Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
13/23.4YFLSB-A
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO
Relator: ERNESTO VAZ PEREIRA
Descritores: ESCUSA
IMPARCIALIDADE
JUIZ CONSELHEIRO
Data do Acordão: 05/04/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: ESCUSA/RECUSA
Decisão: PROCEDÊNCIA / DESCRETAMENTO TOTAL
Sumário :
I. A escusa de intervenção num processo penal pedida pelo próprio juiz ao abrigo do artigo 43º, nº 4, do CPP, apresentando-se como judex suspectus por vontade própria, configura-se como um meio processual instrumental da garantia de imparcialidade que completa a função dos impedimentos. O pedido de escusa tem de assentar, no aqui pertinente, na cláusula geral de suspeição, “por existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade”, consagrada no nº 1 do artigo 43º. Esta desconfiança é uma desconfiança gerada no cidadão médio e comum para quem a justiça é dirigida.

II. Na interpretação e preenchimento da dita cláusula geral de suspeição, a jurisprudência deste Tribunal tem adotado um critério particularmente exigente, pois que, estando em causa o constitucional princípio do juiz natural, deve tratar-se de uma suspeição fundada em motivo sério e grave, a avaliar em função das circunstâncias objetivas do caso, “a partir do senso e experiência comuns, conforme juízo do cidadão de formação média da comunidade do julgador” (inter alia, acs de 27/04/2022, proc. nº 30/18.6PBPTM.E1-A.S1, de 28/06/2006, proc. nº 06P1937, de 07/05/2008, proc. nº 08P1526. de 26/10/2022, proc. nº 193/20.0GBABF.E1-A.S1, de 01/02/2023, proc. nº 39/08.8PBBRG.G1-A.S1, de 15/01/2015, proc. 362/08.1JAAVR.P1, de 18/12/2019, proc. nº 12/16.2GAPTM.E1-A.S1, de 27/04/2022, proc. 30/18.6PBPTM.E1-A.S1).

III. A imparcialidade há de, por isso mesmo, ser testada num plano de rigorosa casuística, de particular exigência, de acrescida indagação, em função do concretismo da situação e da posição ante ela apresentada processualmente pelo juiz.

IV. E o motivo sério e grave com virtualidade para abalar a credibilidade do juiz, que, em princípio, se presume, não resultará tanto do convencimento subjetivo dos sujeitos processuais, mas antes da casuística ponderada valoração do caso concreto, fazendo intervir as regras da experiência comum, id quod plerumque accidit, procurando a resposta no homo medius, representativo do pulsar da sociedade, que nela colherá a resposta processual positiva ou negativa.

V. Ao Sr Juiz Conselheiro Requerente, foi distribuído o Inquérito nº 13/23.4YFLSB. Tal inquérito teve origem na queixa apresentada em .../11/2022 na Procuradoria-Geral Distrital de Lisboa contra o Sr Vice-Procurador Geral da República.

O Requerente, no exercício da sua competência jurisdicional, despachou no anterior inquérito nº 44/19...., em que o mesmo participante denunciou a então Vice-PGR, e, na sequência de tais despachos, surgiu a participação que deu origem ao inquérito nº 3/22...., sendo o mesmo Participante e Participado o ora Requerente, que acabaria arquivado por despacho de 14/07/2022. Concretizando os despachos: em 24-2-2021, o Ex.mo Juiz Conselheiro Requerente proferiu um despacho que ordenou a notificação do denunciante para suprir a falta de mandato e, por despacho de 4-5-2021, indeferiu o pedido de constituição de assistente requerido pelo denunciante, com condenação em custas; na sequência do primeiro o aí denunciante apresentou requerimento em 4-3-2021, onde apresentou queixa contra o autor do despacho, por nele “difamar o Advogado visado”.

O inquérito 3/22.... acabou arquivado por despacho de 14/07/2022, por inexistência de crime.

Face a tal participação o titular do processo pediu escusa para continuar a decidir no dito inquérito nº 44/19..... Escusa essa que lhe foi concedida por acórdão de 21/04/2022 proferido pela ... secção do STJ.

Com base ainda nessa denúncia o Sr Juiz Conselheiro Requerente pretende que lhe seja deferida a escusa para despacho do inquérito nº 13/23.4YFLSB-A.

VI. Sendo o inquérito da competência do Sr Juiz Conselheiro Requerente, o seu titular terá certamente de aí ordenar as várias e típicas diligências processuais de um inquérito, decidir incidentes processuais e, a final, proferir despacho de acusação ou de arquivamento, nos termos do artigo 113º, nº 2, do EMP. Em todo derivado processual que poderá envolver despachos favoráveis e desfavoráveis ao aí arguido. Ora, sendo assim, não podem as decisões que aí tomar ficarem sob o espectro de dúvidas sobre a sua imparcialidade. Nomeadamente sob o labéu de revanche ou de desforra ou de efeito ricochete negativo, em aparente oposição e fixação de antagonismo.

VII. O decisor imparcial e equidistante não pode, em termos de aparência pública e no olhar do homo medius, surgir como antagonista, a alheia serenidade da judicatura não pode transmudar-se em imersa emotividade, a calma e ponderação do juiz não podem metamorfosear-se em insensata ou irrefletida crispação.

VIII. Com o que se justifica o deferimento do pedido de escusa.

Decisão Texto Integral:

Acordam, em Conferência, na 3ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça


I - RELATÓRIO

I.1. AA, Juiz Conselheiro, em exercício de funções na ... secção criminal do Supremo Tribunal de Justiça, vem, nos termos dos artigos 43, nºs 1 e 4, e 45.°. nº 1, al. b), do CPP, apresentar pedido de escusa para intervir no processo em epígrafe referenciado, invocando o seguinte:

“I  - Tem o signatário que começar por confessar ter ficado surpreendido por lhe haver sido distribuído um processo em que é partícipe o Senhor Dr. BB.

II  - Após múltiplas vicissitudes processuais do Inquérito n.° 44/19.... (crime de Denegação de Justiça e Prevaricação), em que foi denunciante o Senhor Dr. BB e denunciada a C.a Juíza Conselheira Dr.a CC, distribuído oportunamente ao signatário, o Dr. BB entendeu acusá-lo criminalmente. O que ninguém achará agradável (nem mesmo um plaideur de Racine), e decerto menos ainda, a fortiori, um juiz conselheiro do STJ, precisamente trabalhando numa secção criminal. Situação que vale o que vale, mas que se prolongou por alguns meses, até que seria, naturalmente, encerrada favoravelmente ao magistrado signatário deste requerimento (arquivamento do Inquérito n.° 3/22...., a 14/07/2022). Mas são situações que deixam marcas...

III  - Depois do referido incidente, não mais decidiria relativamente à pessoa em causa.

 IV - Por muito que um juiz leve muito a sério e tenha muito interiorizado o seu dever de imparcialidade (como é o caso), seria certamente muito estranho, e não poderia socialmente ser encarado com bons olhos, que viesse agora a ser incumbido de um processo com a participação de quem anteriormente o acusou criminalmente (e de crimes particularmente graves, no exercício do seu múnus jurisdicional). Muito provavelmente haveria perigo, grave e sério, de que a sua intervenção pudesse ficar sob suspeita.

V - Crê que o Supremo Tribunal de Justiça não pode correr o risco de eventualmente ver a sua reputação posta publicamente em causa por não afastar de um processo, a seu pedido, o juiz que foi considerado criminoso (ou, pelo menos, como tendo cometido crimes) por quem está na origem dos presentes autos. E certo que foi ilibado, e que a litigiosidade é grande, podendo certamente haver outros nas mesmas circunstâncias. Porém, se há Nós Górdios, afigura-se-nos que cumpre desde logo a quem já foi visado não deixar passar em branco a situação (que decorre de uma distribuição aleatória e, assim sendo, "cega"). Seria mais grave ainda que o signatário não reagisse.

VI - Tanto mais que, para além de ocorrer a verificação dos requisitos legais da escusa, se é certo que o signatário não se sente minimamente incapaz de julgar, por qualquer parcialidade ou preconceito antolhar o seu discernimento (tal não ocorre, de forma alguma), a verdade é que "quem não se sente não é filho de boa gente" e sobretudo: pesa sobre si um profundo incómodo ético e deontológico ao ser colocado numa tal tarefa.

VII - Crê, verdadeiramente, que, além do potencial escândalo público (que com esta démarche se pretende evitar) se está perante um caso de consciência que, verdadeiramente, configura uma objeção de consciência (v.g. Declaração Universal dos Direitos Humanos, artigo 18.°; Convenção Europeia dos Direitos do Homem, artigo 9.°, n.°2; Constituição da República Portuguesa, artigos 41.°, n.° 6), a qual, naturalmente mais corrente em matéria religiosa ou militar, não pode deixar de, por definição, poder verificar-se, como é o caso, mercê de princípios deontológicos e valores éticos.

VIII - Ou seja, não é por se sentir ferido de alguma capitis deminulio de parcialidade ou afim que o signatário crê dever ser afastado do caso, mas por considerar que não lhe fica bem, nem tampouco à Instituição, aos olhos do impiedoso escrutínio público e mediático, nas condições em que se encontra, já descritas, voltar a cruzar-se judicialmente com o Senhor Dr. BB, novamente na situação de juiz.

Assim, ao abrigo do disposto nos arts. 43.°, n.ºs 1 e 4, e 45.°, n.° 1, al. b) do CPP, e com pano de fundo ainda nos diplomas supralegais invocados, vem o signatário por este meio requerer à secção criminal do STJ. que se digne escusà-lo de intervir no referido processo, reenviando-o ulteriormente à distribuição.

I.2. Foram juntas aos autos:

(i) cópia da queixa que deu origem ao inquérito nº 13/23.4YFLSB-A;

(ii) cópia dos despachos proferidos pelo Requerente no inquérito 44/19....;

(iii) cópia do despacho final proferido no inquérito nº 3/22.....


I.3. Colhidos os vistos, foi decidido em conferência.

I.4. Admissibilidade e objeto do pedido

I.4.1.O pedido é admissível ao abrigo do disposto no artigo 43º, nºs 4, com remissão para o nº 1, do CPP.

I.4.2.A questão a decidir é a de saber se a factualidade apresentada pelo Requerente constitui “motivo sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade”, que obrigue ao deferimento do pedido de escusa de intervir no sobredito processo.


II - FUNDAMENTAÇÃO

II.1. Factos

Ao Sr Juiz Conselheiro AA, ora Requerente, foi distribuído o Inquérito nº 13/23.4YFLSB. Tal inquérito teve origem na queixa apresentada em .../11/2022 na Procuradoria-Geral Distrital de Lisboa contra o Sr Vice-Procuradora Geral da República e que, depois, enviada para o STJ tomou o referido número.

O Requerente, no exercício da sua competência jurisdicional, despachou no inquérito nº 44/19...., em que foi participante BB e denunciada CC, então Vice-PGR, e, na sequência de tais despachos, surgiu a participação que deu origem ao inquérito nº 3/22...., em que foi Participante BB e Participado o ora Requerente, que acabaria arquivado por despacho de 14/07/2022. Concretizando os despachos: em 24-2-2021, o Ex.mo Juiz Conselheiro AA proferiu um despacho que ordenou a notificação do denunciante para suprir a falta de mandato e, por despacho de 4-5-2021, indeferiu o pedido de constituição de assistente requerido pelo denunciante, com condenação em custas; na sequência do primeiro o aí denunciante apresentou requerimento em 4-3-2021, onde apresentou queixa contra o autor do despacho, por nele “difamar o Advogado visado”.

O inquérito 3/22.... acabou arquivado por despacho de 14/07/2022, por inexistência de crime.

Face a tal participação o titular do processo pediu escusa para continuar a decidir no dito 44/19..... Escusa essa que lhe foi concedida por acórdão de 21/04/2022 proferido pela ... secção do STJ.

Com base ainda nessa denúncia o Exmo Juiz Conselheiro Requerente pretende que lhe seja deferida a escusa para despacho do inquérito nº 13/23.4YFLSB-A.

Apresenta para tanto os seguintes fundamentos, em síntese,:

Primo, “Por muito que um juiz leve muito a sério e tenha muito interiorizado o seu dever de imparcialidade (como é o caso), seria certamente muito estranho, e não poderia socialmente ser encarado com bons olhos, que viesse agora a ser incumbido de um processo com a participação de quem anteriormente o acusou criminalmente (e de crimes particularmente graves, no exercício do seu múnus jurisdicional). Muito provavelmente haveria perigo, grave e sério, de que a sua intervenção pudesse ficar sob suspeita.”

Secundo, “Crê que o Supremo Tribunal de Justiça não pode correr o risco de eventualmente ver a sua reputação posta publicamente em causa por não afastar de um processo, a seu pedido, o juiz que foi considerado criminoso (ou, pelo menos, como tendo cometido crimes) por quem está na origem dos presentes autos.”

Tertio, “Crê, verdadeiramente, que, além do potencial escândalo público (que com esta démarche se pretende evitar) se está perante um caso de consciência que, verdadeiramente, configura uma objeção de consciência”

No inquérito que lhe foi distribuído visa averiguar-se a responsabilidade criminal do Sr Vice-PGR por denúncia de BB cabendo ao Requerente da escusa a realização da investigação dos factos, a decisão de incidentes e a decisão de arquivamento ou de acusação, a final.

II. Direito

II.1. Prescreve o artigo 43, nº 4 do CPP, que “O juiz não pode declarar-se voluntariamente suspeito, mas pode pedir ao tribunal competente que o escuse de intervir quando se verificarem as condições dos nºs 1 e 2.” Pertinente para o caso é o nº 1 que dispõe que “A intervenção de um juiz no processo pode ser recusada quando correr o risco de ser considerada suspeita, por existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade[1].”

Nos termos do disposto no art. 45º nº 1 do Código de Processo Penal, o pedido de escusa de Juiz Conselheiro é apresentado perante a secção criminal do STJ, pronunciando-se esta sobre o requerimento de escusa e os elementos que o fundamentam, art. 45º, nº 1, al. b).

O pedido deve ser formulado, conforme se estabelece no artº 44.º do CPP, até ao início da audiência ou até ao início da conferência nos recursos ou até ao inicio do debate instrutório.

O requerente apresentou o seu pedido em tempo, logo que distribuído lhe foi o inquérito.

II.2. Como se enunciou no acórdão de 8/11/2018, proc. nº 30/15.8TRLSB.S1-D, do STJ: “num processo de escusa ou recusa não há qualquer disputa entre partes, sujeitos ou intervenientes processuais. O que se discute é a posição de um juiz perante um determinado processo, se está ou não condições de apreciar a questão sub judice com objectividade e imparcialidade ou se, independentemente de tal facto, a sua intervenção processual poderá ou não suscitar perante a comunidade graves suspeitas de falta de imparcialidade”

Não há assim qualquer contraditório a satisfazer.

II.3. A escusa de intervenção num processo penal pedida pelo próprio juiz ao abrigo do artigo 43º, nº 4, do CPP, apresentando-se como “judex suspectus” por vontade própria, configura-se como um meio processual instrumental da garantia de imparcialidade que completa a função dos impedimentos. O pedido de escusa tem de assentar, no aqui pertinente, na cláusula geral de suspeição, “por existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade”, consagrada no nº 1 do artigo 43º. Esta desconfiança é uma desconfiança gerada no cidadão médio e comum para quem a justiça é dirigida.

Na interpretação e preenchimento da dita cláusula geral de suspeição, a jurisprudência deste Tribunal tem adotado um critério particularmente exigente, pois que, estando em causa o princípio do juiz natural, deve tratar-se de uma suspeição fundada em motivo sério e grave, a avaliar em função das circunstâncias objetivas do caso, “a partir do senso e experiência comuns, conforme juízo do cidadão de formação média da comunidade do julgador” (inter alia, acs de 27/04/2022, proc. nº 30/18.6PBPTM.E1-A.S1, de 28/06/2006, proc. nº 06P1937, de 07/05/2008, proc. nº 08P1526. de 26/10/2022, proc. nº 193/20.0GBABF.E1-A.S1, de 01/02/2023, proc. nº 39/08.8PBBRG.G1-A.S1, de 15/01/2015, proc. 362/08.1JAAVR.P1, de 18/12/2019, proc. nº 12/16.2GAPTM.E1-A.S1, de 27/04/2022, proc. 30/18.6PBPTM.E1-A.S1).

O que não pode deixar de ser uma vez que o juiz natural, garantido constitucionalmente no art. 32º, nº 9, da CRP, só deve ser afastado quando a imparcialidade e a isenção do juiz, também garantidos constitucionalmente no art. 203º, o impuserem, isto é, quando ficarem em risco, ou seja, quando se verifiquem circunstâncias assertivas e claramente definidas, sérias e graves, reveladoras de que o juiz pré-definido (de modo aleatório) como competente deixou de oferecer garantias de imparcialidade e isenção, como o disse o STJ, ac. de 30/07/2021, proc. nº 2362/20.4T8PTM.E1-A.S1, para a recusa, mas igualmente válido para a escusa. Daí que, na concordância prática, entre os interesses em jogo, se deva ser particularmente exigente na escusa (ou recusa), em ordem à constatação de uma especial gravidade da suspeita, ancorada em factos objectivos e objectivados, que não leve ao afastamento do juiz por qualquer motivo fútil ou com base em simples generalidades ou por mera desconfiança. Exige-se a irrefutabilidade da  suspeição, por via do motivo, sério e grave, assente em factos concretos. (ac do STJ de 5 de abril de 2000, in CJ-STJ, ano VIII, 2.º, pág. 243).

Também a Convenção Europeia dos Direitos Humanos, aplicável na nossa ordem interna por força do art. 8.º da Constituição da República Portuguesa, consagra a imparcialidade do juiz, como exigência fundamental de um processo equitativo, ao estabelecer no seu art. 6.º, n.º 1, que «Qualquer pessoa tem direito a que a sua causa seja examinada, equitativa e publicamente, num prazo razoável por um tribunal independente e imparcial, estabelecido pela lei...». Tem sido uma constante da jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos que a imparcialidade deve apreciar-se, em duplo ponto de vista, em termos de apreciação subjetiva, destinada à determinação da convicção do juiz em tal ocasião, e em termos de apreciação objetiva, com vista a excluir qualquer dúvida legítima sobre a sua equidistância. (cfr, entre outros do acórdão de 13 de novembro de 2012, no caso Hirschhorn c. Roménia, Queixa n.º 29294/02 e do acórdão de 26/07/2007, no caso De Margus c. Croácia, Queixa n.º 4455/10; e art. 14.º, n.º 1, do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos).

O princípio da imparcialidade, na realização da justiça, com o correlato dever de imparcialidade cometido ao juiz, consagrado no artigo 6º-C do EMJ, L. 21/85, de 30/07[2], postulando uma intervenção equidistante, desprendida e descomprometida, repudiam o exercício de funções judiciais no processo por quem tenha ou se possa objetivamente recear que tenha uma ideia pré-concebida sobre a responsabilidade penal do arguido; bem como por quem não esteja em condições ou se possa objetivamente temer que não esteja em condições de as desempenhar de forma totalmente desinteressada.[3]

A imparcialidade há de, por isso mesmo, ser testada num plano de rigorosa casuística, de particular exigência, de acrescida indagação, em função do concretismo da situação e da posição ante ela, actuada e apresentada processualmente pelo juiz.

E o motivo sério e grave com virtualidade para abalar a credibilidade do juiz, que, em princípio, se presume, não resultará tanto do convencimento subjectivo dos sujeitos processuais, mas antes de um puro derivado da ponderada valoração do caso concreto, fazendo intervir as regras da experiência comum, id quod plerumque accidit, procurando a resposta no homo medius, representativo do pulsar da sociedade, que nela colhe, sem esforço, a resposta positiva ou negativa.

A imparcialidade ou parcialidade subjectiva do julgador é de muito difícil alcance ou demonstração, mas porque se pretende pôr a salvo de suspeições na sua actividade de julgar, lapidarmente o Prof. Cavaleiro Ferreira, afirmou que, na realidade das coisas, o juiz permanece imparcial, por isso interessa sobretudo considerar se em relação ao processo poderá ser imparcial, objectivamente equidistante do conflito. “Não se trata de confessar uma fraqueza: a impossibilidade de vencer ou recalcar questões pessoais, ou de fazer justiça, contra eventuais interesses próprios; mas de admitir ou não admitir o risco do não reconhecimento público da sua imparcialidade pelos motivos que constituem fundamento de suspeição.” (in “Curso de Processo Penal”, I, 237, Cavaleiro Ferreira, Universidade Católica, 1981)    

Referem-se à vertente subjetiva os fundamentos que se reportam a motivos pessoais e do foro íntimo, só podendo ser posta em causa em circunstâncias muito excecionais e objetiváveis. O TEDH, como o Supremo Tribunal de Justiça, têm entendido que a imparcialidade se presume até prova em contrário. Mas não é o sobredito teste subjetivo que no caso está em causa

Cabem no segmento objetivo, as verificadas «circunstâncias relacionais ou contextuais objetivas suscetíveis de gerar no interessado o receio da existência de ideia feita, prejuízo ou preconceito em concreto quanto à matéria da causa», como «circunstâncias ou contingências de relação com algum dos interessados» (Henriques Gaspar et alii, in “Código de Processo Penal Comentado”, nota ao artigo 43º, Almedina, 2022).

A imparcialidade há de ser submetida a um teste subjectivo, como ainda objectivo, corrobora o Prof. Paulo Pinto de Albuquerque, para quem o teste subjectivo visa apurar se o juiz deu mostras de um interesse pessoal no destino da causa ou evidenciou preconceito sobre o seu mérito; o teste objectivo visa apreciar se, de um ponto de vista do cidadão comum, podem suscitar-se sérias dúvidas sobre a imparcialidade; a perspectiva do queixoso releva, mas não é decisiva (in “Comentário do Código de Processo Penal”, pág. 128).

Também assim a jurisprudência nemine discrepante do Supremo Tribunal de Justiça, designadamente, nos acórdãos de 21/04/23022, proc. n.º 44/19.9YGLSB-A.S1, de 29 de Março de 2006, proc. nº 06P463, de 15-02-2023, proc. nº 16/20.0GALLE.E1-A.S1, de 26-10-2022 193/20.0GBABF.E1-A.S1.

Mas «Para que a suspeição se atualize num afastamento do juiz, não é necessário demonstrar uma efetiva falta de isenção e imparcialidade, sendo suficiente, atentas as particulares circunstâncias do caso, um receio objetivo de que, vista a questão sob a perspetiva do cidadão comum, o juiz possa ser alvo de uma desconfiança fundada quanto às suas condições para atuar de forma imparcial» (Figueiredo Dias e Nuno Brandão, in “Sujeitos Processuais Penais: O Tribunal”, Texto de apoio ao estudo curricular de Direito e Processo Penal do Mestrado Forense da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra (2015/2016), Coimbra, 2015).

O critério objetivo, que se exprime na célebre formulação do sistema inglês justice must not only be done: it must be seen to be done, (“a justiça não deve apenas ser feita: deve ser vista como sendo feita”)[4], enfatiza a importância das «aparências», como tem sublinhado a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, a propósito da definição do conceito de «tribunal imparcial» constante do artigo 6.º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos. As ligações de natureza pessoal às partes envolvidas num processo submetidas à decisão do juiz são suscetíveis de preencher este critério, desde que, do ponto de vista do cidadão comum, possam ser vistas como podendo gerar dúvidas sobre a sua imparcialidade (como se sublinha no acórdão de 30.10.2019 cit.; cfr., por todos, na jurisprudência do TEDH, salientando a sujeição da imparcialidade aos testes objetivo e subjetivo, e realçando a importância das «aparências», o acórdão Şahiner c. Turquia, n.º 29279/95, de 25.09.2001, §36, e outros nele citados).

Na dimensão objetiva da imparcialidade são os interesses coletivos que estão em causa e não uma perceção meramente individual de quem pede a escusa.   

Sublinha Henriques Gaspar, idem, ibidem, “O juízo prudencial do tribunal na decisão do pedido será da mesma natureza do que decida um pedido de recusa nos casos em que os fundamentos respeitem à imparcialidade objectiva. Mas o juízo será diverso, e por natureza aproximado do pedido do juiz, se nas razões do pedido de escusa estiverem motivos de natureza pessoal e que sejam suscetíveis de por em causa as condições de afirmação da imparcialidade subjetiva".

Como se vê quer a doutrina quer a jurisprudência apontam para um juízo casuístico, concreto e prudencial, de saber se o motivo adiantado preenche ou não aquela cláusula geral. Mas, apesar de se tratar de uma cláusula geral formulada com base em conceitos indeterminados, seguramente que não se permite o seu preenchimento de forma laxista ou de ânimo leve, seja, de forma pouco exigente, com qualquer motivo invocado, já que a tal obstará o princípio do juiz natural ou legal, sempre contrário a uma fácil remoção do juiz legalmente destinado a decidir a causa e sempre totalmente adverso á limitação ou afastamento por razões menores do poder e do dever judicatórios. O legislador ao impor o duplamente qualificado motivo, “sério e grave”, com a cumulativa da adjetivação e com a expressão semântica intensa que os adjetivos comportam tem como escopo a proibição de um alargamento da escusa (ou recusa) por motivo menor, leve, fácil ou aligeirado. O legislador não admite a escusa (ou recusa) na base de um simples convívio de prédio ou de bairro, na base de uma mera camaradagem profissional, na base de antigas relações professor aluno ou na base de relações de meras discussões jurídicas e teóricas de processos ou de questões académicas por colegas de profissão, ou com base em meros desentendimentos processuais, ou com base em adivinháveis posições jurídicas já definidas em anteriores processos[5]. Tem de haver algo mais intenso, causal e determinante da desconfiança pública de imparcialidade. E esse plus passa por uma imersão do escusante no processo, ou por via de parentesco ou de indelével relacionamento com sujeito processual, ou por via de interesse no mesmo, ou por via de persistente inimizade com sujeito processual, ou por via de inultrapassável preconceito, imersão ou relacionamento ou preconceito esses que manchando a “ardósia em branco” de que fala a doutrina, possa macular a imparcialidade aos olhos da comunidade vista em termos de homo medius.

“A garantia do juiz natural não pode ser afetada por via de mecanismos ou procedimentos processuais à disposição dos sujeitos processuais, fora dos estritos limites que a lei comporta, sob pena de assim se poder abrir “a porta” a violações do princípio do juiz natural.” (in “Comentário Judiciário do Código de Processo Penal”, António Gama et alii, nota ao artigo 43º).

Vejamos:

Aqui importa também registar que por acórdão de 21/04/2022 da ... secção, por causa dos mesmos fundamentos apresentados, foi deferida a escusa de intervenção no proc. nº 44/19.....

Sendo o inquérito da competência do Exmo Sr Conselheiro Requerente, o seu titular terá certamente de aí ordenar as várias e típicas diligências processuais de um inquérito, decidir incidentes processuais e, a final, proferir despacho de acusação ou de arquivamento, nos termos do artigo 113, nº 2, do EMP[6]. Em todo derivado processual que poderá envolver despachos favoráveis e desfavoráveis ao aí arguido. Ora, sendo assim, não podem as decisões que aí tomar ficarem sob o espectro de dúvidas sobre a sua imparcialidade. Nomeadamente sob o labéu de revanche ou de desforra ou de efeito ricochete negativo, em aparente oposição e fixação de antagonismo.

Decididamente, não podem. O decisor imparcial e equidistante não pode em termos de aparência pública, no olhar do homo medius, surgir como antagonista, a alheia serenidade da judicatura não pode transmudar-se em imersa emotividade, a calma e ponderação não podem metamorfosear-se em insensata ou irrefletida crispação.

Embora, em termos subjetivos, o Requerente ofereça garantias suficientes para excluir qualquer dúvida legítima, na medida em que afirma apresentar o pedido “se é certo que o signatário não se sente minimamente incapaz de julgar, por qualquer parcialidade ou preconceito antolhar o seu discernimento (tal não ocorre, de forma alguma)”, em termos objetivos, perante aqueloutra queixa-crime apresentada contra si pelo denunciante, Senhor Dr. BB, a conduta do Ex.mo Juiz Conselheiro não fica livre da representação de suspeição e de perda da equidistância, que deve caracterizar o exercício da função judicial na prática de atos jurisdicionais.

Aqui as apreensões do Requerente podem considerar- se objetivamente justificadas.

Ou seja, existe no caso concreto, na medição e no olhar de um cidadão médio, um motivo sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a imparcialidade do Requerente da escusa na participação, como Juiz de Instrução nos autos de inquérito em causa.

Como tal deve a escusa, que o mesmo requereu, ser deferida nos termos das disposições conjugadas dos artigos 43.º, n.ºs 1 e 4, 44.º e 45.º, n.º1, alínea b), do Código de Processo Penal.


III - DECISÃO

Nestes termos e pelos fundamentos expostos acordam os Juízes do Supremo Tribunal de Justiça em deferir o pedido de escusa do Ex.mo Juiz Conselheiro AA de intervir nos citados autos de inquérito n.º 13/23.4YFLSB-A que correm termos neste Supremo Tribunal e lhe foram distribuídos.

Sem custas.

STJ, 04 de maio de 2023

Ernesto Vaz Pereira (Juiz Conselheiro Relator)

José Luís Lopes da Mota (Juiz Conselheiro Adjunto)

Maria Teresa Féria de Almeida (Juíza Conselheira Adjunta)

____

[1] Ao invés da cláusula geral do atual artigo 43º, nº 1, do CPP, o seu antecedente artigo 112º do CPP de 1929 enumerava um catálogo de causas de suspeição. Mas já na edição de 1974, do seu “Direito Processual Penal”, I, Coimbra Editora, Figueiredo Dias anunciava: “melhor seria , sem dúvida, ter utilizado – à semelhança v.g. do & 22 II do CPP alemão ocidental – uma cláusula geral que dissesse poder ser recusado o iudex suspectus “quando exista qualquer fundamento capaz de gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade.”
[2] O artigo 6º-C foi aditado pela L. 67/2019, de 27/08.
[3] Neste sentido, Figueiredo Dias e Nuno Brandão, in “Sujeitos Processuais Penais: O Tribunal” , Texto de apoio ao estudo curricular de Direito e Processo Penal do Mestrado Forense da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra (2015/2016), Coimbra, 2015, e Mouraz Lopes, in “A Tutela da Imparcialidade Endoprocessual no Processo Penal Português”, Coimbra Ed. , 2005, págs. 66 e segs.
[4] Na “garantia externa de uma boa justiça, que seja mas também pareça ser”,  na formulação do ac. do STJ 29/03/2006, proc. nº 06P463, Henriques Gaspar.
[5] Os acórdãos do STJ de 14/04/2021, 213/12, de 30/11/2022, proc. nº 184/12.5TELSB-AG.L1-A.S1, de 10/05/2018, 4592/13.6TDPRT.P1-A.S1-A, e de 08/06/2022, 27/16.0GEMMN.EI.A.S1, por exemplo,  indicam que nem o desconforto nem a alegada opinião formada nem a assumida falta de interesse em julgar,  nem a mera desconfiança, respetivamente, configuram motivo sério e grave.
[6] Art. 113, nº 2, do EMºPº: “2 - Se forem objeto da notícia do crime o Procurador-Geral da República ou o Vice-Procurador-Geral da República, a competência para o inquérito pertence a um juiz do Supremo Tribunal de Justiça, designado por sorteio, que fica impedido de intervir nos subsequentes atos do processo.”