Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
5043/16.0T8STB.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: SALAZAR CASANOVA
Descritores: JUSTIFICAÇÃO NOTARIAL
IMPUGNAÇÃO
LEGITIMIDADE
INTERESSE EM AGIR
INTERESSADO
ÓNUS DE ALEGAÇÃO
REGISTO PREDIAL
PRESUNÇÃO
USUCAPIÃO
MUNICÍPIO
Data do Acordão: 06/29/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - DIREITOS REAIS / USUCAPIÃO / DIREITO DE PROPRIEDADE.
DIREITO DOS REGISTOS E NOTARIADO - REGISTO PREDIAL - ACTOS NOTARIAIS EM ESPECIAL ( ATOS NOTARIAIS EM ESPECIAL ) / ESCRITURAS ESPECIAIS / JUSTIFICAÇÕES NOTARIAIS.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 1341.º.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGO 30.º, N.º 2.
CÓDIGO DO NOTARIADO (CNOT): - ARTIGOS 89.º, N.º 1, 92.º, N.º 2, 101.º, N.º 1.
CÓDIGO DO REGISTO PREDIAL (CPRD): - ARTIGOS 2.º, N.º 1, ALÍNEA A), 3.º, N.º 1, ALÍNEA A), 7.º, 8.º, 116.º, N.º 1, 101.º, N.º 1, ALÍNEA G).
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

-DE 3-7-2003, PROCESSO N.º 03B2066, EM WWW.DGSI.PT .
-DE 11-11-2010, PROCESSO N.º 33/08.
-DE 12-1-2012, PROCESSO N.º 880/08.1TBVRS.E1.S1.

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ACÓRDÃO UNIFORMIZADOR DE JURISPRUDÊNCIA DO N.º 1/2008, DE 4-12-2007, D.R., N.º 63, I SÉRIE, DE 31-3-2008.
Sumário :
I - O interessado na impugnação da justificação notarial a que se alude no artigo 101.º do Código do Notariado pode ser quem invoque direito cujo exercício pode ser posto em causa se não for posto termo à situação de dúvida desencadeada pela incrição no registo do direito reconhecido mediante justificação notarial.

II - No entanto, para que se admita a impugnação por parte de quem não goza de direito oposto ao que beneficia da presunção derivada do registo nos termos do artigo 7.º do Código do Registo Predial, há de ser alegada factualidade que evidencie que o interesse salvaguardado pelo direito do impugnante é igual ou, pelo menos, equivalente ao do direito que foi objeto de justificação notarial.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


1. O Município de S... propôs ação declarativa de mera apreciação negativa contra a Santa Casa da Misericórdia de S... pedindo que se reconheça não ter a ré adquirido, por usucapião, a propriedade do prédio identificado no artigo 2.º supra - prédio urbano com a área coberta de 396,10m2 composto por edifício de alvenaria coberto a telha, destinado a balneário público com dois anexos situados na Rua do B... na freguesia de ..., concelho de Setúbal, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 1...33.º dessa freguesia com o valor patrimonial de 310.090,00€ - por nunca ter exercido uma posse jurídica com virtualidades usucapientes sobre o mesmo, devendo, como tal, ser ordenado o cancelamento da abertura de descrição e inscrição do direito a favor do réu que este promoveu na Conservatória do Registo Predial de S... com base na justificação notarial que assim se impugna.

2. Alegou a autora que o imóvel faz parte da denominada Cerca Pequena do Convento de ... que se integra no património do Estado, por reversão operada para o Estado pelo Decreto-Lei n.º 49/84, de 10 de maio, reversão prevista desde que deixasse de ser afetado o dito imóvel a funcionamento como Hospital conforme artigo 2.º do Decreto das Cortes de 22 de dezembro de 1892.

3. Por protocolo celebrado entre a Direção Regional da Cultura de Lisboa e Vale do Tejo e o Município de S... foi cedido a este, com o fim de neles instalar o Museu da Cidade, o Convento de ..., incluindo o Claustro, Sala do Capítulo, Coro Alto, Igreja e terrenos adjacentes, designados por Cerca Pequena e Cerca Grande, pelo prazo de 20 anos, com condição de efetivação de um investimento de 3.560.00,00€ com as obras de recuperação e reabilitação daquele conjunto histórico sendo tal prazo prorrogável por um período suplementar de 10 anos na condição de entretanto o Município realizar um investimento de 2.840.000,00€, tendo o Município efetivado já o primeiro daqueles investimentos que permitiu a reabertura ao público do Museu nos claustros do Convento.

4. O Balneário cuja propriedade a ré reclama foi inequivocamente edificado na denominada "Cerca Pequena" do Convento de ..., ou seja, em propriedade do Estado.

5. O Município, com base no aludido Protocolo, é cessionário temporário do conjunto do Convento de ... com a composição referida (Igreja, Convento, Cerca Pequena anexa ao Convento, destinado a recreio das religiosas, Cerca Grande ou Horta) com a obrigação de desenvolver projetos de investimento para a sua recuperação e reabilitação, destinando-se o segundo investimento previsto no aludido Protocolo a beneficiar a área da "Cerca Pequena" e todas as edificações que nesta se inserem.

6. Mais alegou o Município que, para desenvolver os projetos que, em cumprimento das obrigações do protocolo depende o alongamento do prazo de cedência, não pode ele estar dependente de eventuais reivindicações por parte da Santa Casa da Misericórdia do edifício do Balneário ... e que, para obter e prosseguir os processos de candidatura a fundos comunitários para a realização desses investimentos, não podem existir quaisquer dúvidas de que os mesmos irão beneficiar os bens do Estado cujo uso lhe foi cedido.

7. É, assim, imprescindível, para o prosseguimento das atuações programadas pelo Município, em termos de recuperação do património histórico da cidade que nenhumas dúvidas se suscitem de que nenhum direito, nomeadamente aquele que registou a seu favor, tem a Santa Casa da Misericórdia sobre o edifício do Balneário ... já que este integra o património do Estado.

8. E embora o Município não tenha legitimidade para reivindicar o reconhecimento desse direito de propriedade a favor do Estado - o que não é o objeto da presente ação - ele tem interesse direto em que seja reconhecido, através da presente ação de mera apreciação negativa que, por não se ter verificado qualquer posse jurídica pela ré do Balneário ... (aliás nos últimos anos nem sequer posse material), a ré não adquiriu por usucapião o direito de propriedade sobre tal edifício.

9. Por sentença, de que a autora interpôs o presente recurso per saltum para o Supremo Tribunal de Justiça, o autor foi julgado parte ilegítima e a ré absolvida da instância.

10. A autora concluiu a minuta de recurso nos seguintes termos:

a) Numa ação para impugnação de uma justificação notarial do direito de propriedade, com a estrita natureza de ação de simples apreciação negativa, peticionando-se a declaração e; reconhecimento da não existência do direito justificado, não é forçoso ou, necessário formular um pedido de declaração e reconhecimento da existência de qualquer outro direito que deva considerar-se existente após o vazio resultante da procedência da impugnação.

b) Embora os factos alegados na petição inicial para sustentar a inexistência do direito notarialmente justificado possam conduzir à conclusão do ser o Estado proprietário do imóvel em causa, o A. não formula qualquer pedido de reconhecimento do direito de Estado ou de outrem sobre o imóvel e, como é reconhecido pela jurisprudência, é pela forma como o 'pedido e a causa de pedir são formulados, que se deverá aferir a legitimidade processual.

c) Nos termos dó disposto no artigo 101.º do Código de Notariado, a justificação notarial pode ser impugnada por qualquer "interessado", entendido este nos termos aplicáveis à definição da legitimidade processual, ou seja, é "interessado" o titular de uma relação jurídica ou direito que possa ser afetado pelo facto justificado, não sendo necessário ou indispensável, ao contrário do que parece ter sido o entendimento da Meritíssima Juíza "a quo", que tal direito ou relação jurídica tenha uma natureza real oposta ao direito real justificado.

d) Ao Município foi concedida a gestão do conjunto do Mosteiro de ..., que inclui a Cerca Pequena onde, inequivocamente, se situa a construção objeto de disputa, pelo prazo de 20 anos prorrogável, para aí instalar e manter o Museu Municipal, pelo que tem um interesse direto e legítimo em impugnar a justificação notarial efetuada, já que o direito justificado colide com os seus direitos enquanto concessionário da gestão do Mosteiro de ....

e) Tendo, consequentemente, interesse direto e legítimo em impugnar tal justificação, já que é titular de uma relação jurídica de natureza administrativa, que o investe em amplos direitos e obrigações relativamente ao bem objeto do direito justificado, que com este colidem.

f) Assim, não pedindo o A., no presente processo, o reconhecimento de qualquer direito do Estado sobre o bem, para o que, obviamente, não teria legitimidade processual, mas limitando-se exclusivamente a solicitar a apreciação negativa do direito justificado, e a declaração da sua inexistência, tem patente interesse dada a sua relação jurídica com o bem objeto da justificação em que proceda a impugnação, devendo ser, como tal, considerado parte legítima para a ação.

g) Ao assim não decidir, a douta sentença recorrida fez uma errada interpretação e aplicação do disposto no art. 101° do Código, do Notariado e do artigo 30.º do NCPC.

h) Dado que a matéria do presente recurso se circunscreve a uma questão do direito, requer, nos termos do disposto no art. 678° n.° 1 do NCPC, que o mesmo suba, "per saltum", para o Supremo Tribunal de Justiça.

Nestes termos e nos mais de direito,

Deve ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se a douta sentença recorrida e declarando-se a legitimidade processual do recorrente para que com ele prossigam os autos os seus ulteriores termos, como é de Justiça.

11. Por sua vez a recorrida concluiu a minuta de contra-alegações nos seguintes termos:

a) O recorrente Município de S... apresenta como fundamento do recurso o pressuposto de que em ação de impugnação de justificação notarial do direito de propriedade não é necessário que o impugnante ("interessado") seja titular de uma relação jurídica de natureza real oposta ao direito real justificado bastando ser titular de uma relação jurídica administrativa que colida com o direito justificado.

b) Imputa assim à sentença recorrida a violação do artigo 101.º do Código do Notariado por errada interpretação do conceito de interessado nele contido.

C) Na ação dos autos o ora recorrente, então autor, pretendeu impugnar a escritura de justificação outorgada pela recorrida Santa Casa da Misericórdia de S... através da qual se justifica o direito de propriedade adquirido por usucapião do prédio urbano ali descrito.

D) Invoca como facto gerador da sua legitimidade para tal impugnação, o ser cessionário temporário do Convento de ..., estando o prédio usucapido situado na Cerca Pequena, alegando o seu interesse no concurso a fundos comunitários para desenvolver projetos de investimento para a sua recuperação e reabilitação.

E) Tal prédio (Convento de ...) é propriedade do Estado Português.

F) A justificação notarial destina-se a permitir que os proprietários de prédios que não disponham de título que prove o seu direito de proceder à sua inscrição no Registo Predial nomeadamente quando é invocada a usucapião como forma de aquisição do direito de propriedade.

G) O facto ou direito justificado é suscetível de impugnação judicial conforme o prevê o artigo 101.º do Código do Notariado por algum interessado.

H) Da conjugação do artigo 89.º com o artigo 101.º do Código do Notariado não pode deixar de se concluir que em primeira linha o interessado na impugnação será quem foi excluído da potencial titularidade do direito justificado.

I) O recorrente não tem qualquer pretensão à aquisição do prédio e não tem qualquer direito incompatível com o direito justificado, já que não é nem nunca foi possuidor do prédio usucapido.

J) Da integração da aquisição de propriedade por usucapião na disciplina dos direitos reais torna claro que o enquadramento da situação dos autos e a pretensão do recorrente nada tem a ver com a utilização do prédio usucapido e não resulta de uma relação jurídica real.

K) Não sendo a relação da recorrente com a recorrida uma relação jurídica real, pois não está em causa a resolução de conflito entre direitos reais, é de concluir que a sua posição jurídica se coloca fora da relação jurídico-privada dos direitos reais.

L) E estando consubstanciada apenas em interesses de ordem administrativa e política, está por isso excluída da possibilidade de impugnação da aquisição de propriedade da recorrida sobre o imóvel dos autos por usucapião.

M) Está, pois, o recorrente excluído do conceito de "interessado" contido no artigo 101.º do Código do Notariado.

N) Não tendo, pois, legitimidade substantiva para a ação de impugnação pois não é proprietária do prédio objeto de justificação, nem o pretende reivindicar, não sendo titular de uma relação jurídica real.

O) Deve, pois, ser negado provimento ao recurso como é de Justiça.

Apreciando

12. A questão que se suscita é a de saber se o autor tem legitimidade, rectius interesse em agir, para impugnar a justificação notarial de 9 de setembro de 2013 por via da qual a ré declarou ter adquirido por usucapião, com efeitos retroativos à data de mil novecentos e vinte e dois, o direito de propriedade sobre o prédio que é objeto da referida escritura considerando que não é o proprietário do aludido imóvel.

13. A justificação, a que alude o artigo 89.º/1 do Código do Notariado, para os efeitos do n.º1 do artigo 116.º do Código do Registo Predial, consiste na declaração, feita pelo interessado, em que este se afirme, com exclusão de outrem, titular do direito que se arroga, especificando a causa da sua aquisição, e referindo as razões que o impossibilitam de comprovar pelos meios normais.

14. O artigo 101.º do Código do Notariado prescreve no n.º 1 que " se algum interessado impugnar em juízo o facto justificado deve requerer simultaneamente ao tribunal a imediata comunicação ao notário da pendência da ação".

15. Não limita a letra da lei a qualidade de interessado àquele que invoca ser proprietário do imóvel cuja justificação notarial pretende impugnar. A lei também não limita ao pretenso titular do direito a legitimidade para outorgar como justificante, pois tal legitimidade é conferida a quem "demonstre ter legítimo interesse no registo do respetivo facto aquisitivo, incluindo, designadamente, os credores do titular do direito justificando" (artigo 92.º/2 do Código do Notariado).

16. A lei também não impõe que o impugnante, ainda que invoque a qualidade de proprietário, deduza pedido para se declarar ser ele e não o impugnado o proprietário do imóvel; a procedência da ação implica o cancelamento do registo de propriedade a favor do justificante (artigos 2./1, alínea a), artigo 3.º/1, alínea a), artigo 8.º e artigo 101.º/1, alínea g) do CRPredial). Daqui decorre que o justificante deixa, por força do cancelamento do registo, de beneficiar da presunção de propriedade sobre o imóvel que o registo lhe proporcionara.

17. Na ação de impugnação de justificação notarial prevista nos artigos 116.º/1 do Código do Registo Predial e 89.º e 101.º do Código do Notariado incumbe aos réus, "que afirmaram a aquisição por usucapião do direito de propriedade sobre um imóvel, inscrito definitivamente, no registo a seu favor, com base nessa escritura, a prova dos factos constitutivos do seu direito, sem poderem beneficiar da presunção de registo decorrente do artigo 7.º do Código do Registo Predial" (ver Acórdão Uniformizador de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça n.º 1/2008, de 4-12-2007, D.R., n.º 63, I Série, de 31-3-2008).

18. Se o impugnado tem o ónus de alegação e prova dos factos constitutivos do seu direito, o interessado na impugnação não pode deixar de alegar os factos que justificam o seu interesse na impugnação da escritura de justificação notarial enquanto factos que fundamentam a sua pretensão à declaração negativa, ou seja, " ao autor cabe demonstrar aqueles fundamentos do pedido (as causas e as razões do seu direito) e negar, antecipadamente, as declarações contrárias do réu; a este cabe alegar e demonstrar, por seu lado, os fundamentos do direito que contrapõe ao do autor" (ver Ac. do STJ de 3-7-2003, rel. Quirino Soares, P. O3 B 2066).

19. Não sendo o Município o proprietário do imóvel, a questão que se põe é, assim, a de saber se o direito de cedência de utilização de um bem imóvel considerado pelo Estado do domínio público do Estado de que o Município é titular, na base de um contrato celebrado com o Estado, que lhe impõe a realização de vultuosas obras de recuperação, é "posto em dúvida, por virtude da justificação, por tal forma que a declaração da inexistência do direito do justificante seja apta a pôr termo à situação de dúvida objetiva e grave em que se encontra o direito invocado pelo autor" (ver Ac. do STJ de 11-11-2010, rel. Maria dos Prazeres Beleza, revista n.º 33/08).

20. Compreende-se que o Município não queira avançar com trabalhos de ocupação em imóvel que se presume ser propriedade da Santa Casa da Misericórdia, salvo procedência da impugnação da justificação notarial, por força da presunção constante do artigo 7.º do Código do Registo Predial.

21. Sujeita-se o Município se não for afastada a aludida presunção, que se considere, se ocupar o edifício procedendo a obras, que está inequivocamente de má fé, podendo o dono do terreno exigir que a obra seja desfeita à custa do autor ou que fique com a obra, sementeiras ou plantação pelo valor que for fixado segundo as regras do enriquecimento sem causa (artigo 1341.º do Código Civil).

22. O interesse do Município é, no entanto, um interesse que se reconduz ao interesse do Estado, pois, mediante a provocatio ad agendum determinada pela ação de impugnação de justificação notarial, o que se alcança, em caso de procedência, é o cancelamento do registo de propriedade inscrito a favor da Santa Casa, ficando definitivamente assente que a Santa Casa não adquiriu o imóvel por usucapião nos termos que constam da justificação.

23. Afigura-se sufragar o entendimento de que os interessados, para efeitos de impugnação da justificação, são os titulares de uma relação jurídica ou direito que pode ser afetado, posto em crise, pelo facto justificado de modo que, como se disse anteriormente, "a declaração da inexistência do direito do justificante seja apta a pôr termo à situação de dúvida objetiva e grave em que se encontra o direito invocado pelo autor".

24. Não se duvida de que o Estado, invocada a qualidade de proprietário, pode intentar ação negativa de impugnação da justificação notarial e, se o fizesse, o Município de S... beneficiaria da decisão que sobreviesse favorável ao Estado.

25. Mas também não pode deixar de se reconhecer que, sendo o Município bem sucedido na ação de impugnação, então, com o cancelamento do registo, já não agiria de má fé nos termos salientados anteriormente.

26. Tudo isto parece evidenciar que a impugnação da justificação notarial não está limitada apenas aos que afirmam ser os proprietários do imóvel ou que invocam direito real em colisão com o direito daqueles que justificaram notarialmente, reconhecendo-se também interesse em agir àqueles que invocam direito, diverso do direito de propriedade ou outro direito real cujo exercício pode ser afetado se a ação não for proposta.

27. O escopo da justificação notarial, conforme resulta dos artigos 116º/1 do CRPredial e 90.º/1 do Código do Notariado, é o de obter a primeira inscrição registal uma vez reconhecida a causa justificativa da da aquisição de propriedade; o justificante passa, assim, a beneficiar da presunção de propriedade a que alude o mencionado artigo 7.º do Código do Registo Predial.

28. O interesse em demandar exprime-se pela utilidade derivada da procedência da ação (artigo 30.º/2 do CPC) e obviamente têm de ser fundadas e ponderadas criteriosamente as razões que são indicadas pelo impugnante, designadamente quando o impugnante não invoca direito que esteja em colisão direta com o direito de propriedade que o justificante conseguiu ver reconhecido.

29. Na verdade se a todos aqueles que invocam direitos cujo exercício pode ser afetado precisamente pela inscrição da propriedade sobre o imóvel a favor de quem a obteve por justificação notarial, então de pouco serviria a justificação notarial porque todo aquele que pretendesse agir sobre imóvel, e se quisesse ver livre da invocação do direito de propriedade por parte de quem beneficia da presunção que o registo da inscrição confere por força do disposto no artigo 7.º do CR Predial, procuraria obter o cancelamento do registo de propriedade por via da impugnação da justificação notarial. A impugnação da justificação notarial exclui a possibilidade de demandado beneficiar da presunção de propriedade derivada do registo (Ac. do STJ de 12-1-2012, rel. Fernando Bento, revista n.º 880/08.1TBVRS.E1.S1 - 2.ª Secção).

30. No caso em apreço a autora viu ser-lhe atribuído com base em acordo celebrado com o Estado o direito de explorar o Convento de Jesus por largo período de tempo, prorrogável, na condição de investir avultado capital, parte dele resultante de verbas comunitárias, sendo, assim, manifesto que a incerteza sobre a propriedade do imóvel, somada à invocada, e não contradita, legislação que permitia a reversão para o Estado das instalações do Convento de ... a partir do momento em que deixaram de ficar afetas a utilização hospitalar, justifica que a autora possa impugnar judicialmente a justificação notarial nos mesmos termos em que o proprietário o poderia fazer, pois o interesse da autora é afinal similar ao interesse do proprietário mercê dos amplos termos e condições em que a utilização da propriedade foi cedida.

31. Refira-se ainda que seria muito pouco razoável e manifestamente desproporcionado que se exigisse ao Município que corresse o risco de, iniciando obras vultuosas no local, se sujeitar a uma ação de reivindicação, sendo certo que, como alegado, para obter fundos comunitários não pode subsistir dúvida sobre a titularidade do imóvel.

32. Podia argumentar-se que, no caso, não estamos em rigor perante a exceção da ilegitimidade ou da falta de interesse direito em agir, mas face a uma falta de legitimidade substancial derivada da circunstância de o interessado na impugnação da justificação judicial a que alude o artigo 101.º /1 do Código do Notariado apenas poder ser quem invoca direito que seja direito contraposto ao direito que a justificação reconheceu e assegurou mediante a inscrição registal.

33. Processualmente a autora deve considerar-se parte legítima considerando que ela se apresenta como interessada em impugnar a justificação notarial tendo em vista o cancelamento do registo do imóvel de que a ré beneficia; o interesse em demandar que se exprime pela utilidade derivada da procedência da ação residirá na circunstância de, mediante a impugnação da justificação notarial, a ré deixar de beneficiar da presunção de propriedade que o registo lhe confere, abrindo-se à autora o acesso a fundos comunitários destinados a custear as obras a realizar no imóvel.

34. No entanto sob o ponto de vista da legitimidade substancial pode, como se disse, questionar-se a possibilidade de o impugnante que é titular de direito que não colide diretamente com o direito registado impugnar a justificação notarial. Com efeito, o reconhecimento da justificação notarial determina, no caso da propriedade, inscrição em nome do justificante que, a partir daí, passa a beneficiar da presunção de propriedade (artigo 7.º do CRPredial); ora quando se admite a impugnação lança-se sobre o justificante o ónus de provar os factos constitutivos do direito a que se arroga in casu o direito de propriedade. Por isso, o interessado deve justificar fundadamente o interesse alegado tendo em vista afastar a presunção de propriedade que o justificante obteve, interesse que deve ser suficientemente relevante para que lhe seja reconhecida legitimidade substancial.

35. Crê-se que o Município invocou razões de facto e de direito manifestamente relevantes que permitem considerar que o seu interesse na impugnação é igual ou, pelo menos, idêntico ao interesse do Estado que a autora considera ser o proprietário do Convento de ... e de quem obteve o assinalado direito de concessão para exploração do imóvel nas condições evidenciadas.

Concluindo:

I - O interessado na impugnação da justificação notarial a que se alude no artigo 101.º do Código do Notariado pode ser quem invoque direito cujo exercício pode ser posto em causa se não for posto termo à situação de dúvida desencadeada pela incrição no registo do direito reconhecido mediante justificação notarial.

II - No entanto, para que se admita a impugnação por parte de quem não goza de direito oposto ao que beneficia da presunção derivada do registo nos termos do artigo 7.º do Código do Registo Predial, há de ser alegada factualidade que evidencie que o interesse salvaguardado pelo direito do impugnante é igual ou, pelo menos, equivalente ao do direito que foi objeto de justificação notarial.

Decisão: concede-se a revista e, consequentemente, revoga-se a decisão de absolvição da instância da ré, impondo-se o prosseguimento dos autos

Custas pela recorrida na 1ª instância e no Supremo Tribunal de Justiça.


Lisboa, 29-6-2017

Salazar Casanova (Relator)

Lopes do Rego

Távora Victor