Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1242/10.6YYPRT-A.P1.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: ABRANTES GERALDES
Descritores: CONTRATO-PROMESSA E DIREITO DE RETENÇÃO
HIPOTECA LEGAL PARA GARANTIA DE ALIMENTOS
INTERPRETAÇÃO RESTRITIVA DO ART. 755º
Nº 2
AL. F)
DO CC
PRINCÍPIOS DA PROPORCIONALIDADE E DA PROTECÇÃO DA CONFIANÇA
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 07/09/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / GARANTIAS DAS OBRIGAÇÕES / GARANTIAS ESPECIAIS DAS OBRIGAÇÕES / DIREITO DE RETENÇÃO - DIREITO DA FAMÍLIA / ALIMENTOS.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - PROCESSO DE DECLARAÇÃO / RECURSOS.
Doutrina:
- Carlos Pereira de Abreu, O Direito de Retenção como Garantia Imobiliária, p. 36.
- Cláudia Madaleno, A Vulnerabilidade das Garantias Reais, pp. 17, 91 e segs., 130 e segs., 147, 236.
- Gravato de Morais, Contrato-Promessa em Geral e Contratos-Promessa em Especial, p. 236.
- Maria Isabel Menéres Campos, Da Hipoteca, pp. 141,142, 143, 226, 227.
- Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, tomo II, Direito das Obrigações, II, p. 401.
- Menezes Leitão, Direito das Obrigações, vol. I, p. 244.
- Pestana de Vasconcelos, em Cadernos de Direito Privado, nº 33, pp. 8 e 9; Direito das Garantias, pp. 325, 369, 374,
- Salvador da Costa, Concurso de Credores, p. 110.
- Sinde Monteiro, coord., “Prevalência do direito de retenção sobre a hipoteca”, inserido na obra Garantias das Obrigações (publicações dos trabalhos do Mestrado - Trabalho de Belchior do Rosário Loya e Sapuile), Almedina.
- Vaz Serra, Hipoteca, p. 273; nos Trabalhos Preparatórios do “Código Civil”, BMJ 62.º/251.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 704.º, 705.º, AL. D), 710.º, .º2, 712.º, 754.º, 755.º, N.º 1, AL. F), 759.º, N.º 2, 2008.º.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (NCPC) / 2013: - ARTIGOS 5.º, N.ºS 1 E 2, AL. A), 674º, Nº 3, 682.º, Nº 2,
LEI N.º 24/96 (LEI DE DEFESA DO CONSUMIDOR), DE 31-7, REPUBLICADA PELA LEI N.º 47/14, DE 28-7: - ARTIGO 2.º, N.º1.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

-DE 29-5-14, DE 14-10-14, DE 9-7-14 E DE 25-11-14, TODOS EM WWW.DGSI.PT .
-DE 30-4-15.
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ACUJ N.º 4/2014.

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ACÓRDÃOS DO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL:

- N.º 362/02, DE 17-9-02, N.º 356/04, DE 19-5-04, E N.º 466/04, DE 23-6-04, N.º 246/09, DE 12-5-09, N.º 387/02, N.º 69/09, DE 10-2-09, E N.º 108/09, DE 10-3-09.
Sumário :
1. Constitui uma questão de direito saber se o promitente-comprador interveio no contrato-promessa de compra e venda na sua qualidade de “consumidor” ou de “não consumidor”, mas apesar de a sua apreciação ser de conhecimento oficioso, mesmo pelo Supremo Tribunal de Justiça, não prescinde da oportuna alegação dos factos pertinentes.

2. A ampliação da matéria de facto pelo Supremo Tribunal de Justiça, nos termos dos arts. 682º, nº 2, e 674º, nº 3, do NCPC, justifica-se nas situações em que não tenham sido valorados elementos demonstrativos de factos essenciais e já não quando estejam em causa simplesmente factos meramente instrumentais cuja pertinência, para efeitos de afirmação ou de denegação dos factos essenciais, é da competência das instâncias.

3. A norma do art. 759º, nº 2, do CC, segundo a qual é atribuída prevalência ao direito de retenção sobre a hipoteca, deve ser interpretada restritivamente excluindo os casos em que o direito de retenção conferido ao promitente-comprador nos termos do art. 755º, nº 1, al. f), do CC, concorre com uma hipoteca legal constituída pelo credor para garantia do direito de alimentos, de acordo com o art. 705º, al. d), do CC.

4. Tal interpretação restritiva:

a) Encontra justificação nas circunstâncias que, nas reformas de 1980 e de 1986, sustentaram a atribuição do direito de retenção ao promitente-comprador, com preferência sobre outros credores, maxime sobre os credores com hipoteca voluntária (elemento histórico);

b) Explica-se especialmente quando o confronto é estabelecido com uma hipoteca legal para garantia da prestação de alimentos fixada por acordo entre os cônjuges no âmbito de uma acção de divórcio destinada a cobrir os encargos assumido por um deles relativamente a um filho de ambos em estado de incapacidade por via da interdição (elemento teleológico);

c) Potencia uma interpretação mais conforme com a Constituição (elemento sistemático).

5. Por violação dos princípios da protecção da confiança e da proporcionalidade seria inconstitucional o disposto no art. 759º, nº 2, do CC, numa interpretação segundo a qual o direito de retenção conferido ao promitente-comprador, nos termos do art. 755º, nº 1, al. f), do CC, prevaleceria, em qualquer circunstância, sobre hipoteca legal anterior constituída para garantia do direito de alimentos.

Decisão Texto Integral:
I - Por apenso à execução que AA move a BB, CC, por si e como legal representante do seu filho, DD, veio apresentar reclamação de créditos para que sejam graduados antes do crédito do exequente, tendo em conta o privilégio resultante da hipoteca legal constituída sobre o imóvel penhorado, a sua anterioridade e a especial natureza do direito a alimentos.

Alegou que foi casada com o executado, casamento dissolvido por divórcio, no âmbito do qual foi homologado um acordo que previa que a reclamante assumia o compromisso de cuidar do filho do casal, DD, deficiente, que não pode prover ao seu sustento, pagando o executado a pensão de alimentos de € 1.250,00 mensais, actualizável.

Em 15-6-07, a reclamante registou hipoteca legal sobre dois imóveis do executado pelo valor máximo de € 375.000,00, sendo que um deles foi penhorado no processo.

O executado deixou de pagar a referida prestação de alimentos desde Julho de 2009.

Vem reclamar, pelo produto da venda, o pagamento do crédito, com privilégio em relação ao direito do exequente, quer pelo montante vencido, quer pelo montante de € 375.000,00, quer pelos juros.

O exequente impugnou a reclamação, alegando que é titular de um direito de retenção que foi reconhecido pela sentença que foi apresentada como título executivo, preferindo, assim, sobre a hipoteca invocada pela reclamante.

Por sentença foi reconhecido o direito de crédito da reclamante, mas foi graduado em segundo lugar, a seguir ao crédito do exequente com direito de retenção.

A reclamante interpôs recurso de apelação, mas a Relação confirmou a sentença.

A reclamante interpôs recurso de revista concluindo assim:

a) Decorre dos factos considerados provados no douto acórdão da Relação, à luz dos dois novos factos documentalmente provados nos autos, mencionados de fls. 6 a 7 das precedentes alegações, em confronto com o ACUJ n° 4/2014, que o caso dos presentes autos não se enquadra no conhecido e debatido conflito entre credores hipotecários e os particulares consumidores que tem sido objecto de debate na doutrina e na jurisprudência, esta agora uniformizada nos termos do referido ACUJ, antes desenha um novo conflito entre, por um lado, um empresário industrial que pretendeu adquirir um pavilhão para a sua indústria e, do outro lado, um direito a alimentos a favor de um interdito por anomalia psíquica e incapacidade física total.

b) De um lado, o direito de retenção alegado por um empresário, enquanto promitente-comprador de um pavilhão para a sua indústria e, do outro, a hipoteca registada sobre aquele pavilhão para garantir aquele direito a alimentos, desde data muito anterior à celebração do próprio contrato-promessa.

c) Ainda, de um lado, um interesse meramente comercial daquele empresário e, do outro lado, o direito a alimentos enquanto direito essencial e integrante do direito à vida, à saúde e à habitação, consagrados nos arts. 24°, 64° e 65° da Constituição, e do princípio da dignidade humana, contido no princípio do Estado de Direito com referência aos n°s 1 e 3 do art. 63° da Constituição.

d) O conflito do presente caso, assim desenhado, transporta o direito de retenção consignado na al. f) do nº 1 do art. 755° do CC para uma nova dimensão de análise no sentido de saber se esse direito de retenção assiste ou não ao promitente-adquirente quando este for empresário industrial e nessa veste tiver adquirido o imóvel para a sua indústria.

e) Na afirmativa, se esse direito prevalece ou não sobre a hipoteca registada desde data anterior ao contrato-promessa e, por maioria de razão, à sentença judicial que lhe reconhece o crédito, quando aquela hipoteca garante alimentos; na negativa a esta última questão, se a interpretação do art. 755°, nº 1, al. f), do CC, nesse sentido viola ou não a dignidade humana e o direito a alimentos enquanto parte integrante e indissociável do direito à vida consignados nos artigos da CRP anteriormente citados.

f) A questão assim configurada, com a forte e específica componente de inconstitucionalidade referida, é verdadeiramente nova quer no âmbito da doutrina quer no seio da jurisprudência, enquanto os dois motores essenciais da interpretação e da aplicação do Direito. E assume ainda uma particular relevância jurídica para a interpretação e aplicação da norma do art. 755°, mº 1, al f), do CC, interpretação e aplicação até aqui confinadas ao clássico, conhecido e debatido conflito entre credores hipotecários e os particulares consumidores.

g) Finalmente, estando em causa o direito a alimentos e, em particular, os alimentos devidos a um interdito plenamente (por anomalia psíquica e incapacidade física), vistos como parte integrante do direito à vida e à defesa e preservação da dignidade humana, o presente caso coloca-nos perante uma situação concreta de particular relevância social e perante uma questão nova no âmbito da já de si complexa questão da interpretação e aplicação da norma do art. 755°, nº 1, al. f), do CC, novidade a que acrescem os contornos especiais dos direitos constitucionais anteriormente invocados, nunca até hoje - ao que se saiba - aflorados na nossa ordem jurídica.

h) Ao contrário do que se entendeu no acórdão recorrido, a diferente natureza das garantias - direito de retenção versus hipoteca - não releva dissossiadamente da natureza substancial do crédito que cada uma delas garante, razão pela qual aquelas, ainda que abstractamente consideradas, não o podem ser senão em função e por causa do crédito que garantem e da especial natureza deste.

i) O direito a alimentos é um direito fundamental da pessoa humana, porque é integrante, simultaneamente: do direito à vida, na medida em que os alimentos são condição base e essencial para qualquer pessoa sobreviver e desenvolver plenamente as suas capacidades físicas, mentais e intelectuais, vivendo a sua vida com dignidade humana, e o que isso custa em termos pecuniários; do direito à saúde, porque compreendem, por um lado, o direito a uma alimentação saudável, enquanto base da protecção e salvaguarda da saúde, e, por outro lado, o direito a adquirir os medicamentos necessários para tratar a doença, e o que isso custa em termos pecuniários; e do direito à habitação, porque compreendem o que for necessário para fazer face a uma habitação minimamente condigna, em termos de conforto, no que isso custa em termos pecuniários;

j) O direito a alimentos é, assim, um direito fundamental da pessoa humana, nas suas vertentes do direito à vida, à saúde e à habitação, consagrados: a nível universal, na Declaração Universal dos Direitos Humanos, invocada a fls. 6 das precedentes alegações; a nível nacional, nos artigos 24° (direito à vida) 64° (direito à saúde) e 65° (direito à habitação) da CRP, invocados a fls. 7 das alegações precedentes;

k) No caso concreto dos presentes autos - em que o beneficiário directo dos alimentos, filho do executado, é deficiente profundo e interdito por anomalia psíquica desde os 18 anos de idade, sendo, por isso totalmente dependente de terceiros para se deslocar, para se alimentar, para realizar a sua higiene, nunca tendo adquirido a linguagem e não se conseguindo deslocar sozinho nem com o auxílio da cadeira de rodas - os alimentos confundem-se com os próprios direitos fundamentais à vida, à saúde e à habitação do filho do executado e são absolutamente essenciais à preservação da sua vida com a dignidade humana possível, por serem essenciais a que possam ser-lhe preparadas e dadas as refeições e, assim, para que se alimente, para que possa ser cuidado na sua higiene pessoal, para que possa ser comprada a roupa que deve vestir, lavá-la, cuidá-la e vesti-lo, preservando-o do frio, e para que possam ser adquiridos e ser-lhe dados a tomar os medicamentos que a sua grave doença exige, para que haja quem o vigie, o acompanhe, o ocupe e ponha a dormir, todos os dias da sua vida e até que a sua morte ocorra.

l) O direito a alimentos aqui em causa, com esse sentido e alcance, devidamente evidenciado nos autos, tem a sua consagração directa, como direito fundamental à vida, à saúde e à habitação, nos arts. 24°, 64° e 65° da CRP.

m) Além disso, enquanto obrigação alimentar de raiz familiar, porque o credor dos alimentos é o filho e o obrigado é o pai, aqui executado, aquele direito encontra-se ainda constitucionalmente consagrado no art. 36°, n° 5 da CRP.

n) Tal direito é um direito de nível superior em relação ao direito de crédito graduado em 1º lugar pela sentença recorrida, ou seja, o direito de retenção à restituição do sinal pago pelo promitente-comprador ao promitente vendedor.

o) Entrando, como estão no presente caso, em colisão dois créditos igualmente garantidos por garantia real (num caso, o do crédito exequendo, o direito de retenção, e no outro, o do crédito a alimentos, a hipoteca legal) e em que um deles (o crédito exequendo) não é de alimentos, deve o crédito a alimentos ser graduado em 1° lugar, antes do exequendo.

p) As instâncias fizeram uma aplicação estrita dos arts. 755º, nº 1, al. f), e 759°, n° 2, do CC, dando prevalência ao direito de retenção a favor de promitente-comprador industrial, de pavilhão para uso da sua actividade industrial sobre a hipoteca, registada anteriormente à celebração do contrato-promessa de que emergiu aquele crédito, que garante os alimentos e o crédito a este.

q) Ao graduar o direito de crédito do exequente com prioridade sobre o anterior direito a alimentos reclamado pela ora recorrente, não só violaram a ratio legis e o âmbito de aplicação do art. 755°, nº 1, al f), do CC, tal como vêm fundamentados e delimitados pelo ACUJ n° 4/2014 deste STJ (no que respeita ao crédito garantido pelo direito de retenção, ao crédito resultante da promessa de compra de fracção no mercado da habitação pelo consumidor final, o que não sucede no caso presente), como pôs em causa o direito fundamental a alimentos nos termos em que o mesmo se mostra constitucionalmente previsto.

r) Assim, o direito de retenção do exequente, nas suas concretas circunstâncias constitutivas, e entendido dessa forma, colide com o direito fundamental a alimentos, tal como este é constitucionalmente tutelado.

s) Desse modo, é inconstitucional, por violação do princípio da dignidade humana, contido no princípio do Estado de Direito com referência aos n°s 1 e 3 do art.° 63° da CRP e do direito a alimentos enquanto (nos ternos e com o âmbito anteriormente caracterizados) direito essencial e integrante do direito à vida, à saúde e à habitação, consagrados nos arts. 24°, 64° e 65° da CRP, a interpretação e aplicação do art. 759°, nºs 1 e 2 do CC, no sentido de permitir a graduação e pagamento do crédito do promitente-comprador, fora do mercado da habitação, de imóvel não habitacional e para uso na actividade industrial daquele, ao dobro do sinal com preferência e, portanto, antes, da graduação e do pagamento do valor do direito, garantido por hipoteca legal, a alimentos devidos ao filho do promitente vendedor e executado, quer em geral, quer quando, como sucede no caso presente, esse filho é deficiente profundo, interdito por anomalia psíquica desde que perfez os 18 anos de idade, incapaz de se alimentar, de se vestir, de cuidar da sua higiene, da sua saúde, de reger a sua pessoa e a sua vida, em tudo isso dependendo de terceiros.

t) Assim, na interpretação dos arts. 755°, nº 1, al f), e 759°, n° 2, do CC, à luz da sua ratio legis e dos critérios orientadores e delimitadores do seu âmbito de aplicação definidos na fundamentação do ACUJ n° 4/2014 deste STJ, deveria o tribunal de 1ª instância tê-los por não aplicáveis nem aplicados no caso concreto, assim cumprindo a função de protecção (objectiva) dos direitos, liberdades e garantias, enquanto medidas de decisão do caso concreto, que lhe incumbe.

u) Nos termos e pelos fundamentos expostos, deve o presente recurso ser admitido e a final ser julgado procedente, sendo revogadas as decisões recorridas, com base nas apontadas inconstitucionalidades, e, consequentemente, no seu lugar, proferir-se acórdão - ou mandar-se proferir nova sentença - que gradue o crédito reclamado a título de alimentos em 1º lugar, com preferência sobre o crédito exequendo, que deverá, no caso concreto, ser graduado depois daquele e, portanto, em 2º lugar.

Houve contra-alegações.

Cumpre decidir.

II – Factos provados:

1. Por sentença transitada em julgado em 23-5-07, no âmbito do processo de divórcio litigioso nº 3610/06.9TBOAZ, do 2º Juízo Cível do Trib. Jud. de Oliveira de Azeméis, intentado pela aqui reclamante contra o ora executado (posteriormente convolado em divórcio por mútuo consentimento), foi homologado, além do mais, o acordo das partes quanto à prestação de alimentos celebrado em 11-5-07, sendo decretado o divórcio entre ambos.

2. Nos termos do referido acordo a reclamante declarou assumir o compromisso de cuidar do filho do casal, que é deficiente e não tem possibilidade de prover ao seu próprio sustento, tendo sido estabelecido, atenta a referida obrigação, que o executado pagaria à reclamante uma pensão de alimentos no valor mensal de € 1.250,00, no fim do mês a que respeitar, com início no mês de Maio de 2007 (doc. fls. 46 a 56);

Acordou-se que “com vista ao divórcio por mútuo consentimento …”:

1º - A requerente CC assume o compromisso de cuidas do filho do casal, DD, que é deficiente e não tem possibilidade de prover ao seu sustento”

2º Tendo em conta a obrigação referida no artigo anterior, fica estabelecido que o marido BB pagará à esposa CC uma pensão de alimentos no valor mensal de € 1.250,00 …”

3. Com efeitos desde 15-6-07, a reclamante constituiu hipoteca legal sobre o prédio urbano do executado, sito na R. do …, freguesia e concelho de Oliveira de Azeméis, inscrito na matriz predial urbana sob o art. …, descrito na CRP de Oliveira de Azeméis sob o nº …, para garantia da prestação mensal de alimentos com o valor de € 1.250,00 (com início em Maio de 2007, e actualizada mediante comunicação escrita do credor, de acordo com o que resultar do último índice de inflação de preços ao consumidor, sem habitação, publicado pelas entidades oficiais antes daquela comunicação, com o montante máximo de € 375.000,00).

4. Tal hipoteca:

- Foi registada na CRP de Oliveira de Azeméis, sob o nº …, pela Ap. 2 de 2007/06/15 (provisória por dúvidas);

- Foram removidas as dúvidas e foi efectuado o registo do montante máximo de € 375.000,00 pelo averbamento efectuado pela Ap. 13 de 2007/12/21, ficando registada como provisória por natureza;

- E foi convertida em definitiva pelo averbamento efectuado pela Ap. 12 de 2008/01/25 (teor da certidão do registo predial referente ao imóvel em causa, junta aos autos).

5. No âmbito da acção declarativa nº 1065/08.2TVPRT da 3ª Vara, 3ª Secção, dos Juízos Cíveis do Porto, instaurada pelo ora exequente contra o ora executado, foi proferida sentença que transitou em julgado em 8-5-09, na qual, para além do mais, se declarou que o executado não cumpriu culposamente o contrato-promessa de compra e venda outorgado em 31-1-08 referente ao prédio descrito em 3., sendo condenado a pagar ao exequente a quantia de € 100.000,00, que constitui a restituição do sinal em dobro, acrescida de juros de mora à taxa legal a contar da citação.

6. Mais se declarou em tal sentença que o ora exequente tem direito de retenção do imóvel referido, até efectivo e integral pagamento do dobro do sinal;

7. Em 23-2-10, o exequente instaurou contra o executado a presente acção executiva para pagamento da quantia de € 100.000,00 de capital, acrescida de € 4.854,79 de juros de mora, juntando como título executivo a sentença judicial referida em 5.

8. No âmbito desta execução, para garantia do pagamento da quantia exequenda de € 115.396,36, foi efectuada a penhora do prédio referido em 3. e 5., penhora registada pela Ap. 3505 de 2010/03/24.

9. Em 14-6-10 a ora reclamante instaurou no Trib. Jud. de Oliveira de Azeméis, contra o ora executado e o ora exequente, a acção o nº 1332/10.5TBOAZ, na qual, para além do mais, pedia que fosse julgado simulado e nulo o contrato-promessa de compra e venda referido em 5., e fosse decidido que o exequente não tinha o direito a que o executado lhe pagasse a quantia de € 100.000,00 reconhecida a seu favor na sentença que constitui o título executivo e que não tinha o direito de retenção sobre o prédio urbano referido em 3. e 5.

10. Essa acção foi julgada improcedente, sendo os respectivos RR. absolvidos dos pedidos por sentença transitada em julgado em 2-5-13 (docs. fls. 86 a 137, 355 e 560 a 620 do processo de execução);

11. Por apenso ao processo referido em 5., a reclamante interpôs, em 14-6-10, recurso de revisão contra o exequente e o executado, concluindo pela anulação da sentença.

12. Em tal recurso de revisão foi proferida decisão em 1-10-10 que considerou o aludido recurso extemporâneo; sendo interposto recurso desta decisão, a reclamante desistiu do recurso, sendo julgada extinta a instância em 14-10-13 (docs. fls. 140 a 192, 371 a 375 e 628 a 632 do processo de execução).

13. No âmbito do processo de execução, o executado apresentou, em 27-9-10, o requerimento com a referência 5375855, notificado à credora reclamante e ao exequente, no qual alega que efectuou durante 26 meses o pagamento da pensão de alimentos à credora reclamante, tendo junto, por correio, 26 documentos comprovativos de tais alegados pagamentos – docs. fls. 302 a 324 da execução e cópias a fls. 130 a 150).


III – Decidindo:

1. Nas alegações são suscitadas essencialmente as seguintes questões:

a) Se assiste ao promitente-comprador direito de retenção quando o contrato-promessa de compra e venda tenha por objecto um imóvel para o exercício da actividade empresarial ou se tal depende da sua qualidade de consumidor;

b) Na primeira alternativa, se o direito de retenção prevalece sobre hipoteca legal registada em data anterior para garantia do direito de alimentos fixado em acordo judicialmente homologado ou se deve ser feita uma interpretação restritiva do disposto no art. 759º, nº 2, em conexão com o art. 755º, nº 1, al. f), do CC, por forma a excluir essa situação;

c) Se a eventual prevalência do direito de retenção sobre a hipoteca legal, em face do preceituado no art. 759º, nº 2, do CC, viola princípios constitucionais.


2. Sintetizando os lances essenciais do diferendo:

- A reclamante e o executado outorgaram no âmbito da acção de divórcio de ambos um acordo relativo à prestação de alimentos, o qual foi judicialmente homologado;

- Segundo tal acordo, a prestação de alimentos era devida à reclamante, mas visava satisfazer os encargos que esta assumia relativamente à tutela do filho de ambos que era deficiente e que estava incapaz de prover ao seu sustento;

- Na sequência da homologação desse acordo, por sentença transitada, a reclamante fez registar hipoteca legal sobre imóvel do executado (direito previsto no art. 705º, al. d), do CC), visando garantir a aludida prestação de alimentos;

- Posteriormente, em 2008, o executado terá celebrado com o ora exequente um contrato-promessa de compra e venda de um imóvel de que era proprietário, contrato esse em que terá existido tradittio para o promitente-comprador e que foi resolvido com fundamento em incumprimento do executado;

- O promitente-comprador demandou o promitente-vendedor numa acção declarativa, a qual não foi contestada, sendo proferida sentença que reconheceu ao promitente-comprador um crédito correspondente ao dobro do sinal prestado (€ 100.000,00) e o associado direito de retenção do imóvel;

- Com base nessa sentença o promitente-vendedor intentou a presente acção executiva contra o promitente-vendedor para pagamento da quantia em que este fora condenado, no âmbito da qual foi penhorado o imóvel objecto do contrato-promessa;

- A reclamante veio deduzir a sua reclamação, pretendendo que o crédito por alimentos, com garantia hipotecária legal, fosse graduado com prevalência sobre o crédito exequendo;

- Na pendência dessa reclamação de créditos, a reclamante ainda instaurou uma acção declarativa contra os referidos contraentes, alegando a simulação negocial, mas tal acção foi julgada improcedente;

- A reclamante interpôs ainda recurso extraordinário de revisão da referida sentença, mas tal recurso foi rejeitado por se extemporaneidade;

- Na sentença de graduação de créditos foi graduado em 1º lugar o crédito exequendo, dotado de direito de retenção e em 2º lugar o crédito da reclamante com garantia decorrente da hipoteca legal prevista no art. 705º, al. d), do CC.


3. Do que foi exposto resulta claro que não é possível extrair para a presente decisão qualquer elemento retirado da acção que foi interposta pela reclamante de declaração de nulidade, por alegada simulação do contrato-promessa de compra e venda cujo incumprimento gerou o crédito exequendo. Tal acção foi julgada improcedente.

Tão pouco se pode retirar qualquer argumento da interposição do recurso extraordinário de revisão, uma vez que nem sequer foi proferida qualquer decisão de mérito sobre o pretendido efeito rescisório da sentença exequenda.

Ambos os meios processuais findaram sem que à reclamante tivesse sido reconhecida qualquer das aludidas pretensões, defrontando-nos unicamente com os efeitos projectados pela sentença exequenda que reconheceu ao exequente a titularidade de um crédito sobre o executado e o associado direito de retenção, com base no incumprimento de um contrato-promessa já depois da reclamante ter promovido o registo da hipoteca legal para garantia do seu crédito de alimentos.

Apenas se pode expressar a estranheza que causa a sequência de actos anteriormente enunciados que, em termos objectivos, confluem para o esvaziamento ou para a perturbação dos efeitos que a recorrente procurou obter através do registo da garantia hipotecária legal, deixando para momento posterior a apreciação dos efeitos que são projectados para tal situação quer pelas regras do direito ordinário, quer por determinados princípios constitucionais.


4. Foi reconhecido judicialmente ao exequente o direito de retenção para garantia de um crédito sobre o executado emergente do incumprimento de um contrato-promessa de compra e venda, o qual concorre com a hipoteca legal com que a reclamante pretendeu garantir o seu crédito de alimentos.

Tendo as instâncias graduado o crédito do exequente em 1º lugar, por aplicação da regra geral do art. 759º, nº 2, do CC, a reclamante impugna tal graduação, pretendendo que seja dada precedência ao seu crédito com hipoteca legal. Argumenta que, sendo titular de uma hipoteca anteriormente registada, não pode ser recusada a prevalência dessa garantia, uma vez que o art. 755º, nº 1, al. f), do CC, apenas tutela o promitente-comprador que seja de qualificar como “consumidor”, qualidade que o exequente não detém. Com efeito, alega a recorrente que o exequente é comerciante e que o contrato-promessa de compra e venda incidiu sobre um armazém destinado ao exercício da sua actividade empresarial, estando afastada a aplicabilidade do art. 759º, nº 2, do CC.

Em segundo lugar, alega a recorrente que o art. 759º, nº 2, do CC, sempre deveria ser interpretado restritivamente, de modo a excluir a hipoteca legal para garantia do crédito de alimentos que, assim, prevalece sobre o direito de retenção.

Em terceiro lugar, alega que o regime jurídico decorrente do direito ordinário interpretado no sentido de atribuir preferência ao crédito do retentor sobre o crédito com hipoteca legal para garantia do crédito de alimentos estaria eivado de inconstitucionalidade.


5. Apreciando a questão em torno da qualificação ou não do exequente como consumidor.

5.1. O art. 755º, nº 1, al. f), do CC, reconhece ao promitente-comprador que obteve a tradição da coisa o direito de retenção para garantia do crédito resultante do incumprimento do contrato imputável à outra parte.

Como emerge do Preâmbulo do Dec. Lei nº 379/86, de 11-11, tal preceito teve por objectivo essencial tutelar os promitentes-compradores numa ocasião em que a desvalorização da moeda fomentava ou potenciava situações de incumprimento dos promitentes-vendedores, para quem seria mais conveniente suportar as penalizações do que celebrar o contrato de compra e venda, o que era especialmente gravoso nos casos em que, mediante entregas de montantes significativos, se obtinha autorização para a ocupação antecipada de imóveis com fim habitacional (tradittio).

Realçando esse objectivo primordial, conclui a recorrente que apenas podem beneficiar do referido direito de retenção os promitentes-adquirentes que tenham a qualidade de consumidores, qualidade que o exequente não detém.

Uma interpretação restritiva do art. 759º, nº 2, al. f), do CC, com este fundamento, foi defendida por Pestana de Vasconcelos (Direito das Garantias, pág. 374, e Cadernos de Direito Privado, nº 33, págs. 8 e 9) e aparentemente foi reforçada pelo ACUJ do Supremo Tribunal de Justiça nº 4/2014 que, por maioria (e com diversos voto de vencido, entre os quais o do ora relator), fixou jurisprudência no sentido de restringir ao promitente-comprador “consumidor” o direito de retenção conferido pelo art. 759º, nº 1, al. f), do CC.

Importa, no entanto, que não haja precipitações. Aquele ACUJ incidiu unicamente sobre os pressupostos do reconhecimento do direito de retenção num quadro de insolvência do promitente-vendedor, sendo convocados para tal acórdão uniformizador não apenas os arts. 759º, nº 2, e 755º, nº 1, al. f), do CC, mas ainda preceitos do CIRE respeitantes a contratos-promessa celebrados antes da declaração de insolvência. A solução que foi fortemente influenciada pelo facto de a insolvência implicar, a par da liquidação total da massa insolvente, a convocação universal dos credores, o que explicaria a interpretação restritiva que foi adoptada no sentido de excluir do benefício os promitentes-compradores que não tenham a qualidade de “consumidores”.

Em consequência, a invocação do referido aresto uniformizador vem ocorrendo essencialmente em acórdãos deste Supremo no âmbito de recursos de revista emergentes de reclamações e de graduações de créditos em processo de insolvência, surgindo a título principal nos Acs. do STJ, de 29-5-14 (Rel. João Bernardo) e de 14-10-14 (Rel. João Camilo) e a título de obiter dicta nos Acs. do STJ, de 9-7-14 (Rel. Nuno Cameira) e de 25-11-14 (Rel. Fernandes do Vale), todos em www.dgsi.pt.

A aplicabilidade da aludida jurisprudência uniformizadora a todas as demais situações foi recentemente defendida no Ac. do STJ, de 30-4-15 (Rel. Tomé Gomes, ora adjunto), mas sem que verdadeiramente tenham sido extraídas consequências, uma vez que a apreciação da questão ficou prejudicada pelo facto de inexistirem elementos para confirmar ou negar a qualidade de consumidor, por falta de oportuna alegação da matéria de facto.


5.2. Em abstracto, a questão suscitada pela reclamante, questionando a amplitude do preceituado no art. 755º, nº 1, al. f), do CC, não é destituída de interesse, mesmo no âmbito de um recurso de revista em que podem ser apreciadas questões de direito que são de conhecimento oficioso. Todavia, tal como ocorreu no anterior aresto deste Supremo Tribunal, a sua resolução dependeria da alegação da factualidade relacionada com a negação ou com a atribuição da qualidade de consumidor relativamente ao exequente, ónus que não foi exercitado por qualquer das partes. A um tribunal de revista apenas cumpre resolver questões cuja resposta possa reflectir-se positiva ou negativamente na resolução dos concretos litígios e não doutrinar sobre questões jurídicas sem efectiva utilidade para a justa composição da concreta lide judiciária. Posto que a apreciação da qualidade do exequente (como “consumidor” ou como “não consumidor”) se contivesse nos poderes de apreciação oficiosa deste Supremo Tribunal, era mister que tivessem sido alegados os factos conexos com esse conceito. Só nesta eventualidade haveria que decidir se a interpretação que foi dada pelo referido ACUJ se expandiria ou não aos casos, como o presente, em que o direito de retenção é invocado fora do quadro de um processo de insolvência.

Ora, a reclamante, quando apresentou a reclamação de créditos, não produziu qualquer alegação atinente à qualidade em que o exequente interveio no contrato-promessa de compra e venda (questão que, em boa verdade, apenas ganhou alguma pertinência com o referido ACUJ), carecendo, assim, os autos de elementos para apreciação dessa questão no âmbito da presente revista.


5.3. Insiste, no entanto, a recorrente que a negação da qualidade de “consumidor” relativamente ao exequente decorre de factos instrumentais que, embora não expressamente alegados, se recolhem da sentença proferida na acção declarativa intentada e que serve de título executivo. O facto de o contrato-promessa de compra e venda incidir sobre um “armazém” infirmaria a sua qualidade de “consumidor”, o que seria ainda reforçado pela afirmação de que “o promitente-comprador precisava do imóvel para diversificar o seu ramo de negócio, pretendendo ali montar uma empresa de injecção de plásticos, e que se encontrava a utilizá-lo como armazém, designadamente das máquinas de grande porte, pertencente à Sociedade de Exploração e Venda de Máquinas Automáticas Alimentares”.

Trata-se de um argumento algo temerária e que apenas se compreende como um exercício destinado a retirar algum argumento do ACUJ nº 4/2014.

Posto que a este Supremo Tribunal não esteja vedada em absoluto a recolha de factos cuja prova seja evidenciada pela análise do processo, o exercício de tal poder apenas faz sentido quando estejam disponíveis meios de prova dotados de força probatória plena que tenha sido desatendida pelas instâncias (art. 674º, nº 3) e que se reportem a factos essenciais que tenham sido alegados (art. 5º, nº 1), isto é, a factos que integrem os pressupostos normativos do direito ou da excepção.

Tal não sucede no caso concreto. A reclamante em momento algum da sua petição inicial invocou (ou pretendeu invocar) que o exequente não detinha a qualidade de “consumidor”, para efeitos de uma eventual restrição do direito de retenção que foi reconhecido na sentença, e só nessa medida seria legítimo extrair desta sentença algum elemento susceptível de confirmar ou de infirmar aquela qualificação em face do disposto no art. 2º, nº 1, da Lei nº 24/96 (Lei de Defesa do Consumidor), de 31-7, republicada pela Lei nº 47/14, de 28-7.

O facto de o contrato-promessa incidir sobre um pavilhão destinado a armazém, como se refere na sentença exequenda, desempenha uma mera função instrumental relativamente àquela qualificação essencial. A consideração de tal facto, nos termos do art. 5º, nº 2, al. a), do CPC, revelar-se-ia pertinente para o apuramento dos factos essenciais sobre que existisse controvérsia, tarefa que é incumbência das instâncias e que, nesta perspectiva, extravasa os poderes deste Supremo Tribunal, de modo que tal facto, desgarrado da alegação expressa ou implícita daquele qualificativo, perde todo e qualquer interesse para a resolução do litígio.

Quanto ao outro segmento transcrito pela recorrente não é sequer um “facto” antes um argumento que foi utilizado pelo tribunal de 1ª instância para motivar a decisão da matéria de facto, sendo totalmente imprestável para servir de sustentação a qualquer actividade qualificativa da posição jurídica do exequente.

Por conseguinte, não se verifica qualquer elemento que permita a este Supremo Tribunal afirmar ou negar relativamente ao exequente a sua qualidade de “consumidor”, ficando, assim, liminarmente prejudicada a eventual possibilidade de, com base nesse elemento, se afastar a integração da posição do exequente na norma do art. 755º, nº 1, al. f), do CC.


6. Interpretação restritiva do art. 759º, nº 2, de modo a excluir os casos em que o direito de retenção concorre com hipoteca legal para garantia de alimentos:

Questiona a recorrente se a preferência estabelecida no art. 759º, nº 2, do CC, do direito de retenção sobre a hipoteca anteriormente registada abarca todas as hipotecas ou se, ao invés, exclui a hipoteca legal constituída para garantia do direito de alimentos, nos termos do art. 705º, al. d), do CC?

Esta é uma questão que nos reconduz a um resultado sustentado numa interpretação restritiva do direito ordinário sustentada em argumentos de ordem histórica e teleológica associados à primitiva redacção dos arts. 759º, nº 2, e 755º, nº 1, do CC, e às alterações que foram introduzidas em 1980 e 1986 na ocasião em que foi revisto o regime jurídico do contrato-promessa. Pode encontrar ainda arrimo na necessidade de obter do direito ordinário um resultado que se mostre mais conforme com a Constituição.


6.1. O art. 759º, nº 2, do CC, prescreve que, no âmbito da acção executiva que incida sobre a coisa imóvel a que se reporta o direito de retenção, este “prevalece sobre a hipoteca, ainda que esta tenha sido anteriormente registada”.

Na génese deste preceito (cuja redacção se mantém intacta desde que foi aprovado o Código Civil) esteve a necessidade de garantir que aquele que detinha uma coisa por algum dos motivos então previstos nos arts. 754º e 755º, nº 1, als. a) a e), do CC, pudesse ser ressarcido pelas despesas feitas com a coisa, por causa dela ou por algum dos motivos específicos previstos nas diversas alíneas referidas. Considerou-se, pois, ser ajustado, em tais circunstâncias, que o crédito do retentor preferisse ao crédito hipotecário, ainda que este tivesse sido anteriormente constituído.

Era uma solução razoável que levava a privilegiar o retentor que se empenhou, por exemplo, na manutenção da coisa, evitando a sua degradação ou perecimento que prejudicaria a garantia patrimonial de todos os credores (Maria Isabel Menéres Campos, Da Hipoteca, pág. 226). Evitaria ainda uma situação de enriquecimento sem causa do proprietário ou dos credores, à custa do retentor que suportou os custos com a coisa durante o período de tempo em que a mesma esteve sob a sua detenção (cfr. a este respeito Cláudia Madaleno, A Vulnerabilidade das Garantias Reais, págs. 91 e segs., 130 e segs. e 17).

Na sua matriz inicial, fazia todo o sentido que tal preferência fosse encarada em termos absolutos, com cedência de qualquer crédito hipotecário, independentemente da sua natureza e até da natureza da hipoteca, fosse esta voluntária, legal ou judicial. Apenas se excepcionavam os privilégios imobiliários, nos termos da redacção primitiva do art. 751º do CC.


6.2. O ordenamento legislativo entretanto evoluiu. A introdução da al. f) no art. 755º, nº 1, constituiu uma verdadeira inovação e, além disso, foi sustentada em motivos diversos dos referidos: já não foi fundada na tutela do crédito do retentor nascido por causa da coisa retida ou em função dela, antes visou atribuir uma preferência ao promitente-comprador pelo crédito emergente do contrato-promessa incumprido. Relativamente a tal inovação, a base do direito de retenção é a identidade da relação jurídica conexa com o bem.

No horizonte de tal modificação estiveram essencialmente as situações em que os promitentes-compradores avançavam com a prestação de quantitativos a título de sinal de montantes significativos, obtendo antecipadamente a detenção da coisa prometida vender. Numa época de forte desvalorização da moeda, a criação de uma nova fonte do direito de retenção integrou-se num conjunto mais alargado de medidas tendentes a equilibrar os interesses conflituantes do promitente-comprador, do promitente vendedor e do credor hipotecário.

A análise das circunstâncias que rodearam a introdução desta alteração legislativa permite compreender que o objectivo de se alcançar uma efectiva tutela do promitente-comprador tenha comprimido a posição do credor hipotecário (maxime da entidade financeira que financiou a construção do edifício), mediante a sujeição à regra geral do art. 759º, nº 2. Para tal terá concorrido a percepção de que as entidades financeiras dispõem de uma série de instrumentos que podem utilizar para reforçar a sua garantia patrimonial, quer a exigência de outras garantias reais sobre outros bens (v.g. penhor mercantil de acções), quer a exigência de outras garantias pessoais que podem envolver os representantes legais das empresas a quem concedem o crédito (v.g. aval dos representantes legais da sociedade e respectivos cônjuges em livranças em branco, com pacto de preenchimento, e outros instrumentos típicos ou atípicos que resultam da actividade bancária) (cfr. Pestana de Vasconcelos, Direito das Garantias, pág. 369). Ponderou-se, pois, que, na generalidade dos casos, estariam numa posição de supremacia em relação ao promitente-comprador que, acreditando na celebração do contrato prometido, foi levado entregar quantitativos substanciais ao promitente-vendedor, em contrapartida da entrega antecipada do bem imóvel, designadamente quando se trata de fracção habitacional.

É claro que nestas situações a actuação do promitente-comprador também pode repercutir-se substancialmente na própria coisa retida, à semelhança do tradicionalmente ocorre nos demais casos de retenção assegurados nos arts. 754º e 755º do CC. Assim ocorre nos casos em que a entrega antecipada da coisa imóvel é precedida ou acompanhada da entrega de um sinal ou de um reforço do sinal utilizado pelo promitente-vendedor para financiar a sua actividade empresarial, designadamente a que envolve a construção de edifícios para venda a terceiros. Mas, sem olvidar a frequência destas situações que precedem os casos de incumprimento do contrato-promessa de compra e venda por razões imputáveis ao promitente-vendedor, a amplitude do preceito é maior, tutelando o promitente-comprador (maxime o promitente-comprador que tenha a qualidade de retentor) relativamente a qualquer crédito emergente do incumprimento do contrato-promessa de compra e venda, incluindo os casos em que nenhum sinal foi prestado. Considerou-se que em tais circunstâncias a posição do promitente-comprador deveria prevalecer inclusive sobre a entidade financeira que financiara a construção do imóvel e que anteriormente se garantia mediante a constituição de hipoteca voluntária. Por outro lado, o direito de retenção constitui-se independentemente do concreto objecto do contrato-promessa, designadamente se é bem imóvel destinado a habitação ou a outro fim (Cláudia Madaleno, ob. cit., pág. 147).

Todos os acórdãos dos tribunais e a quase totalidade dos estudos jurídicos que se têm debruçado sobre esta problemática assentam a afirmação da prevalência do direito de retenção sobre a hipoteca quando esta resultou de uma negociação entre o promitente-vendedor e o credor que recebeu a garantia hipotecária, embora seja notada uma incongruência legislativa, na medida em que a tutela conferida ao mero promitente-comprador é negada ao adquirente, em caso de transmissão da propriedade do bem, que não consegue livrar-se da precedência conferida à garantia hipotecária, como direito real de garantia.

O elemento literal que se extrai dos arts. 759º, nº 2, e do art. 755º, nº 1, al. f), a análise das circunstâncias que rodearam a aprovação do novo regime e a ponderação dos interesses que se visaram assegurar não permitem, em nosso entender, a defesa de uma interpretação restritiva do preceituado no art. 759º, nº 2, por forma a excluir dessa regra todos os casos de direito de retenção sustentados no art. 755º, nº 1, al. f), como defende de forma singular Cláudia Madaleno (ob. cit., pág. 236).

Quanto a uma outra interpretação restritiva que circunscrevesse o direito de retenção ao promitente-comprador que fosse “consumidor” (como defende Pestana de Vasconcelos, em Direito das Garantias, pág. 325), já anteriormente se referiu que os autos carecem de elementos para integrar esta possível solução, a qual, por isso, fica prejudicada.


6.3. Mas será legítima uma interpretação restritiva do preceituado no art. 759º, nº 2, do CC, com vista a excluir da prevalência conferida ao direito de retenção os casos em que a hipoteca tem base legal, mais concretamente, a situação, como a presente, em que a hipoteca anterior foi registada para garantia de um crédito de alimentos?

No caso concreto apresenta-se-nos um quadro qualitativamente diverso daquele em que pode sustentar-se, sem dúvidas relevantes, a prevalência do direito de retenção sobre a hipoteca voluntariamente constituída pelo devedor:

a) De um lado temos o tradicional direito de retenção atribuído ao promitente-comprador para garantia do crédito emergente do incumprimento do contrato-promessa de compra e venda por parte do promitente-vendedor.

Tal direito de retenção emerge, aliás, de um contrato-promessa de compra e venda relativamente a um armazém industrial, realidade bem diversa daquelas situações que estiveram na mens legislatoris e que demandaram, nas alterações de 1980 e 1986, a previsão do direito de retenção com sobreposição à hipoteca;

b) Do outro lado, temos a garantia hipotecária que foi constituída por iniciativa da credora reclamante, com base numa disposição legal que a legitimava, destinando-se a garantir o cumprimento de uma obrigação alimentícia acordada com o executado tendo em conta o encargo com a tutela de um filho de ambos que foi interditado por incapacidade absoluta.

Esta situação também está bem distante daquelas motivaram o legislador a conceder prevalência ao direito de retenção sobre a hipoteca, num quadro económico e social e que abundavam as hipotecas para financiamento da construção de edifícios e em que a maior parte das construções visava satisfazer necessidades habitacionais.

É notória a existência de uma diferença substancial nas duas situações que podem ser prefiguradas quando se interpreta o regime jurídico que emerge dos arts. 759º, nº 2, e 755º, nº 1, al. f), do CC.

Nas situações correntes que têm sido objecto de apreciação judicial e de um vasto trabalho doutrinal apresenta-se-nos uma garantia hipotecária constituída pelo próprio devedor, por acto unilateral (art. 712º do CC), para garantia de crédito de que, em regra, é titular o terceiro que financiou a construção do edifício. Os dados jurisprudenciais revelam, aliás, que na sua quase totalidade os litígios que são submetidos à apreciação judicial respeitam a contratos-promessa de compra e venda relativos a habitação (neste sentido cfr. Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, tomo II, Direito das Obrigações, II, pág. 401).

Em tais situações, ainda que com naturais objecções que essencialmente são apresentadas em defesa dos interesses das instituições financeiras, é compreensível que a posição do credor hipotecário, cuja garantia foi voluntariamente constituída pelo devedor, ceda perante um direito de crédito constituído a favor do promitente-vendedor, mas a que a lei atribui o direito de retenção (Maria Isabel Menéres Campos, Da Hipoteca, pág. 227).

Já a situação que agora se nos apresenta a configuração é substancialmente diversa. A hipoteca foi constituída não pelo devedor (art. 712º do CC), mas pela própria credora, sendo sustentada simplesmente na existência de uma obrigação cujo cumprimento pode, segundo a lei, ser assegurado mediante a constituição de uma hipoteca, nos termos dos arts. 704º e 705º, al. d), do CC. Ademais, para além da sustentação legal directa, o título que serviu de base ao registo da hipoteca foi uma sentença homologatória de um acordo que esse estabeleceu entre as partes, apresentando-se-nos, assim, uma hipoteca que, além de ser legal (arts. 704º e segs. do CC) é também judicial (arts. 710º e segs.).

A génese da hipoteca é, assim, materialmente diversa da génese das hipotecas voluntárias, diversidade que se acentua quando nos confrontamos com a natureza e a génese tanto do crédito que a hipoteca legal visou assegurar como do crédito dotado de direito de retenção.


6.4. Como refere Vaz Serra, nos Trabalhos Preparatórios do CC, BMJ 62º/251, “ a lei ao estabelecer as hipotecas legais funda-se na necessidade de garantir determinados credores (o Estado ou outras pessoas de direito público, pessoas privadas da administração dos seus bens, etc.), que não poderiam obter o consentimento do devedor para uma hipoteca convencional ou só o poderiam obter com dificuldade sacrificando a natural delicadeza existente nas relações entre o credor e devedor”.

Refere Maria Isabel Menéres Campos, em Da Hipoteca, pág. 141, que “a hipoteca legal resulta imediatamente da lei e não da vontade das partes, desde que exista a relação de créditos à qual vai servir de segurança, embora seja necessário que o credor titular promova o registo da garantia. É a lei que reconhece directamente o direito à hipoteca a determinados factos que reputa idóneos para fazer surgir aquele direito”. Esclarece mais adiante que “do que se trata é de a constituição da hipoteca poder ter lugar sem dependência da vontade do titular da coisa hipotecada” (pág. 142) e acrescenta ainda que “a ratio das hipotecas legais é análoga à dos privilégios creditórios, mas é diverso, e mais intenso, o meio técnico adoptado” (pág. 143).

Segundo Salvador da Costa, tais hipotecas “visam garantir os créditos de determinados credores, em razão da sua natureza ou em atenção à específica situação da pessoa do seu titular” (Concurso de Credores, pág. 110).

A especificação da hipoteca legal relativamente a créditos de alimentos é, por seu lado, justificada por Vaz Serra “pela especial natureza do crédito alimentício”, considerando ainda que tal hipoteca específica se funda em razões de ordem pública, sendo irrenunciável (Hipoteca, pág. 273).


6.5. A interpretação restritiva é legitimada quando o elemento literal mínimo encontre apoio noutros critérios que devem ser convocados.

Destaca-se para a resolução do caso concreto a análise da evolução do sistema normativo (elemento histórico) e o facto de a previsão do direito de retenção ter servido essencialmente para tutelar os promitentes-compradores em face dos credores com hipotecas voluntariamente constituídas, especialmente as entidades financeiras que concederam crédito para a construção de edifícios para venda e, dentro destes, para uso habitacional. Não se nota em qualquer dos diplomas que alterou o regime do direito de retenção e do contrato-promessa a menor ideia de estender o benefício ao promitente-comprador em situação de concorrência com uma hipoteca de natureza legal para garantia de prestação alimentícia.

Como já se disse anteriormente, têm sido diversas as tentativas de circunscrever o âmbito de aplicação do disposto no art. 759º, nº 2, do CC, através da adopção de uma interpretação restritiva como a defendida por Menezes Leitão (o direito de retenção apenas beneficiaria créditos do promitente-comprador emergentes do art. 442º, pressupondo sempre a existência de sinal – Direito das Obrigações, vol. I, pág. 244), por Pestana de Vasconcelos (o direito de retenção apenas beneficiaria o promitente comprador que fosse consumidor – Direito das Garantias, pág. 325) ou por Carlos Pereira de Abreu (a prevalência do direito de retenção sobre a hipoteca está limitada aos casos em que o retentor intervenha como exequente e já não como credor reclamante – O Direito de Retenção como Garantia Imobiliária, pág. 36).

Tais tentativas são bem demonstrativas da relutância que existe relativamente a uma interpretação literal do preceito que não pondere determinados aspectos, sendo essa a consideração que deva Gravato de Morais a concluir que “a introdução de um tal regime teve sobretudo em vista tutelar o promitente-consumidor no confronto com instituições de crédito. Trata-se de dar prevalência ao direito do consumidor à protecção de particulares interesses económicos conexos, dominantemente, com a compra de casa própria” (Contrato-Promessa em Geral e Contratos-Promessa em Especial, pág. 236).

Assim, o elemento circunstancial conexo com a conjuntura e com as razões que determinaram a introdução da al. f) do nº 1 do art. 755º do CC, introduz um argumento que favorece uma interpretação restritiva do preceituado acerca da prevalência do direito de retenção sobre a hipoteca, de modo a excluir situações, como a dos autos, em que tal direito concorre com uma hipoteca legal constituída para garantia de alimentos.

O elemento de ordem sistemática também não deve ser alijado. Pelo contrário, concorre no sentido da confirmação daquela asserção. Na verdade, a amplitude da redacção inicial do art. 759º, nº 2, do CC, encontrava concordância prática na delimitação das situações a que era conferido o direito de retenção, abarcando, então, casos marginais, bem longe da situação que foi criada quando o desenvolvimento urbanístico e a democratização do acesso ao crédito determinou a multiplicação de contratos-promessa de compra e venda com vista à satisfação de necessidades habitacionais ou outras. Se essa concordância prática se pode sustentar ainda quando, por via das alterações de 1980 e 1986 ao regime do contrato-promessa, o direito de retenção concorre com a garantia hipotecária voluntariamente constituída para assegurar financiamentos bancários, não se detectam motivos que levem a ampliar cegamente tal prevalência a todas as hipotecas, sem qualquer restrição quanto à sua génese e quanto à qualidade do crédito garantido.

Como elemento de ordem racional ou teleológica que congrega os demais elementos e permite identificar a real intenção do legislador que se esconde por detrás de uma norma aparentemente generalizadora do direito de retenção identifica-se o facto de a hipoteca legal ter sido constituída e levada ao registo predial por acto do próprio credor e não do devedor, surgindo o direito de retenção associado a um contrato-promessa que foi celebrado depois do registo da hipoteca e numa altura em que era fácil a cada uma das partes percepcionar a preexistência daquela garantia real.

O quadro específico em que nos surge o direito de crédito de alimentos e a associada hipoteca legal, a situação de incumprimento de uma obrigação alimentar voluntariamente assumida pelo devedor, a posterior outorga de um contrato-promessa de compra e venda e, para culminar, a interposição de uma acção com invocação do seu incumprimento sem que o devedor sequer tenha apresentado contestação, implicam que não possa extrair-se do ordenamento legal uma mera resposta formal, impondo-se um esforço adicional no sentido convergente para a detecção de uma solução que, além de ser substancialmente justa, na perspectiva dos interesses do credor de alimentos, impeça os efeitos que resultariam de uma prática que esvaziaria o efeito da hipoteca legal.

Os argumentos de ordem racional, ligados à natureza dos créditos e à diferença genética das garantias reais em confronto, assim como aos motivos que estiveram na base da consagração do direito de retenção a favor do promitente-comprador convocam ainda o elemento histórico e determinam, em nosso entender, uma interpretação restritiva do preceituado no art. 759º, nº 2, do CC, por forma a excluir da solução aí abstractamente prevista as situações em que o direito de retenção concorre com uma garantia hipotecária constituída por força legal, maxime para garantia do direito de alimentos que foram fixados em acordo judicialmente homologado para satisfação das necessidades do filho interditado do devedor.

É um passo arriscado mas que, ultrapassando a mera aplicação mecânica de preceitos formais e a simples transposição de argumentos de ordem jurisprudencial e doutrinal tecidos em torno de realidades substancialmente diversas, encontra sustentação metodológica que não pode ser desconsiderada quando aos tribunais é solicitada a composição ajustada do conflito de interesses.

Com efeito, importa não ignorar que se na generalidade dos casos que são apreciados pelos tribunais concorre o direito de retenção atribuído ao promitente-comprador habitacional com a garantia hipotecária de instituições financeiras, outras situações poderão justificar um diverso resultado. Como se refere no trabalho intitulado “Prevalência do direito de retenção sobre a hipoteca”, inserido na obra Garantias das Obrigações, coord. por Sinde Monteiro, “na expectativa de uma jurisprudência a favor de uma interpretação restritiva e correctiva do exercício do direito de retenção, a doutrina crítica não deixará de realçar os limites do legislador, apontando soluções que se podem revelar menor penosas à situação dos credores hipotecários”.


6.6. A balança argumentativa acaba por ceder definitivamente em prol da posição da credora reclamante quando se pondera adicionalmente a origem e a natureza do crédito com garantia hipotecária legal.

A recorrente e o executado divorciaram-se e no âmbito dessa acção outorgaram um acordo em que o executado se comprometia a entregar àquela uma prestação de alimentos que especificamente tinha como pano de fundo o facto de ambos terem um filho deficiente e que fora declarado interdito. Assim, a pensão de alimentos, posto que formalmente tenha sido atribuída à reclamante, foi constituída em benefício de um filho dos outorgantes, incapaz de sobreviver autonomamente.

A reclamante não se contentou com a homologação do acordo de alimentos. Teve o cuidado de fazer registar sobre um imóvel do obrigado uma hipoteca.

A hipoteca que justamente é apelidada de “rainha das garantias”, foi registada como hipoteca legal, ainda que na sua substância se trate também de uma hipoteca judicial, na medida em que visava garantir o cumprimento de uma obrigação já constituída e não a constituir, a qual fora fixada por sentença homologatória do acordo que serviu de título ao seu registo, nos termos do art. 710º do CC. Aliás, tratando-se de uma sentença que cobria o direito de alimentos que se venceriam no futuro, a hipoteca acabou por ser registada com menção do quantitativo provável do crédito, como se prevê nos casos de hipoteca judicial, nos termos do art. 710º, nº 2, do CC.

Este é, no entanto, um pormenor sem real importância, na medida em que a lei não estabelece distinções quanto aos efeitos projectados por cada uma das hipotecas. O que importa, sim, é a substância, revelando-se uma hipoteca que visou garantir o cumprimento de uma obrigação sustentada numa decisão judicial.

O facto de o crédito estar reconhecido por sentença judicial transitada em julgado, associada ao facto de corresponder a uma prestação de alimentos e, além disso, de esses alimentos serem devidos à reclamante por causa do encargo que assumiu de cuidar do filho de ambos, interdito, confluem no sentido de não permitir uma interpretação do ordenamento jurídico que, como pretende o exequente, se traduziria no esvaziamento do efeito prático quer da sentença homologatória, quer da hipoteca legal/judicial constituída para garantia desse crédito antes que se pudesse formar o crédito correspondente ao dobro do sinal entregue no âmbito de um contrato-promessa de compra e venda posteriormente outorgado.

Deste modo se assume uma interpretação que, assumindo a natureza restritiva, se mostra mais conforme com a Constituição.


6.7. Nesta ordem de ideias, na graduação de créditos observar-se-á a prevalência do crédito reclamado, com garantia hipotecária, sobre o crédito do exequente, com direito de retenção.


7. Inconstitucionalidade do art. 759º, nº 2, do CC, na medida em que determine a prevalência do direito de retenção sobre hipoteca legal para garantia de alimentos:

Alega ainda a recorrente que a sobreposição do direito de retenção como garantia do direito ao dobro do sinal sobre a garantia hipotecária do crédito de alimentos violaria os princípios constitucionais do direito à vida e à dignidade da pessoa humana, considerando que os alimentos fixados visaram satisfazer as necessidades de um filho de ambos (credora e devedor) que fora declarado em estado de interdição por total incapacidade de reger a sua pessoa e bens.

Verificar-se-á a inconstitucionalidade do preceituado no art. 659º, nº 2, do CC, na medida em que pudesse ser interpretado de forma a sobrepor o direito de retenção posteriormente constituída a uma hipoteca legal para garantia de crédito alimentício nos, termos do art. 705º, al. d), do CC?

Esta questão apenas é tratada em reforço da anterior argumentação, na medida em que pressupõe uma interpretação do regime jurídico diversa daquela que anteriormente foi assumida.


7.1. A constitucionalidade do disposto no art. 759º, nº 2, em conexão com o art. 755º, nº 1, al. f), do CC, tem sido questionada pelos credores hipotecários essencialmente quando são confrontados, em sede de reclamação de créditos, com crédito emergente do incumprimento de contrato-promessa de compra e venda dotado de direito de retenção, embora constituído depois do registo da hipoteca voluntária.

O Tribunal Constitucional – incidindo sobre situações de conflito entre o direito de retenção atribuído ao promitente-comprador e a garantia hipotecária de instituições de crédito que financiaram a construção dos imóveis – tem decidido pela não inconstitucionalidade, como resulta designadamente do Ac. nº 356/04, de 19-5-04, e nº 466/04, de 23-6-04, considerando digno de tutela, pelo legislador ordinário, os interesses dos promitentes-compradores. Consecutivamente vem recusando a declaração de inconstitucionalidade, uma vez que a prevalência de uma garantia oculta, como o direito de retenção, sobre uma garantia real registada, como a hipoteca voluntária encontra justificação na tutela dos direitos dos particulares. Tem sido considerado ainda que as entidades cujo crédito está garantido por hipoteca voluntária têm outros instrumentos de tutela da sua posição, o que não ocorre com o promitente-comprador.

Já noutras situações paralelas em que a hipoteca voluntária se confrontava com privilégios creditórios que beneficiavam os créditos da Segurança Social, o mesmo Tribunal declarou a inconstitucionalidade do preceito que atribuía prevalência a estes créditos sobre os créditos com garantia hipotecária (art. 751º do CC), com fundamento na violação do princípio da protecção da confiança que seria abalada pela preferência injustificada e irrazoável atribuída a garantias reais ocultas, em detrimento da garantia que deve ser conferida a hipotecas dotadas da segurança jurídica impulsionada pela sujeição ao registo predial.

Tal efeito, com força obrigatória geral, foi declarado pelo Ac. nº 362/02, de 17-9-02 relativamente à preferência atribuída pelo art. 104º do CIRS, com privilégio imobiliário geral atribuído à Fazenda Pública, sobre a hipoteca, ao abrigo do art. 751º do CC.

Foi também confirmado pelo Ac. nº 363/02, de 17-9-02 relativamente a créditos da Segurança Social, também dotados de privilégio imobiliário geral com preferência sobre hipotecas.

Num e noutro dos arestos considerou-se que tal regime de preferência na graduação de créditos violava o princípio da protecção da confiança derivado das regras do registo predial para tutela dos particulares, realçando, sem motivo, ónus ocultos cujo relevo prejudicava outras relações jurídicas. Tais garantias ocultas acabavam por esvaziar de conteúdo a garantia hipotecária anteriormente registada.

Todavia, a linha de separação entre a afirmação e a negação da constitucionalidade de certos regimes jurídicos não é clara, nem sequer ao nível do Trib. Constitucional, como o revelam outros acórdãos sem força obrigatória geral.

Enquanto aquela jurisprudência foi afirmada também relativamente a créditos por apoios financeiros concedidos pelo IEFP, com privilégio imobiliário geral, sobre créditos hipotecários (Acs. nº 246/09, de 12-5-09 e nº 387/02), já foi negada noutro caso em que estavam em confronto créditos de trabalhadores com privilégio imobiliário especial sobre o imóvel onde exercem a actividade (Ac nº 335/08, de 19-6-08), sendo considerada conforme a Constituição essa preferência legal, tendo em conta a especial natureza dos créditos laborais e a sua conexão com o local onde é exercida a função.

A desconformidade constitucional foi também afirmada num caso de confronto entre privilégio mobiliário geral da Segurança Social e crédito pignoratício (Acs. nº 69/09, de 10-2-09, e nº 108/09, de 10-3-09), agora com justificação no facto de se tratar de um privilégio mobiliário, sem as garantias conferidas pelas regras do registo predial

Servem estes elementos para ilustrar uma certa flutuação que vem existindo relativamente à apreciação da conformidade de preceitos que atribuem prevalência a garantias reais ocultas, como o direito de retenção e o privilégio creditório imobiliário, sobre garantia hipotecária resultante de hipoteca voluntária.


7.2. Importa observar as diferenças que se verificam entre o caso dos autos e as situações em que o Trib. Const. tem negado a declaração de inconstitucionalidade das normas que privilegiam o direito de retenção sobre a hipoteca:

- Em tais situações o confronto vem sendo estabelecido entre hipotecas voluntárias, isto é, constituídas por acto unilateral dos promitentes-vendedores, ao passo que no caso concreto nos defrontamos com uma hipoteca legal prevista em função da natureza do crédito;

- Naquelas situações as hipotecas asseguravam créditos de entidades que financiaram a construção dos edifícios, ao passo que no caso sub judice nos deparamos com um crédito de alimentos constituído no âmbito de um processo de divórcio;

- Naquelas situações as entidades bancárias ou outros credores dispuseram da possibilidade de recusar a concessão de crédito, sendo o risco do não pagamento moderado pela exigência da constituição de hipotecas por acto unilateral dos devedores, ao passo que o crédito de alimentos tem génese legal, prevendo a lei a possibilidade de ser constituída, por acto unilateral do credor, hipoteca legal que, pressupondo o registo, confere a terceiros a possibilidade de percepcionarem a sua existência quando se confrontam com a participação em relações jurídicas susceptíveis de gerarem créditos com direito de retenção;

- Sobreleva ainda, para efeitos de aferição da conformidade constitucional de normas que privilegiam em absoluto o direito de retenção sobre qualquer hipoteca, mesmo de génese legal, o facto de no caso concreto o contrato-promessa ter incidido sobre um armazém, ao passo que a hipoteca legal foi constituída para garantia de alimentos devidos à reclamante por causa do encargo com o filho dos cônjuges que é incapaz e que foi declarado interdito;

- Para efeitos de apreciação da conformidade constitucional de um regime que estabeleça a preferência absoluta do crédito dos promitentes-compradores sobre créditos alimentícios, não poderá deixar de se realçar a natureza indisponível do direito a alimentos (art. 2008º do CC), característica que igualmente se liga à natureza irrenunciável da hipoteca legal prevista para sua garantia, nos termos do art. 705º, al. d), do CC, uma vez que tal hipoteca específica se funda em razões de ordem pública, sendo irrenunciável (Vaz Serra, Hipoteca, pág. 273).


7.3. Nesta medida, consideramos que uma interpretação dos arts. 759º, nº 2, e 755º, nº 1, al. f), do CC, no sentido de que o direito de retenção do promitente-comprador se sobreporia à hipoteca legal constituída pela reclamante para garantia da referida prestação alimentícia não suporta o confronto com princípios da protecção da confiança. De outro modo, a certeza do crédito de alimentos que foi fixado por uma sentença judicial e a segurança da garantia patrimonial alcançada pela credora através de uma rara iniciativa de constituição de uma hipoteca legal que foi levada ao registo para que pudesse ser assinalada a terceiros que com o devedor viessem a contratar, poderia ser torpedeada mediante a outorga de um singelo contrato-promessa de compra e venda (entretanto incumprido pelo promitente-vendedor), gerando na esfera do promitente-comprador com tradittio, a par do direito de crédito, o direito de retenção, sobrepondo-o à hipoteca.

Repare-se que nem sequer estamos a ponderar as situações (que a matéria de facto alegada e provada não demonstra com a necessária certeza e sobre as quais não podemos estabelecer conjecturas) em que essa actuação é concertada entre os dois sujeitos, como estratégia para prejudicar o credor do promitente-vendedor. Basta-nos enfrentar as situações em que a outorga de um contrato-promessa de compra e venda com tradittio e a posterior situação de incumprimento do promitente-vendedor é fruto natural do relacionamento entre dois sujeitos para que se possa asseverar que um regime ordinário assim arquitectado, que legitima aquele resultado, não consegue ultrapassar o filtro da conformidade constitucional.

A violação do princípio da protecção da confiança corre ainda a par da violação do princípio da proporcionalidade, não se antevendo que motivos poderão justificar verdadeiramente que uma prestação alimentícia (que essencialmente reverte para um deficiente profundo, filho do devedor) garantida por bens do património do devedor possa ceder perante um crédito de terceiro emergente de um contrato-promessa de compra e venda que nem sequer incidiu sobre um imóvel com destino habitacional (em que estaria em causa, de forma indirecta, o direito de habitação), antes sobre um armazém para o exercício de uma actividade comercial ou industrial.


7.4. Sem curar sequer de apreciar se e em que medida a tutela concedida a um direito de crédito de base puramente patrimonial desconsidera o relevo constitucional que deve ser atribuído aos direitos enunciados pela recorrente (direito à vida, direito à dignidade da pessoa humana, tutela de pessoas com deficiência), um tal regime ordinário que fosse interpretado de forma literal, sem a anterior interpretação restritiva, careceria de fundamento razoável, ultrapassando os limites da discricionariedade conferida ao legislador ordinário que tem sido ponderado quando o direito de retenção do promitente-comprador se contrapõe e sobrepõe à hipoteca voluntária, tendo em conta, por um lado, a natureza do crédito hipotecário (normalmente financiamentos para a construção) e, por outro, a tutela dos promitentes-compradores, muitas vezes com a qualidade de “consumidores” e destituídos dos mecanismos de defesa que as instituições financeiras podem abrir mão para tutela das suas posições.

Sendo verdade que os direitos que emergem de contratos-promessa, como actos praticados por particulares dentro da esfera da livre iniciativa privada, também encontram alguma protecção constitucional, a precedência absoluta, mesmo relativamente a créditos por alimentos, nas circunstâncias do caso concreto, não supera a barreira daqueles princípios constitucionais da protecção da confiança e da proporcionalidade.

A precedência revela-se manifestamente desproporcionada, na medida em que acabaria por privilegiar um direito de crédito emergente (a crer nos factos que foram considerados provados na sentença) do incumprimento de um contrato-promessa de compra e venda, em detrimento de um direito a uma prestação alimentícia que, visando em geral, suportar as despesas do alimentando, no caso concreto se destina essencialmente a suportar as despesas da reclamante com um filho dos ex-cônjuges interditado.

Estamos, pois, em face de uma situação bem diversa daquela que tem sido apreciada nos recursos de constitucionalidade e que tem justificado a negação da desconformidade constitucional, devendo merecer, em nosso entender, uma resposta diversa.

Por isso, se acaso não se tivesse adoptado a interpretação restritiva do art. 759º, nº 2, do CC, por forma a excluir os casos em que o direito de retenção concorre com hipoteca legal para garantia de alimentos, nos termos do art. 705º, al. d), do CC, essa solução seria o resultado da não aplicação de tal preceito, numa interpretação literal do mesmo, por violação dos princípios da protecção da confiança e da proporcionalidade.


8. Por conseguinte, o crédito do exequente garantido quer pela penhora que foi efectuada no processo de execução, quer pelo direito de retenção emergente do art. 755º, nº 1, al. f), do CC, cede perante o crédito da reclamante por alimentos cobertos por sentença judicial homologatória do acordo, transitada em julgado e que se encontra garantido por hipoteca legal/judicial anteriormente constituída.


IV – Face ao exposto, seguindo argumentação não coincidente com a que foi apresentada pela recorrente, concede-se a pretendida revista, revogando-se o acórdão recorrido que se substitui pela seguinte graduação de créditos relativamente ao imóvel penhorado:

- 1º lugar: crédito da reclamante relativo à prestação alimentícia fixada por sentença judicial que homologou o acordo;

- 2º lugar: crédito do exequente.

As custas da execução saem precípuas.

Custas da revista e nas instâncias da reclamação de créditos a cargo do exequente.

Notifique.

Lisboa, 9-7-15


Abrantes Geraldes (Relator)

Tomé Gomes

Bettencourt de Faria