Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
5350/20.7T8VNG.P1.S1
Nº Convencional: 4.ª SECÇÃO
Relator: JÚLIO GOMES
Descritores: CADUCIDADE DO CONTRATO DE TRABALHO
TRABALHO DOMÉSTICO
Data do Acordão: 05/10/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA.
Sumário :

Só há impossibilidade absoluta de o trabalhador prestar o seu trabalho, quando este está impedido de realizar todas as funções ou tarefas que integram o objeto do seu contrato de trabalho.

Decisão Texto Integral:

Processo n.º 5350/20.7T8VNG.P1.S1

Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça,

1. Relatório

AA intentou contra BB a presente ação, com processo comum, pedindo o seguinte:

nestes termos e nos demais que V.ª Ex.ª doutamente suprirá, deve a presente ação ser julgada procedente, por provada, e, em consequência, ser o réu condenado a pagar à autora quantia global não inferior a €69.081,30, acrescida dos montantes a melhor determinar em função do aperfeiçoamento do presente libelo e supra discriminados, os valores a determinar em sede de execução de sentença, a indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais, nas retribuições (incluindo o vencimento de férias, subsídios de férias e de Natal) que a autora deixar de auferir desde o despedimento (4 de setembro de 2019) até ao trânsito em julgado da decisão a ser proferida e, bem assim, os respetivos juros de mora vencidos e vincendos, calculados à taxa supletiva legal sobre o capital em dívida desde o vencimento de cada uma daquelas componentes, até efetivo e integral pagamento”.

Frustrou-se a conciliação das partes.

O Réu contestou, defendendo-se por impugnação e por exceção de caducidade, prescrição e abuso de direito.

A 7.01.2022, o Tribunal de 1.ª Instância proferiu sentença com o seguinte teor:

Nos termos e com os fundamentos expostos julgo parcialmente procedente e provada a presente ação de processo comum intentada por AA, contra BB e, em consequência:

a) Declaro que entre a autora e o réu foi celebrado a existência de um contrato de trabalho de serviço doméstico;

b) Condeno o réu a pagar à autora o valor de € 6.227,41 a título de subsídios de Natal de fevereiro de 1999 até ao final de março de 2019;

c) Condeno o réu a pagar à autora o valor de € 10.685,00 a título de subsídio de férias devidos pelo mesmo período de tempo.

d) Condeno o réu a pagar à autora os juros de mora, à taxa legal de 4%, ao ano desde a data de vencimento de cada uma das obrigações e dos vincendos, até integral e efetivo pagamento.

e) Absolvo o réu dos demais pedidos contra ele formulados pela autora.”

O Réu interpôs recurso de apelação e a Autora interpôs recurso subordinado.

Por Acórdão de 22.06.2022, o Tribunal da Relação decidiu o seguinte:

“Pelo exposto, acordam os juízes desembargadores da Secção Social do Tribunal da Relação do Porto em julgar procedente o recurso do Réu e julgar improcedente o recurso subordinado da Autora e, em consequência, revogar a sentença recorrida com exceção da alínea a) do dispositivo, e em substituição decide-se o seguinte:

A) reconhecer que entre Autora e Réu foi celebrado contrato de trabalho de serviço doméstico, o qual cessou em 31.03.2019 por caducidade (impossibilidade superveniente, absoluta e definitiva da trabalhadora prestar o seu trabalho);

B) declarar a prescrição de eventuais créditos de que a Autora fosse titular, emergentes desse contrato, sua violação ou cessação, assim absolvendo o Réu dos demais pedidos formulados pela Autora”.

A Autora interpôs recurso de revista.

Neste defende que não houve qualquer caducidade do seu contrato de trabalho, mas sim um despedimento ilícito, sendo que o mesmo ocorreu a 03/09/2019 (Conclusão 20.ª) pelo que não se verificou a prescrição dos seus créditos emergentes do contrato de trabalho.

Sublinhe-se que o recurso termina com o seguinte pedido: “Nestes termos e, bem assim, nos demais que V.as Ex.as doutamente suprirão, deverá o presente recurso ser julgado procedente, e substituído o acórdão de que se recorre por um que reconheça os direitos alegados pela Recorrente e bem decididos em 1.ª instância”.

O Réu contra-alegou.

Em cumprimento do disposto no artigo 87.º n.º 3 do CPT o Ministério Público emitiu Parecer no sentido da improcedência do recurso de revista.

2. Fundamentação

De facto

Foram os seguintes os factos provados nas instâncias:

1. Como os pais e irmão do Réu moravam na mesma rua que a Autora, em fevereiro de 1999, o Réu foi a casa da Autora procurando saber se esta teria interesse em trabalhar para si, tendo falado com o marido da Autora nesse sentido.

2. No fim de semana seguinte, o marido da Autora deslocou-se a casa do Réu. (DP)

3. Este queria que a Autora lhe confecionasse as refeições, tomasse conta da lida da casa e lhe fizesse companhia.

4. Como a Autora trabalhava de manhã, foi ajustado que iria fazendo o que pudesse dentro da sua disponibilidade horária.

5. Disse ainda que pagaria à Autora € 350,00, e que esta teria ainda direito a alojamento e alimentação para si e para a sua família (composta pelo marido e filha), o que se computou em cerca de € 200,00.

6. Aceites as condições discutidas, a Autora foi logo trabalhar para o Réu. (DP

7. Mediante a dita retribuição, passou então Autora a prestar ao Réu, com caráter regular, sob a sua direção e autoridade, atividades destinadas à satisfação das necessidades deste, nomeadamente:

- confecionando   o   pequeno-almoço, o   almoço, o   jantar, merendas, ceias  ou quaisquer outras refeições;

- lavagem e arrumação de louça, talheres e demais utensílios de cozinha;
- lavagem, tratamento e arrumo de roupas;
- limpeza e arrumo de casa;
- mudando os lençóis e fazendo as camas;
- vigilância e assistência ao Réu;
- execução de serviços de costura;

-  coordenação   e   supervisão   de   tarefas   anteriormente   mencionadas, quando eram confiadas a outras pessoas.

8. Pouco tempo depois (ainda no ano de 1999), a Autora organizou-se e,
juntamente com o seu marido e filha, mudaram-se para casa do Réu, onde
passaram a ter o seu centro de vida, designadamente, tomando as suas
refeições, recebendo os seus amigos, e pernoitando (o Réu num quarto, a
Autora e o marido noutro e, num terceiro, a filha).

9. Não pagava qualquer tipo de despesas, fossem de água, luz, gás ou alimentos,
pois que tudo era custeado pelo Réu e componente da retribuição da Autora.
(DP)

10. Da comida que confecionava, por indicação expressa do Réu, todos os dias ia
levar o almoço à sua mãe que morava ali próxima.

11. Durante os primeiros anos, a Autora repartia o seu tempo entre o serviço
doméstico contratado com o Réu e os seus afazeres na Faculdade ...
da universidade ....

12. Há cerca de 13 anos, a Autora reformou-se e passou a trabalhar apenas para o Réu.

13. Iniciando a sua atividade todos os dias com a preparação do pequeno-almoço do Réu, servindo-o por volta das 8h00/9h00.

14. Enquanto o Réu saía para a missa (em ..., que se realiza às 9h00, a Autora levantava a mesa do pequeno-almoço, lavava a loiça e arrumava a cozinha.

15. Após terminar de arrumar a cozinha, tratava da arrumação dos quartos.

16. Fazia as compras para o Réu no supermercado.
17. Entretanto começava a preparar o almoço, para que o mesmo pudesse ser
servido às 13h00.

18. De seguida, levantava a mesa, lavava a loiça e arrumava a cozinha.
19. Na maioria dos dias, consoante o que fosse mais necessário, ao longo da tarde limpava pó, limpava vidros, aspirava, varria, esfregava o chão e paredes das divisões da casa.
20. Limpava e desinfetava as casas de banho.
21. O jantar era preparado e servido às 20h00.
22. Terminado o jantar, a Autora levantava a mesa, lavava a loiça e arrumava a cozinha.
23. Só após terminadas as suas tarefas é que a Autora subia para o quarto para descansar para o dia seguinte, fazendo intervalos para tomar o pequeno-almoço, almoçar, descansar cerca de uma hora depois do almoço, lanchar e jantar.
24. Por livre iniciativa do Réu, este foi aumentando a componente monetária que, no final do contrato, ascendia a € 400,00.
25. O Réu nunca pagou à autora qualquer verba a título de subsídio de Natal ou de subsídio de férias.
26. No dia 02 de setembro de 2019, a Autora comunicou ao Réu que no dia seguinte iria a uma consulta médica, ao que ele anuiu, não revelando qualquer reserva.
27. Quando chegou a casa, ao meter a chave no portão de entrada, apercebeu-se que a fechadura tinha sido (mesmo) trocada.

28. Como a Autora sabia que pelas 14h00 iria a casa do Réu, a CC – uma pessoa que dava algum apoio na lida doméstica e a cuidar dos cães – foi lá ter um pouco antes.

29. Chegada à casa do Réu, tocou à campainha, tendo o Réu vindo ao portão recebê-las.

30. A filha da Autora disse-lhe que ia falar com o Réu, ao que esta se prontificou a acompanhar a primeira.

31. A filha perguntou ao Réu o que tinha feito a mãe, aqui Autora.

32. Tendo o Réu respondido que não queria a Autora lá em casa.

33. O Réu é sacerdote católico, e no ano de 1999 combinou que a Autora, marido e filha viessem residir para a sua casa, nos termos referidos em 1. a 6.

34. O marido da Autora estava reformado por invalidez, não podia trabalhar; a Autora era funcionária da Faculdade ...; sendo o Réu Professor Catedrático, vice-Reitor da Universidade ....

35. Depois do falecimento do marido da Autora, esta e a filha comiam com o Réu à mesma mesa.

36. Cerca do ano de 2009, a Autora, já com 70 anos, e reformada do seu emprego na Faculdade ..., continuou como dantes, com a família, em casa do Réu.

37. A Autora é diabética, hipertensa, com problemas de visão que requeriam idas frequentes ao hospital, providenciadas pelo Réu, recebendo sempre, ela, o marido e a filha DD, as melhores atenções.

38. Falecido o marido da Autora, esta e a filha única, DD, mantiveram-se na residência do Réu, nas mesmas circunstâncias que ocorriam até ao momento.

39. Quando casou a filha da Autora, a pedido desta, o Réu disponibilizou-lhe uma casa sua, perto daquela em que habitavam, tendo residido aí com o marido, durante uns 5 anos.

40. Ofereceu ainda cerca de € 12.000,00/€ 13.000,00 à filha da Autora para que esta pudesse pagar um automóvel de marca Renault e, assim, deslocar-se para o emprego.

41. Emprestou à Autora a quantia de € 37.500,00 em 2016.

42. A partir de certa altura, decorrido algum tempo de 01.04.2019, a Autora começou a comer pouco à mesa, querendo significar que não gostava da comida, e interferir no trabalho da nova empregada, a ponto de o Réu ter de a avisar para se abster de tal conduta.

43. A Autora, não obstante, voltou a intrometer-se com a nova empregada, levando-a a querer ir-se embora.

44. Disse-lhe então o Réu que não podia continuar a residir em sua casa, e disse-lhe que fosse para a outra casa do Réu, habitada pela filha (não pagando o que quer que fosse), se não quisesse ir para a dela (da ...).

45. A Autora permaneceu na casa do Réu, recusando-se a sair continuando a criar mau ambiente com a nova empregada.

46. Levando a que o Réu mandasse mudar a fechadura da porta, para impedir que a Autora acedesse à casa.

47. O que sucedeu num dos primeiros dias de setembro de 2019.

48. No ano de 2019, a Autora estava com 82 ou 83 anos, praticamente só fazia as refeições para si e para o Réu.

49. E mesmo as refeições, já as fazia sem gosto, qualidade e a custo.

50. Com a dita idade, diabética, hipertensa, dependente de insulina, a Autora não tinha capacidade para desempenhar o serviço tal como fazia anteriormente.

51. A casa é grande, tem vários quartos, sala, escritório, quintal, e jardim, o Réu costumava e costuma receber pessoas amigas.

52. Como a Autora sabia que o Réu, mesmo sem ela prestar serviço, aceitava que continuasse a residir em sua casa, anuiu à sugestão de a filha contactar uma pessoa amiga para vir para casa do Réu trabalhar.

53. Embora a Autora tivesse uma casa aí perto (...), não queria viver sozinha ou ir para um lar.

54. Foi contactada, assim, uma amiga da filha, EE, que aceitou tomar conta do serviço da casa do Réu.

55. A dita EE tinha habilitações suficientes para auxiliar a Autora em termos de saúde, e dispunha de carta de condução e automóvel para conduzi-la ao hospital em alguma emergência.

56. Em 01 de abril de 2019, a nova empregada, EE, passou a executar todo o serviço da casa, refeições, tratamento de roupa, e gestão das despesas para a casa.

57. Houve um jantar de receção, já preparado pela nova empregada, na qual estiveram presentes a Autora e família (filha e marido), o Réu, uma pessoa amiga e frequentadora da casa (Pároco de ..., além da nova empregada, EE, tudo em ambiente de alegria.

58. A Autora e a filha estavam satisfeitas com a escolha feita, assim o manifestando ao Réu.

59. A ficou a residir na casa, agora sem qualquer responsabilidade de serviço.

60. A Autora nunca solicitou a sua inscrição na Segurança Social.

De Direito

A primeira questão a que importa responder no presente recurso de revista é a de determinar qual a causa de cessação da presente relação de trabalho doméstico e concomitantemente quando é que se verificou a sua cessação, até por força de o empregador ter suscitado a exceção da prescrição dos créditos laborais da Autora.

A sentença decidiu que um eventual acordo de cessação (vejam-se os factos 52 e 58) era nulo por falta de forma, porquanto também no contrato de trabalho doméstico se aplica subsidiariamente o regime geral do Código do Trabalho. Considerou, no entanto, que havia abuso de direito da Autora relativamente a todas as pretensões emergentes do contrato de trabalho e sua cessação posteriores a 1 de abril de 2019.

Já o Acórdão recorrido pronunciou-se pela caducidade do contrato de trabalho, nos seguintes termos:

“[E]m 2019, estando então a Autora com 82 ou 83 anos de idade, já praticamente só fazia, a custo, as refeições para si e para o Réu, e sem gosto e qualidade (pontos 48 e 49 dos factos provados), havendo incapacidade para desempenhar todo o referido serviço dada a sua idade, ser diabética (dependente de insulina) e hipertensa (ponto 50 dos factos provados) (…) Como se vê, a Autora ainda tinha capacidade para executar algumas tarefas, ainda que sem perfeição, o que levou o tribunal a quo a dizer que a impossibilidade não era absoluta (pág. 24). Todavia, no conjunto das tarefas que lhe cabia executar, estas (que ainda podia executar) vêm-se a traduzir em algo tão residual (de resto sem perfeição) que de modo algum permitem dizer que a Autora cumprisse a prestação com que se comprometera. Ou seja, a incapacidade atingiu de tal modo a prestação da Autora, que a reduziu abaixo daquilo que se poderia considerar um mínimo que ainda permitisse dizer que a Autora fosse ainda a coadjuvadora das necessidades do agregado familiar do Réu (afinal aquilo que caracteriza o trabalhador doméstico). Quer isto dizer que a Autora não apresentava meras dificuldades na realização da prestação de trabalho, ou uma mera diminuição das qualidades da Autora, havendo sim uma inviabilidade de realizar a prestação que assumiu, ou seja, em final de março/princípio de abril de 2019 verificava-se uma impossibilidade superveniente, absoluta e definitiva para a Autora prestar o seu trabalho”.

Antes de mais, concorda-se com a sentença e a sua fundamentação no sentido de que um acordo de cessação do contrato de trabalho a existir teria de revestir forma escrita a qual é aqui uma formalidade ad substantiam. A forma escrita exigida no Código do Trabalho visa, designadamente, alertar as partes e particularmente o trabalhador para a gravidade do distrate e das suas consequências, tanto mais que frequentemente o trabalhador subordinado está também na dependência económica do seu empregador, ao que acresce a certeza quanto à data em que cessam os efeitos do contrato de trabalho, e a facilidade da prova, razões que valem para este contrato especial de trabalho. Acresce que nem sequer é seguro que a anuência da trabalhadora na contratação de uma substituta representasse um acordo para a cessação do seu contrato, podendo tratar-se da contratação de alguém para a auxiliar (o que, de resto, até já sucedia pontualmente). Nada impede, de resto, que um empregador tenha mais do que um trabalhador doméstico, o que deve considerar-se indiferente, como este Tribunal teve ocasião de sublinhar recentemente – referimo-nos ao Acórdão proferido a 01/06/2022 no âmbito do processo n.º 27226/18.7T8PRT.P1.S1 (Relator Conselheiro Mário Belo Morgado) que afirmou que “é indiferente a circunstância de haver outra ou outras pessoas a prestar serviço doméstico à entidade empregadora”. E o facto de a prestação de trabalho não estar a ser realizada só por si não acarreta a cessação do contrato. Além disso, é possível às partes alterar o objeto do próprio contrato, bem podendo também o empregador, face à crescente idade da trabalhadora e às suas dificuldades em realizar a prestação contentar-se apenas com a realização de uma parte da mesma.

Mas o que não se pode afirmar é ter havido uma caducidade do contrato de trabalho, uma vez que tal interpretação não tem o mínimo de apoio na letra da lei.

O artigo 28.º do Decreto-lei n.º 235/92 de 24/10, com as alterações que lhe foram introduzidas pela Lei n.º 114/99 exige uma impossibilidade absoluta (além se superveniente e definitiva) para que se verifique a caducidade do contrato de trabalho, não havendo neste aspeto da exigência de uma impossibilidade absoluta diferença com o regime geral.

A impossibilidade absoluta deve ser interpretada como uma impossibilidade total, para o desempenho de toda e qualquer tarefa ou função que era objeto do contrato. Não se pode afirmar que a trabalhadora tinha, ainda, capacidade para realizar certas atividades como a confeção de refeições (cfr. alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º do DL n.º 235/92) para, mesmo que se trate de refeições “sem sabor”, concluir pela verificação de uma impossibilidade absoluta. Aliás, nada impede que um trabalhador doméstico seja contratado para apenas uma ou algumas das atividades constantes da enumeração, de resto exemplificativa, como trabalhos de costura, de preparação das refeições, de coordenação do trabalho de outros trabalhadores domésticos. A constatação de que ainda existe capacidade para realizar a prestação, ainda que designada de residual, impede o intérprete face à letra da lei de afirmar a caducidade do contrato de trabalho, porque significa, logicamente, que a incapacidade não é absoluta. E a maior dificuldade ou onerosidade na prestação também não é sinónimo de incapacidade absoluta.

Não se ignora que o envelhecimento pode acarretar uma perda da capacidade de trabalho, a qual é variável consoante os diferentes organismos e cujo impacto variará consoante, designadamente, a própria atividade desempenhada e a importância para esta de múltiplos fatores (como, por exemplo, a resistência ao cansaço, a concentração e a atenção, a rapidez dos reflexos, a força muscular), mas o legislador previu no artigo 348.º do CT, norma que tal como referiu a sentença é aplicável ao contrato de trabalho doméstico, à luz do artigo 9.º do CT, por não contrariar a especificidade deste. Destarte, o contrato de trabalho doméstico da Autora converteu-se ope legis em contrato a termo (ou quando ela perfez 70 anos ou anteriormente se se tiver reformado por velhice, com o conhecimento do empregador, tendo continuado ao serviço por mais de 30 dias sobre esse conhecimento), pelo termo de seis meses renovável sem limites, pelo que o empregador poderia com o aviso prévio exigido por lei fazer cessar o contrato sem pagar qualquer compensação. Mas não o fez e a sua conduta deve qualificar-se como um despedimento ilícito.

No contexto deste recurso não há, contudo, que examinar as consequências legais do despedimento ilícito no contexto deste contrato a termo. É que, muito embora a Autora tenha feito um pedido de indemnização por antiguidade na petição inicial, no seu recurso de revista conclui assim: “deverá o presente recurso ser julgado procedente, e substituído o acórdão de que se recorre por um que reconheça os direitos alegados pela Recorrente e bem decididos em 1.ª instância”. O pedido não põe em causa a decisão de 1.ª instância e conforma-se com ela, mesmo na parte em que não atribui à Autora qualquer indemnização, mas apenas condenou o Réu ao pagamento dos subsídios de Natal e de férias em falta e aos respetivos juros de mora.

E no contexto desta condenação não se vislumbra qualquer abuso de direito por parte da Autora. Com efeito, a circunstância de o empregador se ter mostrado generoso com a filha da Autora (facto 40) ou ter concedido um empréstimo à própria Autora (facto 41) em nada prejudica ou torna abusiva a pretensão desta de auferir dos direitos que a lei lhe concede em matéria de subsídios de férias e de Natal.

3. Decisão:

Acorda-se em conceder a revista, revogando o Acórdão recorrido e repristinando-se a condenação do Réu nos precisos termos da sentença.

Custas pelo Recorrido

Lisboa, 10 de maio de 2023

Júlio Gomes (Relator)

Ramalho Pinto

Domingos José de Morais