Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
322/13.0TBTND.C1.S1
Nº Convencional: 6ª. SECÇÃO
Relator: NUNO CAMEIRA
Descritores: ACESSÃO DA POSSE
TÍTULO
VALIDADE
INVALIDADE
USUCAPIÃO
Data do Acordão: 11/29/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - DIREITOS REAIS / POSSE / USUCAPIÃO.
Doutrina:
- Abílio Vassalo de Abreu, «A necessidade de Uma Mudança Jurisprudencial em Matéria de Acessão da Posse», R.O.A. (Outubro/Dezembro 2012), 1247-1322; «Uma relectio sobre a acessão da posse (art.º 1256.º do CC)», nos 20 Anos do Código das Sociedades Comerciais, Volume II, Coimbra Editora, 2007, 187.
- José Alberto Vieira, Direitos Reais, Coimbra Editora (2008), 414 e ss..
- Paulo Soares do Nascimento, «Anotação ao acórdão do S.T.J., de 22.11.05, Proc. n.º 3304/05», em C.D.P. n.º 21, Janeiro/Março 2008, 41 e ss..
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 1256.º, 1259.º, N.º1, 1261.º, 1262.º, 1263.º, ALS. B) E C), 1296.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

-DE 02/12/2014, PROC. N.º 94/07.8TBSCD.C1.S1.
Sumário :
I - O instituto da acessão da posse previsto no art. 1256.º do CC destina-se a facilitar a aquisição do direito de propriedade e de outros direitos reais de gozo por usucapião.

II - Só a posse pública – a que se exerce de modo a poder ser conhecida pelos interessados (art. 1262.º do CC) – e pacífica – a que foi adquirida sem violência (art. 1262.º do CC) – é susceptível de conduzir à usucapião.

III - A existência ou não de título da posse, bem como a boa ou a má fé, influem apenas na determinação do prazo necessário à usucapião, mas não impedem a sua verificação.

IV - Deste modo, e atenta a sua finalidade, a acessão da posse não exige a validade do título justificativo da transmissão da posse.

V - A falta de alegação, pelas autoras, de actos de posse do antecessor do de cujus, não permite concluir se há ou não há posses susceptíveis de serem juntas, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 1256.º do CC.
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

1. Resumo dos termos essenciais da causa e do recurso

1.1. Na Comarca de …, AA e BB, residentes em …, propuseram uma acção ordinária contra:

1ºs - CC; DD e sua mulher EE; a herança aberta por óbito de FF e sua mulher GG (falecidos, respectivamente, em 27/4/2003 e 11/3/1995, sendo a herança representada pelos referidos CC e DD);

2ºs - HH e sua mulher II (falecidos, respectivamente, em 10/5/2000 e 5/7/2013, tendo sido habilitados como seus herdeiros JJ e KK);

3º - LL, Ldª, com sede em …, …;

4ª - MM;

5ºs - NN e sua mulher OO;

6ºs - PP e seu marido QQ;

7ºs - RR e sua mulher SS;

8ºs - TT e sua mulher UU;

9ª - VV (interdita, representada pela sua tutora, WW);

10ºs -  WW e seu marido XX.

Pediram:

a) A condenação dos 1ºs e 3ºs a 10ºs réus a reconhecer que a parcela de terreno a retirar do prédio identificado em 6º e identificada no artigo 17º da petição inicial pertence à herança aberta por óbito de RR, falecido em 18/11/2010, a fim de ser partilhada no referido inventário;

b) A condenação dos 2ºs a 10ºs réus a reconhecer que o prédio identificado no artigo 37º da petição inicial pertence à herança aberta por óbito de RR, falecido em 18/11/2010, a fim de ser partilhado no referido inventário;

c) A condenação dos 3ºs a 10ºs réus a reconhecer que o prédio identificado no artigo 8º pertence à herança aberta por óbito de RR, falecido em 18/11/2010, a fim de ser partilhado no referido inventário;

d) Que seja ordenada a desanexação da parcela identificada no artigo 17º da petição do artigo matricial rústico nº 5670 do concelho de …, freguesia de …, que se encontra efectuado sobre o prédio mãe, que deu origem ao prédio da herança de RR, por o mesmo constituir um prédio autónomo, independente e demarcado daquele;

e) Que se ordene ao Serviço de Finanças de … a inscrição na matriz da parcela de terreno identificada no artigo 17º da petição e com essas características, bem como a rectificação do artigo matricial 0670 da freguesia de ..., do concelho de ..., no sentido de aí se retirar à área total do prédio, aquela que pertence à Autora, ficando aquele prédio com a área de 23.000 m2;

f) Que se declare que a assinatura com o nome de RR não foi aposta pelo seu punho no documento 20 junto com a petição inicial, sendo falsa, declarando-se a nulidade deste contrato, e os 3º a 10ºs réus condenados a reconhecer essa nulidade;

g) Que se ordene o cancelamento dos registos que venham a efetuar-se sobre os prédios identificados nos artigos 6º, 8º, 17º e 37º da freguesia de ..., concelho de ..., à excepção da presente acção.

Em resumo, alegaram:

- Que corre termos no Tribunal de ... sob o Procº 81/11.1TBTND do 1º Juízo, o inventário aberto por óbito de RR, falecido em 18/11/2010;

- Que o falecido deixou os seguintes filhos: NN, PP, AA, BB, RR, TT, VV e WW;

- Que também deixou viúva, a Ré MM;

- Que no referido processo de inventário não foi relacionado como bem da herança a área de 9.000 m2 que o falecido comprou de forma verbal aos 1ºs RR, área essa a retirar do prédio rústico situado em ..., inscrito na matriz predial rústica da freguesia de ... sob o artigo 0670, concelho de ...;    

- Que em 2005 o de cujus comprou verbalmente aos 1ºs Réus aquela área, por quinze mil euros, que logo pagou, área essa que originou o prédio descrito em 17º da petição inicial;

- Que a partir dessa data o de cujus, e quem o antecedeu na posse, exerceu os actos correspondentes ao direito de propriedade, como se fosse coisa sua, amanhando a terra e tendo cravado marcos a dividir a mesma, sem oposição;

- Que o prédio tem uma configuração distinta do remanescente, pelo que se justifica a sua desanexação;

- Que há cerca de 10 anos o mesmo de cujus adquiriu verbalmente aos 2ºs réus, pelo preço de três mil euros, o imóvel identificado no artigo 37º da PI, tendo praticado os actos possessórios correspondentes ao exercício do direito de propriedade, bem como os antecessores;

- Que tais prédios não foram relacionados no referido inventário, devendo tê-lo sido;

- Que se encontra relacionado no dito inventário aberto por óbito de RR um direito de crédito, no montante de 15.000 €, respeitante a um contrato promessa alegadamente celebrado pelo autor da herança, descrito no artigo 54º da petição inicial, que não foi assinado pelo falecido, não sendo verdadeiro o contrato referido;

- Que nunca o autor da herança fez tal promessa de compra e venda, nem recebeu qualquer quantia a título de sinal e de início de pagamento.

Os réus RR e mulher, MM, TT e mulher,  WW e marido e LL, Ldª, contestaram e deduziram reconvenção, impugnando parte dos factos alegados pelas autoras e negando que RR tenha comprado a área de terreno referida na petição. Alegaram, concretamente, que essa área foi comprada em 2006 pelos réus TT e RR, data a partir da qual passaram a ter a respectiva fruição e uso; que foram estes réus quem a cedeu à sociedade ré, para seu uso, mas apenas como comodatária; que nunca o falecido RR comprou o prédio referido no ponto 37 da petição, que era dos 2ºs réus, a quem foi comprado em 2006 pelo preço de 2.500 €, mas pelos 7º e 8º réus; tais prédios, por isso, nunca pertenceram ao falecido RR, razão pela qual não podem ser partilhados na herança por ele deixada. Por fim, confirmaram a existência do contrato promessa referido pelas autoras, bem como a genuinidade das assinaturas e o seu interesse na celebração do contrato de compra e venda prometido.

Com base nestes factos pediram a improcedência da acção e a procedência da reconvenção mediante a condenação das autoras a reconhecer que a área referida nos pontos 6º e 17º da petição inicial e o prédio identificado no ponto 37º desse articulado pertencem aos reconvintes, e a celebrar o contrato prometido, juntamente com os demais herdeiros do promitente vendedor.

As autoras responderam, mantendo o alegado na petição e sustentando a improcedência da reconvenção.

1.2. Findos os articulados, foi proferido em 29/9/15 despacho saneador-sentença que não admitiu a reconvenção e conheceu do mérito da acção nos seguintes termos, que se reproduzem na parte relevante para a apreciação do recurso:

“...Conforme se extrai da factualidade alegada, é pretendido o reconhecimento de um direito de propriedade com fundamento no instituto da usucapião, face à nulidade dos atos transmissivos da propriedade dos mesmos, uma vez que não observaram a forma legal exigida (art. 220º do CC).

Acresce que não tendo decorrido o prazo exigido por lei de prática dos atos de posse e respetivo animus para que seja declarado constituído o direito de propriedade por usucapião (art. 1294º do Código Civil), pretendem as autoras que seja aplicado o instituto da acessão da posse (art. 1256º do CC), juntando assim a sua posse à do antepossuidor.

Sucede que sendo o acto translativo da propriedade nulo (segundo invocado pelas autoras, compra verbal do prédio identificado em 6º da PI em 2005, e compra verbal há cerca de 10 anos do prédio identificado em 37º), conforme decorre dos arts. 875º e 220º do CC, não poderá operar a acessão na posse, que exige a existência de um vínculo jurídico válido entre as duas posses (neste sentido, cf. Ac. do STJ de 2.5.2012, no proc. 1588/06.8TCLRS.L1.S1; Ac. do STJ de 7.4.2011, no Proc. 956/07.2TBVCT.G1.S1; e Ac. do STJ de 18.10.2012, no Proc. 5978/08.3TBMTS.P1.S1, bem como a doutrina abundante nos mesmos citada, em www.dgsi.pt).

No caso dos autos, sendo os actos translativos da propriedade nulos, a posse não é titulada, não sendo assim possível aplicar o instituto da acessão na posse.

Assim, não se encontrando completo o prazo mínimo para a aquisição originária da propriedade, tal implica a total improcedência dos pedidos formulados na PI sob as alíneas a) e b).

Por outro lado, não se pode considerar ter sido exercida a posse durante o período necessário à criação de um direito real de propriedade em determinada parcela de terreno, a desanexar de um certo prédio, pelo que, por idênticas razões, não se poderá declarar a desanexação de uma parcela de um prédio por se verificarem os pressupostos da usucapião.

Acresce que não poderia a peticionada desanexação ser declarada judicialmente com outro fundamento para além da aquisição de parte de um prédio por usucapião (o que não é possível nos autos, por faltar o requisito de prazo), pois é sabido que a desanexação de prédios fora desses casos obedece a requisitos específicos, carecendo de ser aprovada por entidades administrativas, designadamente o Município, não podendo os tribunais substituir-se nessas funções específicas a tais entidades, a quem cabe a competência para aferir determinados requisitos para a desanexação a efetuar.

Das decisões administrativas é que caberá eventual recurso a tribunal – o que implica, sem mais, a improcedência dos pedidos formulados em d) e e) da PI.

Quanto ao pedido formulado sob a al. g):

Peticionam as autoras o cancelamento dos registos que venham a efetuar-se sobre os prédios identificados nos arts. 6º, 8º, 17º e 37º da freguesia de ..., concelho de ..., à exceção da presente acção.

O pedido de cancelamento de atos de registo decorre, normalmente, da procedência de determinado pedido formulado pelo autor que implique o não reconhecimento de determinado direito real que foi registado.

 Ora, e face à improcedência da acção, nos termos acima explanados, é totalmente inútil o conhecimento deste pedido.

Para além disso, e salvo o devido respeito, não poderia nunca proceder o pedido formulado desta forma.

...

Com os fundamentos referidos,  julga-se a presente ação totalmente improcedente, absolvendo os réus dos pedidos contra si aqui formulados”.

1.3. As autoras apelaram, mas a Relação de …, por unanimidade, julgou o recurso improcedente, confirmando a decisão da 1ª instância.

Na parte que agora interessa considerar, a fundamentação do acórdão da 2ª instância foi a seguinte:

“Para suportar o recurso interposto, as Recorrentes dizem não poderem concordar com a tese/fundamentação da sentença proferida, já que, defendem, pode a herança Ré beneficiar do instituto da acessão na posse, como alegaram e pretendem que seja reconhecido.

E para tanto defendem que ‘... esta figura jurídica não exige que a posse seja transmitida através de um negócio jurídico válido, pelo que verificados os restantes requisitos da posse deve somar-se à posse da herança a posse dos seus antecessores em cada um dos prédios’.

... Apreciando, diremos que estamos de acordo com a tese defendida na sentença recorrida, tese essa que embora não esteja assente na letra da lei, que nada prevê a este respeito, é a seguida por parte da doutrina e pela maioria da jurisprudência dos Tribunais superiores, segundo se nos afigura.

Como se pode ver em Manuel Rodrigues ‘A Posse. Estudo de Direito Civil Português, pgs. 245/253’, onde escreve: ‘Os efeitos da posse na sua existência e na sua intensidade estão, em grande parte, dependentes do tempo por que ela dura.

...

Sucede, com a maior frequência, que a posse de determinado indivíduo é insuficiente para que seja permitido invocar certos efeitos possessórios; mas se ajuntar à sua posse a daquele de quem adquiriu o direito que possui, obterá uma posse com a duração suficiente para produzir aqueles efeitos. Donde o problema de se saber se tal junção é permitida...

... na aquisuição derivada há sucessão de posses, mas aqui a sucessão tem uma natureza diferente da sucessão por morte, já que não pode pôr-se de lado a causa por que o adquirente foi investido.

...

Na sucessão por acto inter-vivos a causa da aquisição é dominante.

...

A junção ou acessão de posses não é arbitrária, está sujeita a certas regras que o Código Civil português não menciona ...

...

É condição que haja um vínculo jurídico entre o novo e o antigo possuidor.

E este vínculo pode revestir várias modalidades.

Pode ser um negócio jurídico, uma venda, ou troca, ou doação em pagamento; mas pode ser uma expropriação, uma execução, etc.

Este vínculo deve, todavia, ser válido.

Se o acto de transmissão do direito não é válido, não há transmissão do jus possidendi que aqui é a causa da junção dos jus possessionis, embora o negócio jurídico nulo caracterize a posse.”.

O mesmo é defendido pelos Prof.es Pires de Lima e A. Varela, in ‘Código Civil anotado, vol. III, notas ao artº 1256º (Acessão na posse)’, onde escrevem que ‘ .. é necessário que haja um verdadeiro acto translativo da posse, que haja uma relação jurídica entre os dois possuidores, fenómeno que não se verifica, p. ex., entre o vencedor da acção de reivindicação e o detentor ou possuidor nela vencido’.           

Na jurisprudência e, segundo nos parece, na sua corrente maioritária, também é este o entendimento que é seguido, como se pode ver nos seguintes arestos, todos disponíveis em www.dgsi.pt/j...:

- Ac. STJ de 7/04/2011, Proc.º nº 956/07.2TBVCT.G1.S1; - Ac. STJ de 18/10/2012, Proc.º nº 5978/08.3TBMTS.P1.S1; - Ac. Rel. Porto de 7/01/1976, BMJ 256, pg. 170; - Ac. Rel. Porto de 9/11/1982, C. J. 1982, vol. V, pg. 210; - Ac. Rel. Porto de 30/04/1998, BMJ 476, pg. 489;  - Ac. Rel. Coimbra de 19/05/1981, C.J. 1981, vol. III, pg. 206; - Ac. Rel. Coimbra de 31/01/2006, Proc.º nº 3933/05.

Face ao que nos é imposto que sufraguemos a tese da sentença recorrida, julgando, por isso, improcedente o presente recurso, o que se decide, pois que é alegado que a transmissão das parcelas de terreno em causa para RR apenas ocorreu em 2005/2006 e sem haver qualquer título de transmissão (por mera aquisição verbal)”.

1.4. Ainda inconformadas, as autoras interpuseram recurso de revista excepcional, concluindo assim:

1ª - Verificam-se os requisitos legais para o presente recurso de revista excepcional ser admitido, quer pela relevância social da questão fundamental de direito em análise, tendente à boa aplicação do direito, quer pela existência de dupla conforme, tal como é definida na doutrina e na jurisprudência.

2ª - Vem o presente Recurso de Revista Excecional interposto do douto Acordão proferido nos presentes autos pelo Tribunal da Relação de … datado de 01/03/2016 que decidiu julgar improcedente o recurso interposto pelas ora recorrentes e confirmou a Douta Sentença proferida na 1ª Instância, por entender que para haver acessão na posse é condição que haja um vínculo jurídico entre o novo e o antigo possuidor, vínculo que pode revestir várias modalidades, vínculo esse que deve ser válido e se o ato de transmissão do direito não é válido não há transmissão do ius possidendi que é a junção dos ius possessionis.

3ª - Este entendimento do acordão recorrido está em contradição com o acordão do STJ de 2/12/2014 Procº nº 94/07.8TBSCD.C1.S1 acessível em www.dgsi.pt de onde foi extraída a cópia junta, cujo trânsito se presume e de cujo sumário resulta:

III – O douto acórdão entendeu (ainda) ser adequado aplicar à situação a acessão da posse a que alude o art. 1256.º do CC, sendo que, para esta aplicação, não se exige que a posse seja transmitida, necessária e inelutavelmente, através de um negócio jurídico formalmente válido. Assim, somando a posse da ré A à dos seus antecessores (a mãe e padrasto), concluiu encontrar-se completado o prazo de usucapião, tendo, deste modo, a ré adquirido a propriedade do prédio do art. 7722.º e 1/3 do prédio vendido, sendo, assim, procedente o facto impeditivo do direito de preferência do autor, já que direito de preferência da ré A, como comproprietária, deverá prevalecer sobre o do autor.

IV – Esta construção foi certa, pois para que a acessão da posse, a que alude o art. 1256.º do CC, se verifique, basta que o actual possuidor tenha adquirido a posse derivada do antecessor através da entrega ou tradição da coisa, sem que seja de exigir que a transferência se basei em acto (translativo) formalmente válido. Neste caso, essa posse não será titulada e de má fé pelo que, caso o actual possuidor queira beneficiar da acessão na posse, dada a natureza da sua posse (não titulada e de má fé), a posse (do antecessor) valerá (somente) como não titulada (posse de “menor âmbito”).”

4º - O acordão recorrido e o acordão fundamento apresentam-se em manifesta oposição no domínio da mesma legislação (artigo 1256º CCivil) e sobre a mesma questão essencial de direito - a necessidade ou não da existência de vínculo juridicamente válido entre o novo possuidor e o antigo possuidor, nas várias modalidades de transmissão do direito tais como venda, permuta, dação em pagamento, expropriações, execuções, etc., para que possa ocorrer a acessão na posse para o novo possuidor transmitente - apresentando soluções jurídicas opostas em resultado de interpretações divergentes do mesmo normativo legal essencial para a solução de um outro caso.

5º - As ora recorrentes defendem a interpretação rejeitada no acordão recorrido e acolhida no acordão fundamento no sentido que para que a acessão da posse, a que alude o art. 1256.º do CC, se verifique, basta que o atual possuidor tenha adquirido a posse derivada do antecessor através da entrega ou tradição da coisa, sem que seja de exigir que a transferência se baseie em acto (translativo) formalmente válido. Neste caso, essa posse não será titulada e de má fé pelo que, caso o atual possuidor queira beneficiar da acessão na posse, dada a natureza da sua posse (não titulada e de má fé), a posse (do antecessor) valerá (somente) como não titulada (posse de “menor âmbito”).

6º - Interpretação acolhida no acordão fundamento, que se pretende ver fixada, propondo-se neste quadro de conflito de jurisprudência entre o acordão recorrido e o aludido acordão fundamento seja fixado que: A acessão da posse, a que alude o artº 1256.º do CC, se verifique, basta que o atual possuidor tenha adquirido a posse derivada do antecessor através da entrega ou tradição da coisa, sem que seja de exigir que a transferência se baseie em ato (translativo) formalmente válido. Neste caso, essa posse não será titulada e de má fé pelo que, caso o atual possuidor queira beneficiar da acessão na posse, dada a natureza da sua posse (não titulada e de má fé), a posse (do antecessor) valerá (somente) como não titulada (posse de “menor âmbito”.

7º - Em consequência ser proferida decisão da causa em conformidade com a jurisprudência fixada, interpretação que uma vez acolhida determinará que se ordene o prosseguimento do processo em causa nos seus ulteriores termos processuais.

8º - O Acordão Recorrido violou o disposto no artigo 1256º CCivil.

Não houve contra alegações.

1.5. Por decisão da formação do artº 672º, nº 3, do CPC, foi admitida a revista excepcional com base no nº 1, a), do mesmo preceito – relevância jurídica da questão em causa no recurso, tornando claramente necessária a sua apreciação para uma melhor aplicação do direito dada a “grande complexidade” de que se reveste e o facto de ser “bastante controversa”.

Já o julgamento ampliado da revista também requerido pelas recorrentes foi rejeitado pelo Exº Presidente do STJ por despacho de 13/10/16, que considerou não estarem reunidas as “condições normativas” que o aconselham – a “conveniência” e a “necessidade” indicadas no artº 686º, nº 1, CPC.

Tudo visto, cumpre decidir.

II. Fundamentação

A questão de direito fundamental que está na origem e constitui o objecto do presente recurso encontra-se correctamente definida e delimitada no conjunto das diversas peças dos autos que procurámos resumir e retratar no antecedente relatório – sentença da 1ª instância, acórdão recorrido e alegações das partes, em especial as conclusões da revista dos recorrentes. Não interessará, por isso, entrar agora em considerações demasiado alongadas sobre o assunto, que necessariamente redundariam na escusada repetição de ideias e argumentos já apresentados, e bem, pelas partes e pelas instâncias, até porque uma sentença ou um acórdão, não tendo que confundir-se nem aspirar a ser uma tese ou um trabalho doutrinal, deve, pelo contrário, destacar-se pela sobriedade e máxima concisão com que expõe os respectivos fundamentos, por forma a desejavelmente convencer os seus destinatários e assim contribuir, sem alardes, para a justa resolução dos litígios e a consequente pacificação das partes interessadas. Vamos limitar-nos, por isso, ao estritamente indispensável para justificar com clareza a decisão a adoptar.   

Em causa está a interpretação e aplicação do instituto da acessão da posse, previsto no artigo 1256º do Código Civil nos seguintes termos:

nº 1 - Aquele que houver sucedido na posse de outrem por título diverso da sucessão por morte pode juntar à sua a posse do antecessor.

nº 2 - Se, porém, a posse do antecessor for de natureza diferente da posse do sucessor, a acessão só se dará dentro dos limites daquela que tem menor âmbito.

No seu trabalho de referência nesta matéria, o Dr. Abílio Vassalo de Abreu[1] apresenta uma noção de acessão da posse, face ao teor da norma transcrita, que nos parece perfeita e adequada: “É o instituto pelo qual o possuidor pode juntar ao lapso de tempo da sua posse o da posse do seu antecessor, desde que ambas as posses estejam ligadas entre si por um nexo de aquisição derivada diverso da sucessão por morte, para efeitos, nomeadamente, de usucapião”.

Ora, tanto quanto pudemos verificar no estudo a que procedemos, toda a doutrina e toda a jurisprudência se mostram de acordo a respeito do seguinte: a acessão da posse é um instituto que se destina a facilitar a aquisição do direito de propriedade e de outros direitos reais de gozo por usucapião, nos termos previstos nos artºs 1287º e seguintes do CC. Com efeito, por meio da acessão, o possuidor deixa de ficar limitado ao seu tempo de posse, podendo juntar à sua – quer dizer, ao seu tempo de posse – a posse do seu antecessor. E é justamente por esta razão que a posição adoptada pelas instâncias, exigindo que haja um vínculo jurídico entre o antigo e o novo possuidor, e um vínculo jurídico, no mínimo, formalmente válido, para que a acessão da posse seja aplicada, não nos parece ser a mais correcta e conforme à lei. Na verdade, só a posse pública – a que se exerce de modo a poder ser conhecida pelos interessados (artº 1262º CC), e pacífica – a que foi adquirida sem violência (artº 1261º CC) - é susceptível de conduzir à usucapião. A lei, no entanto, não exige para o efeito que ela seja titulada, isto é, fundada em qualquer modo legítimo de adquirir, independentemente, quer do direito do transmitente, quer da validade substancial do negócio jurídico (artº 1259º, nº 1, CC); se o não for, a usucapião poderá ainda ter lugar, desde que se verifiquem os dois indicados requisitos (cfr, para os imóveis, o artº 1296º); a existência ou não de título da posse, bem como de boa ou má fé, influenciam apenas o prazo da usucapião, mas não impedem a sua verificação. Deste modo, visando o instituto da acessão, como se disse, facilitar o funcionamento da usucapião, não parece que faça sentido exigir para ela mais requisitos do que os colocados à própria usucapião, retirando-lhe assim em larga medida alcance e utilidade prática. Essencial e absolutamente indispensável é tão somente que haja transmissão da posse – por tradição ou por constituto possessório (artº 1263º, b) e c), do CC) – já que, como afirma o Prof. Menezes Cordeiro, “em parte alguma a lei portuguesa exige, para a transmissão da posse, títulos, negócios ou “vínculos” válidos”. Este é o entendimento de grande parte da actual doutrina nacional que se pronunciou sobre o assunto[2], sendo certo que também a jurisprudência vem progressivamente adoptando, nos anos mais recentes, idêntica posição, merecendo destaque, por último, o acórdão deste STJ de 2/12/14 (Procº 94/07.8TBSCD.C1.S1)[3].

Uma vez que a presente revista tem por único objecto a questão exposta e não podemos, por tal motivo, furtar-nos a uma tomada de posição, deixamos aqui claramente expressa a nossa adesão à doutrina defendida pelas recorrentes na sua alegação e seguida no acórdão deste STJ acima citado (que foi, aliás, o acórdão fundamento invocado pelas recorrentes em ordem à admissão da presente revista excepcional).

Seguir-se-ia, logicamente, a revogação do acórdão recorrido e o reenvio dos autos às instâncias para se proceder ao apuramento dos factos pertinentes à questão que se mostra em aberto – a de saber se RR, pai das autoras, adquiriu por usucapião os dois imóveis ajuizados, de modo tal que à data do seu falecimento ambos lhe pertenciam e por isso fazem parte da sua herança em vias de ser partilhada.

Acontece, todavia, que nem na petição inicial, nem na réplica, as autoras alegaram factos concretos que permitam, se provados, concluir que a posse exercida por seu pai, somada à de quem lha transmitiu, foi boa para usucapião (isto é, pública e pacífica) e exercida durante o tempo legalmente exigido para o efeito.

Na verdade, limitaram-se a dizer, no que respeita directamente à posse dos antecessores do de cujus – aquela cuja demonstração se impunha para o efeito de fazerem valer o instituto da acessão – que ele, de cujus (seu pai) exerceu os actos de posse que descrevem “por si e pelos que lhe antecederam na posse” (artº 30º da petição inicial), o que é sem qualquer dúvida, além de conclusivo, manifestamente inconcludente, pois nada de útil permite concluir para o efeito de se decidir se há ou não há posses susceptíveis de ser juntas (somadas), nos termos e para os efeitos do artº 1256º do CC.

Perante isto, não nos resta outra alternativa que não seja a de negar provimento ao recurso e, ainda que por fundamentos totalmente distintos, manter o acórdão recorrido.

3. Decisão

Acorda-se em negar a revista.

Custas pelas recorrentes.

Lisboa, 29/Novembro/2016

Nuno Cameira - Relator

Salreta Pereira

João Camilo (votei a decisão)

    

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[1] A necessidade de uma mudança jurisprudencial em matéria de acessão da posse (artº 1256º do Código Civil) - ROA (Outubro/Dezembro 2012), pág. 1247-1322.

[2] Assim, além do autor citado no texto, pode ver-se: José Alberto Vieira, Direitos Reais, pág.414 e sgs, Coimbra Editora (2008); Paulo Soares do Nascimento, anotação ao acórdão do STJ de 22.11.05, Procº 3304/05, em CDP nº 21, Janeiro/Março 2008, pág. 41 e sgs ; Abílio Vassalo de Abreu, A necessidade de Uma Mudança Jurisprudencial em Matéria de Acessão da Posse, ROA (Outubro/Dezembro 2012), pág. 1247-1322 (cit. na nota anterior);  deste mesmo Autor, Uma relectio sobre a acessão da posse (artº 1256º do CC), nos 20 Anos do Código das Sociedades Comerciais, Volume II, (Coimbra Editora, 2007), onde afirma a dado passo: “Se a posse for adquirida através da entrega ou tradição real e houver inobservância de uma forma ad substantiam apenas sucede que essa posse não é titulada (cfr. o artº 1259º, nº 1) e, logo, presumida “iuris tantum”) de má fé (cfr. artº 1260º, nº 2). Donde flui, tão só, que se a posse do antecessor (tradens) for titulada e o actual possuidor (accipiens) quiser beneficiar da acessão, aquela posse valerá como não titulada (e, logo, presumida de má fé), cumprindo-se, assim, o requisito do “menor âmbito” (cfr. o artº 1256º, nº 2). É o que a nossa lei exige – e não mais nem menos do que isso” (pág. 187).

[3] Relator: Garcia Calejo.