Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2075/17.4T8FNC.L1.S1
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: JOSÉ RAINHO
Descritores: OFENSA DO CASO JULGADO
CONVITE AO APERFEIÇOAMENTO
RECURSO DE REVISTA
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
DESPACHO DE MERO EXPEDIENTE
OBJECTO DO RECURSO
OBJETO DO RECURSO
DUPLA CONFORME
ALÇADA
VALOR DA CAUSA
REJEIÇÃO DE RECURSO
Data do Acordão: 05/14/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – PROCESSO DE DECLARAÇÃO / GESTÃO INICIAL DO PROCESSO E DA AUDIÊNCIA PRÉVIA / SENTENÇA / EFEITOS DA SENTENÇA / RECURSOS / RECURSO DE REVISTA.
Doutrina:
- Abrantes Geraldes, Recursos no novo Código de Processo Civil, 2ª ed., p. 42 a 44;
- Castro Mendes, Direito Processual Civil, Recursos, AAFDL, 1980, p. 45;
- Lebre de Freitas, A Ação Declarativa Comum, 3ª ed., p. 164 e 165;
- Miguel Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Novo Processo Civil, p. 303, 304 e 568.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 590.º, N.º 7, 629.º E 671.º, N.º 3.
Sumário :

I - O despacho de aperfeiçoamento proferido perante articulado irregular, pese embora ser um despacho vinculado e não de mero expediente, não representa em si mesmo uma definição do direito aplicável nem dirime substantivamente ou processualmente uma questão.

II - Tal despacho, que a parte é livre de aceitar ou não, vale apenas como uma decisão preparatória ou pré-decisão, não fazendo sentido que se lhe atribua força de caso julgado.

III - A decisão subsequente que retire consequências do não aperfeiçoamento é que será uma verdadeira decisão e, como tal, é esta que pode ter força obrigatória e formar caso julgado.

IV - Tendo o autor sido convidado a aperfeiçoar em certos termos a petição inicial e vindo a fazê-lo de modo que o tribunal considerou implicitamente satisfatório, tanto que a ação vingou, improcede a invocação pelo réu de que houve ofensa do caso julgado, isto com fundamento em que o aperfeiçoamento não observou exatamente o que era indicado no convite.

V - Havendo dupla conforme e estando o valor da causa contido na alçada do tribunal recorrido, a admissibilidade do recurso com fundamento na ofensa do caso julgado é restrita ao conhecimento dessa questão, não podendo o recorrente envolver no recurso, a expensas da ofensa do caso julgado, a questão da adequação do aperfeiçoamento da petição inicial ao despacho de convite.

Decisão Texto Integral:

Processo n.º 2075/17.4T8FNC.L1.S1

Revista

Tribunal recorrido: Tribunal da Relação de Lisboa

                                                           +

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça (6ª Secção):

I – RELATÓRIO

AA, S.A. demandou, perante o Juízo Local Cível do ... e em autos de ação declarativa com processo na forma comum, BB, pedindo a condenação desta a pagar-lhe a quantia total de € 24.694,98, sendo € 12.286,17 de capital, € 11.931,55 de juros de mora calculados à taxa de 29,256% desde 18 de Abril de 2017 e € 477,26 de imposto de selo.

Alegou para o efeito, em síntese, que o CC, SA, em cujos direitos e obrigações sucedeu o Autor, acordou com a Ré a utilização de cartão de crédito “CC”. Da utilização que a Ré fez do dito cartão resultou um saldo credor para o Banco no valor de € 12.286,17, a que acrescem juros à taxa anual convencionada de 29,256% e imposto de selo. A Ré, porém, não liquidou tal saldo, que, assim, se encontra em dívida.

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Contestou a Ré, concluindo pela improcedência do pedido.

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Em 12 de Setembro de 2017 foi proferido despacho a convidar o Autor a, em 10 dias, aperfeiçoar a petição inicial, alegando quais os concretos pagamentos (com indicação de valores e datas em que foram efetuados) que deram origem aos créditos invocados e identificar o cartão de crédito em causa.

Na sequência, apresentou o Autor a petição inicial que entendeu apresentar, à qual anexou vários documentos.

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Seguindo o processo seus termos, veio, a final, a ser proferida sentença com o seguinte dispositivo:

“(…) condeno a Ré BB, contribuinte fiscal n.º ..., residente na ...Ed. ..., Fração …, …-000 ..., a pagar à A. “AA, S.A.”, com sede na Av. ..., n.º …, … Lisboa, com o NIPC ...a quantia de 12.286,17 € (doze mil, duzentos e oitenta e seis euros e dezassete cêntimos), a título de capital, acrescida da quantia, a liquidar, correspondente aos juros até efetivo e integral pagamento, para além do imposto de selo.”

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Inconformada com o assim decidido, apelou a Ré.

Fê-lo sem êxito, pois que a Relação de Lisboa confirmou a sentença.

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Pede agora a Ré revista, com fundamento na “ofensa de caso julgado formal quanto ao douto despacho de 12/09/2017, proferido pelo Tribunal de 1ª Instância, integrando-se assim na situação excepcional prevista no artigo 629.º, n.º 2, alínea a) in fine, do CPC”.

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Da respetiva alegação extrai a Recorrente as seguintes conclusões:

1ª. Nos termos do despacho de 12/09/2017, proferido pelo Tribunal de 1ª Instância, subsequentemente transitado, foi o Autor convidado a aperfeiçoar a respectiva petição inicial, por forma a alegar quais os concretos pagamentos (com indicação de valores e datas em que foram efectuados) que deram origem aos créditos invocados (seja a título de capital, seja a título de juros).

2ª. Como os autos o patenteiam, tal matéria não foi alegada pelo Autor na respectiva PI aperfeiçoada, ao invés do determinado no aludido despacho com força de caso julgado formal.

3ª. Não tendo tal matéria sido alegada na PI aperfeiçoada, por despacho proferido no início da audiência de julgamento do dia 23/01/2018, gravado no sistema CITIUS, o Tribunal de 1ª instância decidiu ser “matéria de apreciação do mérito da causa que será efectuada em sede de decisão final atendendo aos factos alegados e à prova que vier a ser produzida em julgamento”.

4ª. Acontece que, ao arrepio do assim decidido, tal como o Autor não havia identificado qualquer concreto pagamento (com indicação de valor e data), também não o fez o Tribunal de 1ª Instância na respectiva decisão, e, ainda assim, conclui pela condenação da Ré, em manifesta violação do caso julgado formal das suas duas anteriores decisões na matéria.

5ª. Do mesmo modo, veio o Tribunal a quo a decidir e confirmar a decisão do Tribunal de 1ª Instância o Tribunal a quo baseando-se nos documentos juntos ao processo pelo Recorrido e que, no respectivo entendimento, consubstanciam as datas, valores e entidade perante as quais a Recorrente utilizou o cartão de crédito em causa - concretos movimentos esses que também não concretiza.

6ª. Sucede que, ao invés do assim decidido, motivando o presente recurso de revista, não está em causa a apresentação de documentos, mas sim a necessidade de, em cumprimento de decisão com força de caso julgado formal, desde logo “alegar quais os concretos pagamentos (com indicação de valores e datas em que foram efectuados) que deram origem aos créditos invocados (seja a título de capital, seja a título de juros)”.

7ª. Esta foi, efectivamente, a decisão precedentemente proferida no processo e, porque gozando de força de caso julgado formal cuja violação fundamentou perante o Tribunal a quo o recurso de apelação, fundamenta agora a presente revista.

8ª. Mais do que o entendimento doutrinário e jurisprudencial sobre o ónus de alegar factualmente não se bastar com o remeter para documentos, posto não serem estes senão simples meios de prova daqueles, certo é que, no presente caso, com força de caso julgado formal, o entendimento foi no sentido da efectiva necessidade e correspondente determinação judicial quanto a ter que alegar quais os concretos pagamentos (com indicação de valores e datas em que foram efectuados) que deram origem aos créditos invocados - o que, como se refere, não foi cumprido.

9ª. Contende com o princípio constitucional do Estado de direito a interpretação do artigo 620ª do CPC, segundo a qual o mesmo não se mostra infringido quando, tendo sido determinado judicialmente o aperfeiçoamento de petição inicial por forma a alegar quais os concretos pagamentos (com indicação de valores e datas em que foram efectuados) que deram origem aos créditos invocados (seja a título de capital seja a título de juro), tendo tal determinação transitado, e não constando da subsequentemente apresentada petição inicial aperfeiçoada tal alegação dos concretos pagamentos com indicação de valores e datas, se entenda como suficientes e adequados para esse efeito documentos juntos ao processo para os quais se remete.

10° Termos em que deve ser dado provimento ao presente recurso de modo a se fazer Justiça.

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A parte contrária contra-alegou, concluindo pela improcedência do recurso.

Mais disse que o recurso era inadmissível.

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Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

                                                           +

II - ÂMBITO DO RECURSO

Importa ter presentes as seguintes coordenadas:

- O teor das conclusões define o âmbito do conhecimento do tribunal ad quem, sem prejuízo para as questões de oficioso conhecimento, posto que ainda não decididas;

- Há que conhecer de questões, e não das razões ou argumentos que às questões subjazam;

- Os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do ato recorrido.

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É questão a conhecer:

- Ofensa do caso julgado.

                                                           +

Questão prévia da inadmissibilidade do recurso

O Recorrido diz que o recurso é inadmissível.

Para tanto fundamenta-se na circunstância de inexistir violação do caso julgado, de estar em discussão um despacho de mero expediente, de se registar uma situação de dupla conforme e do valor da causa estar contido na alçada do tribunal recorrido.

A verdade, porém, é que argumentar desse modo é estar a confundir a inadmissibilidade do recurso com a sua improcedência. Para que o recurso seja admissível basta que se invoque a ofensa do caso julgado, sendo indiferente que o recurso esteja destinado a improceder, que haja ou não dupla conforme ou que o valor esteja contido na alçada do tribunal recorrido, como, aliás, está muito claro no art. 629.º do CPCivil. Saber se tal invocação é cabida já será questão do mérito do recurso. E se dúvidas houvesse sobre o assunto, e que não há, recorde-se aqui o que diz Abrantes Geraldes (Recursos no novo Código de Processo Civil, 2ª ed., pp. 42 a 44): “Independentemente do valor da ação, a decisão que, na perspetiva do interessado, ofenda outra decisão já transitada em julgado é sempre passível de impugnação em via de recurso”. (…) Tendo esta [a revista] por fundamento a ofensa de caso julgado, será de admitir fora do condicionalismo geral da revista, ainda que porventura se verifique uma situação de dupla conforme (art. 671.º, n.º 3) ou mesmo que se trate de acórdão que não reúna as condições previstas no n.º 1”. (Sublinhado nosso).

Ora, a Recorrente invoca a ofensa do caso julgado.

Logo, é o recurso admissível.

Se a pretensa ofensa do caso julgado se verifica ou não, isso já é outra coisa.

Termos em que se julga improcedente a questão prévia da inadmissibilidade do recurso.

III - FUNDAMENTAÇÃO

De facto

Dão-se aqui por reproduzidas as incidências fáctico-processuais acima descritas, as únicas que têm interesse para o conhecimento do objeto do recurso.

De direito

Sustenta a Recorrente que foi violado o caso julgado formado com o despacho de 12 de Setembro de 2017.

Despacho este que, recorde-se, convidou o Autor a aperfeiçoar a petição inicial, alegando quais os concretos pagamentos (com indicação de valores e datas em que foram efetuados) que deram origem aos créditos invocados e identificar o cartão de crédito em causa.

Segundo a Recorrente, o Autor não teria aperfeiçoado a petição inicial em conformidade com os parâmetros do despacho de convite, e é daqui que conclui pela ofensa do caso julgado.

Mas carece de razão.

Bastaria pensar um pouco naquilo para que serve o caso julgado – essencialmente salvaguardar a paz social e a garantir a definitividade da resolução de um litígio [o caso julgado, nas palavras de Miguel Teixeira de Sousa (Estudos sobre o Novo Processo Civil, p. 568) é a expressão dos valores de segurança e certeza que são imanentes à ordem jurídica] – para ver que não faz o mínimo sentido vir-se falar em caso julgado relativamente a um despacho de convite a um aperfeiçoamento de um articulado. O caso julgado torna indiscutível o resultado da aplicação do direito ao caso concreto (dirimindo assim uma determinada questão substantiva ou processual) e não é disto que se trata quando se está perante um despacho de aperfeiçoamento, precisamente porque neste não se está a aplicar qualquer direito ao caso concreto (não se está a dirimir qualquer questão).

Na realidade, o despacho de aperfeiçoamento proferido perante articulado irregular, pese embora ser um despacho vinculado - e aqui temos de discordar do Recorrido quando afirma que se trata de um despacho de mero expediente - não representa em si mesmo uma definição do direito aplicável, não sendo assim um despacho definitivo, mas uma decisão preparatória ou uma pré-decisão (v. a propósito Castro Mendes, Direito Processual Civil, Recursos, AAFDL, 1980, p. 45). A decisão subsequente que retire consequências do não aperfeiçoamento é que será uma verdadeira decisão de um caso que foi julgado e, como tal, é esta que é passível de ter força obrigatória e de formar caso julgado. É precisamente por essa razão que do despacho de convite não cabe legalmente recurso (v. art. 590.º, n.º 7 do CPCivil).

Sobre este assunto diz-nos Lebre de Freitas (A Ação Declarativa Comum, 3ª ed., pp. 164 e 165) o seguinte (sublinhado nosso):

“O despacho de aperfeiçoamento proferido perante articulado irregular é um despacho vinculado, que, como tal, o juiz tem o dever de proferir (…). Mas, se for proferido, ele não é recorrível (art. 590º-7), porque reveste natureza provisória: convidada a aperfeiçoar os articulados, a parte corresponde ou não ao convite do juiz; no primeiro caso, este verifica se o aperfeiçoamento é suficiente e, se assim for, o processo prosseguirá, sem que o juízo emitido constitua caso julgado; se o aperfeiçoamento não for suficiente ou a parte nada a perfeiçoar, o juiz proferirá novo despacho, em que tirará as consequências que se impõem, despacho este recorrível.”

No mesmo sentido se move Miguel Teixeira de Sousa (v. ob. cit., pp. 303 e 304).

No caso vertente, vemos que o Autor, podendo embora nem sequer o ter feito (o despacho de convite ao aperfeiçoamento não é impositivo - pelo contrário, é isso mesmo, um convite, e só se aceita o convite quem quer), acedeu ao convite do tribunal, aperfeiçoando o que teve por conveniente aperfeiçoar na sua petição inicial e juntando documentos (que constituíam até um complemento do que alegou). Esta conduta do Autor, independentemente da exata adequação do aperfeiçoamento ao convite que lhe foi endereçado, era assunto do seu exclusivo foro ou interesse, e não do foro ou interesse da Ré, como esta se vem agora presumir. Pois que era o Autor que ficaria sujeito às devidas consequências negativas se acaso o suposto (na perspetiva da Ré) aperfeiçoamento inadequado ou incompleto viesse a ser havido como insatisfatório. Mas o aperfeiçoamento não veio a ser havido insatisfatório, tanto que a ação seguiu depois os seus termos e foi até julgada procedente com base nos factos alegados pelo Autor e complementados através dos documentos que juntou.

Bem se vê, deste modo, que a argumentação da Recorrente, confundindo o inconfundível, não implica a ofensa de qualquer caso julgado, que pura e simplesmente inexiste.

De resto, o que a Recorrente aduz, centrado exclusivamente numa pretensa inidoneidade da petição inicial aperfeiçoada em termos de factos e na sua correlação com os documentos apresentados pelo Autor, tem na realidade a ver com o conteúdo ou substanciação (o mérito) da causa, pretendendo a Recorrente, embora sob as vestes de ofensa a um caso julgado (ou seja, de forma encapotada ou enviesada), que a condenação que foi proferida não devia ter tido lugar. Ocorre, porém, que sobre esta visão da Recorrente não pode recair qualquer pronúncia por parte deste Tribunal. É que, como nos diz Abrantes Geraldes (ob. cit., p. 43) “A extensão especial da recorribilidade é restrita à questão da ofensa do caso julgado, não podendo o recorrente aproveitar a oportunidade para impugnar, ao abrigo do regime especial, outras decisões ou segmentos decisórios submetidos à regra geral”. Além disso, fora do contexto do caso julgado, a decisão condenatória que foi proferida sempre seria insuscetível de apreciação por parte deste Tribunal (ou seja, seria irrecorrível) por estar formada uma dupla conformidade decisória das instâncias (art. 671.º, n.º 3 do CPCivil) e por o valor da causa estar contido na alçada do tribunal recorrido.

E pelo que fica dito, resulta que a afirmação constante da conclusão 9ª carece de qualquer fundamento e procedência. Por um lado porque não existe na hipótese sub judice espaço para se vir falar do art. 620º do CPCivil (na medida em que não há qualquer trânsito em julgado ou caso julgado a levar em linha de conta). Por outro lado porque a afirmação de que a petição aperfeiçoada e documentos anexados eram insuficientes ou inadequados em face dos termos do despacho de convite ao aperfeiçoamento tem a ver unicamente com a substanciação da causa (isto é, com o mérito da causa), assunto sobre que não pode este Tribunal emitir qualquer juízo. E o que é certo e relevante é que as instâncias entenderam implicitamente que o aperfeiçoamento da petição inicial foi profícuo, tanto que a ação procedeu.

Improcede assim o recurso.

IV - DECISÃO

Pelo exposto acordam os juízes neste Supremo Tribunal de Justiça em negar a revista.

Regime de custas:

A Recorrente é condenada nas custas do presente recurso.

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Sumário (art.s 663º, nº 7 e 679º do CPCivil):

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Lisboa, 14 de maio de 2019

José Rainho (Relator)

Graça Amaral

Henrique Araújo