Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
04B018
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: QUIRINO SOARES
Descritores: CISÃO DE SOCIEDADES
RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA
Nº do Documento: SJ200402190000187
Data do Acordão: 02/19/2004
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL PORTO
Processo no Tribunal Recurso: 102/03
Data: 07/10/2003
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA.
Sumário : 1. Em caso de cisão de sociedades, o regime da responsabilidade por dívidas é assim:
a primitiva sociedade, ou sociedade cindida, continua responsável perante o credor pelas dívidas que, em consequência da cisão, tenham sido atribuídas à nova ou às novas sociedades, ou sociedades incorporantes, e em regime de solidariedade com esta ou estas;
por sua vez, as novas sociedades ou sociedades incorporantes respondem solidariamente entre elas pelas referidas dívidas, até ao valor das entradas de que beneficiaram.
2. Este último efeito (o da responsabilidade solidária das novas sociedades ou sociedades incorporantes até ao valor das entradas de que beneficiaram) parece quadrar só à hipótese da alínea b, do nº1, do artº118º, CSC (cisão-dissolução), e não à cisão simples.
3. Em todo o caso, não se vêm razões bastantes para excluir da previsão do citado nº2, as hipóteses em que a operação de cisão simples é plural e simultânea.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

1. "A" e mulher, B, pediram a condenação de C, a efectuar as obras de protecção de um prédio rústico, deles, relativamente às águas da albufeira da barragem de Crestuma-Lever, obras que D, antecessora de C, se comprometera a realizar quando ficou acordada a expropriação de uma parcela desse mesmo prédio, no âmbito das expropriações de terrenos destinados à execução das obras do referido aproveitamento hidro-electrico;
pediram, ainda, que a demandada fosse condenada a repor o prédio na situação anterior à invasão das águas da albufeira e a indemnizá-los dos prejuízos entretanto sofridos, em quantia a liquidar em execução de sentença.
Obtiveram total ganho de causa, mas a Relação do Porto, na apelação que lhe levou a demandada, revogou a sentença e absolveu C do pedido, com fundamento em que não foi esta a sociedade sucessora de D na relação jurídica litigiosa;
quanto às demais questões levantadas na apelação, que versam sobre a extinção da obrigação da D, a modificação, feita na sentença, do conteúdo da obrigação assumida por aquela empresa pública, a autoria dos alegados danos, a desproporção existente entre o valor do prédio dos autores e os montantes necessários à reconstituição natural de uma pequena parte do mesmo, o indeferimento da reclamação do questionário e o indeferimento do requerimento para segunda perícia, a Relação considerou a sua apreciação prejudicada pelo sentido da decisão que tomara.
A e mulher, B, pedem, agora, revista, que fundamentam em que foi a demandada C e não qualquer outra sociedade resultante da cisão de D, designadamente, REN- Rede Electrica Nacional, SA, a sucessora daquela empresa pública na relação jurídica em litígio.
C alegou, defendendo o julgado na Relação.
2. Os factos dados como provados são os seguintes:
· existe um prédio rústico, de cultura arvense e quintal, sito no lugar de Carvoeiro, freguesia de Canedo, concelho da Feira, inscrito na respectiva matriz
predial rústica sob o artº1615 e omisso na Conservatória do Registo Predial até
23/7/92;
· há mais de 20 anos que os autores, por si e antecessores, vêm cultivando e colhendo os frutos de tal prédio e pagando os respectivos impostos, o que fazem
à vista de toda a gente, ininterruptamente, sem oposição de ninguém e na convicção de dele serem donos, tendo efectuado escritura de justificação notarial em 1/2/ 993, publicada no jornal "O Comércio da Feira" em 19/2/93, na qual tal declararam;
· em 30 de Julho de 1982 os autores, pelo documento constante de fls.15 e 16,
cederam à então D uma parcela de terreno daquele prédio, com a área de 4.760
m2, no âmbito da expropriação de terrenos destinados à execução das obras do aproveitamento hidroeléctrico de Crestuma-Lever;
· D, nos termos do clausulado naquele documento, assinado por um seu representante e pelos autores, pagou aos autores o montante de 50.000$00, a título de indemnização pela expropriação de tal parcela de terreno e comprometeu-se "a reparar todos os prejuízos causados no muro e terrão" do prédio "pelas águas da albufeira" de modo a estas não ultrapassarem os limites expropriados;
· por cisão de D, decidida em assembleia geral de 18/08/94, foi criada a ré, cujo objecto social é a produção e venda de energia sob a forma de electricidade e outras resultante da exploração de instalações próprias ou alheias e em cujo património se integra a central hidroeléctrica de Crestuma -- Lever, para a qual, por proposta do presidente do conselho de administração de D, aprovada pelo Estado, foram transmitidas as posições jurídicas de que D era titular em quaisquer contratos por esta celebrados, tendo em conta o documento junto a fls. 472 e segs., integrado pela cópia integral da acta da assembleia geral de 18.08.94, nos seus pontos 14 - 1 e 16 -7 e o conteúdo da proposta referida, a qual consta a fls. 56 da paginação própria de tal documento e a fls. 528 dos presentes autos;
· o enchimento total da albufeira foi realizado em Agosto de 1985, sendo que após a data da cedência do terreno atrás referida e posteriormente, ao longo do tempo que decorreu até à finalização das obras da barragem (Crestuma-Lever), com o consequente enchimento da albufeira, nunca a ré procedeu a quaisquer obras preventivas ou reparações de prejuízos causados pelas águas da dita albufeira na propriedade dos autores ao nível da cota 14 - que limitava a parte expropriada -, não reparando os muros e terrão existentes nem protegendo o prédio dos autores, obras essas que deveriam ter sido feitas antes do enchimento da albufeira;
· as águas da albufeira, onduladas pelos ventos e pela passagem de barcos, fundamentalmente, e pelo próprio curso das mesmas, de montante para jusante, com subidas e descidas de nível, conforme abertura e fecho de comportas e maior ou menor afluxo de águas à albufeira, deram início a um progressivo ataque à parcela expropriada com remoção e terras, acabando aquela por submergir;
· arrastadas e desaparecidas as terras da parcela expropriada, as águas avançaram no seu ataque para a parte restante não expropriada do prédio, escavando-a e provocando a queda de terras (não expropriadas) para a albufeira com tudo o que nelas se encontrava, como muros de suporte de terras no terreno não expropriado, árvores de madeira, videiras, ramadas e árvores de fruto ;
· a área de terreno não expropriada já absorvida pelas águas da albufeira é de cerca de 800 m2;
· em virtude de não terem sido efectuadas as obras de protecção no muro e terrão do prédio dos autores, estes sofreram os seguintes prejuízos:
- queda de terras, muros, árvores e ramadas na área não expropriada que foi submersa;
- perigo iminente de queda de terras, muros e árvores numa faixa de terreno com a extensão de 250 m2;
- impossibilidade de os autores fazerem o cultivo nas áreas não abrangidas pela expropriação e anteriormente;
- terem a área de cerca de 800 m2, atrás referida, invadida pelas águas da albufeira;
· a ré fez estudos e cálculos para se assegurar que a expropriada assegurava os fins que com a albufeira prosseguia.
Acresce, ainda, o seguinte.
Na assembleia geral da D, S.A., de 18.08.1994, acima mencionada, em que foi deliberada a cisão da sociedade através da constituição de várias empresas, entre as quais C - , S.A., e REN - Rede Eléctrica Nacional, S.A, foi aprovada o seguinte:
"Que as novas sociedades assumam, nos termos do artº5° do DL 131/94, de 19/5, as posições jurídicas da D - Electricidade de Portugal, S.A,. nas situações que a cada uma competir, em quaisquer contratos, direitos de propriedade industrial, nacionais e estrangeiros, processos judiciais de qualquer natureza ou outras situações litigiosas pendentes ou que venham a ocorrer decorrentes dos bens, valores patrimoniais e pessoal para elas transferidas ( . . . )".
Foi, ainda, deliberado, quanto ao objecto e património de cada uma das mencionadas empresas o seguinte:
C
- "o objecto social principal é a produção e venda de energia sob a forma de electricidade e outras, resultante da exploração de instalações próprias ou alheias, sob a obrigação de garantir, em última instância, a evolução sustentada do sistema electroprodutor.
- o património a destacar será constituído essencialmente pelas centrais térmicas e hidráulicas, que integram o parque electroprodutor da D, com excepção das centrais hidroelectricas integradas na rede de distribuição. Este património integra todos os edifícios, instalações, equipamentos, viaturas e materiais afectos aos centros produtores, com exclusão dos terrenos que passam para o património da REN - Rede Eléctrica Nacional. S.A.. de acordo com a orientação definida para a reestruturação do sector eléctrico ( . . )";
REN
-"o objecto social principal é assegurar a gestão global do sistema eléctrico de abastecimento público (SEP), visando garantir a estabilidade e segurança do abastecimento de electricidade e assegurando a conjugação dos interesses dos diversos intervenientes em presença; explorar e desenvolver a rede nacional de transporte em muito alta tensão em Portugal Continental; gerir a carteira de sítios para centrais eléctricas e proceder à realização de concursos para a construção e exploração de novos centros produtores de energia eléctrica;
- o património a destacar é constituído essencialmente por terrenos, instalações, edifícios, viaturas e equipamentos afectos à exploração, à conservação e ao desenvolvimento da rede de transporte (...). Farão ainda parte do património da REN (. . . ) todos os terrenos afectos aos centros produtores vinculados, termo e hidroeléctricos. incluindo os que estão em fase de construção".
3. A empresa pública Electricidade de Portugal D, com quem os autores celebraram o contrato, foi, pelo DL 7/91, de 8/1 (art. 1º), transformada em sociedade anónima de capitais exclusivamente públicos, com a firma D - Electricidade de Portugal, S.A..
Nos termos do art. 8°, D - Electricidade de Portugal, S.A. deveria proceder, por meio de cisões simples, à formação de novas sociedades anónimas, sendo o capital destas exclusivamente por si subscrito ou realizado.
O objectivo era criar unidades operacionais mais flexíveis e eficientes, de acordo com os padrões em moda de gestão e exploração.
A constituição de C resultou, precisamente, do cumprimento do programa estabelecido naqueles dois diplomas legais.
A cisão simples é a operação jurídico-económica mediante a qual uma sociedade destaca parte do seu património para com ela constituir outra sociedade (artº118º, 1, a e 123º, CSC (1) .
Para além da cisão simples, o CSC admite, nas outras duas alíneas do citado artº118º, 1, (b e c) outras tanta modalidades de cisão de sociedades, a cisão-dissolução (dissolução para divisão de todo o património por novas sociedades) e a cisão-fusão (destaque de parte do património da sociedade ou dissolução e divisão do património em duas ou mais partes, para as fundir com sociedades já existentes ou com partes do património de outras sociedades, separadas nos mesmos termos e com idêntico fim).
A operação de que resultou a criação de C e REN, entre outras, foi um conjunto de cisões simples, simultâneas, pois D, SA, continuou a existir, com o património remanescente.
A cisão de sociedades não implica necessariamente a transmissão das posições contratuais e, designadamente, dos créditos e das dívidas da sociedade cindida, mas também não as exclui, como é natural, atenta a natureza e a finalidade da operação.
Mas, ao não excluir aqueles efeitos, não poderia o legislador esquecer os interesses do outro contraente ou do credor, tal como os não esqueceu na disciplina geral daquelas figuras jurídicas, previstas e regulamentadas nos artº424º, e ss., CC (para a cessão da posição contratual), 577º, e ss., CC (para a cessão de créditos), e 595º, e ss., CC (para a transmissão singular de dívidas).
Assim, a posição contratual, entendida como o conjunto dos direitos, deveres e sujeições resultantes de um contrato, não poderá, em princípio, ser feita sem respeito das condicionantes estipuladas nos artº424º, e ss., entre as que se destaca a do consentimento do outro contraente.
Também a cessão de créditos não deverá sofrer, em princípio, desvios ao regime instituído nos artº577º, e ss., CC.
Algo diferentemente em relação ao regime geral funciona o fenómeno da transmissão singular das dívidas da sociedade cindida para as novas sociedades.
A transmissão pode fazer-se sem assentimento do credor, mas "não importa novação" (artº121º, CSC).
E, porque a lei não distingue, não há que duvidar: nem novação objectiva, nem subjectiva, o que significa que a atribuição de dívidas à nova sociedade acrescenta um devedor, não exclui o primitivo devedor.
Em consonância com este efeito (ou não efeito), o artº122º regula o aspecto da responsabilidade por dívidas.
Dispõe o nº1: "A sociedade cindida responde solidariamente pelas dívidas que, por força da cisão, tenham sido atribuídas à sociedade incorporante ou à nova sociedade".
E, logo no nº2: "As sociedades beneficiárias das entradas resultantes da cisão respondem solidariamente, até ao valor dessas entradas, pelas dívidas da sociedade cindida anteriores à inscrição da cisão no registo comercial...".
O regime da responsabilidade por dívidas é, pois, este: a primitiva sociedade, ou sociedade cindida, continua responsável perante o credor pelas dívidas que, em consequência da cisão, tenham sido atribuídas à nova ou às novas sociedades, e em regime de solidariedade com esta ou estas;
por sua vez, as novas sociedades (2) respondem solidariamente entre elas pelas referidas dívidas, até ao valor das entradas de que beneficiaram.
Reconhece-se que este último efeito (o da responsabilidade solidária das novas sociedades até ao valor das entradas de que beneficiaram) parece quadrar mais à hipótese da alínea b, do nº1, do artº118º, CSC (cisão-dissolução), e não à cisão simples.
Pois é quando a sociedade se dissolve e se reparte em novas sociedades ou se derrama por outras já existentes que se impõe com mais evidência a solução de distribuir pelas sociedades emergentes ou incorporantes a responsabilidade integral (integral perante o credor, isto é, solidária) pelo pagamento das dívidas da sociedade cindida.
Para a cisão simples, serve bem, em princípio, o regime da solidariedade entre a sociedade cindida e a nova, em harmonia com a repartição de património que corresponde à cisão.
Num e no outro caso, o que se pretende, e consegue, é conservar, para os credores da sociedade cindida, a garantia geral do crédito, que é o património daquela sociedade, antes da cisão.
Raúl Ventura, in Fusão, cisão, transformação de sociedades, Comentário ao Código das Sociedades Comerciais, pag.379, em comentário ao artº122º, dá conta da dificuldade de entendimento daquele nº2, e da própria flutuação do seu pensamento a tal respeito. Flutuação nos dois sentidos indicados.
Em todo o caso, não se vêm razões bastantes para excluir da previsão do citado nº2, hipóteses, como a dos autos, em que a operação de cisão simples é plural e simultânea.
Quando a sociedade efectua, não uma, mas duas ou várias cisões simples, verifica-se, não só na perspectiva literal, mas, também, na teleológica do preceito, uma identidade substancial entre a hipótese da cisão simples plural e a da cisão-dissolução.
Em ambos os casos é a perigosa (para o credor) dispersão do património da devedora que está em causa, sendo muito mais razoável que, como prescreve o nº3, do citado artº122º, a imputação definitiva da dívida seja assunto a resolver entre as sociedades cindida e beneficiárias, após o pagamento que qualquer uma delas tenha feito.
Este regime de responsabilidade, do modo como o encaramos, explica-se bem pela protecção dos credores, a quem não cabe, com efeito, suportar os possíveis inconvenientes de um acto a que são alheios.
No caso especial da cisão de D, SA, o legislador, depois de afastar das novas sociedades a responsabilidade por dívidas da sociedade mãe (isto, no artº9º, 3, DL7/91), optou, mais tarde (com o DL 131/94 - artº5º) pela solução da transmissão para as novas sociedades de todas as posições jurídicas relacionadas com o património e o pessoal transmitido, o que envolveu, naturalmente, direitos, deveres e sujeições de toda a sorte, obrigacionais, comerciais, cartulares, reais, de propriedade industrial, e outros, aí incluídos, as chamadas posições contratuais, os créditos e as dívidas.
Preveniu, porém, que a transmissão não prejudicasse as garantias da outra parte ("sem alteração das garantias"), nem alterasse a respectiva relação jurídica (a transmissão não implicou, portanto, novação).
Interpretando correctamente o pensamento legislativo a tal respeito, o acto de cisão determinou a transmissão das posições contratuais da sociedade cindida para as novas sociedades, limitando a transmissão, porém, às posições contratuais relacionadas com os bens, valores patrimoniais e pessoal transferidos.
Nessa transmissão, foi incluído todo o passivo (as dívidas) decorrentes dos contratos cedidos, passivo a que acresceu todo o mais, de origem não contratual, mas relacionado com o mesmo acervo de transferência.
As restantes dívidas de D, SA, as estranhas a este acervo, continuaram na sociedade mãe, e só nela, porque, quanto a tais dívidas, não foi exercido o poder conferido pelo artº9º, 3, DL 7/91.
Vistos o regime geral de responsabilidade por dívidas em caso de cisão de sociedades (previsto nos artº121º e 122º, CSC) e as especialidades respeitantes ao processo de cisão de D, SA, e não havendo dúvidas de que o contrato de onde emergem as alegadas dívidas de C foi abrangido nas transferências de posições jurídicas que acompanharam as cisões de D, SA, não resta senão concluir que, pelas referidas dívidas, a existirem, são corresponsáveis solidários a própria D, SA, e, até às forças das entradas de que beneficiaram, todas as novas sociedades, incluindo C.
É uma solução que, sendo a que corresponde melhor ao pensamento legislativo, revela especiais virtudes, no caso concreto, pois evita a nada fácil tarefa de decidir a qual das novas sociedades atribuir, no sentido implicado na norma do nº2, do artº124º, CSC, as alegadas dívidas de D.
Nada fácil, dizíamos, desde logo porque a deliberação de cisão nada diz, nem quanto a ela nem quanto ao concreto contrato de que terá derivado.
Nesse aspecto, a 1ª instância aceitou, sem discussão, a posição dos autores, mas já a Relação, baseada no entendimento de que "a obrigação de que deriva a indemnização...foi assumida pela D enquanto entidade expropriante para a aquisição da parcela", posição esta em que sucedeu REN, e não C, cujo objecto social ficou limitado à produção e venda de energia, afastou esta última da responsabilidade que os autores lhe imputaram.
Mas, não é preciso ir muito fundo para compreender que esta fundamentação nada explicaria.
Com efeito, na altura do contrato, D concentrava todos aqueles componentes no seu objecto social, e se foi a sua qualidade de entidade expropriante que a legitimou para o contrato foi, por certo, a sua natureza de produtora e exploradora de energia e dos equipamentos destinados a tal que a motivou ao compromisso de "reparar todos os prejuízos causados no muro e terrão" do prédio "pelas águas da albufeira" de modo a estas não ultrapassarem os limites expropriados.
A cisão não teve como base blocos empresariais já existentes no interior da sociedade, as chamadas unidades económicas, e daí que não seja fácil, a não ser por uma declaração expressa no acto da cisão (que não houve), atribuir a uma e não a outra das novas sociedades a posição da sociedade cindida nas relações jurídicas pretéritas.
Por todas estas razões, não pode ser mantida a decisão impugnada, que afastou a ré C da posição de sujeito passivo nas obrigações contratual e de indemnização ex contractu que fazem o objecto da acção.
Quer a ré C, quer REN, ambas dentro dos limites das entradas com que a cisão as beneficiaram, são abstractamente responsáveis pelas obrigações referidas.
Os referidos limites não estão, aqui, em causa, já que nada foi alegado por C, a tal respeito.
· A conclusão precedente implica, como é óbvio, a procedência do recurso, e, por isso, a intromissão da disciplina do nº2, do artº715º, CPC (3) , por remissão do artº726º, tendo em conta as questões, levantadas na apelação, cujo conhecimento ficou prejudicado pela solução dada àquele recurso.
Como, atrás, no local próprio, ficou dito, essas questões são as seguintes:
a extinção da obrigação da D; a modificação do conteúdo da obrigação assumida por aquela empresa pública; a autoria dos alegados danos; a desproporção entre o valor do prédio dos autores e os montantes necessários à reconstituição natural de uma pequena parte do mesmo; o indeferimento da reclamação do questionário; e o indeferimento do requerimento para segunda perícia.
Disse a recorrida que a obrigação que D assumiu perante os autores, no instrumento de aquisição amigável da parcela de terreno do prédio em causa, se extinguiu porque o enchimento da albufeira não provocou quaisquer danos na parte não expropriada.
O que os provocou foi, antes, um fenómeno que escapa ao controlo de D e da recorrida, pelo qual elas não podem ser responsabilizadas: a ondulação das águas da albufeira, provocada por ventos e passagem de barcos.
É uma argumentação sem fundamento válido.
D comprometeu-se, perante os autores, a "reparar todos os prejuízos causados no muro e terrão do prédio pelas águas da albufeira".
A interpretação desta cláusula contratual à luz dos princípios da boa fé, de acordo com a impressão de um destinatário normal colocado na real posição dos autores, isto é, segundo as regras de interpretação prescritas nos artº236º, e ss., CC, rejeita liminarmente aquelas conclusões da recorrida, baseadas numa leitura, ao pé da letra, do texto do acordo.
Claro que, antes de chegar à parcela não expropriada do prédio, as águas tiveram que minar as terras da parte expropriada, arrastando-as, mas isso era um fenómeno que não poderia deixar de estar no horizonte de previsibilidade de quem, nas circunstâncias, negociasse de boa fé.
E o mesmo se deve dizer, no aspecto da previsibilidade, da ondulação das águas, provocada pelos ventos ou pela actividade náutica; ela é uma das maneiras como a água da albufeira poderia atacar as terras dos prédios vizinhos da albufeira, e, assim, só poderia ser considerada causa excludente de responsabilidade se, como tal, tivesse sido prevista no acordo.
Em todo o caso, não foi só a ondulação, mas, também, a subida e descida do nível das águas, ao sabor da abertura e fecho das comportas da barragem, o que causou a invasão do prédio dos autores por aquelas águas.
Sendo assim, nem a obrigação de D se extinguira quando do acto de cisão, nem a invasão das águas pode ser alheia à responsabilidade assumida pela recorrida no contrato.
Não merece, também, grande detença a questão da alegada modificação, que teria sido feita na sentença, do conteúdo da obrigação assumida por D, e que teria resultado da condenação da recorrida a "efectuar obras de protecção necessárias ao prédio..".
Não há modificação nenhuma, com efeito.
As obras de protecção ordenadas compreendem-se perfeitamente no dever de "reparar todos os prejuízos causados no muro e terrão do prédio pelas águas da albufeira". Quem estiver de boa fé não pensará de outro modo.
Ao alegar a desproporção entre o valor do prédio dos autores e os montantes necessários à reconstituição natural de uma pequena parte do mesmo, a recorrida terá pretendido que o tribunal opte pela indemnização em dinheiro, de acordo com a parte final do nº1, do artº566º, CC.
Mas, põe um problema sem os dados necessários, visto que nada, na matéria de facto apurada, permite concluir pela "excessiva onerosidade" da reconstituição natural do terreno.
O alargamento do questionário, que constituiu mais um dos fundamentos, prejudicados, do recurso de apelação, não poderia resolver essa lacuna, pois ela já vem do articulado da contestação.
A restante matéria que consta da reclamação, desatendida, contra o questionário, ou é conclusiva ou impertinente, e não interessa, portanto, à decisão do mérito.
Finalmente, o indeferimento da 2ª perícia.
A recorrida não reagiu no tempo certo. Deixou transitar em julgado o indeferimento.
Não pode, agora, sem desrespeito do caso julgado formal, pretender que se discuta, de novo, a legalidade do despacho de rejeição.
4. Resumindo: há boas razões para conceder a revista, isto é, para declarar, em consonância com a sentença, a legitimidade substantiva da recorrida C.
Não há qualquer razão para censurar aquela mesma sentença nos demais aspectos que foram atacados na apelação.
5. Por todo o exposto, concedem a revista e julgam improcedentes os fundamentos da apelação cujo conhecimento a Relação declarara prejudicados, condenando, em consequência, C, nos mesmos termos que constam da sentença, que repõem em vigor.
Custas, aqui e nas instâncias, pela ré/recorrida.

Lisboa, 19 de Fevereiro de 2004
Quirino Soares
Neves Ribeiro
Araújo Barros
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(1) Código das Sociedades Comerciais.
(2) Ou as sociedades incorporantes.
(3) Código de Processo Civil.