Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
6193/06.6TBMTS.P1.S1
Nº Convencional: 1ª SECÇÃO
Relator: MARIA CLARA SOTTOMAYOR
Descritores: PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
CONTRATO PROMESSA
EXECUÇÃO ESPECÍFICA
PRESCRIÇÃO
ABUSO DO DIREITO
Data do Acordão: 07/01/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - RELAÇÕES JURÍDICAS / TEMPO E SUA REPERCUSSÃO NAS RELAÇÕES JURÍDICAS / EXERCÍCIO E TUTELA DE DIREITOS / PROVAS - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / FONTES DAS OBRIGAÇÕES / CONTRATOS / CUMPRIMENTO E NÃO CUMPRIMENTO DAS OBRIGAÇÕES / CONTRATOS EM ESPECIAL - DIREITOS REAIS / DIREITO DE PROPRIEDADE.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - PROCESSO DE DECLARAÇÃO / SENTENÇA / RECURSOS.
Doutrina:
- Almeida Costa, Direito das Obrigações, 10.ª edição reelaborada, Almedina, Coimbra, 2006, pp. 417, 436-438.
- Calvão da Silva, Sinal e Contrato Promessa, 11.ª edição, Almedina, Coimbra, 2006, pp. 150-151.
- Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, I, Parte Geral, Tomo IV, 2005, Livraria Almedina, Coimbra, 2005, pp.161, 165, 283, 292, 373, 375.
- Pires de Lima/Antunes Varela, “Código Civil”, Anotado, vol. II, 4.ª edição revista e actualizada, Coimbra Editora, Coimbra, 1997, pp. 109-111.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 309.º, 325.º, 334.º, 396.º, 410.º, N.º3, 808.º, 830.º, 940.º, 1154.º, 1156.º, 1406.º, N.º2.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 646.º, N.º4, 655.º, N.º1, 660.º, N.º2, 722.º, N.º2, 729.º, N.ºS 2 E 3.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 15-02-1990, ACTUALIDADE JURÍDICA, ANO 2.º, N.º 6, P. 10;
-DE 3-12-1991, PROCESSO N.º 080838, EM WWW.DGSI.PT ;
-DE 17-04-2008, PROCESSO N.º 08A631, EM WWW.DGSI.PT ;
-DE 23-11-2011, PROCESSO N.º 2285/04.4TJVNF.P1.S1;
-DE 25-02-2014, PROCESSO N.º 1987/1996. E1.S1.
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ASSENTO, DE 19 DE DEZEMBRO DE 1989, BMJ, N.º 392, P. 139.
Sumário :
I – A intervenção do Supremo Tribunal de Justiça no âmbito do apuramento da matéria de facto é residual e destina-se exclusivamente a apreciar a observância das regras de direito material probatório, previstas nos conjugados artigos 722.º, n.º 2, e 729.º, n.º 2, ambos do Código de Processo Civil, a mandar ampliar a decisão sobre a matéria de facto, nos termos do n.º 3 do artigo 729.º do mesmo diploma legal, ou a eliminar da matéria de facto asserções de conteúdo jurídico ou conclusivo.

II – Na aplicação do instituto do abuso do direito deve proceder-se a uma ponderação material da situação existente na sua globalidade e atender-se ao poder dos factos. 

III – A proibição do venire contra factum proprium traduz a vocação ética, psicológica e social da regra pacta sunt servanda e vincula uma pessoa às suas atitudes, em particular, quando tenham um beneficiário.

IV – O interesse do devedor na extinção das obrigações por prescrição, no contexto de uma relação familiar, em que há particulares imperativos morais, não merece a mesma tutela que merece nas relações negociais extrafamiliares.

V- Para se obter sentença que produza os efeitos da declaração negocial do faltoso, é necessária a verificação cumulativa dos requisitos enunciados no art. 830.º do CC, a saber: a) que não seja incompatível com a substituição da declaração negocial a natureza da obrigação assumida pela promessa; b) a inexistência de convenção em contrário; c) a mora ou o incumprimento do contrato. 

Decisão Texto Integral:

Acordam na 1.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça:

I - Relatório

AA (a quem sucederam, por habilitação de herdeiros, BB, CC e DD) e mulher BB, EE e mulher FF (a quem sucederam, por habilitação de herdeiros, EE, GG e HH) e II e mulher JJ,

intentaram acção com processo declarativo e forma ordinária contra:

KK e esposa LL e MM e esposa NN,

            Pedido

            1º - Que se declare transmitido para os Autores AA e esposa BB, casados no regime de comunhão geral de bens, o direito de propriedade sobre 1/10 indiviso dos prédios: urbano, constituído por casa de 2 andares, inscrito na matriz predial sob o artº 103º, e urbano, constituído por edifício de rés-do-chão destinado a comércio, inscrito na matriz predial sob o artº nº …, ambos sitos no lugar de ..., freguesia de ..., concelho de Vª Nª de Famalicão, e formam o descrito na C.R.P. de Vª Nª de Famalicão sob o nº … daquela freguesia, registada a dita fracção a favor dos vendedores pela inscrição G-1.

2º - Declarar-se transmitido para os AA. EE, casado com FF, no regime de comunhão de adquiridos, 1/20 indivisos dos prédios precedentemente identificados.

            3º - Declarar-se transmitido para os AA. II, casado com JJ, no regime de comunhão de adquiridos, 1/20 indivisos dos prédios precedentemente identificados.

Pedido Subsidiário

Que sejam os RR. condenados a reconhecer os AA. AA e esposa BB como donos e legítimos proprietários de 1/10 avos indivisos dos prédios supra referidos, que adquiriram por usucapião, e ainda os mesmos RR. condenados a reconhecer os AA. EE (e mulher FF) e II (e esposa JJ), cada um deles como donos e legítimos proprietários de 1/20 avos indivisos dos prédios supra referidos, que igualmente adquiriram por usucapião.

Tese dos Autores

Os 1ºs e os 2ºs RR. são, cada um deles, donos de 1/5 indiviso dos prédios urbanos identificados no pedido. Por contrato promessa datado de 28/6/1974, prometeram tais RR. alienar as partes de que são titulares nos referidos prédios ao 1º Autor e ao antecessor (pai) dos 2º e 3ºs AA.

Desde a referida data que os citados 1º Autor e o pai dos 2º e 3ºs AA., e, após, estes mesmos 2º e 3ºs AA., vêm detendo a posse efectiva e exclusiva dos prédios em causa, tendo pago integralmente o preço da aludida promessa.

Os RR. vêm-se furtando a realizar a escritura definitiva, pelo que cabe fundamento para a execução específica do contrato.

Tese dos Réus

            Os AA. não alegam factos suficientes para a caracterização da posse que invocam.

Igualmente não alegam os AA. factos suficientes para a caracterização da culpa na não realização do negócio definitivo.

A lei da data da celebração do contrato ou da data do eventual incumprimento (a redacção inicial do Código Civil) não permitia, no caso concreto, a execução específica.         

As obrigações invocadas, a cargo dos RR., encontram-se prescritas.

Sentença

O Mmº Juiz “a quo”, conhecendo de mérito quanto ao pedido principal, na procedência da excepção peremptória de prescrição, julgou a acção improcedente e absolveu os Réus do pedido; quanto ao pedido subsidiário, por ausência de factos bastantes, igualmente julgou o pedido improcedente, do mesmo absolvendo os Réus.

Recurso de apelação

Irresignados, os Autores recorrem para o Tribunal da Relação do Porto, que por acórdão datado de 20-10-2013, decidiu «Julgar improcedente, por não provado, o interposto recurso de apelação da Autora, e, em consequência, confirmar a douta sentença recorrida».

 

Recurso de revista

Novamente inconformados, recorrem os Autores para este Supremo Tribunal, apresentando, na sua alegação de recurso, as seguintes conclusões:

«1.ª – Em sede de despacho saneador foi considerada a factualidade provada que por mera economia processual se dá aqui por integralmente reproduzida para todos os efeitos legais e foram formulados 18 quesitos que constituem a base instrutória;

2.ª – Após audiência de julgamento com prova gravada, o Mm.o Juiz a quo considerou como provados os quesitos 4.º, 14.º e 15.º, como não provados os quesitos 1.º, 2.º, 5.º, 7.º, 8.º, 9.º, 16.º, 17.º e 18.º e ainda mereceram respostas restritivas os quesitos 3.º, 6.º, 10.º, 11.º 12.º e 13.º, que aqui se dão por reproduzidos por mera economia processual e para todos os efeitos legais;

3.ª O Mm.o Juiz a quo fundamentou a sua convicção para as respostas à matéria de facto nos elementos probatórios considerados à luz das regras de experiência comum, daquilo que as partes ao longo do processo e dos depoimentos das testemunhas prestados em audiência de julgamento, sendo que tal fundamentação se encontra no despacho saneador que também por mera economia processual se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais;

4.ª Porém, a convicção formada pelo Mm.º Juiz a quo parece-nos estar completamente errada no que diz respeito às respostas dadas aos quesitos 3.º, 5.º, 6.º, 7.º, 8.º, 9.º, 10.º, 11.º e 12.º da base instrutória;

5.ª A deslocação à Conservatória do Registo Predial de Famalicão visou não só fazer o trato sucessivo, ou seja, colocar os prédios em nome de todos os herdeiros e ainda prestarem declarações complementares necessárias e indispensáveis, seguindo-se a inevitável escritura notarial de compra e venda, facto que era do conhecimento de todos os promitentes vendedores e compradores;

6.ª Assim, não foi minimamente levado em conta a confissão vertida nos arts. 11.º e 13.º da Contestação dos R.R., relativamente à traditio dos prédios para os AA.

7.ª Na verdade, ficou provado que logo após a outorga do contrato promessa de compra e venda dos autos os AA. tomaram posse efectiva da parte ideal dos ditos prédios adquiridos aos promitentes vendedores, tendo logo de seguida cedido gratuitamente parte do prédio à testemunha OO para este ali instalar a sua oficina de bate chapas, bem como mais tarde deram de arrendamento por escritura pública notarial à PP, Lda., o rés do chão do prédio dos autos, bem como ainda recebiam as rendas dos inquilinos.

8.ª Quanto às contribuições prediais, autárquicas e IMI, os autos fornecem todos os elementos para se perceber que quem sempre procedeu ao pagamento de tais contribuições foram os 1.ºs AA. e o pai dos 2.º e 3.º AA.

9.ª Ao contrário do que alegaram os RR., provado ficou, que estes entregaram ao 1.º A., AA, os seus bilhetes de identidade e números de contribuinte para este poder marcar a escritura de compra e venda dos prédios dos autos.

10.ª Nunca foi alegado pelos RR. que estes alguma vez tivessem solicitado aos 1.ºs AA. e ao pai do 2.º e 3.º AA. que estes prestassem contas relativas ao pagamento das contribuições prediais e ao recebimento das rendas dos prédios dos autos.

11.ª – Os RR. ao invocarem a prescrição das obrigações então assumidas por estes configuram um autêntico abuso de direito, subsumível a um “venire contra factum proprium”.

12.ª – O art.º 334.º do C.C. diz que é ilegítimo o exercício de um direito quando o titular excede manifestamente os limites impostos pelo boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.

13.ª – O comportamento dos RR. e a alegação da prescrição consubstancia a referida figura jurídica do abuso de direito uma vez que se inscreve no contexto da violação do princípio da confiança que sucede quando o agente adopta uma conduta inconciliável com a expectativa adquirida pela contraparte em função do modo como antes sempre actuara.

14.ª – Em boa verdade, os promitentes compradores actuaram sempre imbuídos de boa fé em sentido subjectivo, o qual terá de ter-se por definitivamente assente uma vez que resulta da factualidade provada que estes investiram determinante e intensamente na confiança que assim lhes foi incutida pelos promitentes vendedores, sendo certo que estes na pressuposição do cumprimento do contrato e como antecipação dos efeitos translativos do contrato definitivo assumiram condutas processuais sintonizadas, mencionadas nos autos e que têm de ser entendidas como legitimadoras da situação objectiva de confiança em que se colocaram os RR. e os promitentes vendedores de futuras atitudes e posturas antiéticas.

15.ª – Na verdade, em consideração ao que ficou provado e ao exposto acima, o direito dos RR. de invocar a prescrição tem de haver-se por neutralizado por ser abusivo o seu exercício, o que se requer seja decidido.

16.ª – Deste modo, quer o Mm.º Juiz a quo quer o acórdão do Tribunal da Relação do porto, ao aceitarem a extinção da obrigação dos RR. outorgarem a referida escritura de venda, por prescrição, não atendeu ao estatuído no art.º 334.º do C.C., violando-o frontalmente.

Subsidiariamente, e para o caso de V. Ex.ªs não o entenderem, o que só por mera hipótese se admite, sem prescindir e sem conceder:

17.ª – Dão-se aqui por reproduzidas para todos os efeitos legais, e, por mera economia processual, as conclusões atrás formuladas de 1.ª a 10.ª.

18.ª – Assim, face ao vertido nas referidas conclusões, aos documentos dos autos, à contestação dos RR., não restam dúvidas que a posse dos AA. sobre a quota parte dos prédios adquirida por contrato promessa aos RR. no ano de 1974, por si e antepossuidores há mais de 20, 30, 40 anos, é titulada, de boa fé, pública, e pacífica. 

19.ª – Ao decidir na douta sentença que os AA. não tenham adquirido aos RR. a parte dos prédios que estes prometeram vender, o Mm.º Juiz a quo e o Tribunal da Relação do Porto, fez erradamente interpretação dos normativos constantes dos art.ºs 342.º nº1, 1287.º, 1251.º, 1259.º, 1260.º, 1261.º, 1262.º, 1263.º e 1269.º todos do Código Civil».

            Os Réus apresentaram contra-alegações, em que defendem a inadmissibilidade de recurso, por se ter formado dupla conforme (art. 671.º, n.º 3 do Novo Código de Processo Civil, aplicável ao caso dos autos com base no art. 7.º da Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho) e em que pugnam pela manutenção da decisão do Tribunal da Relação do Porto.

            Contrariamente ao propugnado pelos réus, foi decidida a admissibilidade de recuso, pois apesar de a decisão do Tribunal da Relação do Porto ser posterior a 1 de Setembro de 2013, a data da instauração do processo é anterior a Janeiro de 2008, pelo que, segundo o art. 7.º, n.º 1 da Lei n.º 41/2013, de 26-06, última parte, a aplicabilidade imediata da lei nova, tem por excepção o regime da dupla conformidade previsto no art. 671.º do Novo Código de Processo Civil, e, por maioria de razão, o regime da dupla conformidade decorrente do Decreto-Lei n.º 303/2007, de 24 de Agosto, pois tal significaria uma limitação do direito ao recurso imprevisível pelas partes, nos processos anteriores a 1 de Janeiro de 2008, em relação aos quais não existia qualquer regime de dupla conformidade.

Objecto do processo

Sabido que, ressalvadas as questões de conhecimento oficioso, o objecto do recurso é delimitado pelas respectivas conclusões, as questões a decidir são as seguintes:
1) Alteração das respostas aos quesitos 3.º, 5.º, 6.º, 7.º, 8.º, 9.º, 10.º, 11.º e 12.º da base instrutória;
2) Abuso do direito de invocar a prescrição das obrigações emergentes do contrato promessa na modalidade de “venire contra factum proprium”;
3) Aquisição dos prédios prometidos vender por usucapião.

Colhidos os vistos, cumpre decidir.

II – Fundamentação de facto

São os seguintes os factos provados pelas instâncias: 

1. A - Os 1°s RR. são donos e legítimos proprietários de 1/5 de: - prédio urbano constituído por casa de dois andares, inscrito na matriz predial urbana sob o art. 103 e - prédio urbano constituído por edifício de rés-do-chão destinado a comércio, inscrito na matriz predial urbana sob o art° … (antigo …) ambos sitos no Lugar de ..., freguesia de ..., concelho de Vila Nova de Famalicão e formam o descrito na Conservatória do Registo Predial de Famalicão sob o nº. … (certidões matriciais juntas de fls. 9, 10 11 e registrais de fs. 13 a 15).

2. B - Por sua vez, os 2°s RR. são igualmente donos e legítimos proprietários dos mesmos prédios atrás identificados, e, em igual proporção, ou seja, de uma quinta parte - idem.

3. C - Em 28 de Junho de 1974, os 1°s e os 2°s RR. celebraram com os 1° e o pai dos 2° e 3° AA. um contrato promessa de compra e venda daqueles 2/5 dos prédios referidos - título do contrato promessa junto a fs. 16.

4. D - O preço acordado foi de 432.000$00 por 3/5 dos prédios atrás identificados.

5. E - Porque QQ, irmão dos RR., e esposa RR, também proprietários de 1/5 dos mesmos prédios, apesar de os seus nomes figurarem no dito contrato promessa na qualidade de promitentes vendedores, nada prometeram vender nem assinaram o referido contrato, terá que se excluir do preço global da venda constante do dito contrato promessa o preço referente à quota parte do QQ e esposa e o preço global dos 2/5 efectivamente prometidos vender pelos RR. passou a ser de apenas 288.000$00.

6. F - No dia da celebração do dito contrato promessa de compra e venda, o 1° A. e o pai dos 2° e 30 M. pagaram aos RR. a quantia de 20.000$00, ou seja, 10.000$00 a cada um, como sinal e princípio de pagamento.

7. G - Como consta do referido contrato promessa, a escritura de compra e venda teria lugar até ao dia 31 de Agosto de 1974, ficando a cargo dos promitentes-compradores o pagamento da sisa e da escritura.

8. H - Entretanto, no dia 29 de Agosto de 1974, os 1º A e o pai dos 2º e 3° AA. acordaram com os RR. em prorrogar o prazo para a realização da escritura de compra e venda por 60 dias e …

9. I - receberam, cada um dos RR., a quantia de 100.000$00 como reforço do sinal dado então pelos promitentes-compradores, conforme documento de fs. 17.

10. J - Seguidamente, em 24 de Maio de 1976, os 1°s e os 2°s RR. receberam dos promitentes compradores a quantia de 34.000$00 cada casal, destinando-se tal quantia ao pagamento integral do preço da venda prometida dos 2/5 dos prédios atrás identificados e pertença dos RR., considerando-se, consequentemente, os RR. completamente pagos e satisfeitos, e acordando ainda que a escritura definitiva de compra e venda seria, efectivada dentro de 30 dias a contar da data do documento, ou seja, 24 de Maio de 1976, conforme documento de fs. 18.

11. K - Em 16 de Dezembro de 1982, por escritura pública outorgada no segundo Cartório Notarial de Famalicão, o 1° A, o pai dos 2° e 3° AA e o irmão daqueles, QQ deram de arrendamento a PP - …, Limitada, o rés-do-chão do prédio urbano inscrito na matriz sob o art. … (antigo …), nos termos e condições de tal escritura constantes.

12. L - Até ao presente, ultrapassada que está a data limite de 29 de Outubro de 1974, a escritura pública de compra e venda ainda não foi realizada.

13. M - Os AA., em 27 de Janeiro de 2006, através do seu mandatário, remeteram aos RR as cartas registadas com aviso de recepção, juntas por fotocópia a fls. 28 e 29 que, sob a epígrafe «Assunto: Marcação de Escritura», os informava que a escritura de compra e venda iria ser marcada, faltando ultimar os registos na Conservatória do registo Predial de Famalicão, pelo que solicitava aos RR. que lhe fossem facultadas cópias dos bilhetes de identidade e do cartões de contribuinte…

14. N - e manifestassem disponibilidade em termos de dia e hora para se poder marcar a escritura respectiva - documentos de fs. 28 e 29.

15. O - Os RR. receberam estas cartas e nada disseram, mas entregaram cópias dos seus Bilhetes de Identidade e cartões de contribuinte - fs. 129 a 134 - e compareceram na Conservatória do Registo Predial de Famalicão onde prestaram as declarações fotocopiadas a fls. 176 a 179 .

16. P - Também por cartas registadas com aviso de recepção, os AA., em 9 de Maio de 2006, também através do seu mandatário, notificaram os RR. para a escritura de compra e venda que teria lugar no dia 13 de Junho de 2006, pelas 15 horas, no Cartório Notarial de Matosinhos da Licenciada Dr.ª SS, sito na Rua ..., nº …, salas … e … (Galerias …), em Matosinhos, onde deviam comparecer acompanhados dos respectivos bilhetes de identidade e números de contribuinte - documentos de fs. 30 a 35.

17. Q - No dia aprazado, os RR. não compareceram à escritura nem se fizeram representar, nem de qualquer modo justificaram a sua ausência - certidão de fs. 36/37.

18. Os RR. deslocaram-se à Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Famalicão em 27.1.2006, onde prestaram as declarações para o registo dos referidos imóveis em comum e sem determinação de parte ou direito a favor de todos os herdeiros, conforme teor dos documentos de fls. 13 e s. e 176 a 179 dos autos, que aqui se consideram reproduzidos.

19. A deslocação à Conservatória do Registo Predial de Famalicão (aI. O) e a assinatura das declarações complementares de registo aconteceu já em finais de Janeiro de 2006.

20. O 1º A marido e o pai dos 2°s, enquanto foi vivo, juntamente com o QQ, vêm detendo os referidos prédios, na proporção de uma quinta parte indivisa, pacificamente, à vista de toda a gente, sem oposição ou interferência seja de quem for, como sua verdadeira propriedade, nessa proporção. O A. AA vem recebendo as rendas dos inquilinos, já desde antes de 1974.

21. O A. AA solicitou o respectivo reembolso de quantias pagas a título de Contribuição Autárquica, conforme referido nos documentos de fls. 135 e a 139, que aqui se dão por reproduzidos.

22. O prédio urbano em causa encontra-se em mau estado de conservação há mais de 10 anos, exceptuando o rés-do-chão onde ainda hoje existe um comércio.

23. Já na altura da celebração do contrato promessa dos autos junto, RR. e AA. se encontravam, por razões de partilhas, incompatibilizados.

24. E não mais falaram ou conviveram

           

III - Fundamentação de direito

1) Alteração das respostas aos quesitos 3.º, 5.º, 6.º, 7.º, 8.º, 9.º, 10.º, 11.º e 12.º da base instrutória

Solicitam os autores que este Supremo Tribunal reaprecie as respostas aos quesitos 3.º e 5.º a 12.º da base instrutória.

É sabido que, relativamente à alteração da matéria de facto são muito restritos os poderes cognitivos do Supremo Tribunal de Justiça.

O Supremo Tribunal de Justiça não é uma terceira instância, mas sim um tribunal de revista, com competência limitada à matéria de direito.

Este Supremo Tribunal só conhece de questões de direito, aplicando à factualidade fixada pelas instâncias o respectivo regime jurídico, não tendo poderes cognitivos para alterar matéria de facto. Esta limitação justifica-se pela função de harmonização jurisprudencial sobre a interpretação e aplicação da lei que é característica e própria dos tribunais supremos.

A intervenção do Supremo Tribunal de Justiça no âmbito do apuramento da matéria de facto relevante é residual e destina-se exclusivamente a apreciar a observância das regras de direito material probatório, previstas nos conjugados artigos 722.º, n.º 2, e 729.º, n.º 2, ambos do Código de Processo Civil, a mandar ampliar a decisão sobre a matéria de facto, nos termos do n.º 3 do artigo 729.º do mesmo diploma legal, ou a eliminar da matéria de facto asserções de conteúdo jurídico ou conclusivo (artigo 646.º, n.º 4, do Código de Processo Civil).

Ou seja, este Supremo Tribunal de Justiça só pode conhecer do juízo de prova formado pela Relação, quanto à matéria de facto, quando esta deu como provado um facto sem a produção da prova considerada indispensável, por força da lei, para demonstrar a sua existência, ou quando ocorreu desrespeito pelas normas reguladoras da força probatória dos meios de prova admitidos no ordenamento jurídico. 

Como resulta dos arts.722.º, n.º 2, e 729.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil, a censura por este Supremo Tribunal de eventual erro na apreciação das provas está limitada à matéria sujeita a prova vinculada ou ao caso de desconsideração do valor legal das provas.

Especificamente, o n.º 2 do artigo 722.º citado estabelece que «[o] erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objecto de recurso de revista, salvo havendo ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou fixe a força de determinado meio de prova». E o n.º 2 do indicado artigo 729.º dispõe que «[a] decisão proferida pelo tribunal recorrido quanto à matéria de facto não pode ser alterada, salvo o caso excepcional previsto no n.º 2 do artigo 722.º».

O Supremo não pode, assim, controlar a prudente convicção das instâncias sobre a prova realizada pelas partes. Está-lhe, pois, vedado intervir onde prevaleça o princípio da livre apreciação da prova estabelecido no art. 655.º, n.º1 do citado diploma, exorbitando manifestamente da função que a lei lhe atribui a apreciação do maior ou menor valor concretamente atribuído à prova testemunhal (cf. art. 396.º Código Civil).

  Relativamente aos artigos 6.º a 12.º da base instrutória relativos à existência de posse efectiva e animus dos autores como proprietários, ao abandono do prédio pelos réus e ao pagamento do IMI, as respostas não podem ser alteradas porque a prova testemunhal, na falta de documentos que atestem o pretendido pelos autores, não pode ser reapreciada por este Supremo Tribunal, e porque os documentos juntos aos autos não demonstram que tenham sido os autores a pagar o IMI e que tenha sido lapso o envio das notas de pagamento para os réus.

Quanto ao art. 3.º da base instrutória relativo à motivação dos réus com a deslocação à conservatória não se trata de uma questão de alteração da matéria de facto,  mas de interpretação do facto provado, a qual será analisada na fundamentação de direito.

Por último, na conclusão 6.º, solicitam os autores que se dê como provada, por confissão dos réus, a existência de traditio do bem objecto do contrato promessa com base no vertido nos artigos 11.º e 13.º da contestação, alterando-se a resposta ao artigo 5.º da base instrutória, o qual, perguntando «Logo após a assinatura do contrato promessa, em Junho de 1974, os RR entregaram os imóveis prometidos vender aos promitentes compradores, o 1.º A. e o pai dos 2.ºs AA., bem como ao referido QQ?», mereceu resposta de não provado.

Nos artigos da contestação, que se passam a transcrever, os réus afirmam o seguinte:

Artigo 11.º: «Isto não obstante a alegada traditio do bem objecto do contrato- promessa dos autos, a existir em “quota ideal”, já que os RR. prometeram vender apenas 2/5»;

Artigo 13.º: «Enquanto promitentes-compradores os AA. encontram-se investidos prematuramente no gozo da coisa o qual lhe é concedido apenas e tão somente na expectativa da futura celebração do contrato prometido».

 Ora, para ser atribuído a estas declarações vertidas na contestação, o valor de confissão relativamente à existência de traditio, é necessário analisar o contexto em que foram proferidas, em confronto com o alegado pelos autores na petição inicial e com a decisão de fundamentação da matéria de facto. O único elemento de prova ponderado pelo tribunal de 1.ª instância a este propósito reside no envolvimento anormal de um dos autores em determinadas questões – por exemplo, a locação do prédio – mas que não foi valorado, porque considerado contraditório com o pedido feito em 2005, pelo mesmo autor, para inscrição de todos os comproprietários na matriz fiscal do prédio.

Os artigos 11.º e 13.º da contestação surgem no contexto em que os réus rebatem os argumentos dos autores, invocados na petição inicial, relativamente à existência de posse para efeitos de usucapião. A defesa dos réus em relação a esta questão reside na impugnação do animus dos autores como proprietários, para efeitos de posse usucapível, mas não significa que confessem ter havido entrega dos imóveis aquando da celebração do contrato promessa. Os réus referem-se no art. 11.º à traditio como «a alegada traditio», o que indicia que não confessam a sua existência, mas que estão apenas a responder ao vertido na p.i. pelos autores. Neste contexto, o afirmado no art. 13.º - “Enquanto promitentes-compradores os AA encontram-se investidos prematuramente no gozo da coisa, o qual lhe é concedido apenas e tão somente na expectativa da futura celebração do contrato prometido”, tem que ser entendido, não como confissão de entrega do imóvel, mas como um argumento hipotético, segundo o qual mesmo a ter havido entrega (a alegada traditio), sempre essa entrega significaria apenas uma mera detenção e não uma posse com animus de propriedade. A reforçar esta tese, negam os réus, no art. 81.º da contestação,  expressamente a existência de tradição - «Pelo que não existiu tradição dos imóveis», e no art. 82.º reafirmam que «Todos os actos materiais praticados pelos AA. foram sempre em nome de todos os comproprietários dos bens e por isso também dos RR., como resulta aliás dos documentos que os AA. juntam à p. i., quer respeitante à inscrição matricial quer na Conservatória», o que bem se entende, tendo em conta que estamos perante uma situação de compropriedade, em que cada consorte é titular de uma quota ideal e do direito ao uso integral da coisa.

Pelo que, relativamente à existência de traditio, não podemos considerar que esta se tenha provado por confissão ou por acordo das partes, nem tem interesse para o caso, visto tratar-se de compropriedade, não sendo concebível a entrega de uma quota ideal.

 

2) Abuso do direito de invocar a prescrição das obrigações emergentes do contrato promessa na modalidade de “venire contra factum proprium

 

Os autores intentaram acção declarativa de condenação com processo comum e forma ordinária, pedindo que, na procedência da acção, sejam os réus condenados a reconhecer aos autores o direito à execução específica do contrato promessa de compra e venda celebrado em 28 de Junho de 1974.

Defenderam-se os réus, entre outros argumentos, invocando a prescrição das obrigações emergentes do contrato promessa, por referência à data de 24 de Junho de 1976, que tinha sido acordada entre autores e réus como data de outorga da escritura.

As instâncias decidiram no sentido da tese dos réus, declarando assim extinta, por prescrição, a obrigação dos réus outorgarem a referida escritura de compra e venda, com base no prazo de 20 anos previsto no art. 309.º do Código Civil, rejeitando o argumento dos Autores segundo o qual a invocação da prescrição constituía um abuso do direito nos termos do art 334.º do Código Civil.

 2.1 Em relação à questão do abuso do direito, a fundamentação da sentença do tribunal de 1.ª instância foi a seguinte:

«Entendemos ainda que não se verifica a excepção do art. 334.º do Código Civil. Não consta que alguma das partes tivesse as suas capacidades diminuídas nos mais de 29 anos que decorreram entre esse último acordo de fixação de prazo para a prestação em causa e o momento em que decidiram, só em 2006, passados mais de 9 anos do terminus do prazo do citado art. 309.º, fazer cumprir o negócio que tinham (percebe-se dos factos) perfeita noção que só se concretizaria com a realização do contrato prometido, com a então exigida forma escrita e pública de escritura».

O acórdão recorrido, rejeitando, também, a figura do abuso do direito, fundamentou-se na seguinte argumentação:

«A compatibilização desse instituto, p.e. na modalidade abrangente do venire contra factum proprium (supondo um facto próprio do visado a que se soma uma conduta abusiva, ainda que em exercício de um direito, sendo esse facto próprio contraditório com o direito que se exerce), pressupõe uma compatibilização prática com a prescrição do direito em termos que não podem ser muito amplos, pois que este instituto da prescrição encontra precisamente no decurso do tempo no exercício do direito (e na sanção para uma perturbante dilação de exercício) a sua razão de ser.

Seria incongruente conferir ao visado pelo exercício do direito a possibilidade de invocar a prescrição extintiva e, ao mesmo tempo, retirar-lhe tal direito precisamente em face de, v.g., idêntico decurso do tempo decorrido para quem invoca a prescrição.

Neste particular, a concepção do abuso não poderá prescindir de uma conduta provada paralela à invocação da prescrição, e que não deve envolver ou implicar interrupção dessa prescrição, designadamente pelo reconhecimento do direito – artº 325º CCiv.

A esse respeito, os autos encontram-se completamente in albis.

Os Autores esgrimiram o exercício de um direito, fundado em contrato promessa celebrado em 1974.

Não estavam assim de forma alguma ao abrigo da invocação da prescrição do direito, por parte dos Réus.

Dos factos provados, nada resulta relativamente ao comportamento dos Réus em face do uso da coisa comum, por parte dos Autores. Todavia, também resulta que os Autores se comportavam como proprietários, mas apenas na proporção que lhes era atribuída pela compropriedade.

A propriedade plena apenas os Autores a poderiam adquirir pela aquisição das quotas que os Réus detinham – para tal foi precisamente elaborada a promessa.

Não se prova nenhum comportamento contraditório com a promessa, nem da banda dos Autores, mas sobretudo não da banda dos Réus.

Como é sabido, “o uso da coisa comum por um dos comproprietários não constitui posse exclusiva ou posse de quota superior à dele, salvo se tiver havido inversão do título” – artº 1406º nº2 CCiv.

Era sobretudo esta inversão do título que interessava provar, para que se demonstrasse a aquisição originária do imóvel por parte dos Autores, sem prejuízo de que se demonstrasse igualmente a cedência da posse da quota ou o seu abandono, com progressão da posse dos Autores em quota superior».

Ora, apesar de compreendermos a hesitação das instâncias na aplicação do instituto do abuso do direito, estando em causa a invocação da prescrição extintiva, entendemos que a figura do abuso do direito exige uma mais cuidadosa apreciação, que não foi feita.

Como destaca Menezes Cordeiro, deve proceder-se a uma ponderação material da situação existente na sua globalidade e atender-se ao poder dos factos[1]. Por outro lado, a figura do abuso do direito tem várias modalidades, supondo sempre o exercício do direito para além dos limites impostos pela boa fé.

A finalidade do instituto é atender à justiça material subjacente ao caso.

O abuso do direito tem múltiplas manifestações, é um instituto puramente objectivo, que não depende da culpa do agente nem de qualquer específico elemento subjectivo[2].

Os dois princípios fundamentais, pelos quais se afere, são a tutela da confiança e a primazia da materialidade subjacente.

 

Relativamente ao instituto da prescrição extintiva tem entendido a doutrina, que apesar da imperatividade do seu regime, não se entende actualmente que a prescrição vise realizar interesses públicos, mas sim, no essencial, o interesse do devedor[3]

Merecerá tutela o interesse do devedor, no caso presente, à luz do princípio da boa fé?

Na apreciação da ligação entre o instituto da prescrição e o instituto do abuso do direito, as instâncias não ponderaram: 1) O facto de os réus terem recebido a totalidade do preço conforme a factualidade provada; 2) O facto de os Réus, convocados para a realização da escritura, terem fornecido aos autores os seus bilhetes de identidade e terem procedido às declarações registais necessárias à realização do trato sucessivo; 3) O facto de entre autores e réus interceder uma relação familiar próxima – são irmãos uns dos outros – vínculo associado a uma especial confiança e a deveres de correcção e de boa fé acrescidos, dado tratar-se de uma relação em que o dever de respeito interpessoal é mais exigente do que entre pessoas estranhas ou entre empresas.

O primeiro aspecto – o recebimento da totalidade do preço –  provoca um enriquecimento dos réus. Não pode considerar-se natural, em face da densidade do conceito de boa fé e dos deveres de correcção e de lealdade entre as partes de um contrato, sobretudo em relações familiares, que uma das partes se recuse a celebrar um contrato, invocando a prescrição, e conserve em seu poder o preço que havia sido pago pela outra parte na expectativa legítima que o contrato definitivo se iria celebrar. O facto de as relações entre as partes serem relações familiares nada altera este quadro ético-jurídico, pelo contrário, agrava-o. Pois, o contexto familiar em que ocorreu o contrato é de molde, por um lado, a explicar o atraso dos promitentes-compradores na interposição da acção de execução específica, confiando que os réus, seus irmãos, assumiriam as suas obrigações e, por outro lado, agrava o facto de os promitentes-vendedores invocarem a prescrição depois de terem recebido a totalidade do preço, pois entre pessoas da mesma família a ordem jurídica deve exigir um respeito mais escrupuloso pelos interesses da contraparte. A circunstância de autores e réus estarem incompatibilizados (facto provado n.º 23) e não mais falarem nem conviverem (facto provado n.º 24) não dispensava os réus de cumprirem deveres ético-jurídicos de boa fé para com os autores.

O interesse do devedor na extinção das obrigações por prescrição, no contexto de uma relação familiar, em que há particulares imperativos morais, não merece a mesma tutela que merece nas relações negociais extrafamiliares.

 

É no contexto jurídico-factual descrito que analisaremos os pressupostos do abuso do direito relativamente à invocação da prescrição extintiva por banda dos réus.

            Verificam-se, com efeito, duas modalidades de abuso do direito:

O venire contra factum proprium traduz-se no exercício de uma posição jurídica em contradição com uma conduta antes assumida pelo agente.

A proibição do venire contra factum proprium traduz a vocação ética, psicológica e social da regra pacta sunt servanda e vincula uma pessoa às suas atitudes, em particular, quando tenham um beneficiário[4].

 

Resulta dos pontos 13.M, 14.N, 15.O, 18. e 19. da matéria de facto, que a entrega dos bilhetes de identidade pelos réus aos autores e a deslocação daqueles à Conservatória ocorreu na sequência de uma notificação por carta registada com aviso de recepção que lhes foi dirigida pelos autores, em 27 de Janeiro de 2006, em que, sob a epígrafe «Assunto: Marcação de Escritura», os informava que deviam proceder às declarações de registos na Conservatória do Registo Predial de Famalicão, e que facultassem cópias dos bilhetes de identidade, tendo os réus comparecido, em finais de Janeiro de 2006, nesta Conservatória onde prestaram as declarações fotocopiadas de fls 176 a 179 (factos provados n.º 13 e n.º 15) e facultado cópias dos documentos de identificação.

 

Na factualidade acima referida – carta enviada pelos autores com o objectivo de marcação da escritura e de realização dos registos – deve entender-se que a comparência dos réus na Conservatória para tratar dos registos significa a aceitação da sua obrigação de celebrar o contrato prometido.  

 Estes comportamentos dos Réus geraram, nos Autores, a confiança de que aqueles se sentiam vinculados à outorga da escritura, criando a convicção de que os Réus não iriam praticar determinado acto – a invocação da prescrição – acto que depois vêem, afinal, a praticar contra as legítimas expectativas criadas. 

Neste contexto, a invocação da prescrição constitui uma contradição ou uma incoerência valorativa e ofende a boa fé, enquanto conceito que exprime os valores fundamentais do sistema, cuja aplicação passa pela confiança enquanto critério de decisão.

Na concretização da confiança, seguimos a tese de Menezes Cordeiro, aplicando quatro proposições[5]:

«1.ª Uma situação de confiança conforme com o sistema e traduzida na boa fé subjectiva e ética, própria da pessoa que, sem violar os deveres de cuidado que ao caso caibam, ignore estar a lesar posições alheias;

2.ª Uma justificação para essa confiança, expressa na presença de elementos objectivos capazes de, em abstracto, provocarem uma crença plausível;

3.ª Um investimento de confiança consistente em, da parte do sujeito, ter havido um assentar efectivo de actividades jurídicas sobre a crença consubstanciada;

4.ª A imputação da situação de confiança criada à pessoa que vai ser atingida pela protecção dada ao confiante: tal pessoa, por acção ou omissão, terá dado lugar à entrega do confiante em causa ou ao factor objectivo que a tanto conduziu.»

Estes requisitos para a protecção da confiança articulam-se entre si nos termos de um sistema móvel, pois não se verifica entre eles uma hierarquia e não são todos indispensáveis, podendo algum destes elementos não se verificar.

A situação de confiança exprime-se pela ideia de boa fé subjectiva. Ora, a adesão dos autores ao comportamento dos réus não desrespeitou qualquer dever de cuidado ou de indagação da vontade real destes, pois o comportamento dos réus – entrega dos bilhetes de identidade e declarações registais – ocorreu na sequência temporal imediata em relação à carta enviada a marcar a escritura e a solicitar os elementos de identificação e registais necessários para a preparação da mesma.  

O comportamento dos réus não pode deixar de ter, então, o significado de aceitação da obrigação de celebrar o contrato prometido. O confiante aderiu a este facto gerador de confiança baseado em elementos razoáveis para tal e esta confiança é imputável aos réus.

Houve investimento na confiança, no sentido em que o regresso à situação anterior seria custoso em termos de justiça, pois os autores já pagaram a totalidade do preço. Embora este pagamento tenha sido muito anterior à data da marcação da escritura e do comportamento gerador de confiança, não deixa de constituir um investimento baseado na confiança de que o contrato definitivo se celebraria, investimento que seria frustrado se os réus invocassem, em contradição com o comportamento assumido, a extinção da obrigação por prescrição. 

 

Outra modalidade de abuso do direito presente na situação concreta é o desequilíbrio no exercício de direitos, na medida em que do exercício do direito de invocar a prescrição decorre um resultado prático disfuncional face à boa fé e à confiança: os réus permanecem proprietários da quota dos prédios prometida vender e do valor económico que ela representa, bem como titulares do preço pago pelos autores.

            Sendo assim, a invocação da prescrição constitui o exercício abusivo de um direito, nos termos do art. 334.º do Código Civil, por exceder manifestamente os limites impostos pela boa fé. 

 

Importa agora verificar se estão verificados os pressupostos da execução específica do contrato promessa.

2.2 Verificados os pressupostos da acção de execução específica, o promitente comprador, além do direito de crédito consubstanciado na faculdade de exigir do promitente-vendedor a outorga no contrato prometido, fica com o direito potestativo de obter sentença da qual derivam efeitos equivalentes aos deste último contrato.    

Para se obter sentença que produza os efeitos da declaração negocial do faltoso, é necessária a verificação cumulativa dos requisitos enunciados no art. 830.º do CC, a saber: a) que não seja incompatível com a substituição da declaração negocial a natureza da obrigação assumida pela promessa; b) a inexistência de convenção em contrário; c) e o incumprimento do contrato. 

a) A natureza da obrigação assumida pela promessa opõe-se à execução específica sempre que o contrato prometido não possa ser válida e eficazmente substituído por uma sentença ou apresente uma índole pessoal que justifique deixar-se às partes a liberdade de facto de não celebrar o contrato prometido, mantendo assim, até ao último momento, a possibilidade de não se vincularem definitivamente, como sucede nos casos de contrato de promessa de doação (art. 940.º) ou de prestação de serviço (arts 1154.º a 1156.º). Não é este o caso, pois trata-se da execução de uma obrigação de celebrar um contrato de compra e venda de imóvel.

 b) Relativamente à questão da convenção em contrário invocam os réus que a versão do art. 830.º do CC vigente à data da celebração do contrato-promessa excluía o direito de execução específica, no caso de haver sinal.

 

Uma vez que houve pagamento de sinal, coloca-se a questão de saber se ficou, ou não, ilidida a presunção de convenção em contrário à execução específica.

Trata-se de saber, no caso concreto, qual a função do sinal entregue pelos réus: se uma função confirmatória, que reforça o vínculo jurídico e não significa o afastamento da execução específica, ou se uma função penitencial, que cria “uma reserva de não cumprimento”, correspondente ao preço do arrependimento.

O artigo 830.º do Código Civil admitiu pela primeira vez, na história do nosso direito, a execução específica do contrato-promessa e foi objecto de duas alterações fundamentais de texto, a do DL n.º 236/80, de 18 de Julho e a do DL n.º 379/86, de 11 de Novembro, às quais a jurisprudência tem atribuído natureza interpretativa.

Na sua primitiva versão, proveniente do Código Civil de 1966, que os autores reclamam aqui aplicável, o art. 830.º exigia, para facultar ao promitente o recurso à execução específica, que não houvesse convenção em contrário, entendendo a lei que ela existia, implícita no contrato-promessa, desde que houvesse sinal ou se tivesse convencionado uma pena para o caso de não cumprimento. A convenção das partes era interpretada como se elas pretendessem reservar para si a faculdade de não cumprirem, sujeitando-se embora ao pagamento do sinal ou da pena estipulada. 

A redacção do diploma de 1980 veio eliminar a causa de exclusão da execução específica que consistia na «convenção em contrário» aqui invocada pelos réus, acrescentando para reforçar a eliminação, que a obtenção da sentença constitutiva seria possível em qualquer caso. O legislador quis proteger, em particular, o promitente-comprador de imóvel, quando houvesse tradição da coisa, permitindo-lhe requerer a execução específica do contrato em alternativa ao sinal em dobro ou à atribuição de uma indemnização equivalente ao valor que a coisa tivesse à data do não cumprimento[6]. A constituição de sinal deixou assim de ser considerada como uma presunção de exclusão da execução específica. Passou, pelo contrário, a vigorar a presunção oposta: a de que, não obstante a existência de sinal ou de cláusula penal, as partes quiseram manter aberto o recurso à execução específica, caso se tornasse necessária, desde que tivesse havido tradição da coisa[7]. Por assento proferido por este Supremo Tribunal, em 19 de Dezembro de 1989, ainda se foi mais longe, admitindo-se a possibilidade de recorrer à execução específica, quer tivesse havido ou não entrega da coisa ao promitente-comprador[8].

O diploma de 1986 voltou a admitir a possibilidade de declaração em contrário da execução específica, retornando ao carácter supletivo da regra. Admite-se, não só que a execução específica possa ser afastada por acordo expresso das partes, mas também que a existência de sinal ou de uma pena convencionada para o incumprimento constitua presunção ilidível dessa mesma vontade (artigo 830.º, n.ºs 1 e 2). Mas em compensação, passou a não ser admitida a exclusão da execução específica, ainda que haja convenção das partes em contrário, sempre que o contrato promessa tenha por objecto a celebração do contrato oneroso de transmissão ou constituição de direito real sobre edifício, ou fracção autónoma dele, já construído, em construção ou a construir (art. 830.º, n.º 3 e 410.º, n.º 3).

Conforme tem entendido a jurisprudência e a doutrina[9], a redacção actual do art 830.º, proveniente do diploma de 1986, tem uma natureza interpretativa, visando corrigir algumas das deficiências imputadas ao Decreto-Lei n.º 236/80, de 18 de Julho. De acordo com esta tese, a aplicação do novo texto do art. 830.º aos contratos anteriores à data do seu início de vigência não seria retroactiva, pois a lei interpretativa integra-se na lei interpretada e visa apenas decidir uma questão de direito cuja solução é controvertida ou incerta, consagrando um entendimento a que a jurisprudência, pelos seus próprios meios poderia ter chegado.

Este diploma de 1986, retornando à natureza supletiva da execução específica[10], veio esclarecer, dentro da mesma linha proteccionista do pensamento legislativo do diploma de 1980, que, nos contratos-promessa onerosos que incidam sobre unidades habitacionais, previstos no art. 410.º, n.º 3, a execução específica não pode ser afastada por vontade das partes (art. 830.º, n.º 3, 1.ª parte), circunscrevendo a este tipo de promessas a protecção que o diploma de 1980 alargara a todos os contratos-promessa.

Ora, no caso sub iudice, até porque o incumprimento invocado pelos autores se verificou em 2006, a lei aplicável é a actual redacção do art. 830.º do CC, enquanto lei em vigor à data do incumprimento do contrato promessa[11].

Por outro lado, o art. 830.º, n.º 3, 1.ª parte, na redacção proveniente do Decreto-Lei n.º 379/86, de 11 de Novembro, constitui uma norma imperativa e introduziu uma limitação à autonomia privada, eliminando a possibilidade de exclusão, expressa ou presumida, da alternativa da execução específica, quanto às promessas respeitantes a contratos onerosos de transmissão ou de constituição de direitos reais sobre edifícios ou fracções autónomas, já construídos, em construção ou a construir (art. 410.º, n.º 3). A solução traduz uma especial tutela da lei, destinada a evitar a verificação de situações imorais na prática do contrato-promessa, estimuladas pela desvalorização monetária e pelo próprio acréscimo efectivo do valor dos bens[12]. Uma vez que o prédio objecto do contrato de promessa se integra na noção de «edifício», está abrangido pela disposição legal que tutela especialmente o promitente-comprador através da inderrogabilidade da execução específica, sendo indiferente, para este efeito, que não se tenha provado a traditio. Por outro lado, o pagamento da totalidade do preço constitui uma situação de facto à qual está associada uma forte expectativa de estabilização do negócio.

 c) A execução específica do contrato promessa pressupõe, também, uma situação de mora ou de retardamento do cumprimento pelo obrigado a contratar (acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 23-11-2011, processo n.º 2285/04.4TJVNF.P1.S1, relatado pelo Conselheiro Tavares de Paiva), não sendo necessária a demonstração do incumprimento definitivo, até porque seria um contra-senso que, para a execução específica de contrato-promessa, fosse necessária a prévia resolução do mesmo contrato (cf. acórdão deste Supremo Tribunal, de 15-02-1990, Actualidade Jurídica, ano 2.º, n.º 6, p. 10). Segundo a doutrina, de qualquer modo, a transformação da mora em não cumprimento definitivo afasta-se do regime-regra do art. 808.º, não sendo exigíveis os mesmos formalismos[13]

No caso concreto, foi marcada uma data para a outorga da escritura – 13 de Junho de 2006 – de que os réus foram notificados por carta registada com aviso de recepção, não tendo estes comparecido no cartório notarial na data e hora marcadas, nem se fizeram representar, nem justificaram a sua ausência (factos provados n.º 16 e 17). Pelo que, não há dúvida que a não comparência dos réus à escritura marcada para o dia 13 de Junho constitui mora ou incumprimento da obrigação, susceptível de fundamentar uma acção de execução específica.

Sendo assim, procede o pedido de execução específica do contrato promessa intentado pelos autores, em relação à transmissão das quotas do prédio urbano que foram objecto do contrato promessa.

3) Posse e usucapião

 Nos termos do art. 660.º, n.º 2 do CPC, «O juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras».

Assim, não se conhece desta questão por ter ficado prejudicada pela solução dada às anteriores. 

IV – Decisão

Pelo exposto, decidimos, na 1.ª Secção deste Supremo Tribunal de Justiça, revogar o acórdão recorrido e declarar procedente a execução específica do contrato promessa, declarando:

1.º - a transmissão para os Autores AA ( a quem sucederam BB, CC e DD) e esposa BB, do direito de propriedade sobre 1/10 indiviso dos prédios: urbano, constituído por casa de 2 andares, inscrito na matriz predial sob o artº 103º, e urbano, constituído por edifício de rés-do-chão destinado a comércio, inscrito na matriz predial sob o artº nº 1.362, ambos sitos no lugar de ..., freguesia de ..., concelho de Vª Nª de Famalicão, e formam o descrito na C.R.P. de Vª Nª de Famalicão sob o nº … daquela freguesia, registada a dita fracção a favor dos vendedores pela inscrição G-1;

2º - a transmissão para os AA. EE e mulher FF (a quem sucederam, por habilitação de herdeiros, EE, GG e HH) 1/20 indivisos dos prédios precedentemente identificados;

3º - a transmissão para os AA. II, casado com JJ, 1/20 indivisos dos prédios precedentemente identificados.

Custas pelos recorridos.


Lisboa, 1 de Julho de 2014


Maria Clara Sottomayor (Relator)

Sebastião Póvoas

Moreira Alves

________________
[1] Cf. Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, I, Parte Geral, Tomo IV, 2005, Livraria Almedina, Coimbra, 2005, p. 375.
[2] Ibidem, p. 373.
[3] Ibidem, pp. 161 e 165.
[4] Cf. Ibidem, p. 283.
[5] Ibidem, p. 292.
[6] Cf. Pires de Lima/Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. II, 4.ª edição revista e actualizada, Coimbra Editora, Coimbra, 1997, p. 109.
[7] Ibidem, p. 109-110.
[8] Cf. BMJ, n.º 392, p. 139.
[9] Cf. acórdãos deste Supremo Tribunal de Justiça, de 17 de Abril de 2008 (processo n.º 08A631), Relator: Conselheiro Moreira Camilo; de 3 de Dezembro de 1991, Processo n.º 080838, Relator: Conselheiro Cura Mariano; Pires de Lima/Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. II, 4ª edição, Coimbra Editora, Coimbra, 1997, pág. 111 e preâmbulo do Decreto-Lei nº 379/86, de 11 de Novembro (ponto n.º 1).
[10] Para uma crítica a esta solução legislativa, entendendo que o direito de arrependimento não se coaduna com o princípio pacta sunt servanda e com a irrenunciabilidade prévia ao direito de exigir o cumprimento das obrigações (art. 809.º), e defendendo que, em regra, o sinal tem uma função confirmatória, vide Calvão da Silva, Sinal e Contrato Promessa, 11.ª edição, Almedina, Coimbra, 2006, pp. 150-151.
[11] Sobre o problema da aplicação das leis no tempo, a propósito da norma do art. 830.º do CC, vide o acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 25-02-2014, proferido no processo n.º 1987/1996. E1.S1, também relatado pela, agora, Relatora.
[12] Cf. Almeida Costa, Direito das Obrigações, 10.ª edição reelaborada, Almedina, Coimbra, 2006, p. 417.
[13] Cf. Almeida Costa, Direito das Obrigações, ob. cit., pp. 436-438.