Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
600/04.0TBSTB.E1.S1
Nº Convencional: 1.ª SECÇÃO
Relator: PEDRO DE LIMA GONÇALVES
Descritores: RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
ATIVIDADES PERIGOSAS
CONSTRUÇÃO CIVIL
CONTRATO DE EMPREITADA
EMPREITEIRO
DONO DA OBRA
COAUTORIA
COMISSÃO
PRESUNÇÃO DE CULPA
INVERSÃO DO ÓNUS DA PROVA
PRESUNÇÕES LEGAIS
SEGURO OBRIGATÓRIO
RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA
LITISCONSÓRCIO VOLUNTÁRIO
SEGURO AUTOMÓVEL
NORMA EXCECIONAL
Data do Acordão: 06/22/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA À R LISNAVE E NEGADA A REVISTA DA R SOMAGUE
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I. A responsabilidade da Ré, empreiteira, sustentada pelas instâncias no artigo 493.º, n.º 2, do Código Civil, não se comunica à Ré Lisnave, dona da obra: estando a direção da obra a cargo exclusivamente da Ré não existe co-autoria, para efeito do disposto no artigo 490.º, do Código Civil, ou relação jurídica de comissão (que responsabilize o comitente pelos atos do comissário).

II. Não se provando uma relação de comissão, significa que a construtora que estava a executar a obra, como empreiteira, surge, aqui, não como mandatária do dono da obra/concessionária, mas antes agindo, diversamente, com inteira autonomia na respetiva execução, escolhendo os meios e utilizando as regras de arte que tenha por próprias e adequadas para cumprimento da exata prestação correspondente ao resultado contrato, sem qualquer vínculo de subordinação ou relação de dependência. 

III. Face à perigosidade da obra que estava a ser executada, revela-se pertinente e adequado invocar o artigo 493.º, n.º 2, do Código Civil. 

IV. A dona da obra não assumiu, no contrato de empreitada, a responsabilidade civil extracontratual da empreiteira Somague perante terceiros por atos decorrentes da execução da obra.

V. A dona da obra podia ser responsabilizada por faltas ao nível da conceção da obra, ou por inobservância dos seus deveres de fiscalização, nomeadamente ao nível da segurança. 

VI. Não se provando da parte da dona da obra matéria que integre da sua parte uma atuação culposa para o dano, nem que tenha tido qualquer outra intervenção que por alguma forma tenha concorrido culposamente para o acidente, não pode a mesma ser responsabilizada na base da presunção do n.º 2 do artigo 493.º do Código Civil e, isto, porque a presunção legal de culpa constante do artigo 493.º, n.º 2, do Código Civil não se lhe aplica. 

VII. A interpretação literal, e coerente com a inversão do ónus da prova aí consagrado, do disposto na segunda parte do n.º 2 do artigo 493.º do Código Civil, comporta o sentido de fazer recair sobre a parte presumidamente culpada o ónus de alegar e provar as providências concretamente adotadas e adequadas à prevenção dos danos associadas ao perigo da atividade desenvolvida e, por consequência, de afastar a culpa – artigos 342.º e 343.º, ambos do Código Civil, não havendo como desviar para o Tribunal a tarefa, complementar à conclusão da não elisão da presunção, de elencar as medidas específicas a adotar no caso.

VIII. A mera prova de que “A obra em causa nos autos encontrava-se dotada de um plano de segurança” mostra-se insuficiente para concretizar a elisão da presunção de culpa, porque se desconhecem em absoluto as medidas concretas, previstas e executadas ao abrigo de tal plano, aptas a prevenir a eclosão de danos comummente associados ao perigo da atividade perigosa.

IX. Não sendo de convocar o regime do contrato de seguro de responsabilidade civil automóvel e tratando-se de obrigações solidárias, a lesada pode exigir o cumprimento a qualquer dos devedores (demandando-os, como fez, em litisconsórcio voluntário), sendo que a seguradora apenas responderá até ao limite do seguro”.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:



I. Relatório

1. AA instaurou ação declarativa contra Lisnave - Infraestruturas, S.A., Somague Engenharia, S.A. e Império Bonança - Companhia de Seguros, S.A. (atualmente Fidelidade-Companhia de Seguros, S.A.), pedindo a condenação solidária das Rés no pagamento ao autor de €600 000,00, a título de danos morais; de €58 800,00 a título de danos patrimoniais vencidos; de €460 600,00 a fim de suprir a diferença para o futuro tendo em conta uma esperança de vida de 75 anos, (ou o valor mensal de €700,00); do capital de €222 000,00 a fim de suprir os danos emergentes vencidos e vincendos tendo em conta a esperança de vida de 75 anos, (ou em alternativa o valor mensal de €500,00); e de eventuais danos futuros materiais ou morais nos quais venha a incorrer.

Alegou que, em obra de que a primeira Ré é dona e a segunda Ré é empreiteira (e cuja responsabilidade civil por danos nela ocorridos estava transferida para a terceira Ré) um gruista, a mando desta última, ao manobrar a grua, embateu num andaime, que caiu e provocou lesões graves (paraplegia) no Autor. 

2. As Rés apresentaram contestação.

3. A final, foi proferida SENTENÇA que decidiu:

“1 - Absolve-se do pedido a R. Lisnave Infraestruturas Navais, AS;

2 - Absolve-se do pedido a R. Sofomil –Sociedade Fornecedora de Máquinas Industriais, Lda.;

3 - Condena-se a R. Fidelidade-Companhia de Seguros, S.A. no pagamento ao A. a título de indemnização por danos morais a quantia de € 297.500,00 (85% de 350.000,00);

4 - Condena-se a R. Império Bonança-Companhia de Seguros S.A. no pagamento ao A. da quantia que se vier a apurar em sede de liquidação de sentença relativa aos montantes referentes a lucros cessantes e a danos emergentes com os limites das quantias peticionadas nos autos, descontando-se o valor da franquia do seguro cujo pagamento é a cargo da R. Somague;

5 - Reconhece-se à R. Lisnave o direito a ser reembolsada do valor pago ao A. em sede de arbitramento de compensação provisoria, valor esse a cargo da R. Somague e a descontar do montante indemnizatório a liquidar em execução de sentença;

6 - Do cômputo indemnizatório global será descontado o montante pago a título de reparação provisória arbitrada no processo cautelar apenso;

7 - Absolve-se a R. Somague do restante peticionado”.

4. Inconformados, o Autor e a Ré Fidelidade Companhia de Seguros, S.A. interpuseram recursos de apelação.

5. O Tribunal da Relação de Évora, decidiu:

“I - Julga-se improcedente o recurso da R. Fidelidade.

II - Julga-se procedente o recurso do A. em função do que:

1.º - revoga-se a sentença na parte em que absolveu as RR. Lisnave Infraestruturas Navais SA e Somague Engª, SA dos pedidos contra si formulados;

2.º - condenam-se as RR. Lisnave Infraestruturas Navais, SA, Somague Engª, SA, e Fidelidade Companhia de Seguros S.A. a pagar solidariamente a quantia de € 350.000,00, sendo a responsabilidade desta última até 85% deste valor; quanto aos restantes 15%, o seu pagamento é devido pelas demais RR. solidariamente.

3.º - condenam-se as RR. Lisnave Infraestruturas Navais SA, Somague Engª, SA, e Fidelidade Companhia de Seguros S.A. no pagamento ao A da quantia que se vier a apurar em sede de liquidação de sentença relativa aos montantes referentes a lucros cessantes e a danos emergentes com os limites das quantias peticionadas nos autos, descontando-se o valor da franquia do seguro cujo pagamento é a cargo da R. Somague, na proporção e nos termos definidos no parágrafo antecedente.

4.º - no mais mantém-se a sentença recorrida.”

6. As Rés Lisnave Infraestruturas, S.A. e Somague Engenharia, S.A. interpuseram recurso de revista, formulando as seguintes (transcritas) conclusões:

- A Ré Lisnave Infraestruturas, S.A. -

1.ª A Recorrente Lisnave Infraestruturas, SA concessionária do Estaleiro, definiu e planeou exaustivamente todas as fases da obra de construção do "Hidrolift";

2.ª Pôs a obra a concurso e foi absolutamente previdente e cautelosa exigindo todos os requisitos e todos os procedimentos às empresas que se consorciaram para realizar a obra e em concreto ao Empreiteiro Geral, a Somague;

3.ª Exigiu um Plano de Segurança rigoroso e no contrato de Empreitada exigiu e foi contratualizado um Seguro "Contractor Ali Risks" (CAR);

4.ª Seguro contratualizado de forma exaustiva, exclusiva e obrigatória, conforme resulta dos factos provados sob a epígrafe - Disposições Gerais - encargos do Empreiteiro pontos 1.10.1.1, 1.10.1.2 e 1.10.15;

5.ª Nos vários Procedimentos/Processos instaurados que tiveram lugar e que precederam o actual (Laboral, Inquérito crime, Providência Cautelar), nenhuma prova foi produzida quanto à responsabilidade da LIN/Recorrente;

6.ª O Plano de segurança inicialmente exigido e estabelecido manteve-se e não foi alterado após o sinistro, o que significa que o mesmo era, não só o adequado como o mais seguro;

7.ª Não existiu nem se provou em processo algum daqueles mencionados em E) anterior e também neste, qualquer relação de comitente/comissário entre a Recorrente e o malogrado sinistrado que foi contractado pelo Empreiteiro e exercia a actividade subordinada às suas ordens e dependência exclusiva deste;

8.ª Não se vislumbra nenhum "salto de logicidade" nessa relação de Comissão imputável à Recorrente;

9.ª A obra era complexa tecnicamente mas à partida não constituía nenhuma actividade perigosa ou com especial aptidão/probabilidade de causar perigo eminente, assumindo a natureza de qualquer outra obra de construção civil onde actuam máquinas pesadas, como é o caso das gruas;

10.ª A culpa não se presume, a culpa prova-se através dos factos ocorridos e nin casu" nenhum facto alegado e dado por provado imputou à LIN/Recorrente qualquer culpa, negligência, falta de tomada de providências ou incumprimento por acção e/ou omissão das regras de segurança exigidas em obra;

11.ª A obra teve sempre uma empresa de fiscalização presente, a Proman, actuante e rigorosa e nada contestou, apontou ou exigiu em contrário, quanto ao Plano de Segurança implementado, como resultou provado (vide ponto 95 da matéria de facto provada;

12.ª Os seguros contratualizados na óptica, na mente e na interpretação que a Recorrente sempre teve, eram de natureza contratual, obrigatória e cobriam todos os riscos;

13.ª Com o respeito devido, não tem aplicação ao caso dos autos a previsão dos Dec. Lei 312/2003 e 315/2009 alegados no douto acórdão do Tribunal da relação ….., aqui sob censura, porque não se está na presença de quaisquer animais perigosos ou potencialmente perigosos;

14.ª A Recorrente / LIN não teve qualquer responsabilidade directa ou indirecta pelo sinistro e por isso não pode responder solidariamente pelo excedente dos 85% que o A./Recorrida reclama.


E concluem: “deve o presente recurso de revista ser admitido, apreciado, provado e julgado procedente e consequentemente ser anulado o douto Acórdão da Relação de  …..  quanto  ao  seu  ponto  2o  que   condena   a   Lisnave Infraestruturas SA/Recorrente solidariamente por 15% da quantia de €350.000,00 (trezentos e cinquenta mil euros) e na mesma proporção relativamente à quantia que vier a apurar-se em sede de liquidação de sentença relativa aos montantes referentes a lucros cessantes e a danos emergentes com os limites das quantias peticionadas nos autos com o desconto do valor da franquia do Seguro, devendo confirmar-se a sentença proferida pela Primeira Instância”.


- A Ré Somague Engenharias, S.A. –

1.ª Do disposto no artigo 493.º, n.º 2, do CC resulta que a responsabilidade decorrente do exercício de actividades perigosas é uma responsabilidade com culpa presumida, ou seja, passível de ser afastada se o agente provar que fez tudo o que lhe seria exigível para evitar a ocorrência de danos.

2.ª A prova de que o agente adoptou as medidas necessárias a evitar a ocorrência de danos tem necessariamente de ter por referência medidas concretas passíveis de verificação e comprovação, não bastando concluir abstractamente que não foi ilidida a presunção de culpa sem que sejam identificadas as medidas cujo cumprimento, no caso concreto, não ficou provado.

3.ª O Tribunal a quo concluiu que a circunstância de constar do ponto 95) da matéria de facto provada que a obra estava dotada de um plano de segurança não constituía prova bastante de que a Recorrente tudo fez para evitar a ocorrência do acidente.

4.ª E não o fez porque, em rigor, nada de diferente poderia ter sido feito como, aliás, se comprova pela circunstância de o plano de segurança em questão, apesar de revisto e escrutinado após o sinistro, se ter mantido inalterado na sua execução e, que se diga, sem que se tenham verificado a existência de novos sinistro, o que é bem demonstrativo que o mesmo constituía o patamar máximo de segurança suscptível de ser implementado numa obra de execução técnica de inegável e tremenda complexidade.

5.ª Face ao exposto, o Tribunal a quo incorreu num erro na interpretação do disposto no artigo 493.º, n.º 2, do CC.

6.ª Tendo errado ao não considerar ilidida a presunção de culpa que sobre a Recorrente recaía, afastando a sua responsabilidade pela reparação dos danos causados, com as consequências jurídicas daí resultantes.

7.ª Ainda que assim não se entenda, haverá, em todo o caso, que concluir que o Tribunal a quo incorreu num erro na determinação da lei aplicável ao Contrato de seguro, que deverá ter-se por obrigatório.

8.ª Com efeito, os termos, condições e cobertura do Contrato de Seguro foram impostos pelo Estado português por estar vinculado à legislação à data em vigor, legislação essa que o Tribunal a quo não tomou em consideração.

9.ª Note-se que tanto a Base XXIV do Decreto-Lei n.º 297/97 como a Cláusula 31 da minuta do contrato de concessão celebrado entre o Estado português e a Lisnave que foi aprovada através da Resolução n.º 181/97 foram determinantes na redacção dos contratos subsequentes, e, bem assim, na redacção do caderno de encargos do projecto de construção do Hydrolift anexo ao contrato de empreitada celebrado entre a Lisnave e o consórcio Somague/ Sofomil – Sociedade Fornecedora de Máquinas Industriais, Lda..

10.ª Conforme decorre dos referidos preceitos, a realização de quaisquer actividades de desenvolvimento do estaleiro da Mitrena que tivessem lugar ao abrigo do referido contrato de concessão (entre as quais a construção do Hydrolift) deveriam estar cobertas por apólices de seguro, sob pena de não se poderem iniciar quaisquer obras ou trabalhos.

11.ª Assim, porque decidiu sem ter em conta o disposto nos preceitos acima referidos, o Tribunal a quo incorreu num erro na determinação da lei aplicável, devendo, nessa medida entender-se que se impunha decisão diversa, maxime, que concluísse pela natureza obrigatória do Contrato de Seguro.

12.ª Por último, refira-se que ao aplicar ao Contrato de Seguro o disposto no artigo 146.º da LCS sem tomar em consideração o convencionado pelas partes em matéria de assunção de responsabilidade pela seguradora, o Tribunal a quo errou na interpretação do referido preceito, ignorando a sua imperatividade relativa.

13.ª Com efeito, tendo as partes convencionado que, até ao limite do capital seguro e na proporção da sua quota-parte de risco assumido, a Fidelidade garantiria e liquidaria os custos de indemnizações exigidas ao segurado, outra não poderá ser a conclusão senão a de que as partes pretenderam que a seguradora fosse, nessa medida, exclusivamente responsável pela indemnização decorrente dos danos causados, ficando, assim, afastado qualquer regime de solidariedade e, por conseguinte, o regime do artigo 146.º, n.º 1, da LCS.

14.ª O acórdão da Relação de ….. radica numa má interpretação e aplicação do artigo 493º, nº 2 do CC, do Decreto-Lei n.º 297/97, e ao artigo 146 da LCS, razão pela qual se entende ser a presente revista admissível.


E conclui: “Nestes termos e nos mais de Direito deverá ser dado provimento ao presente recurso de revista e, consequentemente:

a) ser revogado o Acórdão proferido pelo Tribunal a quo e, em sua substituição, ser proferido Acórdão absolva a Recorrente dos pedidos contra ela formulados;

Subsidiariamente,

b) ser revogado o Acórdão proferido pelo Tribunal a quo e, em sua substituição, ser proferido Acórdão que confirme a decisão proferida pelo Tribunal de primeira instância”.

7. O Recorrido AA contra-alegou, pugnando pelo infundado da revista, formulando as seguintes (transcritas) conclusões:

1.ª Alega a Lisnave a sua ilegitimidade por ter contratado e transferido a responsabilidade da execução da obra para a Somague.

2.ª Atento o teor do contrato de seguro, que transfere a responsabilidade do dono da obra para a Império, e atento o teor do contrato de empreitada, no qual é à Lisnave como dono da obra, a definir e a encarregar o empreiteiro da execução da mesma, não se pode alhear a Lisnave da produção deste acidente, e absolver a mesma.

3.ª Assim, deve ser dado como provado que a Lisnave encarregou a Somague de realizar a obra, não se podendo, face a terceiros, alhear desta decisão.

4.ª De facto, o contrato de empreitada e as exclusões de responsabilidade da Lisnave tem efeitos internos entre as partes, mas não pode impor-se face a terceiros como a vítima, ora A.

5.ª Assim, a Lisnave deve ser solidariamente condenada com a Somague.

6.ª No presente sinistro, constata-se a existência de um seguro facultativo e, por isso, nunca poderia ser absolvido o próprio segurado, devendo segurado e segurador ser solidariamente demandados e condenados.

7.ª Dito de outra maneira, o legislador nacional não obriga o dono de uma obra a celebrar ou exigir aos empreiteiros um seguro de "All Risks". O presente contrato de seguro foi celebrado no âmbito da autonomia da vontade entre as seguradoras, os empreiteiros e o dono da obra, a fim de cobrir, de forma voluntária, riscos de uma empreitada perigosa e da realização de uma obra complicada.

8.ª O Tribunal de primeira instância, provavelmente atento o hábito de julgar acidentes de viação fez, ao presente sinistro, um raciocínio e uma aplicação analógica do regime do seguro obrigatório de responsabilidade civil decorrente de acidentes de viação, logo de seguro de responsabilidade civil obrigatório.

9.ª   Como referimos acima, a legitimidade passiva exclusiva da seguradora é uma situação somente prevista na lei para certos tipos de seguro, e tem por fim evitar que em todo e qualquer acidente de viação, ou acidente de trabalho, o autor tivesse que demandar simultaneamente o segurado, o causador e a seguradora.

10.ª Trata-se de uma situação excepcional, com um regime de legitimidade processual expressamente previsto na lei, que não se aplica ao presente caso.

11.ª Assim, e por ser um seguro facultativo, no qual a Lisnave e empreiteiros são segurados, devem responder, segurador e segurados, solidariamente pela totalidade dos danos causados.

12.ª A decisão não viola o artigo 483º do CC, sob a epígrafe "princípio geral":

1. aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação

2. Só existe obrigação de indemnizar independentemente de culpa nos casos especificados na lei.

13.ª Bem como o artigo 496º, 1, do CC: "na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito".

14.ª E ainda o artigo 564º, 2, do CC, que obriga a indemnizar os danos futuros, que são mais do que previsíveis no presente caso.

15.ª Acresce que o corpo humano, como bem juridicamente tutelado, é constitucionalmente protegido; de tal forma, que o artigo 25º da Constituição da República Portuguesa considera inviolável a integridade física dos cidadãos

16.ª Ora, estamos face a uma substancial restrição às possibilidades/oportunidades profissionais à sua disposição, constituindo, assim, fonte actual de futuros lucros cessantes, ou a situação de tal perda representa uma degradação do padrão de vida do lesado.

Em suma, requer-se seja mantido o presente Acórdão.

8. Cumpre apreciar e decidir.


II. Delimitação do objeto do recurso

Como é jurisprudência sedimentada, e em conformidade com o disposto nos artigos 635º, nº 4, e 639º, nºs 1 e 2, ambos do Código de Processo Civil, decorre que o objeto do presente recurso está circunscrito às seguintes questões:

 Recurso da Ré Lisnave Infraestruturas:

 - responsabilidade da Ré Lisnave Infraestruturas pelos danos decorrentes do acidente.


Recurso da Ré Somague Engenharias:

 - elisão da presunção de culpa prevista no artigo 493.º, n.º 2, do Código Civil;

 - condenação solidária das Rés.


III. Fundamentação

1. É a seguinte a factualidade dada como provada pelas instâncias:

1.1. O A., à data do acidente era trabalhador da Sadocivil – Empresa de Trabalho Temporário, Lda..

1.2. A Lisnave – Infraestruturas Navais, SA era a dona da obra onde o mesmo trabalhava e a Somague e a Sofomil, empreiteiras na mesma.

1.3. No dia 9/9/99, pelas 17h00, nos estaleiros da Lisnave – Infraestruturas Navais, SA, da Mitrena ocorreu um acidente em que foi interveniente o A..

1.4. No Tribunal de Trabalho de Lisboa correu termos o processo n.º53081/08.8TTLSB, referente ao acidente descrito nos presentes autos, tendo nesse processo sido fixada por sentença de 06.12.2002 uma pensão anual no valor de € 3053,98 a pagar pela Companhia de Seguros Bonança com início em 09.01.2001.

1.5. Em 02 de Fevereiro de 2004 foi firmado acordo, devidamente homologado nos autos de acidente de trabalho, entre o A. e a Imperio Bonança - Companhia de Seguros, S.A. tendo as partes acordado que face ao desejo de o A. regressar ao Brasil para junto da sua família, as partes acordavam em que a Companhia de seguros continuaria a «efectuar as prestações pecuniárias a que se encontra vinculada por sentença proferida nos autos;

1.6. Mais acordaram que «Para fazer face aos custos de assistência medica de que carece o 2.º outorgante designadamente despesas de cuidados de saúde de rotina (serviços de enfermagem, fisioterapia, consultas da especialidade, medicamentos, cadeiras de rodas, fraldas, algálias, almofadas anti-escaras e outros consumíveis necessários) é acordado um pagamento mensal de €1000,00.»; a efectuar em conjunto com a pensão por transferência bancaria;

1.7. Entre a R. Lisnave – Infraestruturas Navais, SA e as empresas consorciadas Somague e Sofomil foi celebrado um contrato de empreitada de “Construção do Hydrolift no Estaleiro da Mitrena”;

1.8. Do contrato de empreitada consta sob a epigrafe Disposições Gerais – Outros Encargos do Empreiteiro: 1.10.1.1 «O empreiteiro é o único responsável pelas indemnizações por perdas e danos e as despesas resultantes de prejuízos pessoais, doenças, impedimentos permanentes e/ou temporários ou morte, decorrentes ou relacionados com a execução dos trabalhos da empreitada; estas indemnizações e despesas abrangerão, obrigatoriamente, terceiros em actuação no local dos trabalhos, incluindo o próprio dono da obra e o concedente (…)»

1.9. (…) 1.10.1.2 «O empreiteiro é o único responsável pela reparação e indemnização de todos os prejuízos materiais que, por motivos a si imputáveis, sejam sofrido por terceiros, incluindo o próprio dono da obra e o concedente até à recepção da empreitada, designadamente os prejuízos materiais resultantes : a) Da actuação do pessoal do empreiteiro ou dos seu empreiteiros; b) Do deficiente comportamento dos equipamentos ou da falta de segurança nos trabalhos e/ou maquinas utilizadas como auxiliares na execução dos trabalhos (…)»

1.10. (…) 1.10.1.5 «O empreiteiro é o único responsável pelas coberturas dos riscos resultantes de circunstâncias fortuitas e/ou imprevisíveis e, bem assim, de quaisquer outras, para as quais o dono da obra não haja contribuído directa ou indirectamente.» (…)

1.11. Do contrato de empreitada consta sob a epigrafe 1.10.2.3 Seguro de Construção e Montagens (Seguro de Obras) que «O dono da obra contratou um seguro global de obras e montagens, do tipo CAR “Contractors All Risks”, incluindo responsabilidade extracontratual (…)»;

1.12. (…) «Neste seguro figuram como segurados o concedente, o dono da obra e os empreiteiros, incluindo subempreiteiros, fornecedores e montadores, exercendo a sua actividade no local do risco, para os trabalhos objecto do seguro.»

1.13. (…) «as franquias relacionadas com eventuais sinistros cuja responsabilidade lhe não seja imputável (…) serão cobradas a cada um dos empreiteiros e/ou outras empresas intervenientes na obra (…)»

1.14. Entre a R. Lisnave – Infraestruturas Navais, SA e a R. Companhia de Seguros Império Bonança (então denominada Companhia de Seguros Império, SA), foi celebrado um contrato de seguro titulado pela apólice nº …………61/07, em regime de co-seguro com a Ocidental – Companhia de Seguros, S.A., através do qual a primeira transferiu para a segunda a responsabilidade civil decorrente de todos os riscos resultantes da execução da empreitada.

1.15. A Apólice foi emitida em regime de Co-Seguro com distribuição de responsabilidades conforme documento anexo à apólice: 85%-Companhia de Seguros Imperio; 15% Ocidental Companhia de Seguros;

1.16. Da cláusula de Co-Seguro 20-B resulta que «Fica estabelecido que este contrato vigora em regime de co-seguro, entendendo-se como tal a assunção conjunta do risco por duas ou mais Seguradoras, denominadas co-seguradoras e de entre as quais uma é “leader”, através de um contrato único, com iguais garantias e período de duração e com um premio global.» (…). «O presente contrato é titulado por uma apólice única emitida pela Império SA na qualidade de “leader” (…)»;

1.17. Consta da clausula de co-seguro 20-B n.º 4 que «Os sinistros decorrentes deste contrato serão liquidados por cada uma das co-seguradoras pela importância proporcional à quota parte do risco que garantiu ou à parte percentual do capital assumido.»

1.18. O contrato de seguros celebrado tem como âmbito de cobertura «os danos materiais causados ao objecto seguro» e a «responsabilidade civil extra-contratual»;

1.19. São segurados, nomeadamente, a tomadora do seguro, a Lisnave – Infraestruturas Navais, SA, e «Todos os empreiteiros, sub-empreiteiros tarefeiros e/ou montadores e entidades fiscalizadoras a trabalharem para a obra objecto do seguro no local da sua realização ainda que não expressamente referidos e na medida dos seus interesses»;

1.20. Resulta do estipulado na Secção II – “Responsabilidade Civil” das Condições Particulares que o capital seguro para danos a terceiros é de PTE 1.000.000.000 como limite máximo de indemnização pelo período do seguro, com um sublimite de PTE 250.000.000 (€ 1.246.994,74), limite máximo de indemnização por sinistro;

1.21. A franquia para danos materiais a terceiros em geral foi fixada, por lesado, em PTE 250.000 (€ 1.246,99);

1.22. Das condições particulares da apólice resulta que no tocante à secção II (Responsabilidade civil extracontratual) são aplicáveis as condições Especiais a seguir indicadas: 002-Responsabilidade Civil Cruzada (…)»

1.23. Das condições especiais resulta que «002-Responsabilidade Civil Cruzada (…) a Seguradora não indemnizará o segurado ou terceiros ao abrigo desta clausula relativamente a (…) 3. Danos decorrentes de lesões corporais ou morte de empregados efetivos ou contratados temporariamente ao serviço do segurado que estejam ou devam estar seguros de acordo com o estabelecido na lei de Acidentes de Trabalho.»

1.24. Resulta do art.º 2 n.º 2 das Condições Gerais da Apólice que a seguradora garante as indemnizações que sejam exigidas ao segurado «(…) a título de reparação civil extracontratual em consequência de danos resultantes de lesões corporais e/ou materiais causados a terceiros em virtude de acidente directamente relacionado com a execução de trabalhos objecto do seguro e ocorridos no local do risco.»;

1.25. Foi intentada pelo A. contra Lisnave Infraestruturas Navais, SA, Somague Engª, SA e SOFOMIL – Sociedade Fornecedora de Máquinas Industriais, Lda. providência cautelar de arbitramento de compensação provisória com o n.º 7821/03.0TBSTB, apensada aos presentes autos, que terminou por acordo homologado judicialmente, em 05.01.2004, em que as requeridas Somague e Lisnave se comprometeram ao pagamento mensal a favor do A. da quantia de €750,00, sendo €500,00 pela Somage e €250,00 pela Lisnave Infra-Estruturas, pagamento que efectuam até ao momento;

1.26. Na sequência do acidente correu termos processo crime n.º 231/99......, tendo sido proferida decisão instrutória de não pronúncia dos arguidos, e o consequente arquivamento dos autos.

1.27. No dia do acidente, o A. exercia funções de manobrador de martelo pneumático e tinha como função picar com o martelo pneumático a secção de betão de onde se iriam erguer os paredões da doca

1.28. Nessa actividade, foi-lhe ordenado pelo encarregado da obra, que limpasse uma parte da muralha, na qual se encontrava um andaime;

1.29. Na construção em causa foram usados andaimes autoportantes;

1.30. Depois de se proceder à montagem de estrutura de ferro que é o “esqueleto” dos paredões laterais da doca, o andaime era movido para o troço seguinte até se construir a totalidade do paredão em ferro armado, sendo depois feita a cofragem e o enchimento em betão;

1.31. No dia 9/9/99 foi ordenado ao A. que fosse limpar o espaço em frente ao andaime, pois já tinha sido picado aquele troço.

1.32. O A. estava a realizar a tarefa descrita, entre os dois paredões e no meio da doca, quando o andaime situado à sua direita foi embatido pela carga da grua e tombou para o meio da doca caindo sobre o A.;

1.33. O A. ficou coberto de ferros e placas de ferro;

1.34. O andaime autoportante em causa era de ferro, com placas transversais também de ferro, tendo cerca de 30m de comprimento e 1m a 1,20m de largo;

1.35. A grua estava a transportar um molho de vergas de ferro com uma tonelada;

1.36. O acidente deu-se na área de construção civil da responsabilidade da Somague;

1.37. À Sofomil estava adjudicada a parte mecânica da obra que ainda não havia tido início, decorrendo os trabalhos preparatórios de construção civil

1.38. A Sofomil iniciou os trabalhos da parte mecânica em data posterior a 9 de Setembro de 1999.

1.39. O gruista levantou um feixe com varas de ferro;

1.40. Cabia aos funcionários da Somague a direcção e a execução da obra;

1.41. Imediatamente após a queda do andaime sobre si, o A. ficou inconsciente;

1.42. O A. foi transportado para o Hospital ………, sendo depois enviado para o Hospital de São José, onde foi operado em 29-06-99;

1.43. Em 16/09/99 foi operado no Hospital …….. (UVM), tendo-se procedido a estabilização da lesão vertebral com VSP D12/L2;

1.44. Em 22-10-1999 foi sujeito a nova intervenção, em virtude de infecção da cicatriz (lesão purulenta);

1.45. Em 29-11-99 o A. deu entrada no centro ….. e apresentava um quadro de paraplegia incompleta a nível motor L1 e a nível sensitivo L3;

1.46. O tónus era flácido nos membros inferiores;

1.47. O A. estava algaliado em drenagem contínua e tinha treino intestinal instituído em dias alternados com medicação;

1.48. O revestimento cutâneo apresentava foliculite na região do sacro e face posterior da perna direita;

1.49. Durante o internamento o A. realizou Exame de Raio X do Tórax;

1.50. E exame de Raio X à coluna dorso lombar, sequela da Fractura de L1, material de osteossíntese D12/L2 bem posicionado;

1.51. E raio X da bacia óssea sem alterações;

1.52. E ecografia – reno vesical;

1.53. E estudo urodinâmico;

1.54. E provas funcionais respiratórias;

1.55. Em 14-01-2000 foi dada alta ao A. do Centro……., estando o mesmo independente a nível de cadeira de rodas;

1.56. O A. foi instruído que tinha que auto-algaliar-se de 4 em 4 horas, sendo que ainda tinha perdas de urina à noite;

1.57. Ao A. foi indicada a reabilitação da função motora por períodos na área da residência;

1.58. E a reavaliação da função urológica de 6 em 6 meses;

1.59. Bem como consulta no Centro .......;

1.60. Em virtude da lesão o A. perdeu toda e qualquer mobilidade abaixo da vértebra L1, ou seja, sensivelmente abaixo da cintura;

1.61. O A. ainda não recuperou a mesma, nem tem perspetivas de a vir recuperar, apesar de ter feito fisioterapia;

1.62. Por causa desta lesão o A. perdeu o controle das suas funções urinárias e intestinais;

1.63. Pelo que para urinar teve que aprender a algaliar-se;

1.64. E para obrar teve que aprender a controlar o funcionamento intestinal por meio de medicação;

1.65. As lesões do A. não têm cura;

1.66. O A. nunca mais vai poder andar;

1.67. O A. não mexe, nem sente toda a parte inferior do corpo;

1.68. O A. tem que tomar especial cuidado nos locais onde se senta;

1.69. O A., dado não ter sensibilidade na parte do corpo abaixo da vértebra L1, pode-se queimar, cortar, ferir, sangrar, que nada sente, tendo queimado o pé direito ao tomar banho;

1.70. Daí que o A. tenha que realizar um exame diário do seu corpo com um espelho a fim de verificar o estado da pele;

1.71. O A. está especialmente sujeito a problemas de infeções urinárias e renais;

1.72. E à formação de escaras;

1.73. E a problemas respiratórios decorrentes da imobilidade das costas e da acumulação de secreções;

1.74. E edemas (inchaços) nas articulações;

1.75. E à calcificação das articulações;

1.76. Que causam grandes dores peri-articulares;

1.77. Bem como dores nas costas;

1.78. E retrações musculares;

1.79. E tem de auto mobilizar-se;

1.80. O A. necessita de assistência médica de revisão no mínimo anual;

1.81. O A. tem que usar sondas para retirar a urina;

1.82. E proceder a treino intestinal vesical;

1.83. O A. vai necessitar de tratamentos e assistência médica e medicamentosa futura, como medicamentos e algálias para obrar e urinar;

1.84. O A. tem como habitações literárias o 9º ano de escolaridade;

1.85. O A. sempre trabalhou em trabalhos manuais e como operador de máquinas;

1.86. Em virtude das lesões sofridas no acidente o A. não poderá trabalhar nessas actividades;

1.87. O A. está desde 09 de Janeiro de 2001 afectado de uma Incapacidade Parcial Permanente para o Trabalho de 60% com incapacidade absoluta para o trabalho habitual;

1.88. O A. após ter alta do centro ……foi internado num lar, Lar A ...., sito........nº .., ……;

1.89. O A. esteve no lar desde Junho de 2000 até Dezembro de 2003, com assistência de pessoal clínico e de enfermagem;

1.90. Que lhe davam de comer, faziam a cama, lavavam e tratavam de toda a sua roupa, comida e assistência;

1.91. O A. estava rodeado de idosos que, dado já não puderem viver sozinhos, tinham sido colocados tal como ele num lar, a fim de que outros tomassem conta deles;

1.92. Em Janeiro de 2004 o A foi transferido para o Lar ...... da ……;

1.93. O A. auferia à data do acidente a remuneração mensal de €324,22 (PTE 65.000,00) catorze vezes por ano;

1.94. Em 2003 era-lhe paga a pensão de € 254,50;

1.95. A obra em causa nos autos encontrava-se dotada de um plano de segurança;

1.96. O andaime era montado antes da própria estrutura de ferro;

1.97. Esta não tinha capacidade para suportar o andaime caso este caísse;

1.98. O A. foi seguido pelos Serviços clínicos da seguradora regularmente e de acordo com o plano estabelecido para os sinistrados paraplégicos, incluindo programas de fisioterapia, consultas de urologia e as demais consultas julgadas necessárias.

2. RECURSO DA RÉ LISNAVE.

Na 1.ª instância, a Ré Lisnave foi absolvida com a seguinte justificação:

“Excluída fica a responsabilidade por parte da R. Lisnave Infraestruturas Navais na medida em que de acordo com o contrato de empreitada de construção do hydrolift, celebrado entre as RR. Somague e Lisnave resulta que (Disposições Gerais – Outros Encargos do Empreiteiro: 1.10.1.1 ) «O empreiteiro é o único responsável pelas indemnizações por perdas e danos e as despesas resultantes de prejuízos pessoais, doenças, impedimentos permanentes e/ou temporários ou morte, decorrentes ou relacionados com a execução dos trabalhos da empreitada; estas indemnizações e despesas abrangerão, obrigatoriamente, terceiros em actuação no local dos trabalhos, incluindo o próprio dono da obra e o concedente (…)». Mais tendo as partes acordado que ((…)1.10.1.2 ) «O empreiteiro é o único responsável pela reparação e indemnização de todos os prejuízos materiais que, por motivos a si imputáveis , sejam sofrido por terceiros, incluindo o próprio dono da obra e o concedente até à recepção da empreitada, designadamente os prejuízos materiais resultantes : a) Da actuação do pessoal do empreiteiro ou dos seu empreiteiros; b) Do deficiente comportamento dos equipamentos ou da falta de segurança nos trabalhos e/ou maquinas utilizadas como auxiliares na execução dos trabalhos (…)».

No recurso de apelação, a condenação da Ré Lisnave foi sustentada nestes argumentos:

II. Atento o teor do contrato de empreitada, no qual é à Lisnave como dono da obra, a definir e a encarregar o empreiteiro da execução da mesma.

III. Não se pode assim alhear a Lisnave da produção deste acidente e absolver a mesma.

IV. Assim, deve ser dado como provado que a Lisnave encarregou a Somague de realizar a obra, não se podendo face a terceiros alhear desta decisão.

V. De facto, o contrato de empreitada e as exclusões de responsabilidade da Lisnave tem efeitos internos entre as partes, mas não pode impor-se face a terceiros como a vítima, ora A.

VI. Assim, a Lisnave deve ser solidariamente condenada com a Somague.


Por fim, no Tribunal da Relação, a condenação da Ré Lisnave respaldou-se na sentença da 1.ª instância, afirmando-se:

“Mas, como se disse, a sentença começou por enquadrar a actividade desenvolvida pelas RR. como sendo uma actividade perigosa, nos termos do art.º 493.º, n.º 2, Cód. Civil; logo, há presunção de culpa. (…)

A consequência disto é a inversão do ónus da prova o que, por sua vez, dita que, como acima se disse, a obrigação de indemnizar os danos só não existe se o lesante «mostrar que empregou todas as providências exigidas pelas circunstâncias com o fim de os prevenir».

E em nada vemos que alguma das RR. tenha demonstrado que tudo fez para que o acidente tivesse sido evitado.”


Pois bem.

O Acórdão do Tribunal da Relação interpretou erradamente a sentença, porquanto nela não se sustentou existir responsabilidade da ré Lisnave, dona da obra, por força da presunção de culpa prevista no artigo 493.º, n.º 2, do Código Civil.

Esta presunção de culpa, disse-o a sentença, recaía apenas sobre a Ré Somague, por isso que:

 - a fls. 27 a 34, tratou expressamente a questão da responsabilidade da Ré Somague à luz do artigo 493.º, n.º 2, do Código Civil, e concluiu “Desta feita, resta afirmar a verificação dos pressupostos de imputação do acidente à R. Somague por via da aludida presunção legal.”;

 - a fls. 35, tratou expressamente a questão da responsabilidade da Ré Lisnave à luz do contrato de empreitada, e concluiu “Pelo exposto, atenta a factualidade provada nenhuma responsabilidade poderá ser assacada à R. Lisnave.”

Bem ou mal interpretada a sentença, certo é que o Acórdão do Tribunal da Relação fundamentou a responsabilidade da Ré Lisnave no artigo 493.º, n.º 2, do Código Civil, que prevê “Quem causar danos a outrem no exercício de uma actividade, perigosa pela sua própria natureza ou pela natureza dos meios utilizados, é obrigado a repará-los, excepto se mostrar que empregou todas as providências exigidas pelas circunstâncias com o fim de os prevenir”.

Fundamento este com que não se pode concordar:

- A Ré Lisnave, na qualidade de dona da obra, e a Ré Somague, na qualidade de empreiteira, celebraram contrato de empreitada e, na execução da obra contratada, cuja direção estava a cargo da Ré Somague, o encarregado ordenou ao manobrador do martelo pneumático a realização de tarefa da qual veio a resultar o acidente dos autos – factos provados 2, 7, 27, 28, 31, 32, 36 e 40 –, não se descortinando, por isso, qualquer autoria da Ré Lisnave (ou domínio da ação) no exercício da necessária atividade perigosa contida naquela norma;

-  A responsabilidade da Ré Somague, empreiteira, sustentada pelas instâncias no artigo 493.º, n.º 2, do Código Civil, não se comunica à Ré Lisnave, dona da obra: estando a direção da obra a cargo exclusivamente a Ré Somague – facto provado 40, não existe co-autoria, para efeito do disposto no artigo 490.º, do Código Civil, ou relação jurídica de comissão (que responsabilize o comitente pelos atos do comissário) – artigo 500.º do Código Civil e Acórdãos do STJ de 15-03-2001 (Revista n.º 3855/00), de 15-03-2001 (Revista n.º 3/01), de 11-10-2005 (Revista n.º 2139/05), de 13-12-2007 (Revista n.º 3550/07), de 04-03-2008 (Revista n.º 164/08), de 19-04-2012 (Revista n.º 2455/06.0TBSTS.P1.S1), de 13-11-2012 (Revista n.º 127/07.8TVLSB.L1.S1), de 07-04-2011 (Revista n.º 5606/03.3TVLSB.L1.S1), de 20-09-2016 (Revista n.º 3322/09.1TBLRA.C1.S1);

- A dona da obra Lisnave não assumiu, no contrato de empreitada, a responsabilidade civil extracontratual da empreiteira Somague perante terceiros por atos decorrentes da execução da obra, antes nele se consignando que “1.10.1.1 O empreiteiro é o único responsável pelas indemnizações por perdas e danos e as despesas resultantes de prejuízos pessoais, doenças, impedimentos permanentes e/ou temporários ou morte, decorrentes ou relacionados com a execução dos trabalhos da empreitada; estas indemnizações e despesas abrangerão, obrigatoriamente, terceiros em actuação no local dos trabalhos, incluindo o próprio dono da obra e o concedente (…) 1.10.1.2 - O empreiteiro é o único responsável pela reparação e indemnização de todos os prejuízos materiais que, por motivos a si imputáveis, sejam sofrido por terceiros, incluindo o próprio dono da obra e o concedente até à recepção da empreitada, designadamente os prejuízos materiais resultantes : a) Da actuação do pessoal do empreiteiro ou dos seu empreiteiros; b) Do deficiente comportamento dos equipamentos ou da falta de segurança nos trabalhos e/ou maquinas utilizadas como auxiliares na execução dos trabalhos (…) – factos provados 8. e 9.

A propósito desta previsão contratual, o Acórdão do STJ de 30-01-1997 (Processo n.º 483/96), foi inclusivamente mais longe, decidindo que “(…) Tendo ficado expressamente regulado entre as partes o regime de responsabilidade civil extracontratual, com atribuição desta à empreiteira, excluída fica a responsabilidade do dono da obra por acidente surgido durante a execução da mesma e que vitime um terceiro”; entendimento que não foi seguido (atento o princípio da relatividade dos contratos, cf. artigo 406.º, n.º 2, do Código Civil, e a não oponibilidade a terceiro de cláusulas de exclusão de responsabilidade) no Acórdão do STJ de 09-07-2015 (Revista n.º 385/2002-E1-S1), onde se acentuou que “(…) Independentemente dos acordos internos de repartição da responsabilidade civil pela ocorrência de sinistros, ambas as entidades respondem solidariamente perante o lesado que foi vítima de acidente na ocasião em que se efectuava uma manobra de deslocação da cofragem com utilização de uma das auto-gruas” (de salientar que a responsabilidade solidária em causa decalcou-se sobre uma relação de comissão entre um ACE e uma outra empresa, não sendo alguma delas dona da obra).  


O caso em apreço apresenta alguma analogia com o decidido no Acórdão do STJ de 09-07-2015 (Revista n.º 102/05.7TVLSB.E1.S1). Tratava-se de a execução de um contrato de empreitada de construção de um viaduto que colapsou originando a morte de um trabalhador. O STJ entendeu absolver a dona da obra com os seguintes argumentos levados ao sumário respetivo: “III - E tratando-se de matéria que deve ser apreciada casuisticamente, parece não haver dúvidas que a execução de uma obra naquelas circunstâncias, utilizando uma plataforma de estrutura de cimbre a cerca de 35 metros de altura, se possa qualificar como o exercício de uma actividade perigosa, para os efeitos do n.º 2 do art. 493.º do CC.  (…) V - E não se provando uma relação de comissão, significa que a construtora que estava a executar a obra, como empreiteira, surge, aqui, não como mandatária do dono da obra/concessionária, mas antes agindo, diversamente, com inteira autonomia na respectiva execução, escolhendo os meios e utilizando as regras de arte que tenha por próprias e adequadas para cumprimento da exacta prestação correspondente ao resultado contrato, sem qualquer vínculo de subordinação ou relação de dependência.  VI - Face à perigosidade da obra que estava a ser executada, revela-se pertinente e adequado invocar o art 493.º, n.º 2, do CC.  VII - A ré, como dona da obra, podia ser responsabilizada por faltas ao nível da concepção da obra, ou por inobservância dos seus deveres de fiscalização, nomeadamente ao nível da segurança.  VIII - Aconteceu que, relativamente à matéria de segurança e fiscalização, em que a ré podia ser responsabilizada, nada se apurou, pelo contrário, veio até a ser absolvida no processo contra-ordenacional que lhe foi movido a esse respeito na sequência do acidente. IX - O acidente em causa, conforme resulta da factualidade provada, ocorreu no âmbito da actividade de construção civil que a empreiteira levava a cabo, não resultando da mesma matéria de onde se possa inferir que a ré tenha tido à luz dos apontados critérios legais uma actuação culposa ou que tenha tido qualquer outra intervenção que de alguma forma tenha concorrido culposamente para o dano.  X - E não se provando da parte da ré matéria que integre da sua parte uma actuação culposa para o dano, nem que tenha tido qualquer outra intervenção que por alguma forma tenha concorrido culposamente para o acidente, não pode a mesma ser responsabilizada na base da presunção do n.º 2 do art. 493.º do CC e, isto, porque a presunção legal de culpa constante do art. 493.º, n.º 2, do CC não se lhe aplica.  XI - No caso dos autos, seria sobre a empreiteira, construtora, que estava a executar a obra nos termos acima descritos, que recaía a presunção legal da culpa constante do citado art. 493.º, n.º 2, relativamente a danos causados pelo manuseamento e utilização da aludida plataforma de cimbre e não sobre a concessionária, dona da obra”. 


Pelo exposto, na falta de qualquer fundamento jurídico que sustente a co-reponsabilidade da Ré Lisnave, impõe-se a procedência do primeiro recurso e a absolvição da Ré Lisnave dos pedidos.


3. RECURSO DA RÉ SOMAGUE.

Elisão da presunção de culpa prevista no artigo 493.º, n.º 2, do Código Civil.

A Ré Somague não discute que a responsabilidade pelo acidente ocorrido lhe seja assacada por força do disposto no artigo 493.º, n.º 2, do Código Civil, isto é, que: 

- primeiro, em termos subjetivos, ocupe a posição ativa prevista na norma (“Quem”); e,

 - segundo, em termos objetivos, os danos produzidos no Autor tenham decorrido do “exercício de uma atividade, perigosa pela natureza dos meios utilizados”, pelo que tais premissas, assumidas no Acórdão recorrido e não problematizadas no recurso de revista (quando a Recorrente o poderia ter feito), devem ter-se por adquiridas.

A Recorrente, tão só manifesta entendimento contrário ao trilhado no Acórdão recorrido quanto à segunda parte daquela norma, ou seja, ao segmento “exceto se mostrar que empregou todos as providências exigidas pelas circunstâncias com o fim de os prevenir”.

Mais concretamente, a recorrente entende que “a prova de que o agente adoptou as medidas necessárias a evitar a ocorrência de danos tem necessariamente de ter por referência medidas concretas passíveis de verificação e comprovação, não bastando concluir abstractamente que não foi ilidida a presunção de culpa sem que sejam identificadas as medidas cujo cumprimento, no caso concreto, não ficou provado” e, que “O Tribunal a quo concluiu que a circunstância de constar do ponto 95) da matéria de facto provada que a obra estava dotada de um plano de segurança não constituía prova bastante de que a Recorrente tudo fez para evitar a ocorrência do acidente”.


Apreciando, desde já se dirá que a Recorrente não tem qualquer razão.

A interpretação literal, e coerente com a inversão do ónus da prova aí consagrado, do disposto na segunda parte do n.º 2 do artigo 493.º do Código Civil, comporta o sentido de fazer recair sobre a parte presumidamente culpada o ónus de alegar e provar as providências concretamente adotadas e adequadas à prevenção dos danos associadas ao perigo da atividade desenvolvida e, por consequência, de afastar a culpa – artigos 342.º e 343.º, ambos do Código Civil, não havendo como desviar para o Tribunal a tarefa, complementar à conclusão da não elisão da presunção, de elencar as medidas específicas a adotar no caso.

Ao Tribunal reserva-se apenas a função de, perante a inversão do ónus da prova, escrutinar o cumprimento pela parte presumidamente culpada da alegação e da prova de factos demonstrativos da ausência de culpa e não o de se lhe substituir elencando ele mesmo esses factos (omitidos). 

Neste contexto, a mera prova de que “95) A obra em causa nos autos encontrava-se dotada de um plano de segurança” mostra-se insuficiente para concretizar a elisão da presunção de culpa, porque se desconhecem em absoluto as medidas concretas, previstas e executadas ao abrigo de tal plano, aptas a prevenir a eclosão de danos comummente associados ao perigo da atividade perigosa de manuseamento de grua com martelo pneumático para, daí, se poder sustentar a ausência de culpa efetiva da Ré Somague.

É que, traduzindo-se o juízo de culpa, ou de ausência de culpa, na problematização ético-jurídica do comportamento, ativo ou omissivo, do lesante, sempre o mesmo não se pode desgarrar de factos concretos concludentes da censura ou da não censura do comportamento daquele, no que a consagração de genérico “plano de segurança” se mostra inócuo.


E este tem sido o entendimento perfilhado pelo STJ.

Assim, a respeito da elisão da presunção de culpa prevista no artigo 493.º, n.º 2, do Código Civil, assumiu-se:

- no Acórdão do STJ de 12-09-2013 (Revista n.º 1626/07.7TBPMS.C1.S1) que “(…) Inexistindo nos autos factos que permitam concluir que a torre caiu por causas exteriores à atuação dos funcionários da ré e que esta empregou todas as providências exigidas pelas circunstâncias – antes tudo indicando que os funcionários desta se limitaram a olhar para a torre sem fazer qualquer exame preliminar sobre a segurança da operação do seu escalamento, não havendo até quaisquer indícios que tivessem competência para avaliar dessa segurança –, é de concluir que a ré, não só não conseguiu ilidir a presunção de culpa que sobre si recaía, como agiu ainda com culpa efectiva (na medida em que face às circunstâncias, podia e devia ter agido de outro modo)”;

- no Acórdão do STJ de 09-07-2015 (Revista n.º 385/2002.E1.S1), que “A elisão de tal presunção não se basta com o exercício do ónus de contraprova relativamente às causas do sinistro, exigindo a prova de factos que, pela positiva, permitam concluir que a empresa fornecedora das auto-gruas empregou todas as providências exigidas pelas circunstâncias com o fim de prevenir a ocorrência de danos”;

 - no Acórdão de 23-04-2020 (Revista n.º 1850/17.4T8AVR.P1.S1), que “de acordo com a orientação tradicional, cabe ao presumido culpado fazer prova de factos que demonstrem uma conduta diligente da sua parte; e, de acordo com a posição que mais recentemente se vem afirmando na doutrina e na jurisprudência, lhe cabe fazer prova da causa estranha à esfera do vinculado que, interferindo com o curso normal das coisas, desencadeou o processo causal conducente à lesão danosa”.  


Mesmo sendo sensível à observação feita no Acórdão do STJ de 07-04-2016 (Revista n.º 7895/05.0TBSTB.E1.S1) - ou seja, de que “Não sendo possível provar directamente a observância de todas as cautelas necessárias, só por via indirecta se conseguirá satisfazer o ónus liberatório, demonstrando-se que a causa real do evento lesivo é alheia à esfera de risco do exercício da actividade perigosa”, constata-se que a Ré Somague não logrou provar, como alegara, que “o embate da grua no andaime deu-se em virtude de um golpe de vento” (facto não provado).

De onde, não tendo sido afastada a presunção de culpa prevista no artigo 493.º, n.º 2, do Código Civil, improcede a desresponsabilização da Ré Somague.


Condenação solidária das Ré Somague e da Ré Seguradora.

No Acórdão da Relação a condenação solidária da Ré Somague e da Ré seguradora Fidelidade foi justificada no facto de a obrigatoriedade do contrato de seguro celebrado não determinar a exclusão da responsabilidade do tomador do seguro, porque a regra prevista no artigo 64.º do Decreto-Lei n.º 291/2007 tem carácter especial e só se aplica aos acidentes de viação, não sendo legítima a sua aplicação analógica a outros seguros.


Diferentemente, a Recorrente defendeu a natureza obrigatória do Contrato de Seguro e a consideração do convencionado pelas partes em matéria de assunção de responsabilidade pelo segurador: tendo as partes convencionado que, até ao limite do capital seguro e na proporção da sua quota-parte de risco assumido, a Fidelidade garantiria e liquidaria os custos de indemnizações exigidas ao segurado, outra não poderia ser a conclusão de que as partes pretenderam que a seguradora fosse exclusivamente responsável pela indemnização decorrente dos danos causados, ficando, assim, afastado qualquer regime de solidariedade e, por conseguinte, o regime do artigo 146.º, n.º 1, da LCS.


Vejamos.

A Ré Somague é responsável pelos danos causados ao lesado no exercício da atividade perigosa – artigo 493.º, n.º 2, do Código Civil, e a Ré Fidelidade é responsável nos termos do contrato de seguro celebrado pela Ré Lisnave – artigo 406.º, n.º 1, do Código Civil, existindo, entre elas e perante o lesado, uma situação de solidariedade imperfeita – artigo 497.º, n.º 1, do Código Civil e Vaz Serra, RLJ 99-55 e Leite de Campos, Seguro da Responsabilidade Civil Fundada em Acidentes de Viação, 84 e segs.

Quer isto dizer que, por um lado, o lesado pode exigir o cumprimento a qualquer dos devedores - artigos 518.º e 519.º do Código Civil, propondo a ação contra o segurado ou contra a seguradora (neste caso até aos limites do capital seguro), ou contra ambos em simultâneo, como ocorreu no caso, em litisconsórcio voluntário; por outro lado, e como refere aquele último autor, não se trata de uma solidariedade perfeita “por, nas relações internas, não recair qualquer responsabilidade sobre o segurado perante a seguradora, e pela circunstância de a dívida do segurado ter a sua fonte na responsabilidade civil, enquanto a da seguradora é de origem contratual”.

O argumento de que, por o contrato de seguro ser obrigatório, apenas responde a seguradora perante o lesado não é juridicamente viável:

 - a regra é a de que, havendo vários responsáveis, a obrigação é solidária – artigo 497.º, n.º 1, do Código Civil (a solução mantém-se mesmo ante a redação algo ambígua do artigo 146.º da LCS, cf. Margarida Lima Rego, Contrato de Seguro e Terceiros, pág. 686; José Vasques, Lei do Contrato de Seguro Anotada, 415.);

 - a exceção unicamente está prevista para o seguro automóvel, a qual, por ter natureza excecional, não comporta aplicação analógica – artigos 29º do DL 522/85, de 31/12, e, atualmente, artigo 64º do DL 291/2007, de 21/8) e 11.º do Código Civil.

- cf. Acórdão do STJ de 03-05-2016 (Revista n.º 613/08.2TBSSB.E1.S1), com o seguinte sumário:

“I - No âmbito do seguro obrigatório de responsabilidade civil por detenção de animal perigoso ou potencialmente perigoso (previsto no art. 13.º do DL n.º 312/2003, de 17-12 – então vigente – e regulamentado pela Portaria n.º 585/2004, de 29-05; constando os cães de raça “rottweiller” da lista anexa à Portaria n.º 422/2004, de 24-04), a cláusula segundo a qual aquele não abrange as reclamações por “danos causados pela inobservância das disposições legais em vigor que regulamentem a detenção de animais de companhia” é oponível a terceiro, não tendo cabimento a aplicação analógica do regime do seguro de responsabilidade civil automóvel, pois, como decorre do art. 147.º da Lei do Contrato de Seguro (aprovada pelo DL n.º 72/2008, de 16-04), o legislador repeliu claramente uma solução oposta.  (…)

V - Não sendo de convocar o regime do contrato de seguro de responsabilidade civil automóvel e tratando-se de obrigações solidárias, a lesada pode exigir o cumprimento a qualquer dos devedores (demandando-os, como fez, em litisconsórcio voluntário), sendo que a seguradora apenas responderá até ao limite do seguro”. 


 Improcede, pois, também esta questão.


IV. Decisão

Posto o que precede, acorda-se a:

- conceder a revista, quanto ao recurso interposto pela Ré LISNAVE, e, em consequência, revoga-se o Acórdão recorrido, absolvendo-se esta Ré dos pedidos contra si formulados;

- negar a revista, quanto ao recurso interposto pela Ré Somague e, em consequência, confirma-se o Acórdão recorrido nesta parte.

Custas pela Recorrente Somague e pelo Recorrido, na proporção de metade.


Lisboa, 22 de junho de 2021


Pedro de Lima Gonçalves (relator)   

Fátima Gomes           

Fernando Samões

Nos termos do disposto no artigo 15.º-A do decreto – Lei n.º20/2020, de 1 de maio, declara-se que têm voto de conformidade os Senhores Juízes Conselheiros Adjuntos Fátima Gomes e Fernando Samões.