626.º, 3.ª ed., Livraria Almedina, Coimbra, 2018 (reimpressão), págs. 307-310; António Santos Abrantes Geraldes / Paulo Pimenta / Luís Filipe Pires de Sousa, anotação ao art. 466.º, in: Código de Processo Civil anotado, vol. I — Parte geral e processo de declaração (artigos 1.º a 702.º), Livraria Almedina, Coimbra, 2018, págs. 529-532; Rui Pinto, anotação ao art. 466.º, in: Código de Processo Civil anotado, vol. I — Artigos 1.º a 545.º, Livraria Almedina, Coimbra, 2018, págs. 669-682; Maria dos Prazeres Beleza, “A prova por declarações de parte: uma desnecessária duplicação das alegações das partes ou uma prova útil?” (inédito); ou Luís Filipe Pires de Sousa, “Declarações de parte. Uma síntese”, in: WWW: < http://www.trl.mj.pt/PDF/As%20declaracoes%20de%20parte.%20Uma%20sintese.%202017.pdf >.

[4] O art. 466.º, n.º 1, do Código de Processo Civil é do seguinte teor: “As partes podem requerer, até ao início das alegações orais em 1.a instância, a prestação de declarações sobre factos em que tenham intervindo pessoalmente ou de que tenham conhecimento direto”.

[5] Vide, para as declarações de parte, António Santos Abrantes Geraldes / Paulo Pimenta / Luís Filipe Pires de Sousa, anotação ao art. 466.º, in: Código de Processo Civil anotado, vol. I — Parte geral e processo de declaração (artigos 1.º a 702.º), cit., pág. 532.

[6] Em rigor, os Réus deduzem um segundo argumento — o acórdão recorrido violaria o art. 224.º, n.º 1, do Código Civil. O problema está em que argumento de que o acórdão recorrido viola o art. 224.º, n.º 1, do Código Civil decorre de uma confusão entre as declarações de ciência, relevantes para efeitos de prova, e as declarações de vontade (de vontade negocial). O art. 224.º´, n.º 1, do Código Civil aplica-se exclusivamente ás declarações de vontade, declarações de vontade negocial ou declarações negociais. Ora o Tribunal da Relação de Lisboa considerou as declarações do falecido Francisco Lagoa como declarações de ciência, pelo que o argumento de que o acórdão recorrido viola o art. 224.º, n.º 1, é de todo em todo irrelevante.

[7] Cf. António Santos Abrantes Geraldes / Paulo Pimenta / Luís Filipe Pires de Sousa, anotação ao art. 466.º, in: Código de Processo Civil anotado, vol. I — Parte geral e processo de declaração (artigos 1.º a 702.º), cit., pág. 532.

[8] Rui Pinto, anotação ao art. 466.º, in: Código de Processo Civil anotado, vol. I — Artigos 1.º a 545.º, cit., pág. 680.

[9] Em termos semelhantes, vide os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 5 de Maio de 2015 — processo n.º 607/06.2TBPMS.C1.S1 —, de 4 de Junho de 2015 — processo n.º 3852/09.5TJVNF.G1.S1 — e de 14 de Dezembro de 2016 — processo n.º 2604/13.2TBBCL.G1.S1.

[10] Cf. Rui Pinto, anotação ao art. 466.º, in: Código de Processo Civil anotado, vol. I — Artigos 1.º a 545.º, cit., pág. 680.

[11] Cf. Maria dos Prazeres Beleza, “A prova por declarações de parte: uma desnecessária duplicação das alegações das partes ou uma prova útil?”, cit., pág. 21: “Suponho que o princípio da livre apreciação das provas permite responder adequadamente ao problema, pois implica, desde logo, a avaliação das declarações tendo em conta a sua proveniência.”, continuando com a seguinte ressalva: “… suponho que esta proveniência implicará que, como regra, as declarações de parte não sejam aptas, por si só, a fundamentar um juízo de prova”.

[12] Cf. Maria dos Prazeres Beleza, “A prova por declarações de parte: uma desnecessária duplicação das alegações das partes ou uma prova útil?”, cit., pág. 21 — considerando que, “[n]essa situação, seria vantajoso que a parte contrária também depusesse, tendo todo o cabimento que o juiz o determinasse por sua iniciativa, se não fosse requerida”.

[13] Sobre a interpretação do art. 376.º do Código Civil, vide desenvolvidamente, por todos, João de Matos Antunes Varela / José Miguel Bezerra / Sampaio e Nora, Manual de processo civil, 2.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 1985, págs. 523-528.

[14] Cf. João de Matos Antunes Varela / José Miguel Bezerra / Sampaio e Nora, Manual de processo civil, cit., pág. 524.