Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1149/20.9YRLSB.S1
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO
Relator: SÉNIO ALVES
Descritores: ACORDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
ARGUIÇÃO DE NULIDADES
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
JUIZ NATURAL
INCONSTITUCIONALIDADE
EXTRADIÇÃO
Data do Acordão: 12/02/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: EXTRADIÇÃO / M.D.E.
Decisão: ACLARAÇÃO INDEFERIDA
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I - A possibilidade de rejeição de recurso admitido está expressamente prevista no art. 414.º, n.º 3, do CPP. Na situação em apreço, com fundamento semelhante ao utilizado no acórdão cuja nulidade se argui, o tribunal recorrido havia já decidido não admitir um outro recurso, igualmente interposto de decisão interlocutória. O recorrente, aliás, reclamou desse despacho e viu a sua reclamação indeferida. Por fim, a necessidade de rejeitar o recurso em causa havia sido já suscitada pelo MP, na resposta que ofereceu ao recurso. E daí que, naturalmente, a decisão ora proferida – de rejeição dos recursos interpostos de decisões interlocutórias – podendo embora constituir motivo de desagrado ou desacordo por banda do recorrente, não constituiu para o mesmo, seguramente, qualquer surpresa.

II - À extradição aplicam-se, subsidiariamente, as regras do processo penal, mas tal não significa que estejamos perante um processo penal em sentido estrito. A extradição é uma forma de cooperação judiciária internacional em matéria penal em que a celeridade está particularmente presente – art. 73.º, n.º 2, da Lei 144/99, de 31-08 - e que só pode ser negada nos casos expressamente previstos naquela Lei. Daí a restrição do recurso à decisão final, prevista no art. 49.º, n.º 3 desse diploma (e, também, no art. 58.º, n.º 1 da mesma Lei).

Decisão Texto Integral:


            Acordam os Juízes deste Supremo Tribunal de Justiça:


 I. AA, recorrente nos presentes autos e neles melhor identificado, notificado que foi do acórdão proferido em 20 de Outubro de 2021, veio arguir a nulidade do mesmo, com os fundamentos seguintes:

«1. O Recorrente no recurso por si interposto da decisão final proferida pelo Venerando tribunal da Relação ..., suscitou diversas questões, as quais não foram, salvo o devido e considerado respeito, concretamente apreciadas por esse Colendo Tribunal,

2. E as quais, por certo, não estava esse Tribunal “desobrigado” a conhecer por força da deliberação de rejeição liminar dos recursos relativos aos despachos interlocutórios que por si foram interpostos, por não estarem contempladas nos seus âmbitos objectivos.

3. Com efeito, o tribunal não apreciou a concreta questão suscitada pelo recorrente atinente a nulidade dimanada da violação do princípio do esgotamento do poder jurisdicional, apontada relativamente ao despacho que determinou a 2.º audição do extraditando em 15.09.2020;

4. Como de igual modo não apreciou a nulidade reconduzível à falta de promoção do MP, por não ter estado presente quer na 1.ª audição quer na 2.º audição do extraditando Procurador Geral Adjunto, mas antes Sras Magistradas do MP com a categoria de Procurador da República, destituídas de competência material e funcional à luz do próprio EMMP para intervir neste tipo de actos, sem expressa autorização do seu superior hierárquico;

5. Situação essa que corresponde a nulidade insanável;

6. Por outro lado, o tribunal no douto acordão proferido, omite pronúncia sobre a concreta quaestio da invalidade substantiva do acto do Sr. Secretário de Estado suscitada perante tribunal recorrido e ex novuum perante esse colendo tribunal;

7. E bem assim da violação do princípio do juiz natural que o recorrente suscita, por ter sido presidida a sua audição em dois momentos por Juiz Desembargador, que não era titular do respectivo processo, em clara violação do n.º 9 do art.º 32.º da CRP

8. Por outro lado e associada à essa questão aventada, o douto acórdão proferido omite pronúncia sobre uma concreta questão, a qual é de conhecimento oficioso,

9. Referimo-nos designadamente à nulidade tipificada na al. e) do art.º 119.º do CPP por ter sido a audição e estatuto coactivo do extraditando definido por Juiz Desembargador, que à data se encontrava destituído de funções jurisdicionais, por força do cargo que exercia à data de Juiz Presidente de Comarca;

10. E de igual modo, e conexionada com a circunstância alegada em 7), implicando a sua audição por parte de juiz que não é titular do respectivo processo, o referido despacho da Juiz ... materializou-se numa alteração das regras de composição do próprio tribunal, sendo tal situação cominada com o vício de nulidade processual, de natureza insanável, a qual era de conhecimento oficioso, nos termos do disposto na al. a) do art.º 119.º do CPP e que esse Colendo tribunal, poderia e deveria ter conhecido e emitido a respectiva pronúncia, nos termos do disposto no no n.º 3 do art.º 410.º do CPP.

11. Por outro lado, urge salientar que conforme decorre do douto acórdão, foram rejeitados os recursos interlocutórios interpostos por parte do extraditando.

12. Com fundamento na sua inadmissibilidade legal.

13. Invocando-se para tanto o disposto no n.º 3 do art.º 49.º da Lei 144/99, e designadamente sustentando tal entendimento para além de considerações atinentes à própria especificidade do processo em causa, no elemento literal daquele normativo (designadamente no vocábulo “só”).

14. Ora, importa salientar que, o recurso interlocutório id. sob a al b) da fundamentação do acórdão proferido, foi admitido pelo tribunal que julgou em primeira instância;

15. Sendo certo que, pese embora aquela decisão não vincule o tribunal ad quem, a verdade é que, se impunha por força do disposto no n.º 3 do art.º 3 do CPC aplicável ex vi art.º 4.º do CPP que fosse facultado ao recorrente se pronunciar previamente sobre esse “projecto de decisão”, exercendo o respectivo contraditório,

16. Pelo que, a interpretação desse colendo tribunal ínsita no acórdão proferido, designadamente do disposto no n.º 3 do art.º 414.º do CPP, no sentido de que, o tribunal ad quem poderá rejeitar liminarmente com fundamento na sua inadmissibilidade legal/irrecorribilidade os recursos interlocutórios admitidos pelo tribunal a quo, sem que previamente tenha facultado ao recorrente a possibilidade de se pronunciar sobre essa concreta questão, é materialmente inconstitucional, por violação do princípio constitucional do contraditório, corolário do principio de Estado de Direito previsto no art.º 3.º da CRP.

17. Pelo que, nesta senda, entende-se que a sua preterição, nesta medida, inquina o acórdão proferido do vício de nulidade.

18. Por outro lado, a interpretação por parte desse colendo tribunal do disposto no n.º 3 do art.º 49.º da Lei de Cooperação Judiciária no sentido de só ser admissível recurso de decisão final é materialmente inconstitucional por violação do direito de acesso ao direito e aos tribunais previsto no art.º 20.º da CRP e bem assim do direito ao recurso previsto no n.º 1 do art.º 32.º da CRP,

19. E ainda do princípio de igualdade, ínsito no artº 16.º da CRP, posto que, tal entendimento normativo atribui um tratamento diferenciado a sujeitos que estão subordinados à mesma natureza de jurisdição- penal- sendo que, os recurso interlocutórios em causa se fossem no âmbito do processo penal seriam admissíveis à luz do art.º 400.º do CPP e à luz do elemento literal do referido normativo da LC deixam de ser, não existindo razões ponderosas, que permitam e legitimam um tratamento diferenciados de sujeitos, que ante a mesma jurisdição, mas em processos que           assumem naturezas diversas, mas que almejam fins sancionatórios/punitivos assumem tratamentos diferenciados, não se justificando uma restrição desproporcional do direito ao recurso ínsito no n.º 1 do art.º 32.º da CRP, sendo pois tal normativo materialmente inconstitucional, quando interpretado no sentido de apenas as decisões finais serem impugnáveis por via de recurso, violador como tal do art.º 18.º n.º 2 da CRP».

Respondeu o Exmº Procurador-Geral Adjunto, pugnando pelo indeferimento das arguidas nulidades:

«1 – Por acórdão de 20 de Outubro de 2021 deste Supremo Tribunal de Justiça (S.T.J.), foi decidido 1) rejeitar os recursos interpostos de decisões interlocutórias proferidas nos autos, e 2) negar provimento ao recurso interposto da decisão final, confirmando, assim, o acórdão de 11 de Maio de 2021 do tribunal da Relação ... que decretou a extradição de EE.

2 – É desta decisão que o extraditando/recorrente vem arguir diversas nulidades e inconstitucionalidades.

Alega EE:

(…)

3 – Como é sabido, e pacífico, o âmbito dos recursos é delimitado pelas conclusões com que os recorrentes os rematam, mas o seu objecto não deixa de estar circunscrito ao domínio da decisão recorrida, não cabendo ao Tribunal de recurso apreciar e decidir matéria que não se compreenda na decisão impugnada.

Prende-se este destaque com a circunstância de, como se refere no acórdão de 20 de Outubro de 2021, terem sido interpostos vários recursos de decisões interlocutórias proferidas nos autos, nuns casos, de forma autónoma, noutros, integrados no recurso interposto da decisão final.

Escalpelizados os recursos relativos a decisões interlocutórias, cfr. fls. 40/41 desse acórdão, seguiu-se a tomada de decisão de rejeição, por inadmissíveis, desses mesmos recursos, «… ficando a apreciação deste recurso restrita à apreciação do recurso interposto da decisão final, único admissível», como se escreve a fls. 45 do acórdão.

E assim melhor se compreenderá porque é que, embora elencadas pelo Tribunal ad quem as questões suscitadas pelo recorrente no recurso interposto do acórdão do tribunal da Relação ... que decretou a sua extradição (cfr. fls. 45 e 46 do acórdão), algumas não tenham sido objecto de conhecimento, designadamente, as indicadas sob os pontos 5, 6, 7 e 10, precisamente as que foram alvo de impugnação própria em sede de recursos interpostos de decisões interlocutórias que foram sendo proferidas nos autos.

É, pois, nesse contexto que se inserem as questões que, segundo o recorrente, não foram apreciadas pelo S.T.J., outro não podendo ser o procedimento dada a rejeição dos recursos interpostos de decisões interlocutórias.

4 – E assim há que concluir que o Tribunal de recurso apreciou e decidiu todas as matérias que lhe cumpria conhecer, não ocorrendo o menor fundamento para que a decisão vertida no acórdão de 20 de Outubro de 2021 seja considerada nula, ainda que parcialmente, por omissão de pronúncia.

5 – Também não ocorre fundamento para se considerar que foram aplicadas normas desconformes à Constituição da República Portuguesa (C.R.P.), não se configurando que a interpretação e aplicação pelo Tribunal do preceito do n.º 3 do artigo 49.º da Lei n.º 144/99, de 31 de Agosto, e o do n.º 3 do artigo 414.º, este do Código de Processo Penal (C.P.P.), violem os princípios constantes dos artigos 20.º, 32.º, n.º 1, 16.º e 18.º, n.º 2, ou do artigo 3.º, da C.R.P., a que se refere o extraditando/recorrente, inconstitucionalidades que, de resto, só agora vêm invocadas, tratando-se de questões não compreendidas na decisão de que foi interposto recurso e, como tal, subtraídas à apreciação do Tribunal ad quem.

6 – Pelo exposto, entende o Ministério Público não procederem as arguidas nulidades e Inconstitucionalidades».


   II. Decidindo:


 1. Entende o recorrente que este tribunal não abordou – e devia ter abordado - a questão relativa à pretensa “nulidade dimanada da violação do princípio do esgotamento do poder jurisdicional, apontada relativamente ao despacho que determinou a 2.ª audição do extraditando em 15.09.2020”.

 Contudo, tal questão foi apenas suscitada no recurso interposto de decisão interlocutória em 11/11/2020.

   Tal recurso não foi admitido.

E, consequentemente, não foram conhecidas as questões nele suscitadas, entre as quais aquela que agora invoca (e que, note-se, não qualifica como nulidade insanável).

   Inexiste, pois e aqui, qualquer omissão de pronúncia.

  2. Afirma ainda o recorrente que este tribunal não abordou – e devia ter abordado – a questão relativa “à falta de promoção do MP, por não ter estado presente quer na 1.ª audição quer na 2.º audição do extraditando Procurador Geral Adjunto, mas antes Sras Magistradas do MP com a categoria de Procurador da República, destituídas de competência material e funcional à luz do próprio EMMP para intervir neste tipo de actos, sem expressa autorização do seu superior hierárquico”.

  Porém, a pretensa “ausência do MºPº” na audição do recorrente só foi suscitada, no recurso que interpôs da decisão final, relativamente à audição que teve lugar em 3/6/2020. É o que claramente decorre das conclusões 86º a 93º da motivação do recurso interposto.

  Do mesmo modo, a pretensa nulidade “tipificada na al. e) do art.º 119.º do CPP”, decorrente do facto de o recorrente ter sido ouvido por Juiz Desembargador, “que à data se encontrava destituído de funções jurisdicionais, por força do cargo que exercia à data de Juiz Presidente de Comarca” apenas se reporta à diligência que teve lugar em 3/6/2020.

Ora, decidiu-se no acórdão proferido neste Supremo Tribunal em 20/10/2021 que

«(…) tal diligência acabaria por ser repetida, mais concretamente em 16/9/2020, porquanto foi em 28/8/2020 que o Ministério Público veio promover o cumprimento do pedido de extradição para efeitos de procedimento criminal apresentado pela …....... para entrega do ora recorrente, juntando o despacho proferido em 20/8/2020 pelo Sr. Secretário de Estado Adjunto e da Justiça, em substituição da Srª Ministra da Justiça, no qual declara admissível o pedido de extradição formulado.

E, em 4/9/2020, foi proferido despacho verificando a suficiência dos elementos que instruem o pedido e a viabilidade deste, autorizando a audição do extraditando por juiz desembargador na ....

Não tem, por isso, efeito útil a arguição de nulidades praticadas num acto que viria a ser repetido, sendo que no acto repetido as pretensas nulidades invocadas não foram cometidas. O arguido foi ouvido, como se disse, em diligência realizada no dia 16 de Setembro de 2020, onde aparentemente, a irregularidade apontada se não repetiu, diligência presidida por um juiz desembargador que, então, já não desempenhava as funções de juiz presidente de comarca e onde o extraditando esteve fisicamente presente.

Nesta diligência, o extraditando foi informado nos termos do artº 54º, nº 1 da L. 144/99, de 31/8, manifestou a sua oposição à extradição e a não renúncia ao princípio da especialidade e obteve prazo para deduzir oposição (que viria, efectivamente, a deduzir).

Não se descortina, por isso, sentido útil em repristinar um acto que acabou por ser repetido, quando é certo que, ainda que verificassem as nulidades apontadas, dele não dependeram quaisquer actos, porquanto após o despacho proferido em 4/9/2020, tudo se passou como se inexistissem actos anteriores, isto é, dos actos praticados na audição de 3/6/2020 não dependeram nem foram afectados quaisquer outros subsequentes».

  Por outras palavras: não existe, nesta parte, qualquer nulidade do acórdão por omissão de pronúncia – o não conhecimento das pretensas nulidades encontra-se justificado pela sua manifesta inutilidade, conforme decorre do acórdão em análise.

  3. Afirma o recorrente que este tribunal não apreciou – e devia ter apreciado – a questão relativa “à invalidade substantiva do acto do Sr. Secretário de Estado suscitada perante tribunal recorrido e ex novuum perante esse colendo tribunal”.

Contudo, como decorre da leitura da motivação do seu recurso, o recorrente suscitou a questão referida como integrando uma nulidade do acórdão proferido pelo tribunal da Relação ..., por não se ter pronunciado sobre a mesma:

«Na oposição deduzida por parte do recorrente, designadamente nos pontos 63). a 69) infra indicados que ora se transcrevem o recorrente deduziu especificadamente as seguintes questões:

“ (…)

63. Por fim, refira-se que, in casu o processo de extradição não se encontra devidamente instruído, não tendo sido emitido pela entidade competente, violando-se o disposto no art 34.º a 44.º da LCJ, designadamente em matéria de competência de reconhecimento da autoridade de central de cada Estado executante, o que impede a execução de qualquer ordem, pedido ou intenção volitiva de extradição do cidadão em causa.

(…) Ora o Acórdão recorrido não aprecia, nem emite pronúncia sobre quaisquer das quaestios supra referidas, e previamente aventadas em sede de articulado próprio por parte do aqui recorrente, perante o tribunal recorrido,

Cominando a lei processual penal, tal omissão de pronúncia com o vício de nulidade processual, que inquina a validade do Acórdão proferido a final, nos termos do disposto na al. c) do n.º 1 do art.º 379.º do CPP, a qual ora se argui expressamente para todos e os devidos efeitos legais».

  Ora, tal questão foi conhecida no acórdão deste Supremo Tribunal, tendo mesmo sido identificada como uma das questões a decidir:

«11. Nulidade do acórdão recorrido por omissão de pronúncia relativamente à (falta de) competência da entidade que autorizou a extradição.

Se bem entendemos a pretensão do recorrente, este retoma aqui a questão relativa à autoria do despacho que autorizou a extradição.

Não é correcto afirmar-se que inexiste pronúncia sobre essa matéria.

Com efeito, escreveu-se no acórdão recorrido, a este propósito:

“De acordo com o despacho da Senhora Ministra da Justiça, datado de 18 de dezembro de 2019, despacho com n° 269/2020, publicado em Diário da República n°6/2020, Série II, de 09-01-2020, nas suas ausências e impedimentos a sua substituição é assegurada pelo Senhor Secretário de Estado Adjunto e da Justiça o que, no caso, veio a ocorrer a coberto desse mesmo despacho. Assim, tendo o despacho em causa sido proferido pelo Excelentíssimo Senhor Secretário de Estado Adjunto e da Justiça, em substituição, improcede a nulidade arguida”.

A concreta questão suscitada pelo recorrente foi, então, expressamente abordada no acórdão recorrido, razão pela qual não se verifica a pretendida nulidade do mesmo, por omissão de pronúncia».

      Improcede, portanto, mais esta arguida nulidade.

  4. Por fim, entende o recorrente que este tribunal se não pronunciou – e devia tê-lo feito – sobre a questão que suscitou, relativa à pretensa violação do princípio do juiz natural pelo facto de a diligência que teve lugar em 3/6/2020 ter sido presidida por quem não era titular do processo e, bem assim, sobre a pretensa nulidade decorrente do despacho proferido pela Exmª Desembargadora relatora, que determinou a audição do recorrente, no ..., por Juiz Desembargador aí residente.

   São, como é evidente, duas questões que se interligam.

Trata-se, mais uma vez, de questões que emergem de decisões interlocutórias e sobre as quais não é admissível recurso, razão pela qual delas se não conheceu.

Ainda assim, dir-se-á que o despacho proferido pela Exmª Desembargadora relatora, deprecando a um Exmº Desembargador residente no ... a audição do ora recorrente, aí residente, não importou a violação do princípio do juiz natural, na medida em que se não traduziu na subtracção da causa ao tribunal a quem a mesma havia sido atribuída: o processo manteve-se no tribunal da Relação ..., na titularidade da Srª Desembargadora a quem o mesmo foi distribuído; a audição do ora recorrente foi solicitada a um Juiz Desembargador do mesmo tribunal, residente no ..., porquanto aquele residia na ... e, atenta a situação de pandemia então existente e a urgência do acto a realizar, se não mostrava viável a sua audição no continente, mais propriamente em ..., sede do Tribunal da Relação em referência.

   Pela mesma ordem de razões e de igual modo, inexiste a nulidade invocada – artº 119º, al. a) do CPP – pois que o despacho supra mencionado não determinou a composição do Tribunal onde o processo de extradição corria termos e, por isso, não violou as regras relativas a tal composição: o processo foi distribuído no tribunal da Relação ..., onde foi tramitado e, a final, decidido.

  5. Entende o recorrente que a rejeição de um recurso interposto de despacho interlocutório, que havia sido admitido pelo tribunal recorrido, sem que lhe tenha sido previamente comunicado o “projecto de decisão”, constitui uma “decisão surpresa”, por isso violadora do estatuído no nº 3 do artº 3º do Cod. Proc. Civil, ex vi do artº 4º do Cod. Proc. Penal.

Como é evidente e dispensa muitas considerações, não estamos perante qualquer decisão surpresa, no sentido de o recorrente com ela não poder fundadamente contar.

  A possibilidade de rejeição de recurso admitido está expressamente prevista no artº 414º, nº 3 do CPP: “A decisão que admita o recurso ou que determine o efeito que lhe cabe ou o regime de subida não vincula o tribunal superior”.

  De outro lado, com fundamento semelhante ao utilizado no acórdão deste Supremo Tribunal, o tribunal recorrido havia já decidido não admitir um outro recurso, igualmente interposto de decisão interlocutória. O recorrente, aliás, reclamou desse despacho e viu a sua reclamação indeferida por decisão proferida pela Exmª Vice-Presidente deste Supremo Tribunal.

    Por fim, a necessidade de rejeitar o recurso em causa havia sido já suscitada pelo Exmº Procurador-Geral Adjunto, na resposta que ofereceu ao recurso em 24/11/2020, cujo teor lhe foi notificado em 26/11/2020.

  E daí que, naturalmente, a decisão ora proferida – de rejeição dos recursos interpostos de decisões interlocutórias – podendo embora constituir motivo de desagrado ou desacordo por banda do recorrente, não constituiu para o mesmo, seguramente, qualquer surpresa.

 E tal entendimento não viola, salvo o devido respeito por melhor opinião, qualquer princípio ou regra constitucional e, nomeadamente, “o princípio do Estado de Direito previsto no artº 3º da CRP”, invocado – sem justificação adicional – pelo recorrente.

  6. Por fim, entende o recorrente que “a interpretação por parte desse colendo tribunal do disposto no n.º 3 do art.º 49.º da Lei de Cooperação Judiciária no sentido de só ser admissível recurso de decisão final é materialmente inconstitucional por violação do direito de acesso ao direito e aos tribunais previsto no art.º 20.º da CRP e bem assim do direito ao recurso previsto no n.º 1do art.º 32.º da CRP” e, ainda, “do princípio de igualdade, ínsito no artç 16.º da CRP”.

  Apesar de, como se referir no Ac. do Tribunal Constitucional nº 50/2018, de 31/1/2018 e “constitui jurisprudência constante deste Tribunal, os incidentes pós-decisórios não são a sede adequada para suscitar ex novo questões de constitucionalidade sobre as quais o Tribunal recorrido não se pronunciou” [1], certo é que não vislumbramos que o acórdão proferido por este Supremo Tribunal enferme das inconstitucionalidades genericamente apontadas pelo reclamante.

Como se refere na decisão sumária proferida pela Exmª Vice-Presidente do STJ e referida no acórdão cuja nulidade ora se argui, “(…) não pode considerar-se infringido o artº 18º, nº 2 da CRP, porquanto o direito que o reclamante considera restringido seria o do recurso, especificamente previsto no nº 1 do artº 32º da CRP que apesar de garantir o direito ao recurso em processo criminal, não o impõe em todos os casos. Face ao disposto no citado artº 32º, nº 1 da CRP, as garantias de defesa em processo penal na perspectiva do recurso, apenas visam as decisões judiciais de conteúdo condenatório, segundo a jurisprudência do Tribunal Constitucional (cfr. Acórdão do Tribunal Constitucional nº 209/90, de 19.06.90, publicado no BMJ 398, p. 152), não revestindo tal natureza os despachos que se pretendem sejam apreciados pelo Supremo Tribunal de Justiça”.

    Quanto ao princípio da igualdade contemplado no artigo 13º da CRP, não vemos que o mesmo se mostre violado, nos termos pretendidos pelo recorrente: à extradição aplicam-se, subsidiariamente, as regras do processo penal, mas tal não significa que estejamos perante um processo penal em sentido estrito. A extradição é uma forma de cooperação judiciária internacional em matéria penal em que a celeridade está particularmente presente - artº 73º, nº 2 da Lei 144/99, de 31/8 - e que só pode ser negada nos casos expressamente previstos naquela Lei. Daí a restrição do recurso à decisão final, prevista no artº 49º, nº 3 desse diploma (e, também, no artº 58º, nº 1 da mesma Lei). Tratar de forma semelhante aquilo que é manifestamente diferente não é, seguramente, respeitar o princípio da igualdade. A dar-se acolhimento à pretensão do recorrente (inconstitucionalidade do artº 49º, nº 3 da Lei 144/99, de 31/8 e, já agora, do artº 58º, nº 1 do mesmo diploma) por violação do princípio da igualdade, porquanto os recursos de decisões interlocutórias são admissíveis no processo penal mas inadmissíveis no processo de extradição, conduziria, em última instância, à desconformidade constitucional de todo o diploma. A título meramente exemplificativo: acaso não são diferentes (bem mais reduzidos) os prazos de interposição de recurso na extradição e no processo penal? Haveria, também aqui, violação do princípio da igualdade?

    Em suma: em nosso entendimento, não é inconstitucional a norma contida no artº 49º, nº 3 da Lei 144/99, de 31/9, no segmento em que restringe o recurso à decisão final.


   III. São termos em que, sem necessidade de mais considerações, acordam os Juízes deste Supremo Tribunal de Justiça em indeferir a arguida nulidade do acórdão.

      Sem custas.


Lisboa, 2 de Dezembro de 2021 (processado e revisto pelo relator)


Sénio Alves (Juiz Conselheiro relator)

Ana Brito (Juíza Conselheira adjunta)

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[1] No mesmo sentido, cfr. os Acs. deste STJ de 27/2/2020, Proc. 66/13.3PTSRT-A.S1 e de 9/7/2020, Proc. 535/13.5JACBR.C1.S3.