Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
599/15.7T8CLD.C1.S1
Nº Convencional: 4ª. SECÇÃO
Relator: RIBEIRO CARDOSO
Descritores: NULIDADE DE SENTENÇA
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
ÓNUS DA ALEGAÇÃO
JUSTA CAUSA
Data do Acordão: 01/26/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Área Temática:
DIREITO DO TRABALHO - CONTRATO DE TRABALHO / DEVERES GERAIS DAS PARTES / DEVERES DO TRABALHADOR / CESSAÇÃO DO CONTRATO DE TRABALHO / DESPEDIMENTO POR INICIATIVA DO EMPREGADOR / JUSTA CAUSA DE DESPEDIMENTO.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - PROCESSO DE DECLARAÇÃO / SENTENÇA ( NULIDADES ) / RECURSOS / IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO SOBRE A MATÉRIA DE FACTO / ÓNUS DO RECORRENTE / RECURSO DE REVISTA / FUNDAMENTOS DA REVISTA.
Doutrina:
- Aníbal de Castro, Impugnação das Decisões Judiciais”, 2.ª ed., 111.
- António Monteiro Fernandes, Direito do Trabalho, 17.ª edição, 514, 519.
- Maria do Rosário Palma Ramalho, Tratado de Direito do Trabalho, Parte II, Situações Laborais Individuais, 6.ª edição, 2016, 804, 807.
- Pedro Romano Martinez, Da Cessação do Contrato, 2015, 3.ª edição, 427 e 428.
- Rodrigues Bastos, Notas ao “Código de Processo Civil”, Vol. III, 247.
- Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, 1997, 422.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 615.º, N.º 1, ALS. B) E D), 640.º, N.ºS 1, AL. B), 2, AL. A), 674.º, N.º 3.
CÓDIGO DO TRABALHO (CT): - ARTIGOS 126.º, N.º 1, 128.º, N.º 1, ALS. C), E), F) E H), 351.º, N.ºS 1 E 2, ALS. A), D) E E).
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA:

-DE 7/3/85, IN B.M.J., 347.º/477.

-*-

ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

-DE 5/4/1989, IN B.M.J. 386/446, DE 23/3/90, IN A.J., 7.º/90, 20, DE 12/12/1995, IN C.J., 1995, III/156, DE 18/6/96, C.J., 1996, II/143, DE 31/1/1991, IN B.M.J. 403.º/382.
-DE 05/01/2012, PROC. N.º 3937/04.4TTLSB.L1.S1.
-DE 22/04/2015, PROC. N.º 822/08.4TTSNT.L1.S1, 4.ª SECÇÃO.
-DE 09/07/2015, PROC. N.º 284040/11.OYIPRT.G1.S1, 7.ª SECÇÃO.
-DE 22/09/2015, PROC. N.º 29/12.6TBFAF.G1.S1, 6.ª SECÇÃO.
-DE 29/09/2015, PROC. N.º 233/09, 7.ª SECÇÃO.
-DE 10/12/2015, PROC. N.º 2367/12.9TTLSB.L1.S1, 4.ª SECÇÃO.
-DE 28/01/2016, PROC. N.º 1715/12.6TTPRT.P1.S1.
Sumário :
1 - Tendo o acórdão recorrido consignado os elementos de facto e de direito suficientes para fundamentar a decisão proferida e não sendo omitida pronúncia sobre qualquer das questões que haviam sido submetidas pela recorrente à sua apreciação, não enferma das nulidades previstas no art. 615º, nº 1, als. b) e d) do CPC.

2 – Não cumpre o ónus imposto pelo nº 2, al. a) do art. 640º do CPC - indicação exata das passagens da gravação em que se funda a sua discordância - o recorrente que, omitindo a transcrição daquelas passagens, se limita a indicar o início e o termo dos depoimentos por referência ao que consta da ata respetiva e a fazer um resumo, por palavras suas, das partes pertinentes desses depoimentos.

3 – Constitui justa causa de despedimento a adulteração pela trabalhadora dos inventários, cuja elaboração lhe competia, visando esconder as quebras verificadas de forma a conseguir um maior benefício em cada um dos inventários por si realizados e controlados, na medida em, quebrando a confiança da entidade empregadora, tornou inexigível para esta a manutenção do vínculo laboral.

Decisão Texto Integral:

Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça ([1]) ([2])

1 - RELATÓRIO

AA instaurou a presente ação com processo especial de impugnação judicial da regularidade e licitude do despedimento contra BB, S.A. pedindo que seja declarada a ilicitude ou a irregularidade do seu despedimento.

Na audiência de partes, não tendo sido possível a composição amigável do litígio, ordenou-se a notificação da R. para apresentar o articulado motivador, o que fez, alegando que a A., sendo responsável pela elaboração dos inventários das secções do talho e da charcutaria e competindo-lhe inserir no sistema os valores que decorriam das contagens e das pesagens efetuadas pelos trabalhadores das respetivas secções, adulterou os valores nos inventários de 30 de Outubro de 2014 (inventário geral ao talho), de 7 de Novembro de 2014 (inventário ao suíno), de 14 de Novembro de 2014 (inventário ao bovino) e de 17 de Novembro de 2014 (inventário ao suíno), de forma a obter excesso na carne de maior valor que, no final e atento o valor de stock apresentado pelo sistema, ia apresentar um benefício maior no inventário.

Por outro lado, a A. comunicou à responsável pelo talho para não lançar a quebra diária, o que lhe permitia controlar os valores de inventário.

Na secção de restaurante, pela qual também era responsável, o empadão de alheira entrado na loja em Setembro e com um prazo de validade de 3 dias, manteve-se em inventário até Novembro.

Notificada do articulado da R., a A. apresentou contestação, sustentando a ilicitude do despedimento por não se verificarem os motivos justificativos do mesmo e deduziu reconvenção, peticionando a condenação da R. a pagar-lhe a quantia € 44.932,80, assim discriminada:

“a. indemnização calculada nos termos do art.º 391.º do Código do Trabalho no montante de € 41.932,80;

b. o montante referente a retribuições vencidas e vincendas desde a data do despedimento até ao trânsito em julgado da decisão que declare a ilicitude do mesmo acrescido de juros à taxa legal até ao efectivo pagamento;

c. indemnização por danos morais no montante de € 3.000,00, conforme peticionado supra”.

Notificada, a R. respondeu impugnando os factos alegados, defendendo a improcedência da reconvenção.

Saneado o processo e realizada a audiência de julgamento foi proferida a sentença com o seguinte dispositivo:

«Pelo exposto, julgo improcedente, por não provada, a presente acção e, em consequência:

a) Declaro lícito e regular o despedimento da A., AA Ramos, efectuado pela R., “BB, S.A.”;

b) Absolvo a R. do pedido reconvencional contra si formulado pela A.»

Inconformada, a A. apelou impugnando, para além do mais, a decisão sobre a matéria de facto.

A Relação escusou-se de apreciar o recurso no que tange à reapreciação da matéria de facto por considerar não terem sido cabalmente cumpridos os ónus impostos pelo art. 640º do CPC, tendo sido proferida a seguinte deliberação:

«Termos em que se delibera julgar a apelação totalmente improcedente, com integral confirmação da decisão impugnada.

Custas a cargo da recorrente».

Desta deliberação recorreu a A. de revista excecional para este Supremo Tribunal, por considerar haver relevância jurídica e por se impor uma melhor apreciação do direito. Arguiu também a nulidade do acórdão, invocando que o mesmo não especificava os fundamentos de facto e de direito que justificavam a decisão e por omissão de pronúncia.

O recorrido contra-alegou.

O Tribunal da Relação deliberou «julgar improcedente a invocada nulidade do acórdão».

Neste Supremo Tribunal, conhecendo do recurso de revista excecional, a formação prevista no art. 672º, nº 3 do CPC considerou não existir uma situação de dupla conforme pelo facto da Relação ter rejeitado o recurso no que concerne à impugnação da decisão sobre a matéria de facto por inobservância dos requisitos expressos no art. 640º do CPC, e proferiu a seguinte deliberação:

«Termos em que se acorda:

a) Indeferir o interposto recurso de revista excepcional, por falta dos respectivos pressupostos;

b) Determinar que os autos prossigam como recurso de revista, nos termos gerais.»

Cumprido o disposto no art. 87º, nº 3 do CPT, a Exmª Procuradora-Geral-‑Adjunta emitiu douto parecer no sentido da improcedência da revista.

Notificadas, as partes não responderam.

Formulou a recorrente as seguintes conclusões, as quais, como se sabe, delimitam o objeto do recurso ([3]) e, consequentemente, o âmbito do conhecimento deste tribunal:

”33. Urge o presente Recurso de Revista excepcional pois que é necessário uma melhor aplicação do direito no sentido estrito, de forma a permitir o acesso à justiça plena no presente caso.

34. O Recurso ora interposto configura recurso de revista de carácter excecional, previsto no art. 672º, nº 1 do CPC, uma vez que se entende em nosso modesto entender estar em causa apreciação de questão que, pela sua relevância jurídica é claramente necessária para melhor aplicação do direito, até porque estão em causa interesses de extrema relevância social.

35. Em 1ª instância e após realização de Audiência de discussão e Julgamento foi proferida sentença que de acordo com a fundamentação aduzida entendeu que o despedimento do Autor foi lícito e regular.

36. Desde logo se entendeu no Acórdão recorrido, não proceder à apreciação da matéria de facto impugnada, com alegada inobservância do disposto no art. 640º, nº 2, al. c).

37. Não aceita a recorrente tal conclusão pois que, especificou os concretos depoimentos em que fundou a sua discordância, o facto de ter indicado a totalidade do depoimento de cada testemunha não se encontra destituído de senso, pelo contrário, a matéria impugnada reveste alguma complexidade e saberes técnicos, pelo que o depoimento quanto à matéria impugnada e bem assim os factos que assentam na discordância da mesma, sustentam a invocação lógica de que assume relevo a audição de todo o depoimento invocado e não só de alguns concretos excertos do mesmo, sendo que descontextualizado não se alcançará o concreto facto que se pretende impugnar.

38. Assim, não se poderá de modo algum assumir que a recorrente não indicou as concretas passagens que pretendia fossem ouvidas e que constituíam fundamento da sua discordância, pelo contrário a recorrente indicou concretamente quais as concretas passagens a analisar, especificando-as.

39. De modo nenhum à recorrente está vedado o recurso a impugnação da matéria de facto com base em partes de depoimento de cada testemunha, é pertinente como o foi no concreto causa que para impugnação de determinada matéria de facto seja imprescindível a audição do depoimento concreto ainda que total de determinada testemunha.

40. A acrescer a tal a recorrente indicou sempre para cada uma das testemunhas as concretas passagens dos seus depoimentos, não se limitando a indicar o início e o fim da audição da prova gravada.

41. A recorrente indicou, especificando quais as concretas passagens que pretendia fossem ouvidas a fim de sustentar a sua pretensão de impugnação da matéria de facto.

42. Em lado nenhum lhe está vedada a pretensão de pretender justificadamente a audição da totalidade do testemunha, sendo que somente tal permite sustentar idoneamente em sua opinião a impugnação da matéria de facto realizada.

43. Assim não podemos aceitar a consideração de que a recorrente não cumpriu o ónus previsto no art. 640º, nº 2, al. a) do C.P.C, pois que o cumpriu devidamente conforme supra argumentado.

44. Em conformidade impõe-se assim a reapreciação da matéria de facto impugnada nos termos requeridos.

45. Além disso cremos que da factualidade provada não é possível estabelecer o nexo causal entre o grau de culpa do trabalhador, a prática de infracção disciplinar, os advenientes prejuízos graves e por último a impossibilidade de manutenção da relação laboral.

46. A lei exprime-se através de uma cláusula geral e de conceitos indeterminados para assim permitir uma adaptação do direito às particularidades de cada caso.

47. A noção de impossibilidade prática de subsistência da relação de trabalho é um conceito normativo-objectivo.

48. Assim, e conform[e] aludido já supra, a justa causa de despedimento exige a verificação cumulativa de três requisitos ou pressupostos:

- a existência de um comportamento culposo do trabalhador (requisito subjectivo);

- a verificação  da  impossibilidade  de  manutenção  da   relação  laboral  entre o trabalhador e o empregador (requisito objectivo);

- a existência de um nexo de causalidade entre aquele comportamento e esta impossibilidade.

49. Para legitimar um despedimento, não basta alegar a perda de confiança da entidade patronal no trabalhador, sendo necessário, produção de prova, de que a violação dos deveres laborais seja objectiva e subjectivamente grave, no domínio da ilicitude e da culpa, como é próprio do direito sancionatório, o que não sucede in casu.

50. A justa causa de despedimento pressupõe, portanto, a existência de uma determinada acção ou omissão imputável ao trabalhador, a título de culpa, violadora de deveres emergentes, do vínculo contratual estabelecido entre si e o empregador, que pela sua gravidade e consequências torne imediata e praticamente impossível a manutenção desse vínculo.

51. Na apreciação da gravidade da culpa e das suas consequências, deve recorrer-‑se ao entendimento de critérios objectivos razoáveis, em face do circunstancialismo concreto.

52. A prova carreada, quer para os autos de processo disciplinar, quer posteriormente em sede judicial, não demonstrou que a trabalhadora tivesse actuado de forma dolosa, sendo que a conduta reportada nos autos não pode nunca justificar o despedimento, não se adequando à mesma a sanção última do ordenamento disciplinar.

53. O tribunal a quo limitou-se a fazer uma descrição genérica dos factos, partindo inclusive de factos dado como provados, que cremos, não o podiam ter sido, determinando que a sanção aplicada é proporcional à conduta perpetrada pela A., referindo a existência de perda de confiança sem no entanto o fundamentar adequadamente.

54. Parece resultar da fundamentação da sentença recorrida ser entendimento do Tribunal a quo, que basta a existência de per si de antecedentes disciplinares para que deixe de ser exigível à entidade empregadora a manutenção do vínculo laboral.

55. Ora, tal não encontra qualquer eco quer doutrinal quer jurisprudencialmente, não bastando que um trabalhador tenha antecedentes disciplinares para que tal só por si, justifique o recurso à sanção última.

56. É necessário que tais antecedentes conjugados pela sua gravidade justifique a aplicação de tal sanção disciplinar,

57. A mais que conforme referido supra, cremos tão pouco poderia o Tribunal ter dado, como deu, como provados os alegados antecedentes disciplinares do A.

58. Assim, no presente caso e ao contrário do que julgou o Tribunal a quo, a sanção aplicada ao trabalhador mostra-se manifestamente desproporcional, e desadequada, não tendo a R. logrado fazer prova que o A. agiu de forma culposa e de tal forma grave que não era possível a manutenção do vinculo laboral.

59. Pois que a sanção de despedimento aplicada ao trabalhador viola o disposto no art. 330º do Código do Trabalho e bem assim o art. 53º da Constituição da República Portuguesa.

60. Assim sempre teria o Tribunal a quo de reconhecer que o despedimento do A. fora ilícito e irregular com as legais consequências, não podendo em circunstância alguma ter o Tribunal a quo proferido a decisão nos termos em que a proferiu sob pena de violação dos supra expostos dispositivos legais.

61. A manutenção da decisão proferida pelo Tribunal de 1ª Instância e confirmada pela Relação de ..., enferma de erro grosseiro na aplicação do direito e mais na realização da justiça, pelo que se impõe a apreciação da mesma, pois que pela sua relevância jurídica, a mesma se mostra necessária a uma correcta aplicação do direito.

62. Para além disso a presente questão, por versar sobre o despedimento de um trabalhador, e consequentemente sobre direitos e garantias constitucionalmente protegidos, assume extrema importância, estando em causa interesses de particular relevância social.

63. Ora, questione-se, tal facto é de tal monta grave que consubstancie prejuízos ou riscos graves para a empresa, cremos que não e reiteramos, nem tão pouco foram alegados pela R., ou invocados na decisão recorrida.

64. É que se assim fosse estaria o julgador a deixar "entrar pela janela, o que o legislador pretendeu fazer sair pela porta", ou seja, possibilitar que mediante uma única falta, a entidade empregadora possa despedir o trabalhador.

65. Ora, nos presentes autos, não só não resulta alegado tal prejuízo ou risco grave como não provado, ou invocado pelo Tribunal, pelo que se verifica inobservância de tal requisito o que sempre invalidaria a decisão de despedimento em causa.

66. Nunca poderia o Tribunal a quo considerar, como considerou que a sanção aplicada é proporcional, adequada, não sendo exigível à R. manter o vínculo laboral com o trabalhador.

67. Nas palavras de Monteiro Fernandes […], "não se trata, evidentemente, de uma impossibilidade material, mas de uma inexigibilidade, determinada mediante um balanço in concreto dos interesses em presença - fundamentalmente o da urgência da desvinculação e o da conservação do vínculo (...). Basicamente, preenche-se a justa causa com situações que, em concreto (isto é, perante realidade das relações de trabalho em que incidam e as circunstâncias específicas que rodeiem tais situações), tornem inexigível ao contraente interessado na desvinculação o respeito pelas garantias de estabilidade do vínculo"; "a cessação do contrato, imputada a falta disciplinar, só é legítima quando tal falta gere uma situação de impossibilidade de subsistência da relação laboral, ou seja, quando a crise disciplinar determine uma crise contratual irremediável, não havendo espaço para o uso de providência de índole conservatória".

68. A questão ora suscitada, até pela sua relevância jurídica e bem assim, sob pena de estar a lesar direitos e garantias constitucionalmente protegidas, nomeadamente o Direito à tutela jurisdiciona efectiva, (designadamente o direito a uma decisão mediante processo equitativo), impõe a sua apreciação para uma melhor aplicação do direito.

NESTES TERMOS DEVERÁ PROCEDER-SE À CONCESSÃO DE PROCEDÊNCIA AO PRESENTE RECURSO,

REVOGANDO O ACÓRDÃO RECORRIDO, SUBSTITUINDO-O POR OUTRO EM QUE SE REAPRECIE A MATÉRIA DE FACTO IMPUGNADA, RECONHECENDO-SE A FINAL QUE O DESPEDIMENTO DO TRABALHADOR FOI ILÍCITO COM AS DEMAIS CONSEQUÊNCIAS. SÓ ASSIM SE FAZENDO A COSTUMADA JUSTIÇA.”

Em sede de arguição da nulidade do acórdão, invocou a recorrente:

“…[N]os termos do disposto no art.º 77 do CPT vem a recorrente arguir, expressa e separadamente as nulidades previstas no art. 615º, nº 1, al. b) e d)

a) Conforme resulta do teor do Acórdão ora recorrido são três e de aplicação cumulativa, os elementos fundamentais exigíveis para determinação da justa causa do despedimento.

b) Desde logo o elemento subjectivo, se o comportamento imputado ao trabalhador é ilícito e culposo, violador de deveres ou valores inerentes à relação laboral, e grave e[m] si mesmo e nas suas consequências; elemento objectivo, traduzido na impossibilidade prática de subsistência da relação de trabalho; e por último a relação causal, o nexo de causalidade exigido entre o comportamento do trabalhador e aquela situação de impossibilidade.

c) Ora se o Acórdão ora recorrido soube enunciar sabiamente tais elementos, o certo é que não fez a subsunção dos mesmos ao caso concreto.

d) Limitando-se a enunciar teórica e formalmente tais elementos, encontrando-se assim em verdadeira omissão de pronúncia quanto à questão suscitada pela recorrente, constituinte tal omissão causa de nulidade de sentença ao abrigo do disposto no art. 615º, nº 1, al. d);

e) Para além da invocada causa de nulidade existe ainda em nosso modesto entender outra porquanto do teor da fundamentação do acórdão recorrido não se extrai os fundamentos de facto e de direito que justifiquem a decisão.

f) Pois que conforme resulta do teor do acórdão recorrido temos que a decisão assenta em meros pressupostos teóricos, lógico formais sem adequada sustentação no caso concreto em análise, e sem fundamentação de direito que sustente cabalmente tal decisão.

g) Nestes termos e até pela seriedade da questão em análise e bem assim pelas concretas implicações na vida da Autora, impunha-se àquele douto Tribunal da Relação de ... actuação diversa.

Assim, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 77º do C.P.T. conjugado com o preceituado no art. 615º, nº 1, al. b) e d), temos que deverá o presente acórdão ser declarado nulo atento os supra aludidos fundamentos.”

A recorrida formulou as seguintes conclusões:

“1. Vem a Recorrente sustentar a admissibilidade do recurso de revista excepcional previsto no art. 672.º, n.º 1, als. a) e c) do CPC, invocando a relevância jurídica e social da questão em apreço para melhor aplicação do Direito e, bem assim, de acordo com os artigos invocados a existência de contradição de acórdãos.

2. Não se encontram reunidos os pressupostos necessários para a admissão do recurso em apreço, porquanto nos termos do disposto na al. a) do n.º 1 do art. 672.º do CPC importa que inexista, além da dupla conforme, qualquer outro impedimento ou limitação à admissibilidade da revista ordinária, neste sentido, o acórdão proferido pelo STJ, nos autos de processo n.º 698/11.4TBMCN.P1.S1, de 5 de Janeiro de 2012 e que teve como relator o Conselheiro Sebastião Póvoas, supra transcrito e que aqui se dá por reproduzido.

3. No caso em apreço, afigura-se existir um impedimento à admissibilidade do douto recurso apresentado, qual seja, a extemporaneidade da sua apresentação, o douto acórdão recorrido foi notificado às partes por ofício datado de 26 de Fevereiro de 2016, considerando-se as partes notificadas em 29 de Fevereiro de 2016, iniciando-se no dia imediatamente subsequente o prazo para apresentação do douto recurso a que ora se responde e conhecendo o seu termo em 21 de Março de 2016 (caso se adopte o entendimento segundo o qual o CPT prevalece sobre o NCPC), contabilizando-se assim o prazo de 20 dias para interposição de recurso de revista, ou dia 15 de Março (caso se adopte o entendimento segundo o qual o NCPC prevalece sobre o CPT), neste último caso por aplicação do disposto no art. 677.º do NCPC, no qual se prevêem 15 dias.

4. Em qualquer das hipóteses o douto recurso em apreço mostra-se apresentado em momento posterior ao termo do prazo legalmente previsto para o efeito, porquanto a sua interposição (atenta a data de notificação da Recorrida), ocorreu em 22 de Março, restando concluir pela inadmissibilidade do recurso de revista.

5. O douto acórdão recorrido não padece de qualquer nulidade, muito menos de falta de fundamentação, tendo o mesmo efectuado escorreita apreciação das questões de facto e de Direito suscitadas pelo douto recurso de apelação, apresentado para cada uma delas cabal esclarecimento do enquadramento jurídico em apreço, pelo que deverá soçobrar a alegação de nulidade do douto acórdão recorrido.

6. Analisadas as doutas alegações de recurso sempre se dirá que fenece o argumento segundo o qual a questão a apreciar é necessária a uma melhor aplicação do Direito, sequer resultando demonstrada a relevância social da mesma.

7. Não se vislumbra qualquer incorrecção na apreciação jurídica efectuada no douto acórdão recorrido, o qual se encontra devidamente fundamentado em termos legais, sequer se vislumbra que as questões suscitadas em recurso se encontrem necessitadas de melhor aplicação do Direito, ou que a matéria em apreço se apresente como de relevância social.

8. As questões suscitadas no presente recurso mostram-se imbuídas de um espírito que não se compadece com o regime do recurso excepcional de revista porquanto este trata de questões, diríamos, supra processo, mas com repercussões no caso concreto.

9. Contrariamente o presente e douto recurso procura somente uma solução para o caso concreto e não uma apreciação universal dos preceitos em apreço.

10. Não se vislumbra do douto recurso a enunciação de qualquer acórdão que tendo apreciado as mesmas questões de Direito se encontre em oposição com o douto acórdão recorrido nos presentes autos, pelo que, não obstante a invocação da al. c), do art. 672.º, nº 1 do NCPC, deverá necessariamente concluir-se pela total ausência de contradição de julgados.

11. Em face do exposto e da não sustentação dos fundamentos invocados no douto recurso apresentado deverá o mesmo improceder na íntegra.”

2 – ENQUADRAMENTO JURÍDICO ADJETIVO

A ação de impugnação da regularidade e licitude do despedimento foi intentada em 1 de Abril de 2015.

O acórdão recorrido foi proferido em 25 de Fevereiro de 2016.

É assim aplicável:

- O Código de Processo Civil (CPC) na versão atual, aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho.

- O Código de Processo do Trabalho (CPT), também na versão atual.

3 - QUESTÃO PRÉVIA

Invoca a recorrida a extemporaneidade do recurso argumentando que, a entender-se que o prazo é o de 20 dias estabelecido no CPT, o mesmo terminou no dia 21.03.2016. Caso se considere ser o de 15 dias estabelecido no art. 677º do CPC, por se tratar de processo urgente, o prazo de interposição terminou no dia 15.03.2016. Tendo o recurso sido apresentado no dia 22.03.2016 foi extemporâneo.

Embora não tenha recaído despacho expresso sobre esta questão, foi tacitamente entendido ser o recurso tempestivo, não só no despacho da Relação que admitiu o recurso, como ainda no despacho que recebeu a revista excecional e, posteriormente, no despacho que recebeu a revista nos termos gerais.

De qualquer forma sempre se dirá que o recurso foi tempestivo.

O Código de Processo Civil apenas é aplicável nos casos omissos (art. 1º, nº 2, e sua al. a) do CPT.

O Código de Processo do Trabalho estabelece o prazo de 20 dias para interposição da revista, não consagrando prazo diferente para os processos urgentes art. 80º, nº do CPT).

Ora, apesar do requerimento de interposição do recurso ter aposto um carimbo de entrada com data de 22.03.2016, o certo é que, como se vê de fls. 404, foi remetido por fax no dia 21.03.2016, último dia do prazo de 20 dias, já que a notificação do acórdão ocorreu no dia 29.02.2013, como, e bem, refere a recorrida.

Ainda assim, visando o recurso a reapreciação da prova gravada, a recorrente beneficiava do prazo suplementar de 10 dias (nº 3 do art. Art. 80º do CPT.

4 - ÂMBITO DO RECURSO – DELIMITAÇÃO

Face às conclusões formuladas e não considerando as destinadas a fundamentar a admissibilidade do recurso de revista excecional, as questões submetidas à nossa apreciação consistem em saber:

1 – Se o acórdão enferma das nulidades previstas no art. 615º, nº 1, als. b) e d) do CPC;

2 – Se A Relação poderia dar como provado o facto consignado sob o nº 55 da fundamentação de facto;

3 - Se no recurso de apelação e no que tange à impugnação da decisão sobre a matéria de facto foram cabalmente cumpridos pela recorrente os ónus impostos pelo art. 640º do CPC;

4 – Se os atos imputados à A. constituem justa causa de despedimento.

5 - FUNDAMENTAÇÃO

5.1 - OS FACTOS

A matéria de facto julgada provada pelas instâncias é a seguinte:

“1) Indiciada a prática de infracção disciplinar foi determinada, por despacho datado de 26 de Novembro de 2014, subscrito pela Direcção de Relações Laborais Operacionais da Empregadora, a instauração de procedimento disciplinar;

2) Por carta entregue em mão, em 21 de Janeiro de 2015, foi a A. notificada da nota de culpa, da possibilidade de consulta dos autos de procedimento disciplinar, do prazo de que dispunha para responder à mesma, que a partir daquele momento ficaria suspensa preventivamente nos termos do disposto no art.º 354.º do Código do Trabalho, e que era intenção da Empregadora proferir, a final, decisão de despedimento com justa causa;

3) À nota de culpa respondeu a A., apresentando diversa versão dos factos constantes da nota de culpa e afirmando agir de acordo com ordens superiores, requerendo a audição de uma testemunha e a junção de imagens de videovigilância relativas aos meses de Outubro e Novembro de 2014;

4) Foi ouvida a testemunha arrolada pela A. e juntos aos autos documentos por iniciativa do instrutor de processo que de tal facto notificou a A. concedendo-lhe o prazo de 5 dias para querendo se pronunciar;

5) A A. não se pronunciou quanto aos documentos juntos aos autos;

6) Em 27 de Março de 2015, em face da proposta de decisão proferida pelo instrutor nomeado, a R. proferiu decisão final de despedimento com justa causa que comunicou à A. por meio de carta registada com aviso de recepção;

7) A A. é trabalhadora da R., desde 8/11/1999, e, à data dos factos, exercia funções de adjunta de loja na equipa de direcção de loja da ...;

8) A A. auferia, à data, a remuneração base de € 1.010,00;

9) No exercício das suas funções competia à A., entre outras, a tarefa de efectuar os inventários das secções do talho e da charcutaria;

10) Nessa tarefa, competia à A. inserir no sistema informático os valores que decorria, das contagens e pesagens efectuadas pelos trabalhadores das respectivas secções;

11) No que ao talho respeita, as contagens e pesagens eram efectuadas pela chefe de secção, CC, e pela adjunta do talho, DD;

12) As quantidades assim apuradas eram entregues à A. que tratava de inserir no sistema e controlar o inventário, tratando de o fechar assim que o mesmo fosse dado por concluído;

13) No dia 30 de Outubro de 2014, foi efectuado o inventário geral ao talho – inventário n.º ...00001027, Doc. inv. 0000005100;

14) CC e DD efectuaram as pesagens da carne existente no talho e, de seguida, forneceram-nas à A;

15) A A., como habitualmente, ficou encarregada de inserir os dados no sistema;

16) A A., depois de se realizarem as recontagens que considerou necessárias, concluiu o inventário e procedeu ao seu encerramento;

17) Esse inventário teve como quebra o valor total de € 1.987,37 que corresponde a 1.141,723 kg e 425,140 un. de diversos tipos de carne;

18) No dia 7 de Novembro de 2014, foi efectuado o inventário à carne de suíno - inventário n.º ...00001103, Doc. inv. 0000005144;

19) Esse inventário, ao contrário do que habitualmente acontecia, foi acompanhado pelo director da loja, EE;

20) No final do mesmo, foi apurada uma quebra de € 2.891,41, que corresponde à falta de 1.695,258 kg de diversos tipos de carne de suíno;

21) Em face do valor elevado da quebra, sobretudo comparando-o com o valor da quebra apurado no inventário geral efectuado 8 dias antes, o director da loja questionou a A. sobre a razão de ser dessa quebra;

22) A A., de forma vaga, respondeu que tal se devia a faltas à descarga, isto é, entregas de carne registadas em sistema mas que não deram entrada no stock físico da loja;

23) No dia 14 de Novembro de 2014, foi efectuado o inventário à carne de bovino – inventário n.º ...00001110, doc. inv. 0000005564;

24) Este inventário foi efectuado da forma habitual – as pesagens e contagens foram efectuadas por CC e por DD que as entregaram à A., encarregada de inserir no sistema os valores apurados e concluir o inventário;

25) Este inventário apresentou uma quebra de € 842,34 que corresponde à falta de 482,925 kg de diversos tipos de carne de bovino;

26) No dia 17 de Novembro de 2014, foi efectuado um outro inventário à carne de suíno - inventário n.º ...00001117, Doc. inv. 0000001158 – no qual as pesagens e contagens foram efectuadas pelas trabalhadoras do talho e as valores inseridos no sistema pela A.;

27) Neste inventário apurou-se uma quebra de € 221,40 que corresponde à falta de 420,228 kg e de 28,460 un. de diversos tipos de carne;

28) Em face dos valores de quebra apurados em cada um dos inventários supra referidos, o director de loja solicitou a realização de um inventário geral ao talho;

29) Assim, no dia 25 de Novembro de 2014, foi efectuado um inventário geral ao talho da loja da ... – inventário n.º ...00001124, Doc. inv. 0000003446;

30) O inventário foi realizado por CC e por DD, com a supervisão do formador/supervisor GG e com a participação da A., do director de loja e da controller operacional FF;

31) O inventário foi realizado colocando-se no sistema as quantidades de carne que resultavam das respectivas pesagens e contagens;

32) No final desse inventário foi apurada a quebra de € 4.845,22;

33) Foi efectuada a análise detalhada dos valores apurados nos anteriores inventários e apurou-se que nos inventários em que a A. tinha introduzido sozinha os valores, havia várias irregularidades.

34) Designadamente, a troca de quantidades entre diferentes códigos de artigos: quando introduzia os valores no sistema a A. aumentava as quantidades dos tipos de carne com maior valor e diminuía as quantidades dos tipos de carnes de menor valor;

35) Com tal operação, a A. obtinha um excesso na carne de maior valor que, no final e atento o valor de stock apresentado pelo sistema, ia apresentar um benefício maior no inventário, escondendo parte da quebra apurada no mesmo;

36) Foi o que aconteceu no inventário de 14 de Novembro de 2014, em que a A. introduziu as quantidades erradas do artigo 250182 vitela bife do redondo, sendo que essas quantidades, em parte, correspondiam a transferências de quantidades de outros tipos de carne com um valor menos alto;

37) No inventário à carne de bovino realizado a 14 de Novembro, a A. introduziu manualmente a quantidade de 950,200 kg de vitela bife do redondo, muito superior à que o sistema apresentava e, por isso, a A. conseguiu um benefício alto que lhe permitiu esconder a quebra:

(dá-se por reproduzido o quadro que consta da sentença)

38) No inventário de 25 de Novembro, para o mesmo artigo foi apurado:

(dá-se por reproduzido o quadro que consta da sentença)

39) Não é possível, sem manipulação de valores, que, em 10 dias, o stock do artigo em causa passasse de 950,200 kg para 16,744 kg;

40) Essa quantidade está, em parte, associada à transferência de quantidades de artigos de menor valor que, no inventário de 14 de Novembro, deram prejuízo, designadamente:

(dá-se por reproduzido o quadro que consta da sentença)

41) Quantidades que não se confirmaram no inventário de 25 de Novembro:

(dá-se por reproduzido o quadro que consta da sentença)

42) No inventário de geral de 30 de Outubro, estes mesmos artigos apresentavam os seguintes resultados:

(dá-se por reproduzido o quadro que consta da sentença)

43) No inventário de 14 de Novembro, todos estes artigos estavam a 0 (zero), o que só aconteceu devido ao facto de a A. ter introduzido valores adulterados no sistema;

44) Algumas vezes, a A. disse a CC para não lançar a quebra diária, o que lhe permitia controlar os valores de inventário;

45) O artigo 00000047 – empadão de alheira – deu entrada no stock da loja no mês de Setembro;

46) Este artigo tem 3 dias de validade, contudo a quebra só foi dada no inventário realizado em 18 de Novembro de 2014 (inventário n.º ...00001117, doc. inv. 0000004130);

47) Os valores apurados nos inventários realizados pela A., e acima referidos, só foram possíveis de obter através da adulteração das quantidades apuradas;

48) Caso contrário as existências reais no talho não poderiam ser as que foram apuradas no inventário de 25 de Novembro;

49) As quantidades apuradas nos inventários de 30 de Outubro e 14 e 17 de Novembro resultam de valores introduzidos no sistema pela A., que adulterou as quantidades de diversos artigos, dando por existentes quantidades que, na realidade, não existiam na loja;

50) Fazendo também a transferência de quantidades entre diferentes artigos de forma a conseguir um maior benefício em cada um dos inventários por si realizados e controlados;

51) A A. pretendeu esconder a quebra, aumentando os benefícios apresentados pelas carnes de maior valor;

52) Deste modo, a A. omitiu os valores reais da quebra do talho;

53) Os inventários são essenciais na gestão diária de entradas e saídas de produtos;

54) A A. impediu a R. de efectuar a gestão correcta das suas existências e causou prejuízo equivalente ao valor correspondente às quantidades dos artigos em falta, que, no caso da carne, ascendem a € 4.845,22;

55) Por decisão da R. de 5/11/2010, a A. sofreu a sanção disciplinar de 10 dias de suspensão do trabalho com perda de retribuição e antiguidade por factos relacionados com o incumprimento de normas da R. que permitiu a adulteração de inventários, como consta do doc. de fls. 74-86 que aqui se tem por reproduzido.”

5.2 - O DIREITO

Vejamos então as referidas questões que constituem o objeto do recurso, mas não sem que antes se esclareça que este tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos produzidos nas alegações e conclusões, mas apenas as questões suscitadas ([4]).

5.2.1 – Se o acórdão enferma das nulidades previstas no art. 615º, nº 1, als. b) e d) do CPC.

Na tese da recorrente as nulidades arguidas consistem no facto da Relação ter enunciado os elementos fundamentais exigíveis para determinação da justa causa do despedimento mas sem adequada sustentação no caso concreto em análise, e sem fundamentação de direito que sustente cabalmente a decisão que considerou verificados, esses elementos.

Nos termos do art. 615º, nº 1, als. b) e d), a sentença (ou o acórdão) é nula quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão e, bem assim, quando o juiz deixe de se pronunciar sobre questões que devesse apreciar.

Pronunciando-se sobre a questão referiu a Relação:

«Conforme se assinala no Manual de Processo Civil de A. Varela e outros. 2ª edição, págªs 686 a 691 "não se inclui entre as nulidades da sentença o chamado erro de julgamento, a injustiça da decisão, a não conformidade dela com o direito substantivo aplicável, o erro na construção do silogismo judiciário".

No que se refere à nulidade prevista na alínea b) do nº 1 do artº 615º "não basta que a justificação seja deficiente, incompleta, não convincente. É preciso que haja falta absoluta, embora esta se possa referir só aos fundamentos de facto ou só aos fundamentos de direito. (…) Para que haja falta de fundamentação, como causa de nulidade da sentença, torna-se necessário que o juiz não concretize os factos que considera provados e coloca na base da decisão". Relativamente à fundamentação de direito "a sentença contenta-se com a indicação das razões jurídicas que servem de apoio à solução adoptada pelo julgador".

A nulidade referida na alínea d) refere-se à chamada omissão de pronúncia e aos casos de conhecimento indevido, ou seja, quando na sentença se conheceu de questões de que não se podia conhecer: e prende-se com o regime fixado no n° 2 do art° 608° do CPC segundo o qual o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas que cuja decisão esteja prejudicada pela solução dadas a outras, não podendo ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.

Ora, é bom de ver que o acórdão não enferma dos vícios que lhe são assacados pela recorrente.

Tais hipotéticos vícios conexionam-se com a maneira ou forma como esta Relação decidiu a questão de direito, ou seja, com a maneira como enquadrou do ponto de vista jurídico a materialidade provada.

O que a recorrente diz é não concordar com o modo como esta Relação decidiu a questão jurídica da justa causa de despedimento. Está no seu direito.

Mas isso não se confunde com nulidade do acórdão, tal como esta juridicamente deve ser entendida.»

Subscrevemos estas considerações.

O acórdão recorrido, depois de tecer considerações doutrinárias e genéricas sobre o conceito e requisitos de justa causa, consignou o seguinte, no que à justa causa de despedimento no caso concreto se refere:

«No caso, a autora, no exercício das suas funções, estava incumbida de inserir no sistema informático os valores que decorriam das contagens e pesagens efectuadas pelos trabalhadores das respectivas secções.

A autora assentou essencialmente a sua defesa no facto das divergências apuradas se terem ficado a dever a faltas à descarga.

Mas, como se refere na fundamentação da matéria de facto “só a ânsia da A. em alijar a sua responsabilidade, a pode pretender fazer crer que as divergências (acentuadas) entre o stock teórico e o stock apurado no inventário de 25 de Novembro se deve a faltas à descarga – isto é, mercadoria que nunca foi, efectivamente, recebida na loja apesar de o ter sido em sistema (isto porque as diversas caixas que compõem de cada uma das paletes da carne recebida não são pesadas, apenas é confirmado se a palete mencionada em cada guia de transporte é recebida) – quando estão em causa tão elevadas quantidades de carne em falta, da ordem das centenas de quilos”.

Ao invés, ficou provado (factos 33 e ss) que autora adulterou as quantidades de carne que introduziu no sistema de forma a conseguir um maior benefício em cada um dos inventários por si realizados e controlado, omitindo os valores reais da quebra do talho e impedindo a R.. de efectuar a gestão correcta das suas existências que causou prejuízo equivalente ao valor correspondente às quantidades dos artigos em falta que, no caso da carne, ascendem a € 4.845,22.

Em face desta materialidade provada, incorreu a autora na prática das infracções disciplinares referidas pela 1ª instância, infracções estas graves em si mesmas e nas suas consequências.

Por outro lado, a recorrente havia já sido sancionada por factos relacionados com o incumprimento de normas da R. que permitiu a adulteração de inventário (facto 55).

Neste contexto, pese embora a antiguidade da autora (16 anos) entendemos, tal como entendeu a 1ª instância, que deixou de existir o suporte psicológico que permita a manutenção da relação laboral.

De facto, podemos com segurança concluir que à ré não é exigível manter ao seu serviço um trabalhador que se comportou do modo como se comportou a autora dada a definitiva e irreversível quebra da confiança ocorrida entre os sujeitos da relação.

Daí que seja de manter a decisão proferida pelo tribunal recorrido.»

É assim, patente que a Relação não se limitou a enunciar os elementos fundamentais exigíveis para determinação da justa causa do despedimento. Após explanações genéricas do conceito, foi analisado o caso concreto, concluindo-se pelo preenchimento daqueles elementos tal qual o fizera a 1ª instância, cuja sentença confirmou e parcialmente transcreveu e, na qual é feita a análise dos factos praticados pela A. e a respetiva subsunção aos elementos integradores da justa causa.

A sentença ou o acórdão pode ser mais prolixo ou mais sintético. Mister é que contenha os elementos de facto e de direito necessários e suficientes para fundamentar a decisão.

No caso, o acórdão revidendo contém os elementos de facto e de direito suficientes para fundamentar a decisão proferida, sendo ainda certo que não foi omitida pronúncia sobre qualquer das questões que haviam sido submetidas pela recorrente à sua apreciação.

Termos em que, se conclui que o acórdão não enferma das apontadas nulidades.

5.2.2 – Se A Relação poderia dar como provado o facto consignado sob o nº 55 da fundamentação de facto;

Invoca a recorrente na 57ª conclusão que a Relação não poderia “…ter dado, como deu, como provados os alegados antecedentes disciplinares da A.”), visando, assim, o facto dado como provado e consignado sob o número 55 (“Por decisão da R. de 5/11/2010, a A. sofreu a sanção disciplinar de 10 dias de suspensão do trabalho com perda de retribuição e antiguidade por factos relacionados com o incumprimento de normas da R. que permitiu a adulteração de inventários, como consta do doc. de fls. 74-86 que aqui se tem por reproduzido”).

O documento de fls. 74-86, dado por reproduzido, é o relatório final elaborado no processo disciplinar em que foi aplicada à A. a sanção referida.

Trata-se de um documento particular e, como tal, sujeito à livre apreciação do tribunal.

Os poderes do Supremo Tribunal de Justiça são limitados «à apreciação da observância das regras de direito probatório material (denominada prova vinculada), ficando fora do seu âmbito de competência a reapreciação da matéria de facto fixada pela Relação no domínio da faculdade prevista no art.º 662.º do CPC, suportada em prova de livre apreciação e posta em crise apenas no âmbito da perceção e formulação do respetivo juízo de facto» ([5]).

Como refere Teixeira de Sousa ([6]) «O tribunal de revista está vinculado aos factos fixados pelo tribunal recorrido… Como consequência desta vinculação à matéria de facto apurada nas instâncias, o Supremo está adstrito a uma obrigação negativa: a de não poder alterar, salvo em casos excepcionais, essa matéria de facto… Estas vinculações implicam que o Supremo não pode controlar a apreciação da prova, porque uma vinculação à matéria de facto averiguada nas instâncias e uma proibição de a alterar conduzem necessariamente à impossibilidade (e também à desnecessidade) de controlar a sua apreciação. Em especial, o Supremo não pode controlar a prudente convicção das instâncias sobre a prova produzida pelas partes… A impossibilidade de conhecimento de matéria de facto pelo Supremo envolve igualmente a inadmissibilidade de controlo por este tribunal dos poderes inquisitórios ou instrutórios atribuídos às instâncias».

Dispõe, efetivamente, o art. 674º, nº 3 do CPC que “o erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objeto de recurso de revista, salvo havendo ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova”.

Ora, não consta dos autos, nem tal é invocado pela recorrente, que na alteração da decisão da matéria de facto, a Relação tenha ofendido qualquer disposição legal que exigisse certa espécie de prova ou que fixe a força probatória de qualquer documento existente nos autos.

A fundamentação da recorrente assenta exclusivamente na discordância sobre a valoração que a Relação fez daquele documento particular.

Estamos, assim, no âmbito da prova de livre apreciação, matéria que escapa aos poderes sindicantes deste Supremo Tribunal, motivo pelo qual a revista improcede nesta parte.

5.2.3 - Se no recurso de apelação e no que tange à impugnação da decisão sobre a matéria de facto foram cabalmente cumpridos pelo recorrente os ónus impostos pelo art. 640º do CPC.

Estabelece o art. 640º do CPC:

“1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;

b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;

c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:

a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;

b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.

3 - O disposto nos n.ºs 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 636.º.”

Aplicando este preceito ao caso dos autos referiu a Relação:

«A inobservância do procedimento aludido na alínea b) [indicação dos concretos meios de prova que impõem decisão diversa da recorrida e, no caso de prova gravada, das concretas passagens da gravação a analisar pelo tribunal de recurso] só acarretará a rejeição se no corpo das alegações não se encontrem devidamente enunciados os fundamentos da impugnação.

Assim, naquelas situações, em que foram gravados os meios probatórios invocados como fundamentos do recurso e de ser possível a identificação precisa e separada dos depoimentos, o recorrente tem de indicar, com exactidão, nas alegações, as passagens da gravação em que se funda, sob pena de imediata rejeição do recurso no que se refere à impugnação da matéria de facto, sem prejuízo da possibilidade de, por sua iniciativa, proceder à respectiva transcrição.

Por outras palavras, o recorrente tem a obrigação de proceder, nas alegações, à identificação precisa e separada dos depoimentos em que funda a sua discordância, com identificação dos minutos e segundos do início e fim do ficheiro do qual constam as passagens fundamento da discordância, sob a cominação de imediata rejeição do recurso da decisão da matéria de facto.

Não cumpre este ónus o recorrente que se limita a indicar o momento do início e do fim de determinado depoimento sem proceder à identificação dos minutos e segundos do início e fim do ficheiro do qual constam as passagens fundamentam da discordância.

E não se diga que esta exigência é desprovida de qualquer sentido útil.

Na verdade, na esmagadora maioria das vezes as testemunhas depõem não apenas à matéria dos factos objecto de impugnação, ou seja, à matéria dos factos que a parte considera mal julgados, mas também a outra ou a outras matéria que não são objecto de impugnação.

Por isso só a indicação precisa do início e fim das passagens da gravação permitirá ao tribunal superior descortinar qual a matéria relevante para a decisão da impugnação sem ter necessidade de estar a ouvir todo o depoimento o que se revelaria, as mais das vezes, num exercício inútil considerando que, conforme ficou dito, o depoimento abarca outra ou outras matérias de facto que não têm interesse, por não impugnadas, para a decisão a proferir.

Este desiderato só se atinge se o recorrente proceder à indicação do início e fim do ficheiro do qual constam as passagens fundamento da discordância.

Isso mesmo resulta da literalidade da norma que fala em passagens e não em depoimentos, o que não é indiferente.

Esta exigência legal pretende, no nosso entendimento, evitar que a reapreciação da matéria de facto pelo tribunal superior se possa tornar num segundo julgamento (e não simplesmente a reparar erros in judicando ou in procedendo) como se o realizado em 1ª instância não tivesse acontecido, o que a lei não pretende conforme se dá nota no preâmbulo do DL nº 39/95 de 15/02 que, pela primeira vez, consagrou o duplo grau de jurisdição no que respeita à decisão sobre a matéria de facto.

Por outro lado, a exigência da indicação do início e do fim da gravação só se entende se referidos às passagens, porquanto não é difícil ao tribunal localizar o início e o fim dos depoimentos bastando para tal abrir o CD de suporte da gravação.

Se a lei pretendesse que o recorrente estivesse apenas obrigado a identificar os depoimentos com base nos quais assenta a sua discordância até dispensaria, por inútil, a indicação do início e fim desses depoimentos pois o tribunal tem acesso imediato a esses elementos sem necessidade a que a parte proceda a tal indicação.

Posto isto, no caso que nos ocupa, verificamos que a recorrente assenta a sua discordância no que respeita à decisão sobre a matéria de facto no teor dos depoimentos das testemunhas FF, DD, CC, EE e GG.

Como se verifica da acta de julgamento estas testemunhas depuseram a matéria que vai para além da impugnada e a recorrente não indica o início e o fim das passagens desses depoimentos nas quais funda o seu desacordo, limitando-se a indicar o início e o fim de cada um desses depoimentos o que, pelas razões expostas, não cumpre o ónus que sobre si impende nos termos da alínea a) do nº 2 do artº 640º do CPC.

Inclusivamente, indica a recorrente (alínea U) das conclusões) como base da sua discordância o depoimento de “todas as testemunhas sem excepção,(!!) (cfr. Depoimentos documentados em sistema de gravação Habilus Media Studio Inicio da Gravação- 03-07-2015 Fim Gravação 03-07-2015)” que “unanimemente referiram a existência de falhas à descarga neste período (…)”.

Por tudo isto, ao abrigo do citado artº 640º, decide-se rejeitar a solicitada reapreciação da matéria de facto.»

Ou seja, entendeu a Relação que o recorrente cumpriu cabalmente o estipulado nas diversas alíneas do nº 1 do preceito, não tendo, todavia, cumprido o estabelecido na alínea a) do nº 2, porquanto não indicou com exatidão as passagens da gravação em que se funda a sua discordância, motivo pelo qual foi o recurso rejeitado no que tange à reapreciação da matéria de facto.

Este Supremo já se pronunciou, por diversas vezes, sobre os requisitos a observar pelo recorrente quando o recurso tenha por objeto a reapreciação da prova gravada, e no sentido de que o recurso não deve ser rejeitado sempre que o recorrente indique nas alegações os concretos pontos de facto que pretende ver alterados, o sentido dessa alteração e os concretos meios de prova que impõem a alteração da decisão no sentido pretendido, assim cumprindo o estabelecido no nº1 do preceito em análise.

Quanto à indicação exata das passagens da gravação em que se funda a sua discordância [nº 2, al. a)] tem entendido este Supremo que não deve adotar‑se uma posição excessivamente formal, considerando que é dado cumprimento ao ónus em causa quando o recorrente faça uma indicação que possibilite à Relação o acesso, sem dificuldade, ao excerto da prova visado, designadamente com a transcrição dessas concretas passagens, ainda que omitindo a indicação do respetivo início e termo, por referência à gravação, limitando essa indicação ao início e termo do depoimento.

Vejam-se os seguintes acórdãos:

- Ac. STJ de 09/07/2015, proc. nº 284040/11.OYIPRT.G1.S1, 7ª Secção (Relatora: Maria dos Prazeres Pizarro Beleza):

(…)

«IV – Tendo o apelante, nas suas alegações de recurso, (i) identificado os pontos de facto que considerava mal julgados, por referência aos quesitos da base instrutória, (ii) indicado o depoimento das testemunhas, que entendeu mal valorados, (iii) fornecido a indicação da sessão na qual foram prestados e do início e termo dos mesmos, apresentado a sua transcrição, (iv) bem como referido qual o resultado probatório que nos seu entender deveria ter tido lugar, relativamente a cada quesito e meio de prova, tanto bastava para que a Relação tivesse procedido à reapreciação da matéria de facto, ao invés de a rejeitar».

- Ac. STJ de 22.09.2015, proc. nº 29/12.6TBFAF.G1.S1, 6ª Secção (Relator: Pinto de Almeida):

(…)

«II – Na impugnação da decisão de facto, recai sobre o Recorrente “um especial ónus de alegação”, quer quanto à delimitação do objecto do recurso, quer no que respeita à respectiva fundamentação.

III – Na delimitação do objecto do recurso, deve especificar os pontos de facto impugnados; na fundamentação, deve especificar os concretos meios probatórios que, na sua perspectiva, impunham decisão diversa da recorrida (art. 640.º, n.º 1, do NCPC) e, sendo caso disso (prova gravada), indicando com exactidão as passagens da gravação em que se funda (art. 640.º, n.º 2, al. a), do NCPC).

IV – A inobservância do referido em III é sancionada com a rejeição imediata do recurso na parte afectada.

V – Se essa cominação se afigura indiscutível relativamente aos requisitos previstos no n.º 1, dada a sua indispensabilidade, já quanto ao requisito previsto no n.º 2, al. a), justifica-se alguma maleabilidade, em função das especificidades do caso, da maior ou menor dificuldade que ofereça, com relevo, designadamente, para a extensão dos depoimentos e das matérias em discussão.

VI – Se a falta de indicação exacta das passagens da gravação não dificulta, de forma substancial e relevante, o exercício do contraditório, nem o exame pelo tribunal, a rejeição do recurso, com este fundamento, afigura-se uma solução excessivamente formal, rigorosa e sem justificação razoável.»

- Ac. STJ, datado de 29/09/2015, P. nº 233/09 (Relator: Lopes do Rego):

«1. Face aos regimes processuais que têm vigorado quanto aos pressupostos do exercício do duplo grau de jurisdição sobre a matéria de facto, é possível distinguir um ónus primário ou fundamental de delimitação do objecto e de fundamentação concludente da impugnação – que tem subsistido sem alterações relevantes e consta actualmente do nº 1 do art. 640º do CPC; e um ónus secundário – tendente, não propriamente a fundamentar e delimitar o recurso, mas a possibilitar um acesso mais ou menos facilitado pela Relação aos meios de prova gravados relevantes, que tem oscilado, no seu conteúdo prático, ao longo dos anos e das várias reformas – indo desde a transcrição obrigatória dos depoimentos até uma mera indicação e localização exacta das passagens da gravação relevantes (e que consta actualmente do art. 640º, nº2, al. a) do CPC).

2. Este ónus de indicação exacta das passagens relevantes dos depoimentos gravados deve ser interpretado em termos funcionalmente adequados e em conformidade com o princípio da proporcionalidade, não sendo justificada a imediata e liminar rejeição do recurso quando – apesar de a indicação do recorrente não ser, porventura, totalmente exacta e precisa, não exista dificuldade relevante na localização pelo Tribunal dos excertos da gravação em que a parte se haja fundado para demonstrar o invocado erro de julgamento – como ocorre nos casos em que, para além de o apelante referenciar, em função do conteúdo da acta, os momentos temporais em que foi prestado o depoimento, tal indicação é complementada com uma extensa transcrição, em escrito dactilografado, dos depoimentos relevantes para o julgamento do objecto do recurso».

Como resulta destes arestos, subjacente a este entendimento jurisprudencial está o facto do recorrente, embora não indicando de forma concreta e exata as passagens dos depoimentos em que funda a sua discordância com o decidido e impunham decisão diversa, ter procedido à transcrição dessas partes dos depoimentos, ou de se tratar de depoimentos de reduzida extensão.

No caso dos autos, é certo que a recorrente, com exceção, em parte, do referente a uma das testemunhas (FF), não procedeu à indicação numérica e precisa do princípio e fim das passagens que, no seu entendimento, foram incorretamente apreciadas pela 1ª instância nem, colmatando essa omissão, procedeu à transcrição das partes dos depoimentos em que fundava a sua discordância e que pretende ver reapreciadas, limitando-‑se a fazer um resumo dessa parte do depoimento o que não se confunde com transcrição.

A indicação imposta na norma foi feita da seguinte forma (sic):

“7 Ora, se atentarmos no depoimento da mesma, (cfr. depoimento prestado, o qual ficou documentado em sistema de gravação Habilus Media Studio -, Início Gravação 03-07-2015 11:35:36 Testemunha FF Fim Gravação 03-07-2015 11:37:01 e Início Gravação 03-07-2015 11:37:08 Testemunha FF Gravação 03-07-2015 11:55:37J, constatamos que aquela refere que nos inventários…”

“12 A mais quando a testemunha HH, funcionária do talho que acompanhou sempre os inventários, ao contrário da testemunha FF que somente excepcionalmente aí se deslocou, contraditou a testemunha referindo que muitas vezes eram realizadas recontagens e que era possível existirem erros de 300/400 kg, nas recontagens (cfr. depoimento prestado, o qual ficou documentado em sistema de gravação Habitus Media Studio -Início Gravação 03-07-2015 12:10:38 Testemunha DD Fim Gravação 03-07-2015 12:31:08)

13 Certo é que questionada sobre os inventários que analisou a testemunha FF referiu não ter "pegado" nos inventários…”

“16 Relativamente à testemunha CC, o depoimento da mesma, [cfr. depoimento prestado, o qual ficou documentado em sistema de gravação Habilus Media Studio Testemunha             CC Início da Gravação- 03-07-2015 10:48:47 Fim Gravação 03-07-2015 11:13:43) foi tudo menos credível e isento, desde logo enfermando de inúmeras contradições, referindo que não realizava pistolagens nos inventários…”

“20 É igualmente falso, ao contrário do referido na sentença recorrida que ambas as testemunhas CC e HH tenham negado que o director de loja estivesse presente ou tivesse qualquer intervenção na realização dos inventários, pois que a testemunha HH, referiu que o director de loja "(...) chegou a participar mas não era frequente (...)", (cfr. depoimento prestado, o qual ficou documentado em sistema de gravação Habilus Media Studio -Início Gravação 03-07-2015 12:10:38 Testemunha DD Fim Gravação 03-07-2015 12:31:08), o que é bastante diferente de não ter qualquer intervenção…” ([7]).

“22 Ora, todas as testemunhas sem exceção, (cfr. Depoimentos documentados em sistema de gravação Habilus Media Studio Início da Gravação- 03-07-2015 09:42:26 Fim Gravação 03-07-2015 12:55:40) unanimemente referiram a existência de falhas à descarga neste período, sem que no entanto o Tribunal a quo tivesse lamentavelmente, diga-se, valorado tal facto.”

“24 Ora, se atentarmos nos depoimentos das testemunhas FF, [cfr. depoimento prestado, o qual ficou documentado em sistema de gravação Habilus Media Studio -, Início Gravação 03-07-2015 11:35:36 Testemunha FF Fim Gravação 03-07-2015 11:37:08 Testemunha FF Fim Gravação 03-07-2015 11:55:37), constatamos que esta refere que em média e somente em carne de suíno a loja receberá diariamente 300 a 400 kg;

25 A testemunha EE, Diretor de loja, referiu igualmente que "(...) uma tonelada e meia de carne representaria quase 3 dias de mercadoria, (...)" (cfr. depoimento prestado, o qual ficou documentado em sistema de gravação Habilus Media Studio -, Início Gravação 03-07-2015 09:53:22 Testemunha 03-07-2015 10:47:49); EE             Fim Gravação.

  26 As testemunhas HH e CC, referiram nos seus depoimentos igualmente a entrega diária de cerca de 400/500kg em carne de suíno, (cfr. depoimento prestado, o qual ficou documentado em sistema de gravação Habilus Media Studio -Início Gravação 03-07-2015 12:10:38 Testemunha DD ([8]) fim Gravação 03-07-2015 12:31:08 e; cfr. depoimento prestado, o qual ficou documentado em sistema de gravação Habilus Media Studio Início da Gravação- 03-07-2015 10:48:47 Testemunha CC Fim Gravação 03-07-2015 11:13:43).

27 Por fim a testemunha GG [cfr. depoimento prestado, o qual ficou documentado em sistema de gravação Habilus Media Studio Início da Gravação- 03- 07-2015 11:56:29 Testemunha GG Fim Gravação 03-07-2015 12:09:37) referiu que em média seriam entregues 300kg de carne de suíno, esclarecendo que se estivesse em promoção (como era o caso e foi referido pelas testemunhas) a quantidade seria maior.”

Limita-se, como se vê, com exceção do referente à testemunha FF, a indicar o início e o fim do depoimento.

Efetivamente, se atentarmos nas indicações feitas pela recorrente constata-‑se que, com a aludida exceção, se limita a indicar o início e o fim do depoimento que consta da “ata de audiência de julgamento” sem particularizar ou indicar qualquer passagem.

Assim:

Item

(Alegações)

TestemunhaAlegações

(Início | fim)

Ata

(Início | fim)

7 e 24FF11:35:36 - 11:37:01 e 11:37:08 - 11:55:3711:15:11 - 11:55:37
12HH12:10:38 - 12:31:0812:10:38 - 12:31:08
16CC10:48:47 – 11:13:43 10:48:47 – 11:13:43
20HH12:10:38 – 12:31:0812:10:38 – 12:31:08
25EE 09:53:22 – 10:47:4909:53:22 – 10:47:49
27GG11:56:29 – 12:09:3711:56:29 – 12:09:37

Ora, o que o preceito determina, é que o recorrente indique o início e o fim das passagens da gravação ou seja, as passagens do depoimento e não o início e o fim do depoimento. Se bastasse esta indicação do início e do fim do depoimento, a exigência legal careceria totalmente de fundamento, pois que a localização do início e do fim do depoimento não apresenta quaisquer dificuldades, ela consta da ata e é fornecida pelo próprio sistema de gravação.

A indicação precisa do início e termo das concretas (art. 640º, nº 1, al. b) passagens da gravação destina-se a simplificar a tarefa da Relação na reapreciação da prova gravada, não só chamando a atenção para aquela parte do depoimento, como tornando mais fácil e célere a respetiva localização na gravação, sabido como é que, em regra, cada testemunha depõe sobre mais do que um facto.

De outra forma bastaria que o recorrente impugnasse a decisão sobre a matéria de facto cumprindo todos os ónus estabelecidos no art. 640º do CPC, com exceção do determinado na al. a) do nº 2, e requeresse a audição e reapreciação integral de todos ou de alguns os depoimentos o que significaria a repetição do julgamento, desiderato que não foi visado pelo legislador.

É, assim, claro que a recorrente não cumpriu os ónus impostos pelo art. 640º, nº 2, al. a) do CPC, pelo que não merece censura a decisão da Relação ao rejeitar, nesta parte, o recurso.

5.2.4 – Se os atos imputados à A. constituem justa causa de despedimento.

Nos termos do art. 351º, nº 1 do CT, constitui justa causa de despedimento «o comportamento culposo do trabalhador que, pela sua gravidade e consequências, torne imediata e praticamente impossível a subsistência da relação de trabalho».

A justa causa de despedimento (conceito indeterminado) é assim, integrada pelos seguintes requisitos cumulativos:

“- um comportamento ilícito, grave, em si mesmo ou pelas suas consequências, e culposo do trabalhador (é o elemento subjectivo da justa causa);

- a impossibilidade prática e imediata de subsistência do vínculo laboral (é o elemento objectivo da justa causa);

 - a verificação de um nexo de causalidade entre os dois elementos anteriores, no sentido em que a impossibilidade de subsistência do contrato tem que decorrer, efectivamente, do comportamento do trabalhador” ([9]).

Não basta pois que se verifique um comportamento culposo e ilícito do trabalhador, sendo ainda necessário que esse comportamento tenha como consequência necessária a impossibilidade prática e imediata de subsistência do vínculo laboral.

A impossibilidade da subsistência da relação de trabalho constitui assim, “uma limitação ao exercício do direito de resolução do contrato de trabalho na sequência do princípio, constante do art. 808º do CC, de a resolução de qualquer contrato depender da perda de interesse por parte do lesado (no caso o empregador), determinada objectivamente… Perante o comportamento culposo do trabalhador impõe-se uma ponderação de interesses; é necessário que, objectivamente, não seja razoável exigir do empregador a subsistência da relação contratual. Em particular, estará em causa a quebra da relação de confiança motivada pelo comportamento culposo. Como o comportamento culposo do trabalhador tanto pode advir da violação de deveres principais como de deveres acessórios, importa, em qualquer caso, apreciar a gravidade do incumprimento, ponderando a viabilidade de a relação laboral poder subsistir.” ([10]).

“A subsistência do contrato é aferida no contexto de um juízo de prognose em que se projeta o reflexo da infração e do complexo de interesses por ela afetados na manutenção da relação de trabalho, em ordem a ajuizar da tolerabilidade da manutenção da mesma” ([11]).

A impossibilidade de subsistência do contrato de trabalho, “equivalente à inexistência ou inadequação prática de medida alternativa à extinção do vínculo” ([12]), para além de ter que ser imediata, deve ser aferida não em termos de impossibilidade objetiva, mas de inexigibilidade para a outra parte da manutenção daquele vínculo laboral em concreto ([13]), considerando “o entendimento de um bonus pater familias, de um empregador razoável” ([14]).

“É que a inexigibilidade – envolvendo, como assinalou Bernardo Xavier, «um juízo de probabilidade, de prognose, sobre a viabilidade da relação de trabalho» - surge apontada ao suporte psicológico do vínculo. O que ela significa – o que significa a referência legal é «impossibilidade prática» da subsistência da relação de trabalho – é que a continuidade da vinculação representaria (objectivamente) uma insuportável e injusta imposição ao empregador. Nas circunstâncias, a permanência do contrato e das relações (pessoais e patrimoniais) que ele supõe seria de molde a ferir de modo desmesurado e violento a sensibilidade e a liberdade psicológica de uma pessoa normal colocada na posição do empregador” ([15]).

A R. despediu a A. com fundamento na prática por esta de atos que constituem violação dos deveres previstos no art° 128.°, n.º 1, al. c) – realizar o trabalho com zelo e diligência, al. e) - cumprir as ordens e instruções do empregador respeitantes a execução ou disciplina do trabalho, bem como a segurança e saúde no trabalho, al. f) - guardar lealdade ao empregador e al. h) – promover ou executar os atos tendentes à melhoria da produtividade da empresa.

Esses atos, para além de violadores daqueles deveres, acarretaram, de acordo com a decisão de despedimento, a quebra irremediável da confiança da R. na A. tornando impossível a manutenção da relação laboral.

Concordaram as instâncias que efetivamente os atos em causa eram violadores dos deveres estabelecidos no art. 126º, nº 1 e 128º, nº 1, als. c), e) e h) e eram subsumíveis às alíneas a), d) e e) do art. 351º, nº 2 do CT.

Estão provados os seguintes factos:

“A A. é trabalhadora da R., desde 8/11/1999, e, à data dos factos, exercia funções de adjunta de loja na equipa de direcção de loja da .... No exercício das suas funções competia à A., entre outras, a tarefa de efectuar os inventários das secções do talho e da charcutaria, inseri[ndo] no sistema informático os valores que decorria, das contagens e pesagens efectuadas pelos trabalhadores das respectivas secções. No que ao talho respeita, as contagens e pesagens eram efectuadas pela chefe de secção, CC, e pela adjunta do talho, DD. As quantidades assim apuradas eram entregues à A. que tratava de inserir no sistema e controlar o inventário, tratando de o fechar assim que o mesmo fosse dado por concluído.

No dia 30 de Outubro de 2014, foi efectuado o inventário geral ao talho – inventário n.º ...00001027, Doc. inv. 0000005100. CC e DD efectuaram as pesagens da carne existente no talho e, de seguida, forneceram-nas à A. [que], como habitualmente, ficou encarregada de inserir os dados no sistema. A A., depois de se realizarem as recontagens que considerou necessárias, concluiu o inventário e procedeu ao seu encerramento. Esse inventário teve como quebra o valor total de € 1.987,37 que corresponde a 1.141,723 kg e 425,140 un. de diversos tipos de carne.

No dia 7 de Novembro de 2014, foi efectuado o inventário à carne de suíno - inventário n.º ...00001103, Doc. inv. 0000005144. Esse inventário, ao contrário do que habitualmente acontecia, foi acompanhado pelo director da loja, EE. No final do mesmo, foi apurada uma quebra de € 2.891,41, que corresponde à falta de 1.695,258 kg de diversos tipos de carne de suíno. Em face do valor elevado da quebra, sobretudo comparando-o com o valor da quebra apurado no inventário geral efectuado 8 dias antes, o director da loja questionou a A. sobre a razão de ser dessa quebra. A A., de forma vaga, respondeu que tal se devia a faltas à descarga, isto é, entregas de carne registadas em sistema mas que não deram entrada no stock físico da loja.

No dia 14 de Novembro de 2014, foi efectuado o inventário à carne de bovino – inventário n.º ...00001110, doc. inv. 0000005564. Este inventário foi efectuado da forma habitual – as pesagens e contagens foram efectuadas por CC e por DD que as entregaram à A., encarregada de inserir no sistema os valores apurados e concluir o inventário. Este inventário apresentou uma quebra de € 842,34 que corresponde à falta de 482,925 kg de diversos tipos de carne de bovino.

No dia 17 de Novembro de 2014, foi efectuado um outro inventário à carne de suíno - inventário n.º ...00001117, Doc. inv. 0000001158 – no qual as pesagens e contagens foram efectuadas pelas trabalhadoras do talho e as valores inseridos no sistema pela A. Neste inventário apurou-se uma quebra de € 221,40 que corresponde à falta de 420,228 kg e de 28,460un de diversos tipos de carne. Em face dos valores de quebra apurados em cada um dos inventários supra referidos, o director de loja solicitou a realização de um inventário geral ao talho.

Assim, no dia 25 de Novembro de 2014, foi efectuado um inventário geral ao talho da loja da ... – inventário n.º ...00001124, Doc. inv. 0000003446. O inventário foi realizado por CC e por DD, com a supervisão do formador/supervisor GG e com a participação da A., do director de loja e da controller operacional FF. O inventário foi realizado colocando-se no sistema as quantidades de carne que resultavam das respectivas pesagens e contagens. No final desse inventário foi apurada a quebra de € 4.845,22.

Foi efectuada a análise detalhada dos valores apurados nos anteriores inventários e apurou-se que nos inventários em que a A. tinha introduzido sozinha os valores, havia várias irregularidades, designadamente, a troca de quantidades entre diferentes códigos de artigos: quando introduzia os valores no sistema a A. aumentava as quantidades dos tipos de carne com maior valor e diminuía as quantidades dos tipos de carnes de menor valor. Com tal operação, a A. obtinha um excesso na carne de maior valor que, no final e atento o valor de stock apresentado pelo sistema, ia apresentar um benefício maior no inventário, escondendo parte da quebra apurada no mesmo.

Foi o que aconteceu no inventário de 14 de Novembro de 2014, em que a A. introduziu as quantidades erradas do artigo 250182 vitela bife do redondo, sendo que essas quantidades, em parte, correspondiam a transferências de quantidades de outros tipos de carne com um valor menos alto.

No inventário à carne de bovino realizado a 14 de Novembro, a A. introduziu manualmente a quantidade de 950,200kg de vitela bife do redondo, muito superior à que o sistema apresentava e, por isso, a A. conseguiu um benefício alto que lhe permitiu esconder a quebra.

Não é possível, sem manipulação de valores, que, em 10 dias, o stock do artigo em causa passasse de 950,200 kg para 16,744 kg. Essa quantidade está, em parte, associada à transferência de quantidades de artigos de menor valor que, no inventário de 14 de Novembro, deram prejuízo, quantidades que não se confirmaram no inventário de 25 de Novembro.

No inventário de geral de 30 de Outubro, estes mesmos artigos apresentavam os seguintes resultados:

(dá-se por reproduzido o quadro que consta da sentença)

No inventário de 14 de Novembro, todos estes artigos estavam a 0 (zero), o que só aconteceu devido ao facto de a A. ter introduzido valores adulterados no sistema.

Algumas vezes, a A. disse a CC para não lançar a quebra diária, o que lhe permitia controlar os valores de inventário.

O artigo 00000047 – empadão de alheira – deu entrada no stock da loja no mês de Setembro. Este artigo tem 3 dias de validade, contudo a quebra só foi dada no inventário realizado em 18 de Novembro de 2014 (inventário n.º ...00001117, doc. inv. 0000004130).

Os valores apurados nos inventários realizados pela A., e acima referidos, só foram possíveis de obter através da adulteração das quantidades apuradas.

As quantidades apuradas nos inventários de 30 de Outubro e 14 e 17 de Novembro resultam de valores introduzidos no sistema pela A., que adulterou as quantidades de diversos artigos, dando por existentes quantidades que, na realidade, não existiam na loja, fazendo também a transferência de quantidades entre diferentes artigos de forma a conseguir um maior benefício em cada um dos inventários por si realizados e controlados.

A A. pretendeu esconder a quebra, aumentando os benefícios apresentados pelas carnes de maior valor.

Está claramente provado que a A. nos inventários de 30 de Outubro, 7, 14 e 17 de Novembro, cuja realização lhe competia, adulterou as quantidades de diversos artigos, dando por existentes quantidades que, na realidade, não existiam na loja, fazendo também a transferência de quantidades entre diferentes artigos, visando esconder as quebras verificadas no talho de forma a conseguir um maior benefício em cada um dos inventários por si realizados e controlados.

Como igualmente vem provado, os inventários são essenciais na gestão diária de entradas e saídas de produtos e, com as adulterações que neles introduziu, impediu a R. de efectuar a gestão correcta das suas existências e causou prejuízo equivalente ao valor correspondente às quantidades dos artigos em falta, que, no caso da carne, ascendem a € 4.845,22.

É pois evidente que a A., com tais comportamentos, violou o dever geral de proceder de boa fé no cumprimento das suas obrigações (art. 126º, nº 1 do CT) e bem assim os deveres de realizar o trabalho com zelo e diligência (art. 128º, nº 1, al. c), de cumprir as ordens e instruções do empregador (art. 128º, nº 1, al. e), de executar os atos tendentes à melhoria da produtividade da empresa (art. 128º, nº 1, al. h), sendo subsumíveis às als. a), d) e e) do nº 2 do art. 351º, quebrando a confiança na A., tornando, assim, considerando “o entendimento de um bonus pater familias, de um empregador razoável”, inexigível para a R. a manutenção do vínculo laboral que mantinha com a A., constituindo a sua conduta justa causa para o seu despedimento, como decidido no acórdão recorrido.

6 - DECISÃO

Pelo exposto delibera-se:

1 – Negar a revista e confirmar o acórdão recorrido.

2 – Condenar a recorrente nas custas da revista.

Anexa-se o sumário do acórdão.

Lisboa, 26.01.2017

Ribeiro Cardoso - Relator

João Fernando Ferreira Pinto

Joaquim António Chambel Mourisco

---*---

Nulidade de sentença

Impugnação da matéria de facto

Ónus da alegação

Justa causa

1 - Tendo o acórdão recorrido consignado os elementos de facto e de direito suficientes para fundamentar a decisão proferida e não sendo omitida pronúncia sobre qualquer das questões que haviam sido submetidas pela recorrente à sua apreciação, não enferma das nulidades previstas no art. 615º, nº 1, als. b) e d) do CPC.

2 – Não cumpre o ónus imposto pelo nº 2, al. a) do art. 640º do CPC - indicação exata das passagens da gravação em que se funda a sua discordância - o recorrente que, omitindo a transcrição daquelas passagens, se limita a indicar o início e o termo dos depoimentos por referência ao que consta da ata respetiva e a fazer um resumo, por palavras suas, das partes pertinentes desses depoimentos.

3 – Constitui justa causa de despedimento a adulteração pela trabalhadora dos inventários, cuja elaboração lhe competia, visando esconder as quebras verificadas de forma a conseguir um maior benefício em cada um dos inventários por si realizados e controlados, na medida em, quebrando a confiança da entidade empregadora, tornou inexigível para esta a manutenção do vínculo laboral.

Lisboa, 26.01.2017

(António Manuel Ribeiro Cardoso)
(João Fernando Ferreira Pinto)
(Joaquim António Chambel Mourisco)

_______________________________________________________
[1] Relatório elaborado tendo por matriz o constante no acórdão recorrido.
[2] Acórdão redigido segundo a nova ortografia com exceção das transcrições (em itálico) em que se manteve a original.
[3] Cfr. 635º, n.º 3 e 639º, n.º 1 do Código de Processo Civil, os Acs. STJ de 5/4/89, in BMJ 386/446, de 23/3/90, in AJ, 7º/90, pág. 20, de 12/12/95, in CJ, 1995, III/156, de 18/6/96, CJ, 1996, II/143, de 31/1/91, in BMJ 403º/382, Rodrigues Bastos, in “NOTAS AO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL”, vol. III, pág. 247 e Aníbal de Castro, in “IMPUGNAÇÃO DAS DECISÕES JUDICIAIS”, 2ª ed., pág. 111.    
[4] Ac. STJ de 5/4/89, in BMJ, 386º/446 e Rodrigues Bastos, in NOTAS AO Código de Processo CivIL, Vol. III, pág. 247, ex vi dos arts. 663º, n.º 2, 608º, n.º 2 e 679º do CPC.
[5] Ac. do STJ (4ª secção) de 10.12.2015 (Melo Lima), proc. 2367/12.9TTLSB.L1.S1. No mesmo sentido cfr. também o acórdão deste mesmo tribunal e secção de 22.04.2015 (Melo Lima), proc. 822/08.4TTSNT.L1.S1.
[6] Estudos Sobre o Novo Processo Civil, 1997, pág. 422.
[7] Esta referência a DD está incorreta. Como se vê da “ata de audiência de julgamento” não foi inquirida qualquer testemunha com o nome de DD, mas sim HH. Como também consta na mesma “ata” a fls. 252, a indicação DD foi por lapso referenciada relativamente ao depoimento da testemunha FF até ao minuto 11:35:35. Ali se consignou relativamente à testemunha FF: “Prestou juramento legal e o seu depoimento foi gravado através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso neste tribunal, com início às 11:15:11 e fim às 11:35:37 (até ao minuto 11:35:35 identificada na gravação por lapso como DD)…”.
[8] Cfr. nota 5.
[9] Maria do Rosário Palma Ramalho, Tratado de Direito do Trabalho, Parte II, Situações Laborais Individuais, 6ª edição, 2016, pág. 804.
[10] Pedro Romano Martinez, Da Cessação do Contrato, 2015, 3ª edição, págs. 427 e 428.
[11] Ac. do STJ de 28.01.2016, proc. 1715/12.6TTPRT.P1.S1 (Cons. Leones Dantas).
[12] António Monteiro Fernandes, Direito do Trabalho, 17ª edição, pág. 514.
[13] Neste sentido Maria do Rosário Palma Ramalho, in ob. cit. págs. 807.
[14] Ac. do STJ de 5.01.2012, proc. 3937/04.4TTLSB.L1.S1 (Cons. Sampaio Gomes).
[15] António Monteiro Fernandes, in ob. cit. pág. 519.