Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
80/20.2PAENT-B.S1
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO
Relator: MARIA HELENA FAZENDA
Descritores: HABEAS CORPUS
PRAZO MÁXIMO DE PRISÃO PREVENTIVA
TRÂNSITO EM JULGADO
ANULAÇÃO DE ACÓRDÃO
Data do Acordão: 10/27/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: HABEAS CORPUS
Decisão: IMPROCEDÊNCIA / NÃO DECRETAMENTO
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
Decisão Texto Integral:

Acordam na 3ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça




I. RELATÓRIO

1. AA, preso preventivamente no Estabelecimento Prisional ......, à ordem do processo 80/20.2PAENT do Tribunal Central Criminal ...... – Juiz ..., veio requerer a providência de HABEAS CORPUS, invocando os artigos 222° e 223º do Código de Processo Penal[1], nos termos e com os seguintes fundamentos: (transcrição)

“1º

Por despacho proferido a fls. , no dia 15/02/2020, foi o Arguido sujeito à medida de coação prevista no artigo 202° do CPP, ou seja, prisão preventiva, por segundo a Meritíssima Juíza de Instrução, existirem fortes indícios do mesmo ter praticado um crime de furto simples, p.e p. pelo artigo 2030[2], n.º 1 do Código Penal, e um crime de homicídio qualificado, na forma tentada, p.e p. pelo artigo 220, n.° 1 e 2, al. b) e 132º, n.º 1 e 2, al. g) do Código Penal.


Por Acórdão de fls., proferido em 21/05/2021 foi o Arguido condenado nos seguintes termos:

"A) Julgar parcialmente procedente a acusação pública deduzida contra o arguido AA e, em consequência:

1. Absolver o arguido da prática de um crime de homicídio qualificado, na forma tentada, p. e p. pelos arts. 131.0 e 132.9/1 e 2, a. g) do Código Penal, com referência aos artigos 14.0, n.º 1, 22.0 e 23.º, todos do referido diploma legal;

2. Condenar o arguido AA pela prática, em autoria material e na forma tentada, de um crime de ofensa à integridade física grave qualificada p. e p. pelos artigos 144, n.° 1, 145, n.º 1, alínea c) e n.º 2. ambos do Código Penal e de um crime de furto simples p. e p. pelo artigo 203, n.º 1 do Código Penal nas penas parcelares, respetivamente de 6 (seis) anos de prisão e 1 ano e 6 meses de prisão, e em CUMULO JURIDICO, na pena única de 6(seis) anos e 4 (quatro) meses de prisão;

3. Determinar que o arguido aguarde os ulteriores termos do processo, até à declaração da extinção da pena, sujeita à medida de coacção de prisão preventiva para além do TIR já prestado.

4. Declarar perdidos a favor do Estado os objectos de fls. 26 e 170 apreendidos nos autos e a sua oportuna destruição - art. 109.9/1 e 4 do Código Penal.

5. Condenar o arguido nas custas do processo, fixando a taxa de justiça em 2 UCS reduzidas a metade - art. 513.9/1 do CPP." (Negrito nosso).


Inconformado com a referida decisão, em 22/06/2021, o Arguido interpôs Recurso;


Por Acórdão proferido em 12/10/2021, decidiu o Tribunal da relação ...... o seguinte:

"1. Declara-se nulo o acórdão recorrido, por omissão de pronúncia, em conformidade com o disposto no artigo 379º, e 1º, al. c) do CPP.

2. Determina-se a sua reforma, pelo mesmo tribunal, proferindo-se nova decisão na qual se deverá suprir a apontada nulidade.

3. Em consequência mostra-se prejudicado o conhecimento das demais questões suscitadas pelo recorrente.

4. Sem tributação." (Negrito nosso).


O Tribunal da Relação ...... declarou o Acórdão proferido em 21/05/2021 nulo, por omissão de pronúncia, em conformidade com o disposto no artigo 379º, n.º 1, al. c) do CPP.


Ou seja, a decisão de 1ª instância deixa de produzir quaisquer efeitos jurídicos.


Determinou ainda, o Tribunal da Relação ......, a reforma do referido Acórdão, pelo mesmo Tribunal, proferindo-se nova decisão na qual deverá suprir a referida nulidade.


Assim, em face da decisão proferida pelo Venerando Tribunal da Relação ...... não poderá considerar-se que o Arguido se encontra condenado em 1ª instância.


Ora, o Arguido AA encontra-se sujeito a medida de coação prisão preventiva desde 15/02/2020, sem que tenha, ainda, sido condenado em 1ª instância.

10º

Dispõe o artigo 215° do CPP, o seguinte:

"1 A prisão preventiva extingue-se quando, desde o seu início, tiverem decorrido:

a) Quatro meses sem que tenha sido deduzida acusação;

b) Oito meses sem que, havendo lugar a instrução, tenha sido proferida decisão instrutória;

c) Um ano e dois meses sem que tenha havido condenação em 1.a instância;

d) Um ano e seis meses sem que tenha havido condenação com trânsito em julgado."


2 – Os prazos referidos no número anterior são elevados, respectivamente, para seis meses, dez meses, um ano e seis meses e dois anos, em casos de terrorismo, criminalidade violenta ou altamente organizada, ou quando proceder por crime punível com pena de prisão de máximo superior a 8 anos…”

11°

Encontrando-se os autos, na fase de julgamento, para onde foi ordenada a devolução do processo pelo mencionado Acórdão do Tribunal da Relação de ......, a prisão preventiva extingue-se quando desde o seu início tiverem decorridos um ano e seis meses.

12º

Assim, o prazo máximo de prisão preventiva nos presentes autos encontra-se ultrapassado.

13º

Dispõe o Artigo 222º do Código de processo Penal que:

“1 - A qualquer pessoa que se encontrar ilegalmente presa o Supremo Tribunal de Justiça concede, sob petição, a providência de habeas corpus.

2 - A petição é formulada pelo preso ou por qualquer cidadão no gozo dos seus direitos políticos, é dirigida, em duplicado, ao Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, apresentada à autoridade à ordem da qual aquele se mantenha preso e deve fundar-se em ilegalidade da prisão proveniente de:

a) Ter sido efetuada ou ordenada por entidade incompetente;

b) Ser motivada por facto pelo qual a lei a não permite; ou

c) Manter-se para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial.”

(Negrito e sublinhado nossos).

14º

Encontrando-se ultrapassado o prazo máximo de prisão preventiva, a detenção do Arguido em estabelecimento prisional mostra-se um atentado ilegítimo à sua liberdade individual, e é ilegal nos termos do Artigo 222º nº 2 alínea c) do Código de processo Penal.

15º

Termos em que se requer o deferimento da providência de Habeas corpus.

Assim, em face do que ficou exposto resulta, claramente, que a prisão do Arguido é manifestamente ilegal, pelo que se requer a V. Exa., o deferimento do presente pedido de Habeas Corpus, e em consequência que seja ordenada a imediata libertação do Arguido AA.


2.  Foi elaborada a informação a que se reporta o nº 1 do artigo 223º do CPP, conforme se transcreve:

“Apresentou-se o arguido a requerer a sua imediata libertação, porquanto, no seu entender, estando preso preventivamente desde o dia 15/02/2020, o prazo máximo de 1 ano e 6 meses foi atingido no dia 15/08/2021.

O M.P., na vista que antecede, promoveu o indeferimento do requerido, porquanto o prazo máximo de prisão preventiva é de 2 anos, atingindo, por conseguinte, o seu termo apenas no dia 15/02/2022.

Vejamos:

O arguido AA encontra-se em situação de prisão preventiva desde o dia 15/02/2020, aplicada em sede de primeiro interrogatório judicial de arguido, atentos os perigos assinalados no respetivo despacho e por se mostrar indiciado da prática dos seguintes crimes:

- Um crime de furto, na forma consumada, p. e p. pelo artigo 203.º/1 do Código Penal; - Um crime de homicídio qualificado, na forma tentada, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 131.º, 132.º/1 e 2, al. g) e 22.º, todos do Código Penal.

Por despacho de acusação proferido no dia 21/07/2020, o arguido foi acusado da prática dos referidos crimes.

Por acórdão proferido no dia 21/05/2021, entre o mais, foi decidido: «[...]

1. Absolver o arguido da prática de um crime de homicídio qualificado, na forma tentada, p. e p. pelos arts. 131.º e 132.º/1 e 2, a. g) do Código Penal, com referência aos artigos 14.º, n.º 1, 22.º e 23.º, todos do referido diploma legal;

2. Condenar o arguido AA pela prática, em autoria material e na forma tentada, de um crime de ofensa à integridade física grave qualificada p. e p. pelos artigos 144, n.º1, 145, n.º 1, alínea c) e n.º 2, ambos do Código Penal e de um crime de furto simples p. e p. pelo artigo 203, n.º 1 do Código Penal nas penas parcelares, respectivamente de 6 (seis) anos de prisão e 1 ano e 6 meses de prisão, e em CUMULO JURIDICO, na pena única de 6 (seis) anos e 4 (quatro) meses de prisão;

3. Determinar que o arguido aguarde os ulteriores termos do processo, até à declaração da extinção da pena, sujeita à medida de coacção de prisão preventiva para além do TIR já prestado.

[...]» (sic).

O referido acórdão foi objeto de recurso, cuja decisão ainda é desconhecida do presente Tribunal.

Sob a epígrafe “Prazos de duração máxima da prisão preventiva”, lê-se no artigo 215.º do CPP, no que aqui releva, o seguinte:

 “1 – A prisão preventiva extingue-se quando, desde o seu início, tiverem decorrido: (...) d) Um ano e seis meses sem que tenha havido condenação com trânsito em julgado.

2 – Os prazos referidos no número anterior são elevados, respetivamente, para (...) 2 anos, (...), quando se proceder por crime punível com pena de prisão máximo superior a 8 anos, (...)”.

Diante da norma processual a atender e considerando que o crime de ofensa à integridade física grave qualificada p. e p. pelos artigos 144.º/1, 145.º/1, alínea c) e n.º 2, do Código Penal é punível com pena de prisão até 12 anos, o prazo máximo da medida de coação de prisão preventiva é de 2 anos (e não 1 ano e 6 meses, conforme pugnado pelo arguido).

Diante do que, estando o arguido detido preventivamente desde o dia 15/02/2021, o prazo máximo da prisão preventiva a que o arguido se encontra sujeito apenas será atingido no dia 15/02/2022.

Pelo que, contrariamente ao invocado pelo arguido, não se constatando que o prazo máximo de prisão preventiva, a que se encontra sujeito, esteja ultrapassado, indefere-se o pedido para a sua imediata libertação.


3. Foi convocada a secção criminal, notificados o Ministério Público e o Defensor do requerente e realizou-se a audiência, em conformidade com os artigos 223.º, nºs 2 e 3 e 435.º do Código de Processo Penal, tendo a seção reunido para deliberação.


II. FUNDAMENTAÇÃO

1. Dos documentos juntos aos autos, aí se incluindo certidão do acórdão do Tribunal da Relação ......, de 12 de outubro de 2021, com informação de que não transitou em julgado, bem como do teor da informação prestada em conformidade com o nº 1 do artigo 223º do CPP, resultam apurados os seguintes factos e ocorrências processuais, com relevância para a decisão da providência requerida:

i. O requerente AA foi detido no dia 14/02/2020 e sujeito a interrogatório judicial (de arguido detido) no dia 15/02/2020;

ii. Nesse dia (15 de fevereiro de 2020), após interrogatório judicial, a Senhora Juíza de Instrução Criminal impôs-lhe a medida de coação de prisão preventiva “atentos os perigos assinalados no respetivo despacho e por se mostrar indiciado da prática dos seguintes crimes: um crime de furto, na forma consumada, p. e p. pelo artigo 203.º/1 do Código Penal e um crime de homicídio qualificado, na forma tentada, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 131.º, 132.º/1 e 2, al. g) e 22.º, todos do Código Penal.”

iii. Por acórdão de 21 de Maio de 2021, do Tribunal Central Criminal ...... - Juiz ..., foi o requerente AA condenado pela prática, em autoria material e na forma tentada, de um crime de ofensa à integridade física grave qualificada p. e p. pelos artigos 144, n.º 1, 145, n.º 1, alínea c) e nº 2, ambos do Código Penal e de um crime de furto simples p. e p. pelo artigo 203, n.º 1 do Código Penal nas penas parcelares, respetivamente de 6 (seis) anos de prisão e 1 ano e 6 meses de prisão, e em CUMULO JURIDICO, na pena única de 6(seis) anos e 4 (quatro) meses de prisão;

iv. Por despacho de 30 de junho de 2021 (referência ... .. 78) foi admito o recurso apresentado pelo requerente, de APELAÇÃO, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito suspensivo;

v. Por acórdão de 12 de outubro de 2021, do Tribunal da Relação ...... (referência .....39), não transitado em julgado[3], foi proferida a decisão que se transcreve:

“1. Declara-se nulo o acórdão recorrido, por omissão de pronúncia, em conformidade com o disposto no artigo 379.º, § 1.º, al. c) do CPP.

2. Determina-se a sua reforma, pelo mesmo tribunal, proferindo-se nova decisão na qual se deverá suprir a apontada nulidade.

3. Em consequência mostra-se prejudicado o conhecimento das demais questões suscitadas pelo recorrente.”


III. O DIREITO

A Constituição da República Portuguesa consagra o direito à liberdade pessoal, como direito fundamental, que é de aplicação direta e vincula todas as entidades públicas e privadas, sendo que a sua limitação, suspensão ou privação apenas opera nos casos e com as garantias aí previstas e na lei – artigos. 27º, nº 2 e 28º, da CRP, e artigo 5º da Convenção Europeia dos Direitos do Humanos.

O artigo 31º, da Constituição da República Portuguesa, sob a epígrafe “Habeas Corpus”, consagra no seu nº 1 que «Haverá habeas corpus contra o abuso de poder, por virtude de prisão ou detenção ilegal, a requerer perante o tribunal competente».

Conforme entendimento do Supremo Tribunal de Justiça «É uma providência urgente e expedita, com uma celeridade incompatível com a prévia exaustação dos recursos ordinários e com a sua própria tramitação, destinada a responder a situações de gravidade extrema visando reagir, de modo imediato, contra a privação arbitrária da liberdade ou contra a manutenção de uma prisão manifestamente ilegal, ilegalidade essa que se deve configurar como violação direta, imediata, patente e grosseira dos seus pressupostos e das condições da sua aplicação.

“Sendo o único caso de garantia específica e extraordinária constitucionalmente prevista para a defesa de direitos fundamentais, o “habeas corpus” testemunha a especial importância constitucional do direito à liberdade”. (JJ. Gomes Canotilho e Vital Moreira, CRP, Constituição da República Portuguesa Anotada, Artigo 1º a 107º, 4ª edição revista, volume I, Coimbra Editora, 2007, II, p. 508).

E escrevem os mesmos autores (ibidem, V, p. 510): “(…) (1) a providência do “habeas corpus” é uma providência à margem do processo penal ordinário; (2) configura-se como um instituto processual constitucional específico com dimensões mistas de ação cautelar e de recurso judicial. (…)”[4]

Por seu turno, concluí o acórdão do STJ de 30NOV16:

«Em suma: A previsão - e precisão - da providência, como garantia constitucional, não excluí, porém, a sua natureza específica, vocacionada para casos graves, anómalos, de privação de liberdade, como remédio de urgência perante ofensas graves à liberdade, traduzidas em abuso de poder, ou por serem ofensas sine lege ou, grosseiramente contra legem, traduzidas em violação direta, imediata, patente e grosseira dos pressupostos e das condições da aplicação da prisão, que se apresente como abuso de poder, concretizado em atentado ilegítimo à liberdade individual – grave, grosseiro e rapidamente verificável»[5].

Assim, em conformidade com os citados preceitos constitucionais, a providência de habeas corpus tem natureza excecional para proteger a liberdade individual, revestindo caráter extraordinário e urgente de «medida expedita» com a finalidade de rapidamente pôr termo a situações de ilegal privação de liberdade, decorrentes de ilegalidade de detenção ou de prisão, taxativamente enunciadas na lei. Em caso de detenção ilegal, nos casos previstos nas quatro alíneas do n.° 1 do artigo 220.° do CPP e, quanto ao habeas corpus em virtude de prisão ilegal, nas situações extremas de abuso de poder ou erro grosseiro, patente, grave, na aplicação do direito, descritas nas três alíneas do n.° 2 do artigo 222.° do mesmo diploma legal. [6]

A jurisprudência do Supremo Tribunal vai no sentido de que “os fundamentos do «habeas corpus» são aqueles que se encontram taxativamente fixados na lei, não podendo esse expediente ser utilizado para a sindicância de outros motivos suscetíveis de pôr em causa a regularidade ou a legalidade da prisão”[7] e tem sublinhado que a providência de habeas corpus constitui uma medida expedita perante ofensa grave à liberdade, com abuso de poder, sem lei ou contra a lei.

Não constitui, portanto, um recurso sobre atos de um processo através dos quais é ordenada ou mantida a privação da liberdade do arguido, nem um sucedâneo dos recursos admissíveis, que são os meios adequados de impugnação das decisões judiciais. Esta providência não se destina a apreciar erros de direito e a formular juízos de mérito sobre decisões judiciais determinantes de privação da liberdade[8].

Como afirmou o Supremo Tribunal no seu Acórdão de 16 de dezembro de 2003, trata-se de “um processo que não é um recurso, mas uma providência excepcional destinada a pôr um fim expedito a situações de ilegalidade grosseira, aparente, ostensiva, indiscutível, fora de toda a dúvida, da prisão e, não, a toda e qualquer ilegalidade, essa sim, possível objecto de recurso ordinário e ou extraordinário. Processo excepcional de habeas corpus este, que, pelas impostas celeridade e simplicidade que o caracterizam, mais não pode almejar, pois, que a aplicação da lei a circunstâncias de facto já tornadas seguras e indiscutíveis (...)

A natureza sumária da decisão de habeas corpus, por outro lado, não se deve conjugar com a definição de questões suscetíveis de um tratamento dicotómico e em paridade de defensabilidade. É que em tal hipótese e como se acentua na decisão de 1 de Fevereiro de 2007, o Supremo Tribunal de Justiça não se pode substituir, de ânimo leve, às instâncias, ou mesmo à sua própria eventual futura intervenção no caso, por via de recurso ordinário, e, sumariamente, ainda que de modo implícito, censurar aquelas por haverem levado a cabo alguma ilegalidade que, como se viu, importa que seja grosseira.

É que, como continua a afirmar o Supremo Tribunal de Justiça “Atento o carácter extraordinário da providência, para que se desencadeie exame da situação de detenção ou prisão em sede de habeas corpus, há que deparar com abuso de poder, consubstanciador de atentado ilegítimo à liberdade individual – grave, grosseiro e rapidamente verificável – integrando uma das hipóteses previstas no art. 222.º, n.º 2, do CPP”[9].

Acresce que, de acordo com o princípio da atualidade, é necessário que a ilegalidade da prisão seja atual, consubstanciando-se atualidade a reportada ao momento em que é necessário apreciar o pedido[10]. Tem sido unânime a Jurisprudência do Supremo Tribunal relativamente à exigência da verificação do pressuposto da atualidade da prisão ilegal. No Ac. de 18/07/2014 sustenta-se: “A procedência do pedido de habeas corpus pressupõe, além do mais, uma actualidade da ilegalidade da prisão aferida em relação ao tempo em que é apreciado aquele pedido”[11]

As medidas de coação são meios processuais de limitação de liberdade pessoal, e estão sujeitas aos princípios da legalidade, da adequação, da proporcionalidade, da precariedade e, quanto à prisão preventiva, da subsidiariedade (artigos 191º, nº 1, 193º, 215º e 218º, 202º e 209º, do CPP).

Tais medidas porque limitativas de direitos fundamentais têm que, contudo, estar em conformidade com as garantias da Constituição e da Lei.

Assim, o artigo 191º, nº 1 do CPP, que consagra o princípio da legalidade das medidas de coação determina, em conformidade com o preceito constitucional do artigo 27º, nº 2, da CRP, que “a liberdade das pessoas só pode ser limitada, total ou parcialmente, em função das exigências processuais de natureza cautelar, pelas medidas de coação e garantia patrimonial previstas na lei”.

Com efeito, o direito à liberdade pessoal, como direito fundamental, é de aplicação direta e vincula todas as entidades públicas e privadas e a sua limitação, suspensão ou privação apenas opera nos casos e com as garantias da Constituição e da lei – artigos 27º, nº 2 e 28º, da CRP e artigo 5º, da Convenção Europeia dos Direitos do Humanos, não deixando, porém, também a Lei Fundamental de prever os casos de violação dos deveres a que os cidadãos estão adstritos ou as situações particulares decorrentes da prática de crimes.

A prisão preventiva é, assim, a medida mais gravosa das medidas de coação pelo que, dada a sua excecionalidade e subsidiariedade, só pode ser aplicada quando se verifiquem os requisitos especiais previstos no artigo 202º do CPP e os requisitos gerais previstos no artigo 204º, ambos do CPP.

De harmonia com o disposto no artigo 194º, nºs 1 e 2, do CPP, a aplicação das medidas de coação e de garantia patrimonial, à exceção do termo de identidade e residência, são aplicadas por despacho do juiz, durante o inquérito, a requerimento do Ministério Público e, depois do inquérito mesmo oficiosamente, ouvido o Ministério Público, sob pena de nulidade, sendo precedida de audição do arguido, ressalvados os casos de impossibilidade devidamente fundamentada, e pode ter lugar no ato de primeiro interrogatório judicial, aplicando-se sempre à audição o disposto no n.º 4 do artigo 141º (nº 4, do artigo 194º).

O despacho que aplique tal medida tem que ser fundamentado, uma vez que é um ato judicial decisório, nos termos dos artigos 205º, nº 1, da CRP, e 194º, nº 6, e 97º, nº 5, do CPP.

O artigo 212º do CPP consagra:

«1. As medidas de coação são imediatamente revogadas, por despacho do juiz, sempre que se verificar:

a) Terem sido aplicadas fora das hipóteses ou das condições previstas na lei; ou

b) Terem deixado de subsistir as circunstâncias que justificaram a sua aplicação».


E, para o caso particular das medidas de coação de prisão preventiva e da obrigação de permanência na habitação, atenta a sua gravidade e porque elas só devem manter-se enquanto não possam ser substituídas por outra menos gravosa ou revogada, o artigo 213º, nº 1, do mesmo diploma estabelece ainda: “O juiz procede oficiosamente ao reexame dos pressupostos da prisão preventiva ou de obrigação de permanência na habitação, decidindo se elas são de manter ou devem ser substituídas ou revogadas:

a) No prazo máximo de três meses a contar da sua aplicação ou do último reexame;

b) Quando no processo forem proferidos despacho de acusação ou de pronúncia ou decisão que conheça, a final, do objeto e não determine a extinção da medida aplicada».

Quanto aos prazos máximos de duração da prisão preventiva, estão estabelecidos no artigo 215º do CPP como corolário do princípio constitucional da presunção de inocência, do qual decorre o princípio da precariedade que rege a aplicação das medidas de coação, segundo o qual as mesmas, porque impostas ao arguido que se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação, (artigo. 32º, nº 2, da CRP), não devem ultrapassar o comunitariamente suportável.

Dispõe o citado preceito 215º:

«1 - A prisão preventiva extingue-se quando, desde o seu início, tiverem decorrido:

a) Quatro meses sem que tenha sido deduzida acusação;

b) Oito meses sem que, havendo lugar a instrução, tenha sido proferida decisão instrutória;

c) Um ano e dois meses sem que tenha havido condenação em 1.ª instância;

d) Um ano e seis meses sem que tenha havido condenação com trânsito em julgado.

2 - Os prazos referidos no número anterior são elevados, respetivamente, para seis meses, dez meses, um ano e seis meses e dois anos, em casos de terrorismo, criminalidade violenta ou altamente organizada, ou quando se proceder por crime punível com pena de prisão de máximo superior a 8 anos, ou por crime:

a) Previsto no artigo 299.º, no n.º 1 do artigo 318.º, nos artigos 319.º, 326.º, 331.º ou no n.º 1 do artigo 333.º do Código Penal e nos artigos 30.º, 79.º e 80.º do Código de Justiça Militar, aprovado pela Lei n.º 100/2003, de 15 de Novembro;

b) De furto de veículos ou de falsificação de documentos a eles respeitantes ou de elementos identificadores de veículos;

c) De falsificação de moeda, títulos de crédito, valores selados, selos e equiparados ou da respetiva passagem;

d) De burla, insolvência dolosa, administração danosa do sector público ou cooperativo, falsificação, corrupção, peculato ou de participação económica em negócio;

e) De branqueamento de vantagens de proveniência ilícita;

f) De fraude na obtenção ou desvio de subsídio, subvenção ou crédito;

g) Abrangido por convenção sobre segurança da navegação aérea ou marítima.

3 - Os prazos referidos no n.º 1 são elevados, respetivamente, para um ano, um ano e quatro meses, dois anos e seis meses e três anos e quatro meses, quando o procedimento for por um dos crimes referidos no número anterior e se revelar de excecional complexidade, devido, nomeadamente, ao número de arguidos ou de ofendidos ou ao carácter altamente organizado do crime.

4 - A excecional complexidade a que se refere o presente artigo apenas pode ser declarada durante a 1.ª instância, por despacho fundamentado, oficiosamente ou a requerimento do Ministério Público, ouvidos o arguido e o assistente.

5 - Os prazos referidos nas alíneas c) e d) do n.º 1, bem como os correspondentemente referidos nos nºs 2 e 3, são acrescentados de seis meses se tiver havido recurso para o Tribunal Constitucional ou se o processo penal tiver sido suspenso para julgamento em outro tribunal de questão prejudicial.

6 - No caso de o arguido ter sido condenado a pena de prisão em 1.ª instância e a sentença condenatória ter sido confirmada em sede de recurso ordinário, o prazo máximo da prisão preventiva eleva-se para metade da pena que tiver sido fixada.

7 - A existência de vários processos contra o arguido por crimes praticados antes de lhe ter sido aplicada a prisão preventiva não permite exceder os prazos previstos nos números anteriores.

8 - Na contagem dos prazos de duração máxima da prisão preventiva são incluídos os períodos em que o arguido tiver estado sujeito a obrigação de permanência na habitação».


Já no que respeita à prisão ilegal, sobre a epígrafe,Habeas corpus em virtude de prisão ilegal”, estabelece o artigo 222º nº 1 do CPP que o Supremo Tribunal de Justiça concede, sob petição, a providência a qualquer pessoa que se encontrar ilegalmente presa, estabelecendo o seu n.º 2 que a ilegalidade da prisão tem de decorrer de uma das seguintes circunstâncias:

a) Ter sido efetuada ou ordenada por entidade incompetente;

b) Ser motivada por facto pelo qual a lei a não permite;

c) Manter-se para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial.

No caso dos autos a prisão preventiva foi ordenada por Juiz de Instrução Criminal, entidade competente nos termos do artigo 268.º nº 1, alínea a) do CPP, em conformidade com as disposições conjugadas dos artigos. 191º, 192º, 193º, 194º, 195º, 202º, n.º 1, al. a), e 204º, als. a), b) e c), todos do CPP, por se mostrar o requerente fortemente indiciado da prática de crime doloso punível com pena de prisão de máximo superior a 5 anos, designadamente de um crime de homicídio qualificado, na forma tentada, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 131.º, 132.º/1 e 2, al. g) e 22.º, todos do Código Penal.

O descrito contexto revela preenchidas as exigências das alíneas a) e b) do nº 2 do referido artigo 222ºdo CPP.

Alega o requerente AA que a prisão preventiva a que está sujeito é ilegal porquanto, no seu entender, já foi ultrapassado o limite do artigo 215º nºs 1 e 2, do CPP, que se aplica à medida de prisão preventiva a que se encontra sujeito, uma vez que, por decisão do Tribunal da Relação ...... foi declarado nulo o acórdão recorrido, em consequência do que “a decisão da 1ª instância deixa de produzir quaisquer efeitos jurídicos”.


É, assim, neste enquadramento que conforme alega se encontra “sujeito a medida de coação de prisão preventiva desde 15/02/2020 sem que tenha, ainda, sido condenado em 1ª instância, que o requerente vem invocar os fundamentos previstos na alínea c) do n.° 2 do artigo 222. ° do CPP, ou seja, que “ encontrando-se os autos, na fase de julgamento, para onde foi ordenada a devolução do processo pelo mencionado Acórdão do Tribunal da Relação ......, a prisão preventiva extingue-se quando desde o seu início tiverem decorrido um ano e seis meses”

Vejamos se assiste razão ao requerente AA.

Para tanto há que retomar os factos e os atos processuais relevantes para a decisão da providência.

Assim:

i. O arguido AA foi detido no dia 14/02/2020 e sujeito a interrogatório judicial no dia seguinte 15/02/2020;

ii. Neste mesmo dia (15/02/2020) após a realização do interrogatório judicial foi-lhe imposta a medida de coação de prisão preventiva;

iii. Por acórdão de Juízo Central Criminal ...... - Juiz ..., de 21 de Maio de 2021, foi o requerente AA condenado pela prática, em autoria material e na forma tentada, de um crime de ofensa à integridade física grave qualificada p. e p. pelos artigos 144, n.º 1, 145, n.º 1, alínea c) e n. 2, ambos do Código Penal, e de um crime de furto simples p. e p. pelo artigo 203, n.º 1 do Código Penal nas penas parcelares, respetivamente de 6 (seis) anos de prisão e 1 ano e 6 meses de prisão, e em CUMULO JURIDICO, na pena única de 6 (seis) anos e 4 (quatro) meses de prisão;

iv. Por despacho de 30.06.2021 (referência ... .. 78 ), foi admitido o recurso interposto pelo arguido para o Tribunal daRelação de ......;

v. Por acórdão de 12.10.2021 (referência .....23), não transitado em julgado, o tribunal de segunda instância decidiu nos seguintes termos:

“1. Declara-se nulo o acórdão recorrido, por omissão de pronúncia, em conformidade com o disposto no artigo 379.º, § 1.º, al. c) do CPP.

2. Determina-se a sua reforma, pelo mesmo tribunal, proferindo-se nova decisão na qual se deverá suprir a apontada nulidade.

3. Em consequência mostra-se prejudicado o conhecimento das demais questões suscitadas pelo recorrente.”

Resulta, portanto,  que o requerente AA foi condenado em primeira instância, para além do crime de furto simples p. e p. pelo artigo 203, n.º 1 do Código Penal, pela prática de um crime de ofensa à integridade física grave qualificada p. e p. pelos artigos 144, n.º 1, 145, n.º 1, alínea c) e n.º 2, ambos do Código Penal, na pena parcelar de 6 anos de prisão.


Ao crime de ofensa à integridade física grave qualificada p. e p. pelos artigos 144, 145, n.º 1, alínea c) e n.º 2. ambos do Código Penal, corresponde a moldura penal abstrata de 3 a 12 anos de prisão e integra, o mesmo crime, o conceito de criminalidade especialmente violenta (artigo 1º, al. l, com referência à alínea j) do CPP).

Os prazos máximos de prisão preventiva são os elencados taxativamente no artigo 215º do CPP e só a esses se refere a alínea c) do nº 2 do artigo 222º do CPP, sendo de 1 ano e 6 meses sem que tenha havido condenação em 1ª instância, e de 2 anos sem que tenha havido condenação com trânsito em julgado. (artigo 215º, nº 1 e 2, do CPP). Se houver recurso para o Tribunal Constitucional, este prazo é acrescentado de seis meses. (artigo 215º, nº 5, do CPP).

Considerando que, por acórdão de 21 de Maio de 2021 do Juízo Central Criminal ...... - Juiz ..., não transitado em julgado, foi condenado pela prática de um crime que integra o conceito de criminalidade especialmente violenta, por crime punível com pena de prisão de máximo superior a 8 anos, o prazo máximo da prisão preventiva eleva-se para dois anos, de harmonia com o disposto no citado artigo 215º nº 1, alínea d) e nº 2, do CPP.

Alega o requerente que, face à decisão proferida pelo Tribunal da Relação ......, que declara nulo o acórdão de primeira instância, esta decisão deixa de produzir quaisquer efeitos jurídicos, pelo que se encontra sujeito a medida de coação de prisão preventiva desde 15/02/2020 sem que tenha, ainda, sido condenado em 1ª instância.

Como refere Maia Costa[12] “A anulação da sentença, ainda que total, não determina a inexistência do ato, mas apenas a não produção de efeitos. O mesmo sucede com o reenvio (total ou parcial) para novo julgamento. Por isso, o prazo da prisão preventiva é o previsto na al. d) do nº 1. Com efeito, mesmo quando total, a anulação ou o reenvio não determinam a irrelevância da atividade processual desenvolvida, consequência que só o vício da inexistência envolve.”[13]

Efetivamente, resulta da jurisprudência firmada do Supremo Tribunal de Justiça, o entendimento de que a declaração de nulidade de um acórdão não equivale a uma inexistência do mesmo pelo que, processualmente e para efeitos de prazo de prisão preventiva, se entende que houve condenação.


Como, desde logo, bem sublinha, o acórdão de 18-01-2018, (Processo nº 234/15.3JACBR.S1, relator Oliveira Mendes):

“I - A anulação de acórdão condenatório proferido em 1.ª instância, com remessa do processo para suprimento de nulidade e elaboração de nova decisão, não torna o acórdão condenatório de nenhum efeito. Só o acto inexistente se mostra desprovido de qualquer efeito jurídico, sendo que o acto nulo, conquanto não possa produzir os efeitos para que foi criado, não deixa de ter existência processual.

II - Enquanto o acto inexistente nem sequer pode ser reconhecido como acto e, como tal, ter vida jurídica, o acto nulo, ainda que imperfeito, existe.

III - O que releva para efeitos da aplicação do prazo previsto naquela al. d), do art. 215.º, n.º 1, do CPP é a mera verificação daquele concreto acto processual (decisão condenatória), ou seja, independentemente da sua validade intrínseca (independentemente de se tratar de uma boa ou má decisão).

IV - Aquilo que o legislador pretendeu evitar ao fixar os prazos de duração máxima da prisão preventiva é que o arguido esteja preso preventivamente por mais de determinado tempo sem nunca ter sido condenado por um tribunal, ou seja, sem que um tribunal, após contraditório pleno, haja considerado o arguido culpado.

V - Já não assim quando houve uma condenação, não obstante a sentença ou o julgamento tenham sido anulados, consabido que uma sentença condenatória, ainda que anulada, não se pode considerar um acto inexistente. “


No mesmo sentido, acórdão de 23-04-2014 (Proc. n.º 21/11.8SMLSB-C. S1 - 3.ª Secção, relator Pires da Graça):

“I - O habeas corpus constitui uma providência urgente e expedita, com uma celeridade incompatível com a prévia exaustação dos recursos ordinários, destinada a responder a situações de gravidade extrema e que visa reagir, de modo imediato, contra a privação arbitrária da liberdade ou contra a manutenção de uma prisão manifestamente ilegal.

II - O STJ tem vindo a decidir, sem discrepância, no sentido de que tendo sido anulada uma condenação proferida por tribunal de 1.ª instância, muito embora não possa produzir os efeitos que lhe são próprios, não se pode afirmar que inexistiu essa decisão.

III - Como produz efeitos a sentença condenatória da 1.ª instância, ainda que tenha sido anulada em recurso, essa anulação não determina o encurtamento do prazo de duração máxima da privação preventiva, como se aquela condenação não tivesse ocorrido.

IV - Por isso, nestes casos, não é de convocar o disposto na al. c) do n.º 1 do art. 215.º do CPP, mas sim a al. d) do mesmo preceito.”[14]


Ainda o acórdão de 29-09-2010 (Proc. n.º 139/10.4YFLSB.S1 - 3.ª Secção, relator Henriques Gaspar):

I - A petição de habeas corpus contra detenção ou prisão ilegal, inscrita como garantia fundamental no art. 31.º da CRP, tem tratamento processual nos arts. 220 e 222.º do CPP, que estabelecem os fundamentos da providência, concretizando a injunção e a garantia constitucional.

II - Nos termos do art. 222.º do CPP, que se refere aos casos de prisão ilegal, a ilegalidade da prisão que pode fundamentar a providência deve resultar da circunstância de a prisão ter sido efectuada ou ordenada por entidade incompetente; ter sido motivada por facto pelo qual a lei a não permite; ou quando se mantiver para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial – als. a), b) e c) do n.º 2 do art. 222.º do CPP.

III - A providência de habeas corpus consiste, contudo, num meio excepcional, como remédio contra situações de imediata, patente e auto-referencial ilegitimidade (ilegalidade) da privação de liberdade, não podendo ser considerado nem utilizado como recurso sobre os recursos ou recurso acrescido aos recursos.

IV - Os requerentes consideram que o prazo máximo de duração da prisão preventiva é de 1 ano e 6 meses, previsto na al. c) do n.º 1, e no n.º 2 do art. 215.º do CPP, por a decisão de 1.ª instância ter sido anulada por acórdão da Relação. No entanto, esse entendimento não pode proceder.

V - A existência de condenação em 1.ª instância, ainda que posteriormente anulada pelo Tribunal da Relação, tem reflexos no prazo máximo de duração da prisão preventiva.

VI - O acto nulo, com efeito, não se confunde com o acto inexistente, pois apesar da nulidade o acto foi praticado e existe, e apesar de não produzir ou poder produzir os efeitos que constituem a sua finalidade última, pode ter e tem outros efeitos processuais que decorrem da mera circunstância de ter sido produzido e que ocorrem no momento e em consequência directa da mera produção.

VII - A decisão de 1.ª instância produziu efeitos processuais pelo simples facto de ter sido proferida, nomeadamente, como resulta directamente da lei, o fazer passar o prazo de prisão preventiva do campo de aplicação da al. c) para o âmbito da al. d) do n.º 1 do art. 215.º do CPP.

VIII - E este efeito produziu-se e esgotou-se pelo simples facto de ter sido proferida uma decisão condenatória em 1.ª instância (haver «condenação em primeira instância»), valendo, consequentemente, no processo a partir desse momento, com todas as consequências em tal âmbito de regulação. Tal efeito constituiu-se e fixou-se no processo a partir desse momento, reordenando os prazos máximos da prisão preventiva fixados no art. 215.º do CPP. A produção de efeitos para o futuro – a mudança de fase e de regra processual sobre a duração da prisão preventiva – não é, por isso, retroactivamente afectada pela anulação da decisão da 1.ª instância e a consequente reformulação. “[15] [16]


Acresce que, tal como bem sublinha o recente AC do STJ, de 10 de fevereiro de 2021, relatora Conceição Gomes:

«I - A circunstância de não ter transitado em julgado o acórdão que condenou o arguido na pena de 6 anos e 6 meses de prisão, não obsta a que seja aplicável o prazo de prisão preventiva, previsto no art. 215.º, n.º 6, do CPP.

II - O STJ vem uniformemente adotando, desde há muito, o entendimento que, o que se considera relevante para efeitos de estabelecimento do prazo máximo de duração da prisão preventiva, é a sentença condenatória proferida em 1.ª instância, mesmo que em fase de recurso venha a ser anulada por decisão do Tribunal da Relação.

III - O Tribunal Constitucional no acórdão n.º 404/2005, de 22-07-2005, proferido no processo n.º 546/2005 (in DR, II Série, de 31-03-2006), decidiu não julgar inconstitucional a norma constante do art. 215.º, n.º 1, al. c), com referência ao n.º 3, do CPP, na interpretação que considera relevante, para efeitos de estabelecimento do prazo máximo de duração da prisão preventiva, a sentença condenatória em 1.ª instância, mesmo que em fase de recurso venha a ser anulada por decisão do Tribunal da Relação[17].


Com efeito, tal como se decidiu no acórdão do STJ de 06-03-2014, processo nº 7/14.0YFLSB.S1, Relator OLIVEIRA MENDES [18], «Considera-se relevante, para efeitos de estabelecimento do prazo máximo de duração da prisão preventiva, a sentença condenatória proferida em 1.ª instância, mesmo que em fase de recurso venha a ser anulada por decisão do Tribunal da Relação. (…).

Trata-se de orientação que este Supremo Tribunal vem uniformemente adotando, desde há muito, sob o entendimento de que aquilo que o legislador pretendeu evitar ao fixar os prazos de duração máxima da prisão preventiva é que o arguido esteja preso preventivamente por mais de certo e determinado tempo sem nunca ter sido condenado por um tribunal, ou seja, sem que um tribunal, após contraditório, haja considerado o arguido culpado. Isso é que seria intolerável do ponto de vista legal. Já não assim quando houve uma condenação, não obstante a sentença ou o julgamento tenham sido anulados. [19].

Sendo certo que o Tribunal Constitucional no acórdão n.º 404/2005, de 22-07-2005, proferido no Processo n.º 546/2005 (in DR, II Série, de 31-03-2006)[20], decidiu não julgar inconstitucional a norma constante do artigo 215.º, n.º 1, al. c), com referência ao n.º 3, do Código de Processo Penal, na interpretação que considera relevante, para efeitos de estabelecimento do prazo máximo de duração da prisão preventiva, a sentença condenatória em 1.ª instância, mesmo que em fase de recurso venha a ser anulada por decisão do Tribunal da Relação, sob o entendimento de que a anulação da condenação não tem como efeito o regresso ao primeiro limite, entendimento que, segundo defende, além de se mostrar juridicamente fundado na distinção entre os efeitos da nulidade e da inexistência, se mostra adequado aos objectivos do legislador, pois respeita a intenção de o processo chegar à fase da condenação em 1.ª instância sem ultrapassar 3 anos de prisão preventiva, e não se mostra directamente violador de qualquer norma ou princípio constitucional.

Entendimento algo semelhante vem assumindo o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, ao considerar que o período de tempo a considerar para duração da prisão preventiva inicia-se com a prisão e termina com a decisão em 1.ª instância sobre o mérito da acusação, o que, como se refere no acórdão deste Supremo Tribunal de 14 de Maio de 2008, atrás citado, está associado ao entendimento de que o que o n.º 3 do artigo 5.º da CEDH garante é que qualquer pessoa presa ou detida tem direito a ser julgada num prazo razoável. Este julgamento é o julgamento em 1.ª instância. Efetuado este, entra-se já na fase dos recursos e aí a regra que valerá é a do artigo 6.º, n.º 1, sendo certo que prazo razoável para efeitos do artigo 5.º, n.º 3, é diferente de prazo razoável para efeitos do artigo 6.º, n.º 1. Neste último caso o que se pretende evitar é que as pessoas acusadas, presas ou não, se mantenham muito tempo numa situação de incerteza sobre o desfecho do seu processo, enquanto no primeiro o que se pretende evitar é, unicamente, que a prisão tenha uma duração excessiva [21]».

Assim sendo, uma vez que o arguido AA se encontra sujeito à medida de prisão preventiva desde 15 de fevereiro de 2020, tendo ocorrido a sua condenação em primeira instância, ainda que por decisão não transitada em julgado,  em crime a que corresponde moldura penal de 3 a 12 anos ( artigos 144º e  145º nº 1, alínea c, ambos do CP), eleva-se para dois anos o prazo da prisão preventiva a que se encontra sujeito por força do disposto no artigo 215º nº 1, alínea d) e nº 2, estes do CPP, pelo que a medida de coação que lhe foi aplicada só se extinguirá em 15 de fevereiro de 2022, se entretanto não ocorrer o trânsito em julgado.

Salienta-se que o alargamento da prisão preventiva do requerente, nesta fase dos autos, não significa que, em alguma circunstância, possam ser elevados os prazos máximos estabelecidos no artigo 215º do CPP para as demais fases processuais.

Assim, a prisão preventiva a que o requerente AA se encontra sujeito foi aplicada por entidade competente - o juiz do processo - por facto permitido pela lei, mantendo-se a medida de coação dentro do prazo máximo de duração, atenta a fase em que o processo ora se encontra, pelo que não se verifica qualquer excesso de prazo.

Os fundamentos invocados pelo requerente, como supra se referiu não cabem na previsão normativa do art. 222º, nº 2, do CPP, e designadamente não se verifica o fundamento de habeas corpus, a que alude a alínea c) do n.° 2 do artigo 222º do CPP, subjacente aos motivos invocados pelo requerente.


IV. DECISÃO:

Termos em que acordam os juízes que compõem a 3ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em indeferir a petição de habeas corpus por falta de fundamento bastante, nos termos do artigo 223º, nº 4. al. a), do CPP.

Custas pelo requerente fixando-se a taxa de justiça em 3 (três) Uc.


Processado em computador e revisto pela relatora (artigo. 94º, nº 2, do CPP).


Lisboa, 27 de outubro de 2021


Maria Helena Fazenda (relatora)

José Luís Lopes da Mota (Juiz Conselheiro Adjunto)

Pires da Graça (Presidente da Secção)

___________

[1] Doravante designada pelas iniciais CPP
[2] Tal como consta no documento original. Por resultar manifesto o lapso, identifica-se a norma referida com o artigo 230º do Código Penal
[3] Em consequência do que, conforme certidão junta aos autos (referência .....217) o acórdão proferido pelo Tribunal da Relação ...... ainda não baixou à 1.ª instância.
[4] Vide AC do STJ de 07JUN17 (relator Pires da Graça), AC de 15FEV17 (relator Raul Borges) proferido no proc. nº 7459/00.4TDLSB-M. S1 e os arestos ali citados; ACS de 22.06.2017 e de 20.12.2017 (relator Manuel Braz), proferidos no mesmo processo, todos citados no AC do STJ de 02.06.2021, PROC 25/19.2FCFUN-A.S1, relatora Conceição Gomes.
[5] Vide AC do STJ de 30NOV16 (relator Pires da Graça), proferido no proc. nº 66/14.6GBLSB-A.S1.
[6] Vide AC de 15FEV17 (relator Raul Borges) proferido no proc. nº 7459/00.4TDLSB-M.S1.
[7] Ac. STJ de 19-05-2010, CJ (STJ), 2010, T2, pág.196
[8] Ac. STJ de 20/09/2017, Proc. 82/17.6YFLSB, e jurisprudência aí citada (máxime: por remissão para o Ac. de 4.02.2016, proc. 529/03.9TAAVR-E.S1), ECLI:PT:STJ:2017:82.17.6YFLSB.D4
[9] Ac. STJ de 10/08/2018, Proc. 398/17.1PASXL-B.S1, www.dgsi.pt/jstj. [10] Acórdão de 02 de junho de 2021 (relatora Conceição Gomes) - PROC 25/19.2FCFUN-A.S1
[11] 211/12.6GAMDB-A.S1. in www. Dgsi.pt
[12] Código de Processo Penal comentado, 2ª Edição Revista, ponto 4, página 836.
[13] Ver, em sentido convergente Albuquerque, Comentário do CPP, 4ª edição, p.618.
[14]
[15] Texto disponível em: http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/f751cd8ce4b115058025787100583b8a?OpenDocument[16] Ainda no mesmo sentido, entre outros, : Acórdãos do STJ Proc. n.º 1126/06, de 05.03.2009, relator Simas Santos; Proc. n.º 1672/08, de14-05-2008, relator Raul Borges;  Proc. n.º 1610/04, 16-04-2004 , relator Pereira Madeira.
[17] Proc. n.º 4243/17.0T9PRT-J.S1, disponível in www.dgsi.pt
[18] Disponível in www.dgsi.pt.[19] Cf. entre muitos outros, os acórdãos de 02.08.30, 03.03.26, 04.04.29, 06.01.25, 07.12.06, 07.01.17, 08.05.14, 10.09.29 e 11.09.08, o segundo e o terceiro publicados nas CJ (STJ), XI, II, 230 e XII, II, 176, os restantes proferidos, respetivamente, nos Processos n.ºs 2943/02, 281/06, 4583/06, 176/07, 1672/08, 139/10.4YFLSB.S1 e 413/07.7TACBR.S1.
[20] No mesmo sentido: Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 208/2006, publicado no Diário da República n.º 86/2006, Série II de 2006-05-04, disponível em https://dre.pt/home/-/dre/2328810/details/maximized       [21] Cf. Ireneu Cabral Barreto, A Convenção Europeia dos Direitos do Homem Anotada (3ª edição), 103/104.