Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
4668/17.0T8CBR.C1.S2
Nº Convencional: 1ª SECÇÃO
Relator: PEDRO DE LIMA GONÇALVES
Descritores: NULIDADE DE ACÓRDÃO
EXCESSO DE PRONÚNCIA
PRESCRIÇÃO AQUISITIVA
SUSPENSÃO
DIREITO DE PROPRIEDADE
AQUISIÇÃO ORIGINÁRIA
USUCAPIÃO
POSSE
BOA FÉ
Data do Acordão: 03/26/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL – RELAÇÕES JURÍDICAS / FACTOS JURÍDICOS / TEMPO E REPERCUSSÃO DO NEGÓCIO JURÍDICO / PRESCRIÇÃO / INVOCAÇÃO DA PRESCRIÇÃO / SUSPENSÃO DA PRESCRIÇÃO / CAUSAS BILATERAIS DA SUSPENSÃO – DIREITO DAS COISAS / POSSE / USUCAPIÃO / USUCAPIÃO DE IMÓVEIS / FALTA DE REGISTO.
Doutrina:
- Ana Filipa Morais Antunes, Prescrição e Caducidade, p. 115, 118 e 119;
- Durval Ferreira, Posse e Usucapião, p.132;
- Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, I, Parte Geral, Tomo IV, 2005, p.193;
- Pedro Pais de Vasconcelos, Teoria Geral do Direito Civil, 2015, p.340 e 343;
- Rui Pinto Duarte, Curso de Direitos Reais, p. 268 e 272;
- Vaz Serra, BMJ, n.º 106, p. 143 e 144.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 303.º, 318.º, ALÍNEA B) E 1296.º.
Sumário :
I - Não incorre em nulidade por excesso de pronúncia o acórdão que aprecia a verificação da existência de uma causa suspensiva da usucapião, prevista na alínea b) do art. 318.º do CC, que foi apreciada na sentença proferida na 1.ª instância.
II - No contexto de que as instâncias conheceram oficiosamente a suspensão da prescrição, que não se mostra alegada uma vez que os réus não contestaram a acção, não podiam fazê-lo, porquanto o tribunal (apenas) conhece oficiosamente das exceções perentórias (o que é caso presente) cuja invocação a lei não torne dependente da vontade do interessado, o que é o caso da matéria relacionada com a prescrição – art. 303.º do CC.
III - No caso em apreço, verifica-se o seguinte quadro factual: (i) no mês de julho de 1995, os réus, perante a restante família e com o acordo de todos os seus filhos, doaram verbalmente a casa ao autor, tendo-lha logo entregue; (ii) o autor passou a ocupar e a usufruir do prédio como de sua propriedade, e aceitaram a doação em sua representação, que aquele confirmou no dia em que fez 18 anos; (iii) desde julho de 1995 que o autor ali elabora e toma as suas refeições, recebe os seus familiares, ali estaciona os seus veículos no logradouro da habitação, bem como recebe a sua correspondência.
IV - Contudo, e não obstante a recusa dos réus em legalizarem o prédio a favor do autor (o que terá ocorrido no ano de 2011), a posse adquirida, como referido em III, é uma posse de boa fé, pacífica, pública, que possibilita a aquisição por usucapião de tal prédio, tanto mais que já havia decorrido o prazo de 15 anos à data de tal facto (art. 1296.º do CC).
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça,


I. Relatório
1. AA intentou a presente acção declarativa, sob a forma de processo comum, contra BB e CC, pedindo que:
 1) Se declare que o Autor é dono e legítimo possuidor do prédio urbano que se destina a habitação e se compõe de rés-do-chão e 1º andar, sito na rua de [...] , que confronta de Norte, com Estrada nacional, Sul com BB, Nascente com BB e Poente com DD, com a área coberta de 238 m2 e a área descoberta de 467 m2, que corresponde ao artigo matricial urbano nº ..., da União de Freguesias de ... e ..., por além do mais o ter adquirido por usucapião;
2) Se ordene o cancelamento de todas as inscrições, hipotecas e penhoras e/ou outras, registadas na Conservatória do Registo Predial que ofendam a posse e a propriedade do Autor por, além do mais, serem ineficazes;
3) Se ordene a correção da inscrição que consta da caderneta predial do referido prédio urbano inscrito na matriz sob o nº ... da União de Freguesias de ... e ..., concelho de ..., passando da mesma a constar que o referido prédio que se destina a habitação e se compõe de rés-do-chão e 1º andar, sito na rua de [...], confronta a Norte, com Estrada nacional, a Sul com BB, a Nascente com BB e a Poente com DD, tem uma área total de 705 m2, a que corresponde a área coberta de 238 m2 e a área descoberta de 467 m2, conforme consta do levantamento topográfico que se juntou sob o documento nº 5.

Alega, em síntese, que:
 - nasceu em 23/3/1984, sendo filho dos Réus que são proprietários de um prédio rústico referente ao artigo matricial sob o n.º 28.º da freguesia de ..., ..., onde construíram uma casa de habitação, que inscreveram como prédio urbano fiscalmente, então sob o art. 341.º e actualmente 272.º da União de freguesias de ... e ...;
- esse prédio não tem atualmente a área, configuração ou confrontações que constam na caderneta predial e encontra-se há muito separado e delimitado do anterior prédio rústico;
- em 1983 os Réus começaram a habitar o dito prédio, nele residindo e realizando todos os atos materiais de posse.
- em julho de 1995 os Réus, perante a restante família e com o acordo de todos os filhos, doaram verbalmente a casa ao Autor, logo lha entregando, passando o Autor a ocupar e usufruir o prédio como sua propriedade, doação sem qualquer ónus ou encargo, que os seus pais aceitaram em sua representação em 1995 e que o Autor confirmou no dia em que perfez 18 anos, sendo que desde 1995 o Autor e, posteriormente ao seu casamento, também a sua esposa, ali tomam refeições, confeccionam as mesmas, pernoitam e realizam a higiene diária, têm residência e mobílias, efectuam limpezas domésticas, recebem familiares e amigos, estacionam os veículos no logradouro, recebem correspondência, à vista de toda a gente, incluindo os pais, pacificamente, de boa fé, sem oposição de quem quer que seja e na convicção de exercer tais actos sobre coisa sua, como legítimo e exclusivo proprietário, invocando em seu favor a usucapião;
- em 2011, o Autor rogou aos seus pais a legalização de tal doação, o que aqueles recusaram, afirmando serem ainda os donos da casa, recusa que mantêm até hoje.

2. Citados, os Réus não apresentaram contestação.

3. Foi proferida sentença que julgou improcedente a ação, tendo absolvido os Réus dos pedidos formulados.

4. Não se conformando com esta decisão, o Autor interpôs recurso de apelação.

5. O Tribunal da Relação de ... veio a negar provimento ao recurso.

6. Inconformado com tal decisão, o Autor interpôs recurso de revista, dita excecional, formulando as seguintes (transcritas) conclusões:

1ª. A A questão em apreço nos autos versando sobre o instituto da Prescrição, mais concretamente a prescrição aquisitiva ou Usucapião, através da qual é consagrada a faculdade de coartar o direito de propriedade, fundando-se na inércia do titular do direito, reveste por si uma manifesta e notória relevância social e jurídica, sobretudo atendendo, além do mais, às consequências que podem resultar da sua verificação e/ou inexistência e que se repercutem na vida dos cidadãos.

2ª. Sucede, que na concreta questão em dissídio - de saber se as causas de suspensão da prescrição são de conhecimento oficioso - existem diversas interpretações jurisprudenciais das mesmas normas jurídicas, que impedem a existência da segurança e certeza jurídicas necessárias à boa aplicação do direito.

3ª. Nomeadamente a decisão de o acórdão sub judice considerar que as causas de suspensão da prescrição são de conhecimento oficioso, é contraditada por diversas decisões judiciais, incluindo do próprio Supremo Tribunal de Justiça, no processo nº637/09.2YFLSB, relatado pelo Exmo. Sr. Conselheiro Alves Velho, datado de 20/01/2010, disponível in dgsi.pt e mesmo do próprio tribunal da Relação de ..., no processo nº15/08.0TBAGN.C1, relatado por Exmo. Sr. Desembargador Falcão de Magalhães, ambos disponíveis em www.dgsi.pt e que se juntam para todos os devidos e legais efeitos (docs.1 e 2);

4ª. Como tal, atentas as divergências jurisprudenciais existentes no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, entende o recorrente que se verificam os pressupostos de admissibilidade do presente recurso excecional de revista, o que expressamente se requer para todos os devidos e legais efeitos.

5ª.  In casu, por acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de ..., foi julgado totalmente improcedente o recurso apresentado pelo Autor, tendo entendido o Exmo. Sr. Desembargador Relator que tinha andado bem o tribunal de primeira instância ao apreciar oficiosamente, apesar da revelia dos réus, a causa de suspensão da prescrição, prevista na alínea b) do art. 318° do CC, aplicável à usucapião ex vi art. 1292,° do CC.

6ª. Todavia, não pode o Autor concordar com tal decisão, porquanto ao consagrar o instituto da prescrição, no caso a prescrição aquisitiva ou usucapião, o legislador quis criar a necessária segurança jurídica e certeza do direito, adequando a realidade formal (no caso da situação jurídica do imóvel) à realidade material e quis também expressamente defender o interesse particular do devedor, enquanto  imperativo de justiça, decorrente da inércia ou negligência do titular do direito.

7ª. Contudo, sabendo que tal instituto imporia uma limitação ao direito à propriedade do titular primitivo, o legislador consagrou como pressupostos indispensáveis à aquisição por usucapião a verificação dos elementos constitutivos da posse e o decurso do tempo, a alegar e provar por quem dela pretenda beneficiar, e ainda nesse conspecto, consagrou no art. 303,° do CC, aplicável por via do art. 1292,° do CC à usucapião, que "o tribunal não pode suprir, de ofício, a prescrição; esta necessita, para ser eficaz, de ser invocada, judicial ou extrajudicialmente, por aquele a quem aproveita."

 8ª. Sendo processualmente configurada como uma exceção perentória, impeditiva do direito do Autor/Credor, o legislador expressamente consagrou que a prescrição não é de conhecimento oficioso, ao contrário do que sucede, por regra, com o conhecimento das exceções perentórias.

9ª. Levando em consideração que, no caso concreto, o Autor invocou a aquisição do imóvel por usucapião, as causas de suspensão são configuradas legalmente como uma exceção perentória, impeditiva da realização do direito invocado pelo Autor, funcionando como uma verdadeira contra-exceção.

10ª. Ora, por maioria de razão, se a apreciação da prescrição enquanto exceção perentória, depende da sua expressa invocação por aquele a quem aproveita, o conhecimento das causas de suspensão, enquanto exceção perentória da própria exceção de prescrição, não pode deixar de ter a mesma natureza e o mesmo regime, obrigando à sua expressa invocação por aquele que se pretende aproveitar das mesmas.

11ª. E desta interpretação não podemos afastar a própria génese do instituto que foi criado com o intuito de sancionar (e não premiar) a inércia do titular primitivo do direito.

12ª. Acresce que, no caso concreto, assim também o impõem as regras do ónus da prova, porquanto tratando-se de um facto impeditivo sempre caberia ao Réu, nos termos do nº2 do art. 342.° do CC, alegar e provar a existência da referida causa da suspensão.

13ª. Não tendo os Réus sequer alegado a existência de uma causa suspensiva da usucapião, nomeadamente não tendo sequer os Réus alegado que se verificava a causa de suspensão prevista na alínea b) do art. 318º. do CC. o tribunal pronunciou-se sobre uma questão que nunca foi alegada, incorrendo em excesso de pronúncia. Nulidade que nesta sede expressamente se invoca para todos os devidos e legais efeitos.

14ª. Sem prejuízo do exposto, reitera-se que para o tribunal conhecer das causas de suspensão da prescrição, teria a mesma que ser expressamente invocada pela parte a quem aproveita, atento o que disciplina o 303º. do CC, aplicável a todo o regime da prescrição, até porque um entendimento diferente seria violador das legítima expectativas do adquirente e do princípio expressamente previsto no art.4º do CPC.

15ª. Posto isto, atentas as presentes considerações, deve ser revogado o acórdão sub judice, porquanto o mesmo interpreta e aplica erradamente a lei substantiva, devendo determinar-se expressamente que as causas de suspensão da prescrição/usucapião não são de conhecimento oficioso, com todas as consequências legais.

E conclui “que admita o presente recurso e revogue o acórdão recorrido, substituindo-o por outro que julgue procedente a ação intentada, com todas as consequências legais”.
7. Não foram apresentadas contra-alegações.

8. A Formação de Juízes a que alude o nº3 do artigo 672º do Código de Processo Civil admitiu o recurso de revista.
9. Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

II. Delimitação do objeto do recurso

Como é jurisprudência sedimentada, e em conformidade com o disposto nos artigos 635º, nº 4, e 639º, nºs 1 e 2, ambos do Código de Processo Civil, o objeto do recurso é delimitado em função das conclusões formuladas pelo recorrente, pelo que, dentro dos preditos parâmetros, da leitura das conclusões recursórias formuladas pelos Recorrentes decorre que o objeto do presente recurso está circunscrito às seguintes questões:

- a nulidade do Acórdão (excesso de pronúncia);

- o conhecimento oficioso da suspensão da prescrição;

- concluindo-se pelo não conhecimento oficioso, se o prazo para a aquisição do imóvel por usucapião se verificou.

                III. Fundamentação.

1. As instâncias deram como provados os seguintes factos:
1.1. O Autor nasceu em ...1984 e está registado como filho dos Réus.
1.2. Por escritura de compra e venda de 7/1/1971, lavrada de fls. 51 a 51 verso do livro para escrituras diversas nº 364 do Cartório de ..., o Réu declarou comprar a ... o prédio inscrito na matriz predial rústica sob o artigo matricial 28.º da freguesia de Torre de Vilela, concelho de ....
1.3. No prédio descrito em 1.2.) os Réus construíram uma casa, inscrita actualmente na matriz predial urbana sob o art. 272.º da união de freguesias de ... e ..., composta de rés-do-chão e 1º andar, sito na rua de ..., que confronta de Norte, com Estrada nacional, Sul com BB; Nascente com BB e Poente com DD com uma área total de 705 m2, a que corresponde a área coberta de 238 m2 e a área descoberta de 467 m2, não descrita na Conservatória do Registo Predial de ....
1.4. Os Réus começaram a habitar a casa referida em 1.3.) no ano de 1983 (facto confessado, cuja redação foi alterada oficiosamente por este tribunal de recurso, nos termos do art.º 662.º, n.º 1, do C. P. Civil, no sentido de corresponder mais fielmente ao alegado no art.º 12.º da p.i.).
1.5. No mês de julho de 1995, os Réus, perante a restante família e com o acordo de todos os seus filhos, doaram verbalmente a casa referida em c) ao Autor, tendo-lha logo entregue, passando o Autor a ocupar e a usufruir deste prédio como sua propriedade, e aceitaram esta doação, em representação do Autor, o que este confirmou no dia em que fez 18 anos (facto confessado, cuja redação foi alterada oficiosamente por este tribunal de recurso nos termos do art.º 662º, n.º 1, do C. P. Civil, no sentido de corresponder mais fielmente ao alegado no art.º 13.º e 14.º da p.i.).
1.6. Desde a data referida em 1.5.) que o Autor ali elabora e toma as suas refeições, ao pequeno-almoço, almoço, lanche e jantar; ali guarda os géneros alimentícios com que confecciona as suas refeições; ali pernoita e realiza a sua higiene diária; ali tem as suas mobílias; ali procede diariamente a pequenas limpezas domésticas, tais como aspirar a habitação, limpar o pó a móveis e sacudir tapetes; ali recebe os seus familiares e amigos, incluindo os seus irmãos; ali estaciona os seus veículos dentro do logradouro da habitação; ali recebe a sua correspondência pessoal;
1.7. Pacificamente, à vista de toda a gente, incluindo os seus pais, sem oposição de quem quer que seja e na convicção de estar a exercer tais actos sobre coisa sua, como legítimo e exclusivo proprietário (facto cuja redação resultou do acima decidido quanto à impugnação da matéria de facto considerada provada pela sentença recorrida);
1.8. Há cerca de 6 anos, o Autor rogou aos Réus a legalização daquele prédio a seu favor, mas os seus pais recusaram a realização de escritura de legalização, afirmando que não o fariam na medida em que ainda eram eles os donos da casa, recusa que mantêm hoje.
1.9. O Autor agiu certo de que com os comportamentos referidos em 1.6.) não está a violar o direito de outrem, pois possui aquele prédio, pelo menos desde 1995 e o utiliza como coisa sua à vista de todos e sem qualquer oposição (facto cujo aditamento resultou do acima decidido quanto à impugnação da matéria de facto considerada provada pela sentença recorrida).

2. A nulidade do Acórdão

2.1. Enquadramento normativo preliminar

A violação das normas processuais que disciplinam, em geral e em particular (artigos 607º a 609º do Código de Processo Civil), a elaboração da sentença – do acórdão - (por força do nº 2 do artigo 663º), enquanto ato processual que é, consubstancia vício formal ou error in procedendo e pode importar, designadamente, alguma das nulidades típicas previstas nas diversas alíneas do nº 1 do artigo 615º do Código de Processo Civil (aplicáveis aos acórdãos ex vi nº 1 do artigo 666º do Código de Processo Civil).

No caso em presença, convoca o Recorrente, de forma expressa, a nulidade típica prevista na alínea d), 2ª parte, do nº 1 do artigo 615º do Código de Processo Civil (excesso de pronúncia).

Ora, de harmonia com o disposto no artigo 608º, nº 1, do Código de Processo Civil, o juiz na sentença – Acórdão, por força do disposto no nº2 do artigo 663º do Código de Processo Civil - deve conhecer, em primeiro lugar, de todas as questões processuais (suscitadas pelas partes ou que sejam de conhecimento oficioso, e não se encontrem precludidas) que determinem a absolvição do réu da instância, segundo a ordem imposta pela sua precedência lógica.

Seguidamente, devem ser conhecidas as questões de mérito (pretensão ou pretensões do autor, pretensão reconvencional, pretensão do terceiro oponente e exceções perentórias), só podendo ocupar-se das questões que forem suscitadas pelas partes ou daquelas cujo conhecimento oficioso a lei permite ou impõe (como no caso das denominadas exceções impróprias), salvo se as considerar prejudicadas pela solução dada a outras questões, de acordo com o preceituado no nº 2 do mesmo artigo 608º.

Nesta linha, constituem questões, por exemplo, cada uma das causas de pedir múltiplas que servem de fundamento a uma mesma pretensão, ou cada uma das pretensões, sob cumulação, estribadas em causas de pedir autónomas, ou ainda cada uma das exceções dilatórias ou perentórias invocadas pela defesa ou que devam ser suscitadas oficiosamente.

Todavia, já não integram o conceito de questão, para os efeitos em análise, as situações em que o juiz porventura deixe de apreciar algum ou alguns dos argumentos aduzidos pelas partes no âmbito das questões suscitadas. Neste caso, o que ocorrerá será, quando muito, o vício de fundamentação medíocre ou insuficiente, qualificado como erro de julgamento, traduzido portanto numa questão de mérito.

O excesso de pronúncia ocorre quando se procede ao conhecimento de questões não suscitadas pelas partes ou que sejam de conhecimento oficioso, por força do disposto na 1ª parte da alínea d) do nº 1 do artigo 615º do Código de Processo Civil (ex vi artigo 666º, nº1, do mesmo diploma).

Após esta sumária indagação e interpretação das normas jurídicas relevantes, importa agora reverter ao caso concreto:

2.2. Excesso de pronúncia

O Recorrente suscita a questão da nulidade por excesso de pronúncia, porquanto o alegam que não tendo os Réus sequer alegado a existência de uma causa suspensiva da usucapião, nomeadamente não tendo sequer os Réus alegado que se verificava a causa de suspensão prevista na línea b) do art.318º do CC, o tribunal pronunciou-se sobre uma questão que nunca foi alegada.

            Ora, no caso presente, a sentença proferida pelo Tribunal de 1ª instância considerou que se verificava a existência de uma causa suspensiva da usucapião, apesar de os Réus não terem contestado a ação, com fundamento nos factos alegados pelo Autor (aquisição processual), pelo que o Tribunal poderia levar em consideração esses factos para concluir se se tinha verificado o decurso do prazo da usucapião.

  Perante o recurso de apelação interposto pelo Autor, que invocava o excesso de pronúncia, com o fundamento atrás referido, o Tribunal da Relação de ... não poderia deixar de se pronunciar sobre essa questão suscitada no recurso, sob pena de omissão de pronúncia.

  Desta forma, não se verifica a nulidade, por excesso de pronúncia, do Acórdão da Relação.

 3. O conhecimento oficioso da suspensão da prescrição

O Autor interpôs recurso de revista insurgindo-se contra o Acórdão da Relação de ..., que confirmou a decisão proferida pelo Tribunal de 1ª instância. Nesse Acórdão julgou a ação improcedente, por se ter entendido, que não havia decorrido os prazos legais para que se concluísse pela aquisição do imóvel, identificado nos autos, por usucapião, por parte do Autor, considerando-se que o Tribunal poderia conhecer da causa se suspensão da prescrição aquisitiva, atendendo aos factos dados como provados, apesar de os Réus não terem contestado a ação.

 

Assim, o que nestes autos releva é saber se o Autor adquiriu o imóvel por usucapião, e, em primeiro lugar para que se possa responder a essa questão, se o Tribunal poderia considerar que se verificava a suspensão da prescrição aquisitiva, nos termos do disposto na alínea b) do artigo 318º do Código Civil.

Nos termos do disposto no artigo 1292º do Código Civil, são aplicáveis à usucapião, com as necessárias adaptações, as disposições relativas à suspensão e interrupção da prescrição, bem como o preceituado nos artigos 300º, 302º, 303º e 305º, do mesmo diploma.

Dispõe o artigo 303º do Código Civil que o Tribunal não pode suprir, de ofício, a prescrição; esta, para ser eficaz, deve ser invocada, judicial ou extrajudicialmente, por aquele a quem aproveita.

“A prescrição, para ser eficaz, tem de ser invocada pelo beneficiário.

(…) não é de conhecimento oficioso (artigo 303º).

Se a parte não invocar a prescrição, o juiz não pode suprir esta omissão e conhecer dela”.

(Pedro Pais de Vasconcelos, in Teoria Geral do Direito Civil, 2015, pág.340)

Assim, em face da remissão para o artigo 303º do Código Civil, a usucapião necessita de ser invocada por aquele que dela quer beneficiar para se tornar eficaz, embora essa invocação possa ser feita de forma implícita mediante referências aos requisitos que a integram desde que essa referência revele inequivocamente a sua intenção de fundamentar na usucapião o direito que se arroga.

Por outro lado, o prazo prescricional é, em princípio, contínuo; contudo, a lei prevê causas suspensivas da prescrição (artigos 318º a 322º do Código Civil).

“Nestas situações, não obstante estarmos perante uma obrigação exigível, verificam-se determinadas circunstâncias que dificultam o exercício do direito pelo credor ou que justificam a sua inércia. Estão em causa hipóteses que obstam ao curso da prescrição e em que releva a existência de relações especiais entre o credor e o devedor (artigos 318º - 320º) ou determinados factos objectivos, exteriores à pessoa do credor ou do devedor (artigos 321º-322º). Nestes casos, é irrelevante o simples facto de a obrigação ser exigível e o prazo prescricional só começará a correr quando cessar a causa justificativa do não início imediato do prazo”

(Ana Filipa Morais Antunes, in Prescrição e Caducidade, pág. 115)

No caso presente, foi dado como provado que o Autor nasceu em 23/03/1984 e está registado como filho dos Réus, e que no mês de julho de 1995, os Réus, perante a restante família e com o acordo de todos os seus filhos, doaram verbalmente a casa dos autos ao autor, tendo-lha logo entregue, passando o Autor a ocupar e a usufruir deste prédio como sua propriedade, e aceitaram esta doação, em representação do Autor, o que este confirmou no dia em que fez 18 anos.

Com base nestes factos, consideraram as instâncias que se verificava a causa de suspensão da prescrição prevista na alínea b) do artigo 318º. do Código Civil (a prescrição não começa nem corre entre quem exerça o poder paternal e as pessoas a ele sujeitas, entre o tutor e o tutelado ou entre o curador e o curatelado).

Ora, as causas suspensivas previstas no Código Civil são típicas, sendo o seu elenco taxativo, e “na base do instituto da suspensão reside a ideia de que, pesem embora as necessidades de certeza e de segurança, a atitude passiva do credor se justifica em virtude das especiais circunstâncias que acompanham a situação concreta. Fundamentando-se a prescrição na ideia de sancionar a negligência do titular do direito, é legítimo que esta não corra enquanto se verificar uma causa que o impeça de exercer o respectivo direito ou que o coloque numa situação de extrema dificuldade em o exercer. Com efeito, nessas hipóteses, não caberá afirmar a negligência do titular no exercício do seu direito” (Ana Filipa Morais Antunes, obra citada, pág. 115)

E a causa de suspensão referida pelas instâncias explica-se por “além da relação familiar intensíssima subjacente ao poder paternal … há ainda uma relação de representação e de administração de bens que exige confiança e envolve conflito de interesses” (Pedro Pais de Vasconcelos, in Teoria Geral do Direito Civil, 2015, pág.343).

Ou, a necessidade de evitar um conflito aberto de interesses entre quem exerça o poder paternal e as pessoas a ele sujeitas, aconselha a suspensão do curso da prescrição, enquanto se mantiverem aquelas situações. No conflito entre segurança jurídica e a realização dos fins específicos do poder paternal, decidiu o legislador dar prevalência à estabilidade destes institutos.

(cfr. Ana Filipa Morais Antunes, obra citada, pág.118).

No caso concreto, e invocando o ensinamento de Vaz Serra (a prescrição não pode ser apreciada oficiosamente pelo juiz (artº515º do nosso Código), mas a suspensão da prescrição parece que deve poder ser oficiosamente apreciada. Se, por exemplo, o credor exige a prestação do devedor e este alega a prescrição, mas esta esteve suspensa em virtude da menoridade do credor, afigura-se dever o juiz conhecer oficiosamente da suspensão, a não ser que a falta de invocação desta pelo credor signifique renúncia ao seu crédito. Com efeito a alegação da prescrição não tem base, desde que a prescrição esteve suspensa, e não pode, portanto, o juiz considerar provada a prescrição – BMJ, nº106, págs.143/144), o Tribunal da Relação de ... acompanhou a decisão da 1ª instância, afirma que “a necessidade da prescrição ser invocada pela parte a quem aproveita para dela o tribunal poder conhecer baseia-se em que o interessado pode ter escrúpulo em se valer da prescrição, já não se descortinando qualquer razão que justifique que o tribunal esteja impedido de, oficiosamente, verificar se o prazo prescricional invocado já decorreu, socorrendo-se de todos os elementos que disponha no processo, de modo a evitar que sejam considerados prescritos direitos em que manifestamente não decorreu o respectivo prazo, por se verificarem situações de suspensão ou interrupção da sua contagem.

Aliás, se invocada a prescrição, se entende que o tribunal, com os dados apurados no processo, não está impedido de aplicar oficiosamente um prazo prescricional diferente do invocado pela parte, também não deve deixar de, oficiosamente, proceder à contagem do prazo aplicável às circunstâncias do caso, utilizando todos os dados que o processo lhe fornece, designadamente verificando os períodos em que o prazo de prescrição não correu, por força da lei”.

Como se referiu, o Recorrente discorda da possibilidade de o Tribunal, oficiosamente, conhecer da suspensão do prazo prescrional.

Vejamos.

Em primeiro lugar, importa referir que a posição do Professor Vaz Serra, nos termos em que foi entendida pelas instâncias, não é acompanhada, pelo menos, por parte da doutrina.

Assim, para Menezes Cordeiro, “põe-se, depois, o problema do funcionamento e da natureza da suspensão. Não se trata de um elemento de conhecimento oficioso: nos termos gerais, ela terá de ser invocada (e demonstrada) pela pessoa a quem aproveite”. (in Tratado de Direito Civil Português, I, Parte Geral, tomo IV, 2005, pág.193).

Referindo que a questão é controversa, mas sem tomar posição (referindo somente a existência das duas posições), cfr. Ana Filipa Morais Antunes, obra citada, pág.119.

Ora, no caso presente, os Réus não contestaram a ação, pelo que não se mostra alegada, invocada, uma causa de suspensão da prescrição.

Como se afirmou anteriormente, toda a matéria da prescrição não é de conhecimento oficioso, nos termos do disposto no artigo 303º do Código Civil, tendo o interessado de a invocar para ser eficaz.

Por outro lado, a suspensão da prescrição configura-se como uma exceção à prescrição aquisitiva invocada pelo Autor, pelo que caberia aos Réus invocá-la nos termos do disposto no nº2 do artigo 342º do Código Civil (a prova dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito invocado compete àquele contra quem a invocação é feita).

Por fim, sendo a prescrição renunciável, a falta de contestação à pretensão do Autor por parte dos Réus, seus pais, não pode deixar de se considerar que os mesmos renunciaram a invocar essa exceção (artigo 302º do Código Civil).

Por tudo isto, se conclui que não poderiam as instâncias conhecer oficiosamente da suspensão da prescrição, porquanto nos termos do disposto no artigo 579º do Código de Processo Civil o tribunal conhece oficiosamente das exceções perentórias (o que é caso presente) cuja invocação a lei não torne dependente da vontade do interessado (o que é o caso da matéria relacionada com a prescrição – artigo 303º do Código Civil).

4. Usucapião

Nos presentes autos discute-se se o Autor adquiriu por usucapião o prédio urbano que identifica na petição inicial.

Ora,

A posse é o poder que se manifesta quando alguém atua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real (artigo 1251º do Código Civil), sendo que a posse pode ser adquirida, nos termos do disposto no artigo 1263º do Código Civil, pela prática reiterada, com publicidade, dos atos materiais correspondentes ao exercício do direito (alínea a)), pela tradição material ou simbólica da coisa, efetuada pelo anterior possuidor (alínea b)), por constituto possessório (alínea c)), por inversão do título de posse (alínea d)).

   Como refere Rui Pinto Duarte, “acerca da posse debatem-se duas concepções doutrinárias básicas. Uma é dita subjectivista por sustentar que a posse envolve, para além da materialidade da situação em que consiste, um elemento de cariz subjectivo consistente numa intenção. A outra é dita objectivista por se contentar com a materialidade da situação. À primeira está ligado o nome de Savigny e à segunda o de Ihering. Obviamente, cada uma delas está ligada a um certo entendimento dos fundamentos da tutela da posse.

     Diga-se que a corrente subjectivista se divide numa pluralidade de opiniões. De comum essas opiniões têm a exigência dos dois citados elementos para que de posse se fale – elementos esses tradicionalmente designados por corpus e animus. No entanto, há profundas divergências no entendimento desses elementos, sobretudo quanto ao objecto do animus.

(…) As dificuldades e divergências abrangem ainda a noção de corpus”

(in Curso de Direitos Reais, pág.268)

Como se sabe, a maioria da doutrina e a quase totalidade da jurisprudência entendem que o Código Civil acolhe uma conceção subjetivista da posse, invocando, designadamente o disposto nos artigos 1251º e 1253º do Código Civil; contudo, por influência de Menezes Cordeiro, Direitos Reais, págs. 395 e segs. foi questionada essa posição, mantendo-se a querela, que no caso concreto não tem relevância.

Por outro lado, importa ter presente que da nossa lei (cfr. artigo 1257º, nº1, do Código Civil) resulta claramente uma conceção de corpus como uma relação social – não meramente traduzida em atos materiais (Rui Pinto Duarte, obra citada, pág.272).

Ou, como refere Durval Ferreira “para que a coisa entre na disponibilidade fáctica, na esfera empírica da relação de senhorio do sujeito, dum modo geral pode dizer-se que é preciso atender á energia do acto de apreensão, à sua perdurabilidade e à natureza do direito que se pretende adquirir.

Basta, se o acto ou série de actos têm, segundo o consenso público, a energia suficiente para significar que, entre uma coisa e determinado indivíduo, se estabeleceu uma relação duradoura.

Assim, um só acto pode evidenciar a posse”

(in Posse e Usucapião, pág.132)

Por outro lado, a posse do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo, mantida por certo lapso de tempo, faculta ao possuidor, salvo disposição em contrário, a aquisição do direito a cujo exercício corresponde a sua atuação: é o que se chama usucapião (artigo 1287º do Código Civil) – cfr., ainda, artigo 1316º do Código Civil.

Não havendo registo do título de mera posse, a usucapião de imóveis, só pode dar-se no termo de quinze anos, se a posse for de boa fé, e de vinte anos, se for de má fé (artigo 1296º do Código Civil), sendo que a posse diz-se de boa fé, quando o possuidor ignorava, ao adquiri-la, que lesava o direito de outrem (nº1 do artigo 1260º do Código Civil), e que a posse titulada se presume de boa fé, e a não titulada, de má fé (nº2 do artigo 1260º do Código Civil).

A posse que conduz à usucapião (modo de aquisição originária de direitos reais) é a posse pública (a que se exerce de modo a poder ser conhecida pelos interessados – artigo 1262º do Código Civil) e pacífica (a que foi adquirida sem violência – artigo 1261º do Código Civil).

A posse é o poder de facto que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real (artigo 1251.º do Código Civil).

            No caso presente, encontra-se provado que no mês de julho de 1995, os Réus, perante a restante família e com o acordo de todos os seus filhos, doaram verbalmente a casa referida ao Autor, tendo-lha logo entregue, passando o Autor a ocupar e a usufruir deste prédio como sua propriedade, e aceitaram esta doação, em representação do Autor, o que este confirmou no dia em que fez 18 anos.

 O Autor, desde julho de 1995, ali elabora e toma as suas refeições, ao pequeno-almoço, almoço, lanche e jatar; ali guarda os géneros alimentícios com que confeciona as suas refeições; ali pernoita e realiza a sua higiene diária; ali tem as suas mobílias; ali procede diariamente a pequenas limpezas domésticas, tais como aspirar a habitação, limpar o pó a móveis e sacudir tapetes; ali recebe os seus familiares e amigos, incluindo os seus irmãos; ali estaciona os seus veículos dentro do logradouro da habitação; ali recebe a sua correspondência pessoal.

            E o Autor pratica esse atos de forma pacífica, pública (à vista de toda a gente, incluindo os seus pais), sem oposição de quem quer que seja e na convicção de estar a exercer tais atos sobre coisa sua, como legítimo e exclusivo proprietário, tendo o Autor agido certo de com os seus comportamentos não está a violar o direito de outrem, pois possui aquele prédio, pelo menos desde 1995 e o utiliza como coisa sua à vista de todos e sem qualquer oposição; encontrando-se assim a exercer uma posse de boa fé.

   Contudo, há cerca de 6 anos, o Autor rogou aos Réus a legalização daquele prédio a seu favor, mas os seus pais recusaram a realização de escritura de legalização, afirmando que não o fariam na medida em que ainda eram eles os donos da casa, recusa que mantêm hoje.

            A ação foi intentada em 12 de junho de 2017 (cfr. fls.14 destes autos), sendo que quando se reporta à recusa referida dos pais do Autor (há cerca de 6 anos), a mesma terá ocorrido no ano de 2011.

  E, desde essa mesma data, se poderá considerar que o Autor não detém o imóvel de boa fé.

            Porém, quando tal facto ocorreu já havia decorrido o prazo de 15 anos para que ocorresse a usucapião (pois até esse momento a posse do Autor se considerava de boa fé).

            Deste modo, a pretensão do Autor deve proceder na parte em que impugna o Acórdão recorrido.

      


IV. Decisão
Posto o que precede, acorda-se em conceder provimento à revista, e, consequentemente, revoga-se o Acórdão recorrido, na parte impugnada, e declara-se o Autor dono e legítimo possuidor do prédio identificado na petição inicial, por o ter adquirido por usucapião.


As custas do processo são suportadas pelos Réus.


Lisboa, 26 de março de 2019

(Processado e integralmente revisto pelo relator, que assina e rubrica as demais folhas)