Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
08A542
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: SEBASTIÃO PÓVOAS
Descritores: CAMINHOS PÚBLICOS
AFECTAÇÃO
ATRAVESSADOURO
RECURSOS
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Nº do Documento: SJ20080313005421
Data do Acordão: 03/13/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Sumário :
1) O valor processual da causa corresponde à soma dos valores dos pedidos da acção e reconvencional. o qual se mantém inalterado independentemente do resultado do pedido cruzado.

2) Havendo absolvição da instância reconvencional e prosseguindo a lide quanto ao pedido da acção, mantém-se o valor para efeitos da alçada, ainda que o pedido principal tenha um valor não permissivo do recurso, desde que se mostre salvaguardado o valor da sucumbência.

3) O Supremo Tribunal de Justiça está limitado nos seus poderes sobre a matéria de facto, âmbito em que, de harmonia com o disposto nos artigos 26.º da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais – Lei n.º 3/99, de 13 de Janeiro), e 722.º,n.º2 e 729.º n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil, só lhe é licito intervir em questão prova vinculada ou o desrespeito de norma reguladora do valor legal das provas.

4) Enquanto tribunal de revista, com competência restrita à matéria de direito, e só nos limitados termos consentidos pelo n.º2 dos artigos 722.º e 729.º lhe sendo consentido que intervenha em matéria de facto, a possibilidade de debater questões de facto perante este Tribunal confina-se ao domínio da prova vinculada, isto é, da única que a lei admite para prova do facto em causa, e ao da força probatória legalmente atribuída a determinado meio de prova.

5) São públicos os caminhos que desde tempos imemoriais estão no uso directo e imediato do público em geral para satisfação de relevantes fins de utilidade pública, relevância que, assim restringindo o âmbito do Assento de 19 de Abril de 1989, quanto à afectação, é de apreciar casuisticamente no cotejo com as circunstâncias e o “modus vivendi” locais.

6) Tempo imemorial é um período tão antigo que já não está na memória directa, ou indirecta – por tradição oral dos seus antecessores – dos homens, que, por isso, não podem situar a sua origem.

7) Há desafectação tácita quando por razões de desnecessidade – que não de impossibilidade física ou legal – o bem deixa de ser usado por todos para relevantes fins de utilidade pública, não sendo suficiente, para tal, uma mera não utilização.

8) Verificada a desafectação o bem passa a integrar o domínio privado do Estado, ou de outra pessoa colectiva de utilidade pública.
9) A satisfação de interesses colectivos relevantes – que não uma mera soma de interesses individuais de conveniência – é ponto inicial do “distinguo” entre caminho público e atravessadouro.

10) Os atravessadouros ou atalhos são caminhos pelos quais o público faz passagem através de prédios particulares, com o fim essencial de encurtar o percurso entre determinados locais, sendo os seus leitos parte integrante dos prédios atravessados. Já os caminhos públicos destinam-se a estabelecer ligações de maior interesse, em geral entre povoações, e os respectivos leitos fazem parte do domínio público.

11) Ou seja, um caminho, no uso directo e imediato do público, desde tempos imemoriais, que atravesse prédio particular, será público se ocorrer afectação naqueles termos; mas se visar apenas o encurtamento, não significativo, de distâncias, deverá classificar-se como atravessadouro, se o leito pertencer ao prédio atravessado.
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

AA e sua mulher BB intentaram acção, com processo sumário, contra o Município de Amares e a Freguesia da Torre desse Município.

Invocando a aquisição do domínio, por usucapião, de um prédio rústico, resultante da desanexação de outro, referem que no mesmo existe caminho de passagem; que construíram um muro de suporte no logradouro do prédio urbano ali existente junto a esse caminho; que os Réus recusaram autorizar o muro, alegando ter sido implantado em caminho público.

Pediram, a final, o reconhecimento do seu direito de propriedade sobre a faixa de terreno onde se situa o muro e a condenação dos Réus a tal reconhecerem.

Contestaram estes e deduziram pedido reconvencional pedindo se declare que o caminho pertence ao domínio público e a condenação dos Autores a desobstrui-lo.

Foi proferido despacho absolvendo os Autores da instância reconvencional.

Na 1.ª Instância a acção foi julgada procedente e os Réus condenados a reconhecerem o domínio dos Autores sobre a faixa de terreno de implantação do muro por ser parte integrante do seu prédio.

Os Réus apelaram tendo a Relação de Guimarães dado provimento ao recurso e revogado a sentença recorrida.

Pedem agora revista os Autores.

E, em síntese, assim concluem as suas alegações:
– Ao proceder às alterações das respostas dadas em primeira instância da forma em que o fez, o douto acórdão proferido violou os mais elementares ditames que regem a admissibilidade concedida ao Tribunal da Relação para alterar a matéria de facto dada por assente em sede de primeira instância.
– Entre nós vigora o princípio da livre apreciação da prova e o juiz responde aos quesitos segundo a convicção que formar acerca de cada facto quesitado (art° 655°, n.° 1 do C.P.C.).
– Daí que o Tribunal Superior não possa, em princípio, alterar as respostas dadas aos quesitos, só o pode fazer dentro dos apertados limites previstos no art° 712°, n.° 1, do citado diploma legal.
– Basta a circunstância de, em audiência de julgamento, terem sido produzidos depoimentos orais de testemunhas, para desde logo ser impossível operar qualquer critica quanto à apreciação feita pelo Colectivo sobre o teor das respostas ao questionário
– Ora, o despacho de fundamentação da decisão da matéria de facto encontra-se bem fundamentado, e os depoimentos gravados, contrariamente ao que pretendiam os ora recorridos, não são susceptíveis de contrariar a convicção gerada pelo julgador da 1.ª instância.
– Aliás, decorre da fundamentação da sentença proferida em primeira instância que «Dos documentos juntos, designadamente os mais recentes (fls. 157 a 195) não se alcança com segurança que os prédios dos AA. confrontam com carreiro, tanto mais que, a ser assim, também os prédios vizinhos, a poente,,deveriam confrontar com o mesmo, o que não acontece.»
– Além do mais, conforme resulta da matéria provada, “Nem nesta, [planta aerofotogramática em uso na Câmara Municipal] nem em qualquer outro levantamento topográfico se encontra assinalado qualquer caminho ou carreiro através do imóvel referido em 4)»(o prédio dos ora Apelados)”.
– Resulta igualmente da fundamentação da matéria provada, o próprio «Presidente da Câmara Municipal entre 1990 e 1993 referiu que foi no seu tempo de presidente que foi aberto um arruamento entre a E.N. e a igreja e que, nessa altura, nunca ouviu falar de qualquer carreiro de acesso à Igreja ou à Capela, apesar de lá ter ido por diversas vezes.»
– O artigo 655°, n° 1 do C.P.C, consagra o denominado sistema de prova livre, por contraposição ao regime da prova legal: O tribunal aprecia livremente a prova, decidindo os juízes segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto.
– Quer isto dizer que a prova é apreciada segundo critérios de valoração racional e lógica do julgador, pressupondo o recurso a conhecimentos de ordem geral das pessoas, normalmente inseridas na sociedade do seu tempo, a observância das regras da experiência e dos critérios da lógica, tudo se resolvendo, afinal, na formação de raciocínios e juízos que, tendo subjacentes as ditas regras, conduzem a determinadas convicções reflectidas na decisão dos pontos de facto em avaliação.
– Não obstante o douto acórdão proferido pelo Tribunal da Relação tenha decidido pela revogação da decisão interposta pelos AA. ora recorrentes, e consequentemente tenha julgado improcedente a Acção por eles interposta, entendem os ora recorrentes que apesar do manancial de alterações da matéria de facto, sempre a decisão teria de ser pela procedência de acção interposta pelos AA. ora recorrentes.
– Consta da matéria de facto dada por assente mesmo após as alterações verificadas que “a passagem pelo carreiro pedonal, apenas viável para as pessoas mais ágeis (pois se fazia por degraus toscos e saltando sobre uma pedra de vedação) não constituía um percurso necessário, nem sequer o percurso normal entre a Igreja paroquial e o lugar do Eirado (art.° 22° da p.i.).”
- Consta também desde há mais de 20 e 30 anos, os que eventualmente utilizavam o carreiro pedonal, em direcção á Igreja e vice-versa, passavam pelo 2.° balcão, pela Leira da Eira e pela cancela desta, pelo segmento do carreiro pedonal, entre o rego da água de consortes e o Caminho Municipal n.° 1232, estar intransitável devido a silvas e outra vegetação (art° 23.° da pi.)
– Resulta também da matéria de facto dada por provada que o carreiro em apreço não tem as características para que daí se possa concluir pela dominialidade pública. Atenta a sua largura é manifesto que o mesmo não passa de mero atravessadouro, utilizado para atalhar caminho. De qualquer modo, não existem nos autos quaisquer outros elementos que permitam atribuir ao dito carreiro, qualquer outra função mais relevante do que a de servir de simples serventia ou atalho entre as duas vias que se situam nos seus topos.
– Desde a entrada em vigor do actual Código Civil, deixou tal atravessadouro de ter qualquer relevância (Art. 1383° do C.C.), visto que não se verifica o condicionalismo referido no art. 1384° do mesmo diploma.
– Traduzindo-se os caminhos públicos e os atravessadouros (ou atalhos) em vias de comunicação afectadas ao uso de qualquer pessoa, é evidente que o simples uso pelo público, mesmo que imemorial, não pode bastar para qualificar determinada passagem como caminho público, sob pena de todos os atravessadouros com longa duração terem de ser qualificados como dominiais, em manifesta violação do preceituado nos artigos 1383.° e 1384.°, que apenas ressalvam os que se dirijam a ponte ou fonte de manifesta utilidade.
– Mesmo que assim não fosse, sempre resultaria da matéria de facto dada por assente que com a construção do novo arruamento e ter deixado de ter passado qualquer pessoa no carreiro em causa, logo teria ocorrido a sua desafectação do domínio público.
– Na verdade, a desafectação do caminho do domínio público pode ser expressa ou tácita, considerando-se tácita desde que a coisa, se tornou desnecessária à utilidade pública. Neste caso, o caminho deixou de ser necessário para nele passarem as populações locais que antes o utilizavam a partir do momento em que as populações passaram a poder dispor de uma estrada mais larga asfaltada melhor construída para satisfazer as suas necessidades de comunicação. Sempre teria ocorrido a sua desafectação tácita.
– O Acórdão recorrido violou o disposto nos artigos 351.º, 515.º, 668.º, 690-A e 712 do Código de Processo Civil e 1311.º e seguintes, 1383.º e 1384.º do Código Civil.
Contra alegaram os Réus suscitando a questão prévia da inadmissibilidade do recurso, face à absolvição da instância reconvencional e concluindo, no mais:
– O Tribunal recorrido julgou e decidiu a modificação da decisão de facto dentro dos limites que estão fixados pela lei processual.
– O Tribunal recorrido apreciou criticamente os fundamentos da impugnação da matéria de facto aduzidos pelos Apelantes e, reconhecendo-lhes razão, decidiu modificar a decisão de facto nos termos peticionados pelos Apelantes.
– O Tribunal da Relação de Guimarães, ao alterar a decisão de facto nos termos peticionados pelos Apelantes, supriu um sem número de contradições que afectavam a decisão de facto proferida pelo Tribunal de 1.ª Instância e sanou-a quanto ao erro de julgamento de facto.
– Para tanto, o Tribunal ouviu a gravação da prova produzida em audiência de julgamento, tal como consta de fls. 23 a 25 do Acórdão
– Pelo exposto, nessa parte, o Acórdão recorrido não merece qualquer censura. Está desenvolvidamente fundamentado e não enferma de qualquer contradição, falta de clareza ou obscuridade.
– Por conseguinte, também por esta razão, deve o presente recurso ser julgado improcedente, confirmando-se a decisão recorrida quanto à matéria de facto fixada.
– A acção instaurada pelos AA. contra os RR. assume a natureza jurídica de acção de simples apreciação positiva, cujo pedido formulado é o reconhecimento do direito de propriedade sobre uma faixa de terreno, correspondente ao local de implantação de um muro de blocos pelos AA., melhor descrito em 49.º e 50.º da petição inicial.
– Tratando-se de acção declarativa de simples apreciação positiva, visando o reconhecimento do direito de propriedade, incumbe ao autor, àquele que formula o pedido, a prova dos factos constitutivos do direito que quer ver reconhecido judicialmente. Assim determina o princípio-geral de distribuição do ónus probatório, consagrado no art. 342°, n°1 do Cód. Civil: «àquele que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado». Competia, pois, aos AA., aqui apelados, fazer a prova de serem os titulares do direito de propriedade sobre a acima referida parcela.
– Tal como resulta da douta decisão de facto, os AA não lograram provar que a aludida faixa de terreno, correspondente ao leito do carreiro, se situa dentro dos limites geográficos do prédio identificado em 1 da petição e dele faz parte integrante.
– Pelo contrário, provou-se que o prédio de que os AA. se arrogam donos e legítimos possuidores confronta e sempre confrontou pelo lado poente com carreiro ou caminho público. Com efeito, o prédio donde foi desanexada a parcela de terreno doada ao Autor sempre confrontou dos lados sul e poente com o carreiro. Logo, por maioria de razão, a não ser que o Autor invocasse justo título de aquisição do carreiro, também o prédio do Autor não poderá deixar de confrontar com o carreiro, como, como, aliás, resulta da matéria de facto provada.
– Os AA. não alegaram qualquer causa aquisitiva do direito de propriedade distinta sobre a faixa de terreno correspondente ao aludido carreiro, designadamente: contrato, sucessão por morte, usucapião, ocupação, acessão (art. 1316° do Cód. Civil). O que os AA. alegaram foi que adquiriram o direito de propriedade sobre o prédio identificado em 1 da petição inicial, o qual confronta do lado poente com o carreiro, por doação da mãe do Autor, CC
– Em suma, os AA. não lograram provar o suporte fáctico da causa de pedir e, por conseguinte, não podia o Tribunal recorrido reconhecer-lhes o direito de propriedade sobre a dita faixa de terreno. Apesar de alegarem factos nesse sentido, ruiu em absoluto, por falta de prova, a tese dos AA., a saber: de que o carreiro fazia parte integrante do seu prédio e de que pelo carreiro se exercia passagem por tolerância.
Pedem, em consequência, a manutenção do julgado.
A Relação deu por assente a seguinte matéria de facto:
1) O A., por si e seus legítimos antepossuidores, com exclusão doutrem, há mais de 1, 20 e 50 anos, ininterruptamente, detém, frui e possuí, explorando-o, colhendo os respectivos frutos e gozando as utilidades que é susceptível de proporcionar e suportando os inerentes encargos, o prédio urbano sito no lugar do Eirado, freguesia da Torre, desta Comarca, composto de casa de habitação de rés do chão e andar, com logradouro, a confrontar de Norte com CC, Nascente com Avenida da Igreja ou variante ao Caminho Municipal n.° 1232, Sul com Caminho Municipal n.° 1232, descrito na Conservatória do Registo Predial de Amares sob o n.° 00160 da referida freguesia e inscrito na respectiva matriz sob o artigo 241, com o valor patrimonial de 20.880 euros; (artigo 1.º da p.i)
2) Com ânimo de exclusivo dono, à vista de toda a gente nisso interessada, sem oposição de quem quer que seja (art.° 2.° da p.i.);
3) Tendo registado, pela inscrição GI de 1998.05.04, a respectiva aquisição a seu favor, por doação de sua mãe CC (art.° 3.º da p.i.).
4) Antes de autonomizado, o prédio identificado em 1) fazia parte de um imóvel mais vasto formado por vários campos e leiras em balcões, descendo para norte, todo vedado sobre si, confrontando de Norte com a EN 205-3, Nascente com DD e com caminho que descia da Igreja para o Cemitério, Sul com Caminho Municipal n.° 1232, (art.° 5.° da p.i.).
5) Na parte mais elevada do referido imóvel, a Sudoeste, junto ao Caminho Público, existiu em tempos uma casa de lavoura com eira de pedra (onde se esfolhava o milho e se malhavam, limpavam e secavam esse e outros cereais e espigueiro também em pedra, lagar e cortes para arrecadação dos cereais e das alfaias e para guarda do gado e doutros animais domésticos (art.° 6.° da p.i.).
6) Bordejando a parte inferior do muro de suporte do balcão da casa, da eira e do espigueiro passava uma regueira, um rego permanente de água para lima e rega, quer do prédio acima identificado em 4), quer de outros situados a Poente daquele (art.° 7.° da p.i.).
7) Na parte poente, para baixo daquele balcão mais elevado da casa, eira e espigueiro, e, portanto, em direcção a norte, o imóvel descia em mais 3 balcões ou leiras estreitos, até que atingia uma folha de cultura de maiores dimensões, um campo de cultivo, que fazia a maior dimensão da estrema poente do imóvel e, por sua vez, terminava em socalco sobre a EN 205-3, suportado por um muro que marginava esta via (art.° 8.° da p.i.).
8) Aliás, atravessada essa E.N., CC, imediata antecessora do A., tal como os que desde que disso há memória, a antecederam na posse do prédio do n.º4, possuí, outros terrenos a Norte da E.N. 205-3, fronteiros àquele (art.° 9.° da p.i.). 4
9) E, a noroeste da parte do prédio pertencente aos antecessores dos AA, denominada Campo da Cortinha, havia um conjunto de degraus em pedra tosca, integrantes do carreiro pedonal, que permitiam a ligação com a berma da EN 205 – 3 (art. ° 11.º da p.i.).
10) Os degraus/escadas e o trilho rampeado do carreiro pedonal eram tão estreitos que, na sua maior extensão não permitiam a passagem de mais que uma pessoa de cada vez, sendo impossível o trânsito de quaisquer veículos ou, até, animais (art. ° 13.º da p.i.). 11) O acesso carral entre o Caminho Público 1232, a Sul, e a eira referida em 5) fazia-se por uma abertura no muro de vedação de alvenaria, delimitada por tranqueiros (art° 14. ° da p.i.).
12) Aplicada nesses tranqueiros, rodando nos gonzos embutidos num deles e fechando no batente/fecho embutido no outro, existia uma cancela de ferro, que habitualmente se mantinha fechada (art. ° 15. ° da p.i.).
13) Entre o tranqueiro poente do acesso/cancela referido nos dois artigos que antecedem e o muro do prédio agora de EE, apenas mediava um espaço de cerca de 60 cm, vedado por uma pedra com cerca de 60 cm de altura, a contar quer do nível da eira quer do leito do caminho, com o esclarecimento de que estes espaço e pedra pertenciam ao carreiro pedonal (art.16.º.da p.i)
14) Pelos degraus/escadas e pelo trilho rampeado do carreiro pedonal passavam os possuidores do imóvel mencionado em 4) e seus serviçais para acederem entre os balcões e/ou leiras e entre estes e o campo, bem como para, atravessando a EN, se deslocarem para os terrenos fronteiros ao dito campo, a norte da referida estrada, que integravam a mesma exploração agrícola, com o esclarecimento de que os referidos possuidores e serviçais o faziam sabendo que o carreiro pedonal não fazia parte do prédio dos AA. nem do prédio dos seus antecessores (art.° 17.º da p.i.).
15) Mas, pelos referidos degraus ou trilho do carreiro pedonal, usando também por tolerância a cancela referida em 13), também passavam os consortes da água de rega e lima do troço poente do rego comum referido em 6) e o Caminho Público, a sul, quando iam e voltavam de talhar o dito curso de água a montante do imóvel referido em 4), com o esclarecimento de que a referida tolerância abrangia apenas o uso da cancela e que a utilização desta se devia ao facto do segmento do carreiro pedonal, entre o Caminho Municipal n. ° 1232 E o rego da água de consortes, estar intransitável devido a silvas e a outra vegetação (art. ° 18. °).
16) Em tempos recuados, sempre há mais de 10 e 20 anos, residentes no lugar do Eirado, entre eles os caseiros dos terrenos do mesmo proprietário situados a norte da E.N., utilizavam o carreiro pedonal, em especial para se deslocarem à Igreja e à Capela de Santo Amaro (art° 19. ° da p.i.).
17) A passagem pelo carreiro pedonal, apenas viável para as pessoas mais ágeis (pois se fazia por degraus toscos e saltando sobre uma pedra de vedação) não constituía um percurso necessário, nem sequer o percurso normal entre a Igreja paroquial e o lugar do Eirado (art. ° 22. ° da p.i.).
18) Aliás, desde há mais de 20 e 30 anos, os que eventualmente utilizavam o carreiro pedonal, em direcção à Igreja e vice-versa, passavam pelo 2.° balcão, pela Leira da Eira e pela cancela desta, por o segmento do carreiro pedonal entre o rego da água de consortes e o Caminho Municipal n. ° 1232, estar intransitável a silvas e outra vegetação (art.º23 da pi)
19) Na verdade, ligando o restante lugar do Eirado com a Igreja existem dois caminhos públicos, pavimentados em calçada, um (o caminho municipal 1232) com cerca de 4 m de largura entroncando na ENQ5-3 cerca de 80 m para Poente dos degraus referidos em 10) e outro, com cerca de 2,5 m de largura, entroncando naquela estrada mais pelo nascente, junto do cemitério (art. ° 24. ° da p.i).
20) A distância entre as embocaduras daqueles dois caminhos, na EN, é de cerca de 300 m (art. ° 25. ° da p.i.)
21) E, para Norte da EN, fronteiro à embocadura nesta do caminho municipal n. ° 1232, convergia um outro caminho, também pavimentado e com idêntica largura de cerca de 4 m, que era o que ligava ao centro do lugar do Eirado, conforme planta aerofotogramétrica em uso na Câmara Municipal (art. ° 26. ° da p.i).
22) Conforme se verifica dessa planta os caminhos referidos nos 3 artigos antecedentes encontram-se nela assinalados (art. ° 27. ° da p.i.).
23) Mas nem nesta, nem em qualquer outro levantamento topográfico se encontra assinalado qualquer caminho ou carreiro através do imóvel referido em 4) (art. ° 28. ° da p.i.).
24) No ano de 1993, quando CC, mãe do A., era dona do prédio referido em 4), a Junta de Freguesia e a Câmara Municipal solicitaram a sua anuência para a construção através dele de um arruamento amplo (com 8 m de largura e dotado de amplas embocaduras com a EN a Norte e o caminho municipal n. ° 1232 a Sul, projectado como parte de uma avenida a ligar a igreja da freguesia da Torre à Estrada Nacional 205-3 (art. ° 32. ° da p.i.).
25) Em 28 de Maio de 1993, alcançado o pretendido acordo, foi o mesmo plasmado num contrato promessa de compra e venda, formalizado por escrito particular, mediante o qual CC prometeu vender ao Município uma parcela do referido prédio, com a área aproximada de 1.200 m2 (art. ° 33. ° da p.i).
26) Na cláusula 5.ª desse documento o Município assumiu a obrigação de vedar as parcelas sobrantes divididas pelo novo arruamento sendo a vedação provida de uma entrada carral para aceso a cada um dos balcões do terreno (art. ° 35.º da p.i.).
27) Pois se previu que a ligação existente entre os balcões deixaria de justificar-se e de ser utilizada, porque o novo arruamento asseguraria, de modo mais cómodo, a passagem entre os diversos balcões (art° 36. ° da p.i.).
28) O novo arruamento foi aberto através do imóvel referido em 4) ainda no ano de 1993 (art. ° 37.º da p.i.).
29) O carreiro pedonal, entre o rego de água de consortes que o atravessava e o Caminho Municipal n. ° 1232, cobriu-se de silvas e de outra (vegetação, impedindo a passagem de quaisquer pessoas (art. ° 39.º da p.i.).
30) Implantada a cerca de 120 m para Nascente da embocadura referida em 22, aquele arruamento não era – mesmo assim – uma via necessária, mas apenas destinada a dar mais dignidade ao templo paroquial, a melhorar o ordenamento urbano do centro da freguesia, a encurtar e tornar mais cómodo o transito entre a EN (a norte) e a igreja (a sul) e, também por isso, entre a igreja e o cemitério e a servir de estacionamento dos veículos dos frequentadores do Templo (art. ° 40. ° da p.i.).
31) Por efeito da abertura desse arruamento o imóvel referido em 4) ficou desmembrado em duas parcelas, uma a Nascente e outra a Poente (art. ° 41. ° da p.i).
32) No ano de 1998 o prédio identificado em 1) foi destacado desta parcela do lado Poente (art° 42. ° da p.i.).
33) Nos anos de 1998/1999, aproveitando as ruínas da antiga casa de lavoura, mas ampliando a construção, os AA construíram a sua casa de habitação, mantendo a antiga eira de pedra no pátio da casa, adornada pelo espigueiro (art. ° 43. ° da p.i.).
34) Nos arranjos desse pátio, os AA colmataram o muro de suporte do respectivo balcão (da Eira) de encontro ao muro de vedação do prédio de EE, atuindo os degraus – já intransitáveis – do carreiro pedonal (art. ° 44.º da p.i.
35) Logo no inicio das obras da casa, para favorecer o aceso aos camiões de transporte dos respectivos materiais, foram arrancados o tranqueiro Poente da entrada carral e a pedra interposta entre o mesmo e o prédio de EE referidos em 14) (art. ° 45. ° da p.i.).
36) No ano de 2002, os AA solicitaram o licenciamento municipal para rusticar o restante muro desse caminho municipal n. ° 1232 e para colocação de um pilar para aplicação de um portão (art. ° 46. ° da p.i.).
37) Quando procediam à legalização desse muro, para cuja necessidade haviam sido advertidos, os AA confrontaram-se com a posição dos RR (município e freguesia), manifestada a partir de uma exposição da Junta de Freguesia de Setembro de 2002, de que o referido muro havia sido implantado sobre caminho público (art. ° 51.º da p.i.).
38) Com isso pretendendo significar que o referido muro fora implantado na faixa do carreiro pedonal (52. ° da p.i.).
39) De acordo com o documento de fls. 150/155, deste consta que o prédio do A confronta de Poente com carreiro (art. ° 5.º da contestação).
40) O rego era a céu aberto e construído em pedra, mas foi transformado pelo A., ao tempo da edificação da casa de habitação, na parte em que atravessa a segunda leira que fica sob a Leira da Eira, que arrancou as pedras da antiga construção do rego e substituiu-as por manilhas de cimento colocadas sob a casa construída (art. ° 18. ° da contestação).
41) Entre as estremas sul e poente do identificado prédio e as estremas norte e nascente dos prédios vizinhos, hoje pertencentes a herdeiros de FF (um) e GG (outro), sempre se situou um carreiro que estabelece ligação entre os lugares do Eirado e da Lagarteira e o lugar da Igreja, todos da freguesia da Torre (art. 34.º da contestação).
42) Carreiro esse, com sinais visíveis e permanentes, que se inicia junto à Estrada Nacional através de umas escadas edificadas em pedra feita, com quatro degraus e um patamar (art. ° 35.º da contestação).
43) Daí parte em direcção à Igreja da freguesia da Torre e Capela de Santo Amaro até atingir o caminho municipal n. ° 1232 (art. ° 36. ° da contestação).
44) O referido carreiro, com um comprimento de mais de cem metros, tem a largura média de meio metro (art. ° 37.º da contestação).
45) Tal carreiro, na parte em que confronta com a leira ou campo de maiores dimensões do prédio, fica situado a um nível mais elevado em cerca de 20 centímetros (art. ° 38. ° da contestação).
46) O acima referido carreiro é suportado por uma parede feita em pedra que se inicia com uma altura de cerca de 50 centímetros até atingir uma altura de cerca de um metro e meio (art. ° 40. ° da contestação).
47) Esta parede, além de dar estabilidade ao carreiro, veda-o e demarca-o do prédio (art. ° 41.º da contestação).
48) Essa parede sempre suportou e ladeou o já referido carreiro junto à estrema poente da terceira leira a contar da Estrada Nacional até atingir o rego de água e carreiro de consortes referido, onde terminava (a parede), desviada do muro de suporte à leira cerca de um metro e meio para permitir a passagem dos consortes da água em direcção aos seus prédios por uma abertura existente no muro de vedação de GG (art. ° 42. ° da contestação).
49) Ao atingir o nível da Leira da Eira, o referido carreiro era ladeado, junto à confrontação poente/sul da Leira da Eira, por uma parede que servia de suporte da Eira (art. ° 44.º da contestação).
50) Essa parede continuava até ao fim da Eira, onde terminava (art. ° 45.º da contestação).
51) O acesso ao caminho municipal a partir daquele carreiro, era feito por três degraus e uma pedra colocada no seu leito, vulgarmente chamada por saltadouro, destinada a impedir a passagem de animais) nomeadamente gado (art. ° 46. ° da contestação).
52) Do lado poente/sul do referido carreiro, depois do seu leito com a largura média de meio metro, fica o muro de vedação nascente/norte dos prédios rústicos vizinhos, o primeiro a contar do caminho municipal n. ° 1232 pertencente a GG, e o segundo na direcção da Estrada Nacional pertencente a herdeiros de FF (art. ° 48. ° da contestação).
53) O referido carreiro proporcionava o acesso ao caminho municipal n. ° 1232, à Igreja e à Capela de Santo Amaro (art. ° 49.º da contestação).
54) Desde tempos que, por remotos, fogem à memória dos vivos, isto há mais de 20, 30, 50, 80, 100, 200 e 300 anos, os habitantes da freguesia da Torre e outras pessoas visitantes vêm usando e fruindo o referido caminho, ininterruptamente, à vista e com conhecimento de toda a gente, sem oposição de ninguém, no ânimo e espírito de quem exerce um direito próprio (art. ° 53.º da contestação).
55) E faziam ainda os habitantes do lugar da Igreja e do lugar do Eirado, da freguesia da Torre, uso e fruição do referido carreiro, nas circunstâncias referidas no artigo anterior, para acesso à fonte pública situada a norte da Estrada Nacional (art. ° 54. ° da contestação).
56) A utilização do referido carreiro é, e sempre foi, feita para acesso à Igreja e Capela, nas alturas das celebrações religiosas, designadamente missas, casamentos, baptizados, funerais e festas religiosas (art. ° 55. ° da contestação).
57) A utilização do referido carreiro, conhecido pelas pessoas como carreiro de Santo Amaro, era usado e fruído de forma mais intensiva nas festas de Santo Amaro, que sempre se realizaram na referida Capela do Santo Amaro, ano após ano, no segundo Domingo de Janeiro (art° 56.da contestação).
58) Nesses dias de festa religiosa, os romeiros e outras pessoas que se dirigiam à referida capela faziam o percurso a pé pelo referido carreiro que veio a receber o nome do Santo da Capela (art. ° 57. ° da contestação).
59) Fora desses dias de festa, também era usado e fruído o referido carreiro por todas e quaisquer pessoas, devotas do Santo Amaro que acorriam àquela Capela em cumprimento de promessas religiosas (art° 58. ° da contestação).
60) O leito do referido carreiro foi algumas vezes limpo, antes dos dias daquelas festas, pelos membros das Comissões de Festas de Santo Amaro (art. ° 59. ° da contestação).
61) Para além dos destinos já referidos, o descrito carreiro era ainda utilizado pelos consortes da água e rego referidos para acesso ao referido rego, derivação ou tapamento de pijeiros ou talhadouros, limpeza do rego e acompanhamento de água (art. ° 60. ° da contestação).
62) O referido caminho é de existência muito anterior ao Caminho Municipal n. ° 1232 e à Estrada Nacional n. ° 205-3 (art. ° 62. ° da contestação).
63) Mesmo depois da abertura da Estrada Nacional e do Caminho Municipal n. ° 1232 o referido carreiro continuou a ser utilizado pelos romeiros devotos de Santo Amaro (art. ° 64. ° da contestação).
64) Ao longo de gerações o referido carreiro serviu de passagem a pé e proporcionou acesso à Igreja, Capela e fonte pública (art. ° 66. ° da contestação).
65) Os AA aterraram o leito do carreiro na Leira da Eira e na que se segue a esta (art. ° 71.º da contestação).
66) No muro que serve de suporte à Leira da Eira, onde existia a abertura do carreiro e degraus de acesso do rego ao referido carreiro, os AA taparam a abertura e degraus com pedras, unindo as paredes que ladeavam o referido carreiro (art. ° 72. ° da contestação).
67) Os AA demoliram a parede que servia de resguardo à eira e ladeava o carreiro (art. ° 73. ° da contestação).
68) As pedras. dessa parede foram retiradas do local e depositadas, umas sobre as outras, na leira de maiores dimensões (art° 74.° da contestação).
69) Também foram removidas as pedras do patamar e saltadouro do referido carreiro na parte em que desembocava no caminho municipal (art° 75.º da contestação).
70) Sobre o leito do referido carreiro, ao largo da estrema poente/sul da Leira da Eira, mas para além dos limites dessa leira, os AA construíram um muro em blocos que, junto ao caminho municipal n. ° 1232, tem sete fiadas e uma altura de cerca de 2 metros, e, junto ao muro de suporte da Leira da Eira, tem 13 fiadas de blocos e uma altura de cerca de 4 metros (art. ° 76. ° da contestação).
71) Fora dos limites poente/sul da Leira da Eira, junto ao Caminho Municipal n. ° 1232, sobre o leito do referido carreiro, os AA colocaram uma coluna formada por quatro pedras que serve de suporte às dobradiças de um portão em chapa e ferro que também foi colocado em parte sobre o leito do antigo carreiro (art. ° 77. ° da contestação).
72) As obras descritas foram executadas pelos AA contra a vontade e à revelia do conhecimento dos RR e dos habitantes da freguesia da Torre (art. ° 78. ° da contestação).
73) De resto, a parede foi demolida e o referido muro foi construído, tudo clandestinamente, ou seja, sem licença de obras camarária (art. ° 79. ° da contestação).
74) Quando os RR tomaram conhecimento daqueles actos, prontamente deduziram oposição aos AA contra o avanço daquelas obras sobre o carreiro (art. ° 80. ° da contestação).
75) Mesmo depois de avisados e advertidos, os AA continuaram a demolição da parede referida em 72) eliminando quase totalmente os sinais da sua existência e de localização do referido carreiro (art. ° 81.º da contestação).

Foram colhidos os vistos.

Conhecendo,
1- Admissibilidade do recurso.
2- Matéria de facto.
3- Dominialidade.
4- Conclusões.
1- Admissibilidade do recurso.

Os recorridos suscitaram a questão prévia da admissibilidade do recurso por o valor da causa ser inferior à alçada da Relação, na sequência da absolvição da instância reconvencional.

Desde já é certo que os Autores deram à causa o valor de 10.000,00 euros, sendo que à reconvenção foi atribuído o valor de 14.963,95 euros.

Sabido é que toda a causa tem dois valores que, em regra coincidem: o valor processual, correspondente à utilidade económica do pedido – nos termos do artigo 305.º do Código de Processo Civil – e o valor tributário – artigo 5.º do Código das Custas Judiciais. (cf., a propósito, o Conselheiro Amâncio Ferreira, in “Manual dos Recursos em Processos Civil”, 7.ª ed., 113 – nota 208).

O primeiro releva para determinar a competência do tribunal, a forma do processo e a alçada.

Já o segundo importa, apenas, para efeito de custas.

Se é deduzido pedido cruzado, qualquer dos valores passa a corresponder ao da soma dos pedidos – principal e reconvencional – nos termos dos artigos 308.º n.º2 do Código de Processo Civil ( na redacção anterior ao DL34/2008,de 26 de Fevereiro) e 10.º, n.º1 do Código das Custas Judiciais (também na redacção anterior ao Regulamento das Custas Processuais), o que só importa no que, respeita aos actos e termos posteriores à reconvenção.

Caso a reconvenção venha a ser rejeitada, por inadmissível, importa apenas o seu valor para efeitos de tributar o reconvinte que decaiu. (cf. Conselheiro Salvador da Costa – “Código das Custas Judiciais – Anotado e Comentado”, 9.ª ed., 140).

Já o mesmo não acontece quanto ao valor processual que fica inalterado após a dedução da reconvenção, independentemente da sorte desta.

É que, se o valor se fixa no momento em que a acção é proposta (e havendo pedido cruzado, a partir da sua dedução) irreleva a sorte de qualquer dos pedidos – principal ou reconvencional (cf. v.g. os Acórdãos do STJ de 13 de Novembro de 1986 – BMJ 361-496 e de 7 de Junho de 1974 – BMJ 238-184 e de 11 de Julho de 1969 – BMJ 189-226; e Prof. Alberto dos Reis in “Comentário ao Código de Processo Civil”, 3.º, 651; Revista de Legislação e de Jurisprudência, 86.º- 342 e 79.º - 145).

A alçada traduz-se no limite de julgamento sem possibilidade de recurso ordinário, conceito tomado no sentido de recurso – regra. (cf. v.g., as excepções dos artigos 678.º, 123.º, n.º1, 262.º, n.º2, 234.º-A, 475.º, n.º2, 456.º, n.º3, 670.º, n.º4, 1413.º, n.º3, 1415.º, n.º4 do Código de Processo Civil).

Ora, na ponderação do exposto quanto à imutabilidade do valor processual e no valor resultante da reconvenção – 24.963,95 euros – improcede a questão prévia, nada obstando que se conheça o recurso.

2 – Matéria de facto.

2.1- Os recorrentes pedem a alteração da matéria de facto fixada pela Relação.

Diga-se, desde já, que este Supremo Tribunal não é uma 3.ª Instância.

Os seus poderes quanto à matéria de facto devem ser vistos à luz dos artigos 26.º da LOFTJ – Lei n.º 3/99 de 13 de Janeiro – e 722.º, n.º2 e 729.º n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil.

Enquanto tribunal de revista, com competência restrita à matéria de direito, e só nos limitados termos do n.º2 dos artigos 722.º e 729.º lhe sendo consentido que intervenha em matéria de facto, a possibilidade de debater essas questões perante ele limita-se à prova vinculada, isto é, à única que a lei admite para prova do facto em causa, e à da força probatória legalmente atribuída a determinado meio de prova.

Tratam-se também de questões de direito, já que, em tais hipóteses não há que apreciar as provas segundo a convicção de quem julga (artigo 655.º, n.º 1 do Código de Processo Civil), mas determinar se, para a prova de certo facto, a lei exige, ou não, determinado meio de prova, insubstituível, ou decidir sobre se determinado meio de prova tem, ou não, à face da lei, força probatória plena do facto. (cf. v.g., os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 11 de Outubro de 2001 – P.º 2492/01 e de 6 de Julho de 2006 – 06B 2102).

O Supremo Tribunal de Justiça confina-se, assim, ao domínio da prova vinculada, isto é, da única que a lei admite para a prova do facto em causa e ao da força probatória legalmente atribuída a determinado meio de prova.

É que estas questões não se prendem com a convicção de quem julga (artigo 655.º n.º1 do Código de Processo Civil) sendo, como se disse, pura matéria de direito.

Por isso, o erro na apreciação das provas e a consequente fixação dos factos materiais da causa, isto é, a decisão da matéria de facto baseada nos meios de prova livremente apreciáveis pelo julgador, excede o âmbito do recurso de revista.

É às instâncias que cabe o apuramento da factualidade relevante, sendo que na definição da matéria fáctica necessária para a solução do litígio, cabe à Relação a última palavra. Insiste-se que, a tal propósito, a intervenção do Supremo Tribunal se apresenta como residual e apenas destinada a averiguar da observância de regras de direito probatório material – artigo 722.º, n.º2 – ou a mandar ampliar a decisão sobre a matéria de facto – artigo 729.º, n.º3.

Aliás, não poderá esquecer-se que só a Relação compete censurar as respostas ao questionário ou anular a decisão proferida na 1.ª Instância, através do exercício dos poderes conferidos pelos n.ºs 1 e 4 do artigo 712.º.

Pode, em síntese, afirmar-se que no âmbito do julgamento da matéria de facto se movem as instâncias, estando, em princípio, vedado ao Supremo Tribunal de Justiça proceder à respectiva sindicância.

E este entendimento só terá de ceder se a Relação desrespeitou os pressupostos exigidos para a alteração da matéria de facto, constantes do artigo 712.º da lei processual.

O Prof. Alberto das Reis (in “Código de Processo Civil – Anotado”, V, 474) fazia o “distinguo” entre a apreciação das provas pela Relação – que é mera questão de facto – e a bondade do uso da faculdade do citado artigo – pura matéria de direito.

O Supremo Tribunal pode, apenas, verificar se se perfilam os pressupostos das alíneas a), b) e c) do n.º1 do mesmo artigo 712.º.

Mas quando tal acontece não se está a conhecer matéria de facto mas, tão-somente, a sindicarem-se erros de direito.

Só se, na fase de conhecimento do mérito, o Supremo Tribunal de Justiça deparar com insuficiente matéria de facto para decidir de direito ou o acervo factual contiver contradições inviabilizadoras dessa decisão, deverá devolver o processo ao tribunal recorrido para ampliar a decisão de facto, desde que nos limites da matéria alegada.

A esta faculdade se refere o Cons. Amâncio Ferreira ao apodá-la do poder oficioso “de exercer tacitamente censura sobre o não uso por parte da Relação dos poderes de alteração ou anulação da decisão de facto, sempre que entenda dever esta decisão ser ampliada, em ordem a constituir base suficiente para a decisão de direito, ou que ocorrem contradições na decisão sobre a matéria de facto que inviabilizam a decisão jurídica do pleito, ante o estatuído no n.º 3 do artigo 729.º” (ob.cit., 6.ª ed., 226).

2.2- Os recorrentes assacam ao segmento do Acórdão que alterou a matéria de facto o incumprimento do artigo 712.º da lei processual.

Mas não demonstram a sua razão.

Por um lado, e como consta do Acórdão foi ouvida a prova gravada, sendo que a decisão com base nela proferida não surge impugnada nos termos do artigo 690.º-A.

De outra banda, a valoração da prova documental feita pela Relação insere-se nos seus exclusivos poderes de cognição.

Finalmente, não se põe em causa a inobservância das regras de direito probatório material, nos termos do artigo 722.º, n.º2, “in fine” do Código de Processo Civil.

A decisão da 1.ª instância pode ser alterada pela Relação se do processo constarem todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os pontos da matéria de facto em causa ou se, tendo ocorrido a gravação dos depoimentos prestados, tiver sido impugnada nos termos do artigo 690.º-A do Código de Processo Civil, a decisão proferida com base neles.

A acção foi intentada em 2003.

É-lhe aplicável a redacção do artigo 690.º-A do Código de Processo Civil, introduzido pelo Decreto-lei n.º 183/2000, de 18 de Agosto (artigo 8.º).

Na redacção anterior (Decreto-lei n.º 329.º-A/95 de 12 de Dezembro) o n.º 2 exigia ao recorrente, “sob pena de rejeição do recurso, proceder à transcrição, mediante escrito dactilografado, das passagens da gravação em que se funda.”

Actualmente, cumpre, apenas, ao recorrente “indicar os depoimentos em que se funda, por referência ao assinalado na acta, ao abrigo do disposto no n.º 2 do artigo 522.º C”.

E o n.º 5 do mesmo preceito impõe à Relação a audição ou visualização dos depoimentos indicados, “excepto se o juiz relator considerar necessária a sua transcrição, a qual será realizada por entidades externas, para tanto contratadas pelo tribunal.

Escreveu-se no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 6 de Julho de 2006 – 06 A1838 – desta mesma conferência:

“Mas também incumbe ao impugnante da matéria de facto indicar os ‘concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados’.

Como refere o Acórdão deste Supremo Tribunal, de 15 de Novembro de 2005 (Pº 3153/05 – 1ª) ‘foi intenção do legislador, aliás expressamente confessada no relatório do Decreto-Lei nº 39/95, criar um duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto, embora temperada pelo ónus imposto ao recorrente de delimitação concreta do objecto do recurso e da respectiva fundamentação, a fim de evitar a impugnação genérica da decisão de facto no seu todo.’

E assim é porque – embora a Relação forme a sua própria convicção dentro do principio da livre apreciação das provas nos mesmos termos do Tribunal “a quo” – a ausência da imediação do contacto directo com a prova, a não suficiência, para percepção de detalhes e características idiossincráticas das testemunhas (o que releva para estribar convicções), de sistemas de gravação, quase permitem uma perfeita documentação do ocorrido na 1ª instância.

Será uma actividade difícil e penosa, passar várias horas a ouvir gravações, tentando identificar e reconhecer vozes dos depoentes e de outros intervenientes, relacioná-las com o que consta da acta e cotejá-las com as motivações, tantas vezes sem o necessário apuro técnico.

Por isso é que o 2º grau de jurisdição em matéria de facto deve ser visto com cautela buscando interpretações rigorosas – embora não necessariamente restritivas – dos preceitos que o regulamentam.

A exigência da alínea a) do nº 1 do artigo 690º A do Código de Processo Civil – e deixemos a da alínea b), por já acima abordada – destina-se precisamente a balizar, com rigor, a área de reapreciação, evitando uma reprodução integral de toda a prova, com as escolhas atrás acenadas. A importância dessa especificação é tal que o legislador fulmina a sua ausência com a rejeição do recurso.”

Se assim é na apelação, por maioria de razão o será na revista quando se pretende pôr em causa o cumprimento das normas de direito probatório pelo Relação.

O recorrente terá de especificar, clara e precisamente, os pontos de facto que considera incorrectamente julgados, por violação das regras de direito probatório material.

E não o fez “in casu”, antes se limitando a afirmar a sua discordância da apreciação da prova que a Relação fez, o que como se acentuou se situa no âmbito do insindicável por este Supremo Tribunal.

Ora, não se mostrando que a Relação tivesse dado como provados factos sem suporte probatório; factos para cuja demonstração seria necessário certo tipo de prova (seja por preterição de formalidade essencial, violação de regras da confissão ou violação de presunções legais); ou tivesse dado por improvados factos assentes na sequência de prova vinculada, improcede a impugnação da matéria de facto, por falta de competência funcional do Supremo Tribunal de Justiça para esse conhecimento.



3- Dominialidade

“Pulcra quaestio” é saber se a faixa de terreno reivindicada integra o prédio dos recorrentes ou se é dominial, por caminho público.

Como os recorrentes, na esteira da sentença da 1.ª instância, concedem ter sido simples atravessadouro, já abolido e, admitindo – aqui sem conceder – poder ter-se tratado de caminho entretanto desafectado do domínio público, são curiais algumas considerações sobre a dogmática destas figuras.

Só depois, e precisados os conceitos, se procederá à sua subsunção fáctica.

3.1- O Assento do Supremo Tribunal de Justiça de 19 de Abril de 1989 – hoje com valor de jurisprudência uniformizada, “ex vi” do n.º 2 do artigo 17.º do Decreto-Lei n.º 329.º-A/95, de 12 de Dezembro – afirmou serem “públicos os caminhos que, desde tempos imemoriais, estão no uso directo e imediato do público.”

O conceito de “tempos imemoriais” vem sendo tratado na doutrina e na jurisprudência.

O Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19 de Novembro de 2002 – 02 A2995 – conjuga “o termo imemorial com a perda (ou desaparecimento) da memória dos homens quanto ao início, começo ou princípio do facto considerado.” O aresto do mesmo Tribunal de 7 de Dezembro de 1994 – 085611 – refere ser “imemorial a posse, se os vivos não sabem quando começou” (…) quer por “observação directa” (…) quer “pelas informações que lhes chegaram dos seus antecessores.” No Acórdão de 8 de Maio de 2007 – 07 A981 – desta conferência – julgou-se que “tempo imemorial é um período tão antigo que já não está na memória directa ou indirecta – por tradição oral dos seus antecessores – dos homens, que, por isso, não podem situar a sua origem.”

Os Profs. Pires de Lima e A. Varela ensinam ser “imemorial a posse, se os vivos não sabem como começou; não o sabem por observação directa, nem o sabem pelas informações que lhes chegaram dos seus antecessores.” (in “Código Civil Anotado”, III, 1972, 255; cf. ainda Dr. Rui Pinto Duarte, in “Cadernos de Direito Privado” – 13 – Janeiro/Março 2006-5).

Tudo aponta para uma posse com tal antiguidade cujo início se perdeu na memória dos homens.

Mas a imemorialidade reporta-se à afectação.

A publicidade “exige ainda a sua afectação a utilidade pública, ou seja, que a sua utilização tenha por objecto a satisfação de interesses colectivos de certo grau e relevância (cf. os Acórdãos do STJ de 10 de Novembro de 1993 – BMJ 431-300 e “inter alia” de 10 de Abril de 2003 – P.º 4714/02-2.ª) numa clara adesão aos critérios do destino – na subespécie de uso público – e do carácter – na vertente de afectação.

A dominialidade foi tratada na doutrina à luz dos critérios da classificação (“acto pelo qual se declara que uma certa e determinada coisa reúne os caracteres próprios de cada classe legal de bens dominiais” – Prof. Freitas do Amaral in “Dicionário Jurídico da Administração Pública”, 2.ª) e da afectação.

Ali existe um acto constitutivo ou um acto meramente declarativo (v.g. inscrição no cadastro do domínio público) que aquele Mestre apoda, respectivamente, de classificação-construtiva e de classificação-verificativa.

Já a afectação implica quer um acto, quer uma prática consagrando o bem à efectiva produção de utilidade pública (cf., também, e noutra perspectiva, o Dr. José Pedro Fernandes, in “Dicionário Jurídico da Administração Pública, I; Dr. A. Carvalho Martins, apud “Caminhos Públicos e Atravessadouros”, 2.ª ed., 37).

Ponderámos no citado Acórdão de 8 de Maio de 2007:

“Mas, o Estado – e demais pessoas colectivas de direito público – pode agir sem poderes de autoridade e como qualquer particular ser titular de direitos reais de gozo, paralelamente à sua apropriação de bens segundo as regras do direito público.
O domínio público surge assim como o conjunto de bens pertença do Estado utilizados por todos os membros da comunidade.
Na doutrina, o Prof. Marcello Caetano lançava mão de dois critérios: o destino das coisas e o critério dos seus caracteres.
No primeiro incluíam-se três subespécies: o uso público (são públicas as coisas destinadas ao uso de todos); o serviço público (são públicas as coisas utilizadas pelos serviços públicos ou sobre as quais incida a actuação destes); o fim administrativo (são públicas as coisas que, directamente, satisfaçam os fins de uma pessoa colectiva de direito público).
O critério dos caracteres englobaria a afectação (são públicas as coisas destinadas a produzir utilidade pública) e a lei (são públicas as coisas assim consideradas por fonte bastante).
E é afinal este o critério aceite pelo Mestre que considera todos os outros meramente indiciários. (in “Manual de Direito Administrativo”, 9ª ed, 857 e ss).
A Constituição da República enumera os bens do domínio público (artigo 84º nº 1) sendo que se trata de enumeração não taxativa, como, claramente, resulta do nº 2.
E como nota o Prof. Menezes Cordeiro (in “Direitos Reais”, I, 180-181) são os seguintes os vectores normativos referentes ao domínio público:
- A constituição, a transmissão, a modificação e a extinção da situação dominial pública rege-se pelo Direito Público;
- Só a lei pode determinar a publicização de um bem ou a sua desafectação;
- A comercialidade dos bens públicos não é possível em termos do direito privado;
- Só podem ser titulares pessoas colectivas de Direito público;
- O aproveitamento decorre em termos de direito público, de modo a corresponder aos fins do estado;
- A sua defesa é feita directamente pelo estado no uso do seu “jus imperii”.
A evolução legislativa sobre a dominialidade pública (v.g Código Civil de 1867, artigo 380º: o DL nº 23565, de 12 de Fevereiro de 1934) culminou com o Código Civil vigente – que evitou caracterizar as coisas públicas (apenas o fazendo genericamente e pela negativa no artigo 202º nº 2) – e com o DL nº 477/80 de 15 de Outubro – que procede ao inventário, quer do domínio público, quer do domínio privado, quer, finalmente, do património financeiro do Estado.”

Mas, para os caminhos, a afectação deve caracterizar-se pela “satisfação de interesses colectivos de certo grau ou relevância” (v.g. Acórdão do STJ de 10 de Novembro de 1993 – BMJ 431-300.

O Acórdão de 13 de Janeiro de 2004 – P.º 3433/03-6.ª, entendeu, e bem, que: “Por muitas que sejam as pessoas que utilizem um determinado caminho ou terreno, só se poderá sustentar a relevância desse uso por todos para conduzir à classificação de caminho ou terreno público se o fim visado pela utilização for comum à generalidade dos respectivos utilizadores, por o destino dessa utilização ser a satisfação da utilidade pública e não de uma soma de utilidades individuais.” (…) “para se decidir da relevância dos interesses públicos a satisfazer por meio da utilização do caminho ou terreno para este poder ser classificado como público, há que ter em conta, em primeira linha, por um lado, o número normal de utilizadores, que tem de ser uma generalidade de pessoas, como é a hipótese de uma percentagem elevada dos membros de uma povoação, e, por outro lado, a importância que o fim visado tem para estes à luz dos seus costumes colectivos e das suas tradições e não de opiniões externas.” (cf., no mesmo sentido, o Acórdão de 15 de Junho de 2000 – CJ/STJ, Ano VIII, II, 117).

3.2- Como acima se acenou, confronta-se, ainda, a tese que considera estar-se perante um atravessadouro.

Na linguagem corrente um atravessadouro é um caminho alternativo que encurta as distâncias, um atalho.

Vejamos a jurisprudência deste Supremo Tribunal (respectivamente, os Acórdãos de 10 de Novembro de 1993 – CJ/Supremo Tribunal de Justiça, Ano I, III, 135/136; e o já citado de 15 de Junho de 2000),“quando os caminhos se destinem apenas a fazer a ligação entre caminhos públicos, por prédio particular, com vista ao encurtamento não significativo de distâncias, devem classificar-se como atravessadouros.”;“no conceito tradicional, os atravessadouros ou atalhos são caminhos pelos quais o público faz passagem através de prédios particulares, com o fim essencial de encurtar o percurso entre determinados locais, sendo os seus leitos parte integrante desses prédios.

Os caminhos públicos, por sua vez, destinam-se a estabelecer ligações de maior interesse, em geral entre povoações, e os respectivos leitos fazem parte do domínio público.”

A distinção entre ‘caminhos públicos’ e ‘atravessadouros’ poderá fazer-se nos seguintes termos: ‘um caminho no uso directo e imediato do público, desde tempos imemoriais, que atravesse prédio particular, será público se estiver afectado à utilidade pública (ou seja, visar a satisfação de interesses colectivos de certo grau ou relevância); de contrário (na falta desse requisito) e, em especial, quando se destinem apenas a fazer a ligação entre caminhos públicos, por prédio particular, com vista ao encurtamento não significativo de distâncias, os caminhos devem classificar-se como atravessadouros.”

Se a via se destina a mera ligação entre caminhos públicos por prédio particular para encurtamento de distância está-se perante um atravessadouro.

Os atravessadouros não foram excluídos pelo artigo 1383.º do Código Civil (“A abolição dos atravessadouros tinha sido decretada pelo Alvará de 9 de Julho de 1773, confirmado pelo Decreto de 17 de Julho de 1778. Não obstante Pais da Silva ter defendido a consagração da referida medida no Código Civil de 1867, o certo é que tal não aconteceu, e consagrou-se que “as servidões constituídas por utilidade pública, como a de fontes e pontes, ficaram para os regulamentos e leis especiais”. Mas, em 1966, veio a prevalecer a solução contrária, na medida em que os atravessadouros têm relevantes “reflexos no domínio privado, e são já tão antigas as leis que os aboliram. “ Além de que ‘conviria sempre pôr em relevo a distinção entre a servidão de direito privado e servidão administrativa’, o que se fez na parte final do artigo 1383.º” – cf. Profs. Pires de Lima e A. Varela, ob. cit., III, 254).

São, assim, atalhos ou serventias públicas que se fazem através de terrenos particulares com o fim essencial de encurtar o percurso entre locais determinados, sendo o leito parte integrante dos prédios atravessados.

Já os caminhos destinam-se a ligações de mais interesse constituindo o seu leito domínio público.

“Sempre que o público faça trajectos ou distâncias através de um prédio particular, em regra para atalhar ou encurtar determinados trajectos ou distâncias, deve entender-se que se trata de um atravessadouro, sujeito à cominação do artigo 1383.º do Código Civil, salvo se se provar que a faixa de terreno por onde se faz essa passagem entrou no domínio público por algum dos títulos por que pode ser adquirida dominialidade.” – BMJ 139-191.

“Nas situações de facto subsistentes que preencham o conceito de atravessadouros, qualquer interessado pode proceder como se eles não existissem ou pedir o reconhecimento judicial da sua extinção.” (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10 de Novembro de 1993, BMJ 431/304 e Prof. Oliveira Ascensão, “Caminho público, atravessadouro e servidão de passagem”, em “O Direito”, ano 123.º e Dr. A. Carvalho Martins, ob. cit., 64).

É este também o entendimento do Prof. Henrique Mesquita, que faz o “distinguo” entre caminho público e atravessadouro dizendo que “um caminho, no uso directo e imediato do público, desde tempos imemoriais, que atravesse prédio particular, será público se ocorrer aquela afectação; de contrário, e em especial se visar apenas o encurtamento não significativo de distâncias, deverá classificar-se como atravessadouro” (RLJ, 135.º, 64).

Assim também o entendemos, por ser a maneira mais correcta de conciliar o Assento de 1989 com os artigos 1383.º e 1384.º do Código Civil.

3.3- Por ter sido também aflorado nas conclusões das alegações, precisemos, finalmente, o conceito de desafectação.

Neste ponto quase nos limitamos a recordar o já citado Acórdão de 8 de Maio de 2007, desta conferência, ao considerar:
“… a desafectação – na sua modalidade de tácita, prende-se com a falta de utilização pelo público o que implica a perda da característica pública da respectiva utilidade.
Assim se um bem dominial, não constante do elenco legal imperativo, deixar de estar afecto à utilidade pública causal da respectiva qualificação, ocorre a desafectação tácita.
Esta não implica, sem mais, a transferência da propriedade mas o passar a integrar o domínio privado da pessoa colectiva a que pertencia. (cf. o Prof. Marcello Caetano, “Manual de Direito Administrativo”, 9ª ed, II, 934 e Acórdãos do STJ de 18 de Maio de 2006 – 06 B1468 e de 14 de Outubro de 2004 – 04B2576; e no mesmo sentido o Prof. Freitas do Amaral – Parecer junto aos autos onde foi proferido o Acórdão deste STJ de 13 de Janeiro de 2004).
Há, contudo, que atentar nas razões que conduziram à falta de utilização para verificar se a mesma resultou de desnecessidade – essa sim, geradora da desafectação tácita – ou de impossibilidade. (cf. Prof. Marcello Caetano que, em abono desta tese, ensina que ‘a estrada abandonada em consequência da construção de um desvio deixou de ser utilizada pelo trânsito e isso significa cessação da sua utilidade pública’ (…) ‘em todos os casos em que exista uma mudança de situações ou de circunstâncias que haja modificado o condicionalismo de facto necessariamente pressuposto pela qualificação jurídica. ‘
Daí que para aferir da desafectação tácita tenha de apurar-se a modificação das circunstâncias de facto que originaram a afectação “ab initio” à satisfação da utilidade pública que era o objectivo da utilização colectiva.
Se, por desafectação, o bem entra no domínio privado da pessoa colectiva pública pode, nos termos gerais, ser adquirido por usucapião.”

Em suma não basta a mera falta de utilização pelo público para determinar, desde logo, uma desafectação tácita.

Terá de ocorrer uma notória mudança de situação, ou clara alteração das circunstâncias que modifiquem as condições que foram pressuposto da qualificação jurídica.

3.4- Chegados a este ponto, resta considerar a faixa de terreno em litígio, sempre tendo presente o “ónus probandi” dos Autores – n.º1 do artigo 346.º do Código Civil.

Ficou provada a existência de degraus de pedra tosca “integrantes do carreiro pedonal que permitiam a ligação com a berma da EN-205-3 (9.º); que esses degraus e o trilho não permitiam a passagem de mais de uma pessoa de cada vez e não suportavam o trânsito de veículos nem de animais (10.º); que por aí passavam os detentores do prédio 4.º e seus trabalhadores, sabendo que o mesmo não fazia parte do prédio dos Autores (14.º); que passavam também consortes da água que, por tolerância, usavam a cancela (15.º); que, sempre há mais de 10 e 20 anos os residentes no Eirado, entre eles os caseiros, utilizavam o carreiro pedonal para se deslocarem à Igreja e à Capela (16.º); que não era um percurso necessário, nem sequer o normal entre a Igreja e o Eirado; que o carreiro pedonal está intransitável, há mais de 20 e 30 anos, no segmento entre o rego de água e o caminho municipal n.º 1232 (18.º); que o carreiro estabelece a ligação entre os lugares do Eirado e da Lagarteira e o lugar da Igreja (41.º); que o mesmo se inicia junto à EN, através de umas escadas de pedra, daí partindo em direcção à Igreja e à Capela até ao caminho municipal (42.º e 43.º); que desde tempos muito remotos que “fogem à memória dos vivos”; há mais de 300 anos que os habitantes da freguesia da Torre do Eirado e da Igreja e outras pessoas, usam o caminho convictos de exercerem um direito próprio, para acesso à fonte pública, à água e rega, e á Igreja e capela para celebrações religiosas (54.º, 55.º, 56.º e 61.º); que foram os Autores que aterraram o leito do carreiro, taparam os degraus e demoliram a parede de resguardo da eira que o ladeava (65.º, 66.º e 67.º).

Perante todo este quadro fáctico, e a conceptualização acima referida, não se conclui apodicticamente pela natureza dominial do caminho.

Mau grado o seu uso directo e imediato pelo público, desde tempos imemoriais, não se fica seguro sobre o grau e relevância da afectação à satisfação de interesse colectivo, antes tudo apontando para uma utilização pedonal em percurso não “necessário” ou “normal” para certo destino – Igreja, Capela e lugar de Eirado (n.º 18) sendo, outrossim, provada a sua não transitibilidade no segmento que conduz ao caminho municipal.

Não há, assim, prova de satisfação de uma utilidade pública, mas apenas de uma soma de utilidades individuais de mera conveniência.

Com esta conclusão queda improvada a dominialidade, irrelevando ponderar sobre eventual desafectação tácita.

Mas, outrossim, não se provou estar-se perante um atravessadouro extinto, já que os Autores não fizeram, a montante, prova de que o leito do caminho era parte integrante do seu prédio, assim o cruzando, inexistindo um elemento essencial para caracterizar uma via de encurtamento.

Improcedem, em consequência, as conclusões da alegação dos recorrentes.


4- Conclusões

Pode, assim, concluir-se que:
a) O valor processual da causa corresponde à soma dos valores dos pedidos da acção e reconvencional. o qual se mantém inalterado independentemente do resultado do pedido cruzado.
b) Havendo absolvição da instância reconvencional e prosseguindo a lide quanto ao pedido da acção, mantém-se o valor para efeitos da alçada, ainda que o pedido principal tenha um valor não permissivo do recurso, desde que se mostre salvaguardado o valor da sucumbência.
c) O Supremo Tribunal de Justiça está limitado nos seus poderes sobre a matéria de facto, âmbito em que, de harmonia com o disposto nos artigos 26.º da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais – Lei n.º 3/99, de 13 de Janeiro), e 722.º,n.º2 e 729.º n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil, só lhe é licito intervir quando em questão prova vinculada ou o desrespeito de norma reguladora do valor legal das provas.
d) Enquanto tribunal de revista, com competência restrita à matéria de direito, e só nos limitados termos consentidos pelo n.º2 dos artigos 722.º e 729.º lhe sendo consentido que intervenha em matéria de facto, a possibilidade de debater questões de facto perante este Tribunal confina-se ao domínio da prova vinculada, isto é, da única que a lei admite para prova do facto em causa, e ao da força probatória legalmente atribuída a determinado meio de prova.
e) São públicos os caminhos que desde tempos imemoriais estão no uso directo e imediato do público em geral para satisfação de relevantes fins de utilidade pública, relevância que, assim restringindo o âmbito do Assento de 19 de Abril de 1989, quanto à afectação, é de apreciar casuisticamente no cotejo com as circunstâncias e o “modus vivendi” locais.
f) Tempo imemorial é um período tão antigo que já não está na memória directa, ou indirecta – por tradição oral dos seus antecessores – dos homens, que, por isso, não podem situar a sua origem.
g) Há desafectação tácita quando por razões de desnecessidade – que não de impossibilidade física ou legal – o bem deixa de ser usado por todos para relevantes fins de utilidade pública, não sendo suficiente, para tal, uma mera não utilização.
h) Verificada a desafectação o bem passa a integrar o domínio privado do Estado, ou de outra pessoa colectiva de utilidade pública.
i) A satisfação de interesses colectivos relevantes – que não uma mera soma de interesses individuais de conveniência – é ponto inicial do “distinguo” entre caminho público e atravessadouro.
j) Os atravessadouros ou atalhos são caminhos pelos quais o público faz passagem através de prédios particulares, com o fim essencial de encurtar o percurso entre determinados locais, sendo os seus leitos parte integrante dos prédios atravessados. Já os caminhos públicos destinam-se a estabelecer ligações de maior interesse, em geral entre povoações, e os respectivos leitos fazem parte do domínio público.
k) Ou seja, um caminho, no uso directo e imediato do público, desde tempos imemoriais, que atravesse prédio particular, será público se ocorrer afectação naqueles termos; mas se visar apenas o encurtamento, não significativo, de distâncias, deverá classificar-se como atravessadouro, se o leito pertencer ao prédio atravessado.

Nos termos expostos, acordam negar a revista.

Custas pelos recorrentes.

Supremo Tribunal de Justiça, 13 de Março de 2008

Sebastião Póvoas (Relator)
Moreira Alves
Alves Velho