Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1295/11.0TBMCN.P1.S2
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: ROSA RIBEIRO COELHO
Descritores: PRINCÍPIO INQUISITÓRIO
PODERES DO TRIBUNAL
RENOVAÇÃO DA PROVA
NOVOS MEIOS DE PROVA
PODERES DA RELAÇÃO
MATÉRIA DE FACTO
PRINCÍPIO DA VERDADE MATERIAL
RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
ACIDENTE DE VIAÇÃO
CONCORRÊNCIA DE CULPAS
CULPA DO LESADO
CAPACETE DE PROTECÇÃO
CAPACETE DE PROTEÇÃO
CÁLCULO DA INDEMNIZAÇÃO
Data do Acordão: 10/18/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL – DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / MODALIDADES DAS OBRIGAÇÕES / OBRIGAÇÃO DE INDEMNIZAÇÃO / CULPA DO LESADO.
Doutrina:
- Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Volume I, p. 484;
- Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5.ª Edição, p. 296, 406 e 407;
- Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Volume 2.º, 3.ª Edição, p. 208.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 570.º, N.º 1.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 29-01-2008, PROCESSO N.º 07A 3014;
- DE 08-10-2013, PROCESSO N.º 1585/06.3TBPRD.P1.S1;
- DE 07-05-2014, PROCESSO Nº 1070/11.TBVCT.G1.S1;
- DE 30-04-2014, PROCESSO N.º 856/07-6TVPRT.P1.S1;
- DE 22-10-2015, PROCESSO N.º 212/06, TODOS IN WWW.DGSI.PT.
Sumário :
I – O princípio do inquisitório adquire plena eficácia na fase da instrução do processo, constituindo um poder-dever que se impõe ao juiz com vista ao apuramento da verdade material e à justa composição do litígio.

II – Este poder-dever cabe com particular acuidade ao juiz de 1ª instância, mas estende-se igualmente às Relações, tribunais que, como os de 1ª instância, conhecem da matéria de facto em recurso que para eles seja interposto contra a decisão proferida neste campo.

III – Tendo o objeto do seu conhecimento delimitado pelos concretos pontos de facto que o recorrente, ao abrigo do princípio do dispositivo, tenha indicado como incorretamente julgados, já no tocante à averiguação desses mesmos factos o Tribunal da Relação não tem de limitar a sua análise aos meios de prova indicados pelo recorrente, dispondo, aqui, de amplo poder inquisitório no âmbito do qual pode recorrer à renovação da prova ou à produção de novos meios de prova.

IV – A renovação da prova terá lugar “quando houver dúvidas sérias sobre a credibilidade do depoente ou sobre o sentido do seu depoimento”; já a produção de novos meios de prova cabimento “em caso de dúvida fundada sobre a prova realizada”.

V – O princípio do inquisitório coexiste com outros igualmente consagrados no nosso CPC, como sejam “os princípios do dispositivo, da preclusão e da autorresponsabilidade das partes, de modo que não poderá ser invocado, para de forma automática, superar eventuais falhas de instrução que sejam de imputar a alguma das partes, designadamente quando esteja precludida a apresentação de meios de prova.

VI – Se momento do embate, o lesado, motociclista, não usava capacete de proteção e se, tendo embatido no asfalto, sofreu lesões que se situaram sobretudo no crânio, é adequado atribuir-lhe a percentagem de 30% de culpa na produção/ agravamento dos danos que sofreu, nos termos do art. 570º, nº 1 do C. Civil, com a inerente redução da indemnização.

Decisão Texto Integral:
ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DA JUSTIÇA

2ª SECÇÃO CÍVEL




I - AA, por si e em representação de seu marido[1], BB, intentou a presente ação, então sob a forma de processo ordinário, contra a Companhia de Seguros CC, S.A., pedindo a condenação desta a pagar-lhe a quantia global de € 694.469,30, acrescida de juros de mora à taxa legal, contados desde a citação e até efetivo pagamento, destinada a indemnizar os danos de natureza patrimonial e não patrimonial sofridos pelos autores em virtude de uma acidente de viação ocorrido por culpa exclusiva do condutor do veículo segurado na ré e, ainda, a ressarcir, no futuro, os danos que se venham a apurar, em conformidade com a factualidade alegada nos artigos 59º a 65º da petição inicial.


Contestou a ré, negando, em suma, a culpa do seu segurado na ocorrência do acidente e atribuindo-o a culpa do lesado.


Realizado o julgamento foi proferida sentença onde se decidiu:

“1. Condenar a Ré Companhia de Seguros CC, SA., a pagar ao A. BB: a) a título de danos patrimoniais[2], a quantia de € 14.000,00 (catorze mil euros), acrescida de juros de mora à taxa de 4% ao ano, desde a data da citação até efectivo e integral pagamento;

b) a título de dano pela perda da capacidade de ganho, a quantia de € 344.666,66 (trezentos e quarenta e quatro mil seiscentos e sessenta e seis euros e sessenta e seis cêntimos), acrescida de juros de mora à taxa de 4% ao ano, desde a data da citação até efectivo e integral pagamento.

c) a título de danos não patrimoniais, a quantia global de € 153.333,33 (cento e cinquenta e três mil trezentos e trinta e três euros e trinta e três cêntimos), acrescida de juros de mora à taxa legal de 4% ao ano, desde a data da presente sentença, até efectivo e integral pagamento.

d) as despesas que o A. terá de suportar com internamentos, tratamentos e ajudas de terceira pessoa, médicas e medicamentosas, na proporção de 2/3 (dois terços), a liquidar em execução de sentença.

2. Condenar a Ré Companhia de Seguros CC, SA. a pagar à A. AA, a título de danos não patrimoniais, a quantia de € 10.000,00 (dez mil euros), acrescida de juros de mora à taxa legal de 4% ao ano, desde a data da presente sentença, até efectivo e integral pagamento.

 3. Condenar a Ré Companhia de Seguros CC, SA., a pagar ao Instituto de Segurança Social, IP/Centro Nacional de Pensões, a quantia de € 16.668,77 (dezasseis mil seiscentos e sessenta e oito euros e setenta e sete cêntimos), acrescida de juros à taxa legal de 4% ao ano, desde a notificação até efectivo e integral pagamento.

4. Absolver a Ré Companhia de Seguros CC, SA. Dos restantes pedidos formulados nos autos.

As custas serão a suportar pelos Autores, Réu e ISS/CNP, quanto aos respectivos pedidos, na proporção do respectivo decaimento (art. 527º do CPC)».


Interposto recurso de apelação por ambas as partes, foi proferido acórdão com o seguinte dispositivo:

“Com fundamento no exposto, acordam os Juízes desta Relação:

a) Em julgar parcialmente procedente a impugnação da decisão da matéria de facto e, em consequência: em alterar o facto 43 e em aditar o facto 55 da factualidade provada, nos termos referidos nos pontos 2.5.2 e 3 da presente decisão;

b) Em julgar parcialmente procedente o recurso dos autores e, em consequência, de acordo com o ponto 5.1.2., em alterar o montante indemnizatório referente ao dano sexual, fixando-o em € 20.000,00;

c) Em julgar parcialmente procedente o recurso da ré e, em consequência:

i) em fixar em € 5.111,12 a indemnização por perdas salariais;

ii) em fixar em € 133.333,00 a indemnização por perda da capacidade de ganho;

iii) em fixar em € 133.333,00 a indemnização por danos não patrimoniais.

c) Em tudo o mais se mantém a sentença recorrida.


Continuando inconformados, os autores trouxeram o presente recurso que, à cautela, interpuseram como revista excepcional no tocante à questão da “repartição de responsabilidades feita ao abrigo do art. 570º do C. Civil”, para a hipótese de se entender que, quanto a ela, se verifica dupla conformidade.


Distribuído como revista excecional, a Formação a que se refere o art. 672º, nº 3 do CPC[3] proferiu acórdão onde se lê:

Temos, pois, que, em primeira linha, a recorrente pretende que a admissão seja como de revista em termos gerais.

Não tem esta Formação competência para apreciar essa admissão, uma vez que ela se restringe à apreciação da verificação dos pressupostos de admissão de revista em termos excecionais – cfr. nº 3 do citado art. 672º.

A competência para apreciação da admissão da revista em termos gerais pertence às formações normais.

Assim, acorda-se em ordenar a remessa do recurso para distribuição como revista normal.

Caso esta não seja admitida, voltará a esta Formação para apreciação da admissão em termos excecionais no que concerne à questão aludida pela recorrente.”


O recurso veio a ser admitido, na sua totalidade, como revista normal por despacho da relatora de fls. 775-6.


Os recorrentes, nas suas alegações pedem a alteração do acórdão recorrido, formulando, para tanto, as conclusões que passamos a transcrever:

1ª O presente recurso irá versar sobre dois pontos:

1 - percentagem da indemnização, reduzida pelo facto A. (lesado) não possuir capacete de proteção;

2 - rendimento auferido pelo A. - a violação do poder-dever de determinar a produção de diligências probatórias, no que ao rendimento auferido pelo A. diz respeito, por forma a atingir a descoberta da verdade material e a boa decisão da causa.


2ª Da percentagem a considerar no agravamento das lesões neurológicas decorrentes do não uso de capacete. Neste aspeto, considerando a total ausência de responsabilidade do A. e o gravíssimo estado que lhe adveio em consequência direta e necessária do comportamento estradai do condutor do veículo seguro na Recorrida, consideramos que a redução operada na indemnização atribuída em Ia instância é de uma desumanidade difícil de qualificar.


3a Atenta a gravidade e a objetividade da situação, se fosse possível emitir, graficamente, silêncio significante, ficaríamos por aqui!

Todavia, como não é possível, apesar de acreditarmos, profunda e convictamente, na boa consciência do normal julgador, entendemos que nunca será demais repetir que estamos perante uma redução severíssima da indemnização fundada apenas no facto de o A. ter contribuído para o agravamento das lesões, mas em que este - saliente-se - não teve responsabilidade alguma no presente sinistro!


4O A. ficou a vegetar, com 100% de incapacidade!

A redução operada no valor da indemnização é de tal forma severa que poderá colocar em causa a sua subsistência. Os 30% poderão vir (se o A. sobreviver por mais uns "bons" anos) a consumir grande parte da indemnização atribuída (dos 70%) - situação que colide com aquele que é o verdadeiro desiderato do art. 570° do CC.

Repete-se: na situação dos autos não há culpa do A.!


5ª As consequências são-no, "in totum”, adequadamente causadas pelo condutor do veículo seguro na Recorrida. O A. só teve responsabilidade no agravamento. Somos, por isso, da opinião de que a redução a operar não deverá exceder os 10%, sob pena de se cometer uma tremenda injustiça.

Pelas razões expostas e em atenção à jurisprudência citada na alegação acima aduzida, reduzir em mais de 10% o valor atribuído com base em 100%, implica insensibilidade pelo caso concreto e desrespeito pelo 570° do CC.


7a    Quanto aos rendimentos do A. - pensamos que o Tribunal da Relação avaliou mal ao alterar a matéria de facto, não dando como provado nem o vínculo laboral do A., nem a retribuição média que o mesmo auferia a trabalhar em Espanha.


8a Da prova produzida em audiência, ficou claro, para os AA. e para o Tribunal, que o A. trabalhava em Espanha, para a empresa DD, Soc., e que auferia uma retribuição média mensal superior a 1500€.


9ª O Tribunal justificou a decisão acima descrita, fundando-a no depoimento das testemunhas e sinalizando algo que é de elementar conhecimento geral - qualquer trolha aufere em Portugal 50 ou 60 euros por dia, mas em Espanha ganha mais.

A sinalização destes argumentos consubstancia facto notório e, por outro lado, a declaração de IRS, na situação dos autos, não tem força probatória plena (cfr. os Acs. da RG de 19/06/2012, processo n.° 430/09.2TBBCL.G1 e da RP de 20/09/2007, processo n.° 0733538, inwww.dgsi.pt)."


10ª O Tribunal da Relação teceu duras críticas à atuação dos AA. - "acusando-os", nomeadamente, de negligência (por omissão).

Por uma questão de respeito pelos outros, é de concluir os AA. alegaram e fizeram a prova com base naquilo de que dispunham à data do julgamento e, bem ou mal, que entendiam ser suficiente para provar tal matéria (alegaram e produziram prova - prova essa que até foi considerada credível por ambas as instâncias).


11a Não há dúvida de que os Tribunais estão para fazer justiça e não para censurar a menos eficiente condução da tramitação processual das partes. Noutro contexto até aceitaríamos silenciosamente a crítica, neste caso pensamos que ela é dura e que distrai, isso sim, quanto ao desrespeito por normas e princípios que o Tribunal tem obrigação de respeitar - designadamente os imperativos comandos contidos art. 411° do NCPC.


12a Somos, por isso, da opinião que o Venerando Tribunal da Relação tendo ficado, como ficou, com dúvidas acerca do vínculo laboral e do rendimento que o A. auferia, podia e devia ter ordenado a remessa dos autos à Ia instância - determinando novas diligências probatórias adequadas ao esclarecimento de tais factos.

Ao não o fazer, o Tribunal violou um autónomo poder-dever de indagação oficiosa, ao qual está vinculado, violando o citado artigo e um dos princípios orientadores da reforma do Código Processo Civil - o princípio do inquisitório - atuação que consubstancia nulidade, que aqui se invoca.


13a Ficamos até com a sensação que o Tribunal da Relação do Porto, tecnicamente e por uma questão de justiça, não tinha alternativa. Só poderia ser esta a decisão a tomar quando refere o seguinte:

"Na persistência da dúvida [negrito e sublinhado nosso] (cujo esclarecimento, repete-se, estava ao alcance dos autores) tal incerteza não pode deixar de prejudicar a posição daquele sobre quem incide o ónus da prova (autor), como preceitua o artigo 414.° do Código de Processo Civil."


14a Daqui, claramente se retira que o Venerando Tribunal ficou com dúvidas acerca de tal matéria, mas, ainda assim, numa postura formalista e inflexível, alheia ao princípio da descoberta da verdade material e da justa composição do litígio, decidiu dar uma resposta restritiva ao facto 43 - assentando que o A. auferia a retribuição anual de 7.666,68€.


15ª A propósito do poder-dever do Juiz, frontalmente violado no acórdão em crise, entendemos ser necessário fazer um breve resumo da questão – questão que tem sido tema central nas alterações introduzidas ao nosso processo civil ao longo dos últimos 20 anos.


16a As reformas acolheram o modelo inquisitório; o nosso CPC, para além de confiar ao juiz a direção do processo, confere-lhe poderes instrutórios, previstos no 411.° do CPC, norma cujas consequências práticas e teóricas são de grande importância. Ao juiz cabe, pois, a iniciativa da produção de prova.


17a Não temos dúvidas que o uso do poder a que se refere o art. 411° do CPC (anterior n.° 3 do art. 265° do velho CPC) deve ser visto como um poder-dever. Vários elementos de interpretação apontam para esta última hipótese: a letra da lei; algumas ligações sistemáticas e o particular modelo inquisitório subjacente à reforma do CPC de 1995/1996, que ainda saiu reforçada com as profundas alterações introduzidas em 2013.


18a   Com a entrada em vigor, no dia 01/09/2013, da Lei n° 41/2013, assistimos a um reforço dos poderes do juiz que acompanhou os ordenamentos mais próximos do nosso, introduzindo-se restrições ao princípio dispositivo, reconhecendo uma função mais interventiva do juiz, nomeadamente com vista ao apuramento da "verdade material" e à "justa composição do litígio".


19a Nesta reforma verificou-se uma forte compressão do princípio do dispositivo e um reforço do princípio inquisitório no plano da instrução (art. 411° do CPC). Sobre o juiz, impende o poder-dever de, uma vez determinado o objeto do litígio (art. 596°, n° 1, do CPC), ir em busca da verdade material, apreendendo não só todos os factos instrumentais que brotem da instrução - art. 5o, n° 2, a), do CPC -, os factos notórios - artigo 412°, n° 1, do CPC - e os factos de que tenha conhecimento por virtude do exercício das suas funções - art. 412°, n° 2, do CPC -, mas também "os factos que sejam complementares ou concretizadores dos que as partes hajam alegado e resultem da instrução da causa, desde que sobre eles tenham tido a possibilidade de se pronunciar" (art. 5o, n° 2, b), do CPC).


20a Ampliaram-se, assim, os poderes de cognição do juiz. Com este modelo enfraqueceu-se o princípio da autorresponsabilidade das partes na conformação da matéria de facto em nome da maior "publicização" do processo civil.


21a O CPC de 2013 acentuou a função jurisdicional civil, enquanto função do Estado ao serviço da justa composição de litígios, de acordo com a verdade material, uma vez que a sua descoberta envolve um alto interesse do Estado e assim se promove a confiança e a justiça dos tribunais. Se o Venerando Tribunal estava com dúvidas quanto à prova desse facto deveria ordenar a baixa do processo à Ia instância para que tal facto fosse esclarecido. Trata-se de um poder-dever.


22a Ao não o ter feito, "fechou os olhos" à descoberta da verdade material, "lesando" o A. em centenas de milhares de euros relativamente àquela que deveria ser a sua indemnização - ressarcimento essa que será sempre insignificante, tendo em conta a terrível situação que resultou para o A. em consequência do evento dos autos.


A parte contrária contra-alegou sustentando a improcedência da revista.


Cumpre decidir, sendo questões sujeitas à nossa apreciação – visto o conteúdo das conclusões que, como é sabido, delimitam o objeto do recurso, ressalvadas as questões de conhecimento oficioso - as de saber se:

- o acórdão recorrido incorreu em violação do princípio inquisitório quando julgou como não provado, quer “o vínculo laboral do A.”, quer “a retribuição média que o mesmo auferia a trabalhar em Espanha”,  em vez de ter determinado a realização de “novas diligências probatórias adequadas ao esclarecimento” desses factos – conclusões 8ª a 22ª;

- deve ser fixada em percentagem não superior a 10% a redução da indemnização em virtude da culpa do lesado na produção/agravamento dos danos que sofreu – conclusões 1ª a 7ª.


II – Vêm julgados como provados os seguintes factos (após a procedência parcial da impugnação deduzida pela ré contra a decisão proferida sobre alguns factos):

1. A A. e seu marido têm um filho com mais de 18 anos de idade.

2. No dia 07-08-2010, cerca das 15h50, na rua da …, n.º de Polícia …, freguesia de …, concelho de Marco de Canaveses, ocorreu uma colisão/acidente de viação.

3. Nessa colisão/acidente de viação foram intervenientes os veículos/motociclos com as matrículas e condutores a seguir indicados:

- …-…-VZ, pertença de EE e conduzido pelo marido da Autora;

- …-GB-…, conduzido por FF - seu dono.

4. O evento aconteceu da seguinte forma: o BB circulava com o sentido de marcha Alpendorada - Várzea do Douro.

5. O condutor do veículo VZ, BB, tinha à data do acidente 42 anos de idade.

6. A A. e seu marido são casados há mais de 17 anos.

7. A A. nasceu em 21-05-1975.

8. No dia 07/08/2010, verificou-se uma concentração de motos, as quais, pelas 15h50m, se encontravam, na sua grande maioria, paradas em frente ao restaurante GG, em zona a tanto destinada.

9. Uma de entre essas motas era o motociclo com matrícula …-GB-…, a qual estava estacionada no parque em apreço, com a frente para o referido restaurante.

10. A Companhia de Seguros CC, SA., por contrato de seguro válido e eficaz à data do acidente, havia assumido a responsabilidade civil inerente à circulação do veículo com matrícula …-GB-…, contrato esse titulado pela apólice n.º 84…8.

12. A vítima do acidente de viação a que se reportam os autos, BB, é o beneficiário n.º 1 …12 do ISS/Centro Nacional de Pensões.

13. Em 29.11.2010 o referido beneficiário requereu ao ISS/Centro Nacional de Pensões, a pensão de invalidez e o complemento por dependência.

14. A A. é empregada … e auferia e aufere o salário mínimo nacional.

15. Do salário mensal líquido que auferia, BB entregava à A., sua mulher, a quantia média mensal de € 500,00.

16. Com esse valor médio e com o produto do seu salário, a A. fazia face/suportava as despesas do seu agregado familiar.

17. Devido ao acidente objeto destes autos, BB sofreu lesões crânio-encefálicas.

18. Essas lesões impossibilitam-no de falar, de escrever, de se alimentar, de fazer a sua higiene pessoal e de tomar a medicação diária.

19. BB tem escassas possibilidades de vir a retomar a sua consciência, em termos de poder gerir os seus interesses de qualquer ordem,…

20. nomeadamente no que tange à possibilidade de mandatar advogado para demandar a seguradora ora Ré.

21. A A. tem vindo a receber ajudas de familiares e amigos.

22. O veículo …-GB-… encontrava-se, a dada altura, parado na berma da faixa esquerda, atento o sentido de marcha de BB.

23. Quando BB se aproximava do local, sem que nada o fizesse prever, o condutor do GB deu início ao atravessar da faixa de rodagem.

24. O condutor do GB fez essa manobra de forma inopinada, posicionado o GB, repentinamente, à frente do veículo …-…-VZ.

25. Em virtude da colisão da roda da frente do VZ contra a parte lateral direita do GB, BB perdeu o controlo do motociclo que conduzia (VZ).

26. Devido à referida colisão, BB foi impulsionado para fora do assento do VZ e acabou por embater no asfalto.

27. Logo após o sinistro e em consequência do mesmo, BB perdeu a consciência.

28. Os senhores agentes chegaram ao local de ocorrência do acidente de viação já depois de os veículos intervenientes terem sido retirados do local.

29. Do local do acidente e no dia da sua ocorrência, BB foi transportado para o Centro Hospitalar do …, de P….

30. Do Centro Hospitalar do …, de P…, após ter sido entubado e sedado, foi transferido para o Hospital de …, na cidade do Porto.

31. Chegado ao Hospital de …, na cidade do Porto, BB foi internado no Serviço de Neurocirurgia de 07-08-2010 a 01-10-2010, e permaneceu na Unidade de Cuidados Intensivos de Neurocríticos de 07-08-2010 até 03-09-2010.

32. À entrada do Hospital de …, na cidade do Porto, mediante realização de TAC cerebral, de observação do seu estado geral e de outros exames, apurou-se que BB sofreu as seguintes lesões:

a) - contusões hemorrágicas cerebrais na região temporo-polar esquerda, com hemorragia subaracnoideia associada a vala sílvica;

b) - foco de contusão hemorrágica insular anterior direita com cerca de um centímetro;

c) - hemorragia intra-ventricular no ventrículo lateral esquerdo;

d) - foco de contusão hemorrágica mesencefálica mediano com hemorragia subaracnoideia na cisterna interpedular e na cisterna pré-pontica;

e) - focos de contusão hemorrágicos subcorticais frontais esquerdos;

f) - fratura linear do crânio na região pterional esquerda com irradiação do esfenóide;

g) - fratura das paredes anterior e posterior do maxilar superior, da arcada zigmática e da parede externa da órbita à esquerda;

h) - afundamento das paredes anterior e posterior do seio maxilar esquerdo e sangue intrasinusal;

i) - fracturas alinhadas do tecto da órbita esquerda, irradiando à face superior do corpo do esfenóide e ao tecto do etmóide.

33. Havia também um traço de fratura que atingia o canal óptico esquerdo, fratura do palato duro e da apófise pterigoideia à esquerda e ainda hematoma e enfisema das partes moles da face.

34. BB manteve-se em E.C.G=4 (01V1M2) na UCI de Neurocríticos.

35. Em 26-08-2010 efectuou traqueotomia cirúrgica.

36. Em 01-10-2010 foi transferido para o Centro Hospitalar do … – Hospital da área da sua residência - com ‘mau prognóstico neurológico, sem potencial para recuperação funcional e em estado de invalidez permanente’.

37. Em 01-12-2010 foi internado na Clinica HH, S.A., onde permaneceu até 03-03-2011.

38. Em 03-03-2011 passou a ser tratado na unidade de serviços continuados do Hospital de …, na cidade de M….

39. BB encontrava-se, à data de instauração da presente ação (23-09-2011), no Hospital de …, na cidade de M…, e evidenciava ‘escassas possibilidades médicas de vir a recuperar do estado de total incapacidade para o que quer que seja, designadamente para cuidar de si e/ou para vir, no futuro, a levar a cabo qualquer atividade profissional’.

40. Por causa das lesões acima descritas, o A., desde a data do acidente até ao presente, foi sujeito a tratamentos.

41. Todavia, apesar dos mesmos, à presente data permanece, 24 sobre 24 horas, deitado numa cama e a carecer, de forma permanente, de cuidados médicos a prestar, necessariamente, por profissionais e com recursos clínicos qualificados.

42. BB está incapaz, designadamente, para a prática dos seguintes atos:

- para cuidar da sua higiene pessoal;

- para se alimentar;

- para tomar medicamentos;

- para comunicar por qualquer forma;

- para se vestir e calçar;

- para efetuar, de forma autónoma, as suas necessidades físicas;

- para se sentar e levantar da sanita.

43. O autor BB auferia, pelo menos, a retribuição anual de € 7.666,68.

44. BB deixou de poder controlar os esfíncteres – vive diariamente algaliado e com fralda e ficou, igualmente, a padecer de disfunção sexual nível 7, e défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 100 pontos.

45. Sente dores.

46. BB ficou a precisar de ajuda de 3ª pessoa e de cuidados médicos para continuar a viver.

47. Desde a data do acidente até 23-09-2011, BB permaneceu sempre internado, o que perfazia 412 dias à ora referida data.

48. Desde a data do acidente até 07-08-2011, BB deixou de auferir, a título de perdas salariais, a quantia correspondente aos salários, ao subsídio de férias e ao subsídio de Natal.

49. Desde sempre a A. e seu marido viveram em harmonia.

50. Após o acidente, a vida sexual do casal terminou.

51. Devido ao acidente, BB foi internado em clínica e hospital supra identificados, situação em que se mantém e vai continuar a manter por tempo não determinado, atenta a especificidade das necessidades médico-medicamentosas de que tem vindo, diariamente, a carecer.

52. Realizada a CVIP em 2011.03.15, no âmbito do pedido ao ISS, foi o beneficiário considerado incapaz permanentemente para o exercício da sua profissão com efeitos a partir de 2010.11.29 e ainda considerado não poder praticar com autonomia os atos ordinários da vida quotidiana, necessitando de assistência permanente de outra pessoa, com efeitos a partir de 2010.11.29.

53. Em consequência dessa verificação e porque o beneficiário reunia os requisitos legalmente exigidos, foi-lhe deferida pelo ISS/Centro Nacional de Pensões a pensão de invalidez e complemento por dependência a partir daquelas datas.

54. De 29/11/2010 até 31/12/2016 foram pagas ao Autor pensões de invalidez e complemento de dependência que totalizam o valor de € 25.003,16, sendo o valor mensal atual da pensão de invalidez de € 195,23 e do complemento de dependência de € 182,11.

55. BB, no momento do acidente, quando conduzia o “VZ” não tinha o capacete colocado na cabeça.


Factos não provados

Todos os restantes factos foram dados como não provados, aqui se dando por integralmente reproduzidos para todos os efeitos legais (não tendo o Tribunal considerado os artigos conclusivos e de Direito), e não se provaram, desde logo, os factos da Base Instrutória sob os n.ºs 7º, 14º, 34º, 37º, 43º, 44º e 46º a 55º.

Assim, não se provou, designadamente, que:

A) O VZ foi parar a cerca de cinco metros do local da colisão.

B) O A. era uma pessoa calma, de muito bom trato.

C) A A., em representação material de seu marido, tem vindo a efectuar o pagamento das despesas que se têm mostrado essenciais aos cuidados de que aquele tem vindo a carecer e até à presente data, a A., sem incluir outras, suportou as seguintes despesas:

- em transportes, € 500,00;

- em medicamentos e taxas moderadoras, € 500,00.

D) A A., pessoa dedicada ao marido e de fortes convicções religiosas, quer manter os laços matrimoniais - circunstância que a impede de procurar outros parceiros - sendo que, assim, a situação de seu marido a impossibilita de consumar, na plenitude, o matrimónio.

E) Tal facto tem vindo a deprimir profundamente a A., ao ponto de ter vindo a carecer de toma de medicamentos para dormir e combater a grave depressão que tem vindo a sentir.

F) A A. e/ou terceiros - que não clínicas e/ou hospitais - reúnem, a qualquer título, condições para lhe dar o apoio de que carece para se manter vivo.

G) BB recebeu pela assistência global que lhe foi prestada entre o dia 01-12-2010 e o dia 03-03-2011, pela HH, S. A. e pelo Serviço de Cuidados continuados do Hospital de …, de M…, até 23- 09-2011, a quantia global de € 1.969,30.

H) Em determinado momento o condutor do "GB", porque pretendia sair do local onde tinha o “GB” parado, subiu para o mesmo e, quando se preparava para colocar o capacete verificou que o condutor do motociclo com matrícula …-…-VZ tinha “pegado” neste, e saído do local onde estavam estacionadas as demais viaturas, acedido à Rua … e tomado a direção de Favões.

I) Após percorrer alguma centenas de metros, o condutor do "VZ" efetuou uma inversão de marcha.

J) E passou a circular na mesma via, mas agora em direção a Várzea do Douro, circulação essa realizada a velocidade superior a 90 Km/h.

L) Quando se aproximou do local onde se encontravam estacionados os demais motociclos, “GB” incluído, tentou o Sr. BB, condutor do "VZ", realizar uma “habilidade”, denominada de “égua”, a qual se traduz numa forte travagem da roda dianteira de modo a levantar a roda traseira.

M) Ao tentar tal “habilidade”, o condutor do “VZ” perdeu o controlo do motociclo, o qual veio, completamente descontrolado, em direção ao parque onde se encontravam estacionadas as motos.

N) Como consequência do choque entre o VZ e o GB, o condutor do GB foi projetado ao solo.

O) A própria seguradora do “VZ”, perante a reclamação que o segurado da ora R. lhe endereçou, e após averiguação à dinâmica do acidente, indemnizou o condutor e dono do “GB” de todos os danos por si sofridos com o acidente.

P) O Sr. BB quando conduzia o “VZ” tinha colocado o capacete na cabeça.


III – Abordemos então as questões de que nos cabe conhecer.


Da alegada violação do princípio do inquisitório:

A boa compreensão do que os recorrentes sustentam acerca desta questão reclama uma breve síntese do que se passou quanto ao facto agora descrito como provado sob o nº 43.

O Tribunal de 1ª instância consagrara como verdadeira a versão que dele haviam apresentado os autores no art. 40º da p. i., ou seja, julgara como provado na sentença que “À data do acidente, BB trabalhava para a empresa “DD”, com sede em … 9 3 DH, em Espanha, ao serviço da qual auferia uma retribuição média mensal líquida de € 1.500,00”.

No recurso de apelação que contra ela interpôs, a ré impugnou a decisão proferida sobre esse facto, sustentando que o mesmo, ao invés do considerado, devia ser julgado como não provado.

Conhecendo dessa impugnação, o acórdão recorrido, dando-lhe procedência parcial, julgou como provado apenas o que agora consta no nº 43 que, relembremos, tem o seguinte teor:

 “O autor BB auferia, pelo menos, a retribuição anual de € 7.666,68”.

E é contra esta decisão que os recorrentes verdadeiramente se insurgem, o que revelam, desde logo, nas conclusões 7ª a 9ª onde atribuem erro de julgamento ao acórdão recorrido quanto a este facto.

 

Segundo o art. 33º da LOFTJ, este STJ apenas conhece de matéria de direito, ressalvadas as exceções previstas na lei.

Na mesma linha vão os arts. 674º, nº 3 e 682º, nº 2, estabelecendo o primeiro que o erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objeto de recurso de revista, salvo havendo ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova, e impondo o segundo a definitividade da decisão proferida pela Relação quanto à matéria de facto, ficando ressalvada a possibilidade de o STJ a alterar no caso excepcional previsto na primeira das referidas normas.

A intervenção do STJ no campo dos factos justifica-se nas situações excecionais em que, como refere Abrantes Geraldes[4], se está perante “verdadeiros erros de direito que, nesta perspectiva, se integram também na esfera de competência do Supremo” que então “pode cassar uma decisão sustentada em determinado facto cuja prova, dependente de documento escrito, foi declarada a partir de depoimento testemunhal, de documento de valor inferior, de confissão ineficaz ou de presunção judicial.

Por seu lado deverá também introduzir as modificações na decisão da matéria de facto que se revelarem ajustadas quando, por exemplo, tenha sido descurado o valor probatório pleno de determinado documento ou tenham sido desatendidos os efeitos legais de uma declaração confessória ou do acordo das partes.


Visando, sem margem para dúvida razoável, a alteração da decisão proferida, em sede de apreciação de recurso interposto contra a decisão quanto àquele facto, mas cientes das ditas restrições que a lei adjetiva impõe ao conhecimento por este STJ de questões de facto, os recorrentes optam por, trilhando caminho diverso, atribuir ao acórdão recorrido violação do princípio do inquisitório.

E radicam tal violação na alegada circunstância de, tendo o Tribunal da Relação ficado “com dúvidas” (sic) acerca da verdade do facto tal como fora por eles alegado, não ter determinado, contra o que seria imposto pelo princípio do inquisitório, a remessa dos autos ao Tribunal de 1ª instância para “a realização de novas diligências probatórias adequadas ao esclarecimento” desse mesmo facto.

Sem razão.


Agora integrando o Título V “Da instrução do processo”, o princípio do inquisitório adquire plena eficácia na fase da instrução do processo, em cujo domínio opera, como flui do art. 411º, segundo o qual “Incumbe ao juiz realizar ou ordenar, mesmo oficiosamente, toda as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, quanto aos factos de que lhe é lícito conhecer.

Vem-se entendendo que se está, não perante um poder de exercício discricionário por parte do juiz, mas perante um poder-dever que se lhe impõe com vista ao apuramento da verdade material e à justa composição do litígio.[5]

Cabendo com particular acuidade ao juiz de 1ª instância, o exercício do poder inquisitório estende-se igualmente às Relações, tribunais que, como os de 1ª instância, conhecem da matéria de facto em recurso que para eles seja interposto contra a decisão proferida neste campo.

Com efeito, tendo o objeto do seu conhecimento delimitado pelos concretos pontos de facto que o recorrente, ao abrigo do princípio do dispositivo, tenha indicado como incorretamente julgados, já no tocante à averiguação desses mesmos factos, o Tribunal da Relação não tem de limitar a sua análise aos meios de prova indicados pelo recorrente para evidenciar o erro de julgamento que atribui à 1ª instância, dispondo, aqui, de amplo poder inquisitório no âmbito do qual pode recorrer à renovação da prova ou à produção de novos meios de prova, nos termos previstos no art. 662º, nº 2, alíneas a) e b).[6]

O primeiro dos enunciados mecanismos terá lugar “quando houver dúvidas sérias sobre a credibilidade do depoente ou sobre o sentido do seu depoimento”.

Já o segundo terá cabimento “em caso de dúvida fundada sobre a prova realizada”.

A “dúvida” suscetível de justificar o uso do primeiro destes mecanismos não é a que incida sobre a prova dos factos, mas sobre a credibilidade a atribuir a certo depoente ou sobre o significado e sentido das declarações que prestou.

Por seu lado, a produção de novos meios de prova justifica-se quando a Relação “percecione que determinadas dúvidas sobre a prova ou falta de prova de factos essenciais poderão ser superadas mediante a realização de diligências probatórias suplementares.”[7]

Em qualquer dos casos não se está “perante um direito potestativo de natureza processual que seja conferido às partes e que à Relação apenas cumpra corresponder, antes deve ser encarado como um poder/dever atribuído à Relação e que esta usará de acordo com critérios de objectividade (…)

Afinal, a alteração legislativa não modificou as regras de distribuição do ónus da prova que se colhem do direito material, nem aboliu os efeitos que emanam de um sistema em que predomina o princípio do dispositivo (e também o da aquisição processual, nos termos do art. 413º). Igualmente não poderá deixar de ser ponderado que o ónus de proposição de meios de prova se deve materializar também através da sua apresentação em momentos processualmente ajustados, com previsão de efeitos preclusivos que não podem ser ultrapassados só pela livre iniciativa da parte.”[8]


A este propósito lê-se no acórdão impugnado:

“2.5.2. Quanto aos rendimentos do autor

O Tribunal a quo deu como provado que:

15. Do salário mensal líquido que auferia, BB entregava à A., sua mulher, a quantia média mensal de € 500,00.

43. À data do acidente, BB trabalhava para a empresa “DD, Soc”, com sede em … 9 3 DH, em Espanha, ao serviço da qual auferia uma retribuição média mensal líquida de € 1.500,00.

Salvo todo o respeito devido, não podemos deixar de estranhar o facto de o autor ter alegado no artigo 40.º da petição, que auferia “retribuição média mensal líquida superior a €1.500”, sem juntar um único documento, nomeadamente um recibo de vencimento.

A estranheza mantém-se quando, perante a persistência da omissão probatória do autor, em requerimento de 29.04.2013 veio a ré solicitar ao Tribunal: «Para prova da matéria constante dos quesitos 25º, 34º, 36º e 37º da Base Instrutória requer que o A junte cópia do seu IRS dos anos de 2009, 2010 e 2011».

E foi apenas na sequência de despacho de 20.05.2013, que o autor juntou as declarações de IRS.

Como bem refere a ré, das declarações de rendimentos (IRS) constantes dos autos a fls. 137 e seguintes resulta que António Carneiro declarou no ano de 2009 uma retribuição anual de € 7.666,68 e que no ano de 2010 e 2011 nada foi declarado.

O acidente ocorreu em 07.08.2010, e o autor manteve a sua omissão, não juntando, quer na fase de instrução, quer na fase de julgamento, um único recibo referente ao salário auferido na empresa “DD”, referente aos meses anteriores ao acidente.

A Mª Juíza deu como provado que o autor auferia as referidas quantias, com base nas declarações do filho, II.

No entanto, com todo o respeito, do referido depoimento (que voltamos a transcrever no segmento relevante) nada de concreto nem de seguro se retira:

Ilustre mandatário dos autores: «Sim. Faz ideia daquilo que ele ganhava? Tem ideia aproximada daquilo que era o vencimento do seu pai? Ele tinha um vencimento fixo ou trabalhava à hora?»

Testemunha: «Acho que era à hora».

Mandatário: «À hora».

Testemunha: «Se não estou enganado era à hora».

Mandatário: «Quanto é que ele trazia para casa por mês, em média?»

Testemunha «Por mês, e em média? À volta de mil e quinhentos euros».

Mandatário: «Na ordem dos mil e quinhentos euros?»

Testemunha: «Sim, ele ainda dava quinhentos euros à minha mãe».

O mesmo acontece com o depoimento da testemunha JJ que, quando a questão lhe é colocada, começa por responder assim:

Ilustre mandatário (21:00): «Quanto é que ganha qualquer pessoa que trabalhe em Espanha, com a profissão dele (BB), quanto é que pode ganhar senhor JJ?»

Testemunha: «Não faço a mínima ideia, não sei…»

Em suma, ou porque o autor deliberadamente não quis juntar qualquer recibo de vencimento, ou por omissão negligente, a verdade é que não foi produzida qualquer prova segura quanto ao salário do autor.

E teria sido tão simples! Bastava um qualquer recibo de retribuição mensal.

O Tribunal não pode prescindir dum grande rigor no que respeita à prova e, in casu, há que considerar que se trata de um meio probatório simples, ao alcance de quem alega um facto (o seu montante salarial).

É certo que a prova testemunhal poderia suprir tal omissão, mas fará sentido numa questão de retribuição necessariamente titulada por documento?

E fará sentido suportar a resposta afirmativa nas meras declarações dum filho, que nem sequer saber se o pai trabalhava “à hora” ou ao mês?

Acresce que, para além de não termos nos autos qualquer recibo, não há qualquer outra declaração da entidade empregadora, que nos permita, sequer, dar como provado o vínculo laboral.

Na persistência da dúvida (cujo esclarecimento, repete-se, estava ao alcance dos autores) tal incerteza não pode deixar de prejudicar a posição daquele sobre quem incide o ónus da prova (autor), como preceitua o artigo 414.º do Código de Processo Civil.

Concluindo, em boa consciência não poderemos deixar de dar uma resposta restritiva ao facto 43: provado apenas que o autor BB auferia, pelo menos, a retribuição anual de € 7.666,68.

Procede o recurso parcialmente, nos termos referidos.”


Isto mostra que o Tribunal da Relação teve como manifestamente insuficiente para formar convicção fundada no sentido da verdade do facto, tal como a 1ª instância o julgara, o único elemento probatório que o corroborava – o depoimento testemunhal do filho do autor, para cuja falta de conhecimento dos factos apontava a circunstância de não ter a certeza se o pai era remunerado à hora ou se tinha vencimento certo.

Os Julgadores ficaram, como afirmam no acórdão, na dúvida sobre a verdade do facto na versão que dele haviam dado os autores e, por isso, julgaram-no como provado, mas restritivamente, nada permitindo, no entanto, intuir que hajam perspetivado a possibilidade da superação dessa mesma dúvida através da produção de diligência probatória suplementar.

E, perante as vicissitudes salientadas na acima transcrita fundamentação, em termos objetivos, não vemos também que pudesse ter-se percecionado a existência de qualquer outro elemento probatório que os autores – sobre quem impendia, sob pena de preclusão, o ónus de apresentar até certo momento processual as provas disponíveis – não pudessem e devessem ter carreado para os autos.

A entender-se de outro modo, estava descoberta a forma de, por esta via, se colmatarem insuficiências e falhas cometidas pelas partes na instrução do processo.

É que, importa não olvidar, o princípio do inquisitório coexiste com outros igualmente consagrados no nosso CPC, como sejam “os princípios do dispositivo, da preclusão e da autorresponsabilidade das partes, de modo que não poderá ser invocado, para de forma automática, superar eventuais falhas de instrução que sejam de imputar a alguma das partes, designadamente quando esteja precludida a apresentação de meios de prova.[9]

Importa ainda salientar que os recorrentes se limitaram a dirigir críticas aos Julgadores do Tribunal das Relação por não terem superado, por via de novas diligências probatórias, as dúvidas em que ficaram quanto à verdade do facto que a eles, autores, cabia provar; não ensaiaram, sequer, especificar que novos elementos de prova poderiam ser ainda, oficiosamente, carreados para os autos.

Não se vislumbra, assim, que ao Tribunal da Relação coubesse, em obediência ao preceituado na alínea b), do nº 2 do art. 662º, ordenar a produção de novos meios de prova.

E, muito menos, seria caso de o tribunal recorrido remeter os autos à 1ª instância para produção de prova sobre o dito facto, pois que tal apenas teria cabimento no caso, não verificado, de haver fundamento para a anulação da decisão proferida sobre os factos, nos termos da alínea c) do nº 2 do mesmo art. 662º.

Improcede, desta sorte, a argumentação dos recorrentes, não podendo imputar-se ao acórdão sob recurso violação do princípio do inquisitório.

 

Sobre se não deve ir além dos 10% a percentagem a considerar na produção/agravamento das lesões sofridas pelo autor, por este, na altura, não usar capacete:

A este propósito, consta do acórdão impugnado o seguinte:

Alegam os autores que a redução a operar não deverá exceder os 10%, citando em seu apoio o acórdão desta Relação, de 16.03.2016, proferido no processo 424/13.3T2AVR.P1, no qual se operou, apenas, a uma redução de 10%, nos termos do 570º do CC.

Começamos, desde já, por esclarecer, salvo todo o respeito devido, que o acórdão citado pelos recorrentes não se refere a falta de capacete, mas sim a não colocação do cinto de segurança, concluindo-se no mesmo: «Se no momento do sinistro o lesado não levava o cinto de segurança colocado e, em consequência disso, foi projectado do veículo sofrendo lesões graves que lhe provocaram a morte, deve-lhe ser atribuída a percentagem de 10% de culpa para o agravamento dos danos nos termos estatuídos no artigo 570.º, nº 1 do CCivil.».

Constitui entendimento pacífico na jurisprudência, o acolhimento da presunção judicial no sentido de que a falta de capacete com que circulava um motociclista, em violação do disposto no artigo 82.º, n.º 2, do Código da Estrada, contribuiu inevitavelmente para a produção/agravamento das lesões neurológicas que sofreu, e que, situando-se as lesões essenciais no crânio, apesar de não ter contribuído para a eclosão do acidente, os valores indemnizatórios sejam reduzidos nos termos do artigo 570.º do Código Civil.

As lesões sofridas pelo autor A..... incidiram sobretudo no crânio (vide factos provados n.º 17, 32 e 33).

No acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 7.05.2014 (proferido no processo nº 1070/11.TBVCT.G1.S1), fixou-se tal proporção em 2/3 para o condutor do automóvel (responsável pela eclosão do acidente) e 1/3 (33,3 para o motociclista.

No acórdão do mesmo Supremo Tribunal, de 8.10.2013, proferido no processo n.º 1585/06.3TBPRD.P1.S1, fixou-se a proporção em 60% e 40%, respetivamente, ao condutor do veículo automóvel e ao tripulante do motociclo, sem capacete.

Como se sumariou no citado aresto, «Constituindo a finalidade primacial da imposição do uso de capacete de protecção a preservação da integridade física do respectivo obrigado, o cumprimento da correspondente obrigação não deixa de, reflexamente, proteger quem – como, no caso, a ré-seguradora – esteja legalmente obrigado a ressarcir os danos consequentes de tal falta de uso, porquanto, havendo lesões físicas na zona corporal reservada a tal uso, não pode negar-se um agravamento causal dos inerentes danos provocado pela falta do capacete de protecção, com directa repercussão, nos termos previstos no art. 570.º, n.º 1, do CC, na redução do correspondente montante indemnizatório, filiada na concorrência de um facto culposo do lesado para o agravamento dos danos».

Como se refere na publicação sobre segurança rodoviária “Circula Seguro”[10], a importância do capacete na segurança rodoviária é refletida, segundo dados da organização, na redução dos riscos de morte em 40% e na redução de 70% do risco de sofrer ferimentos graves, por vezes incapacitantes e permanentes.

In casu, é manifestamente relevante o não uso do capacete, como fator concorrente para o agravamento dos danos sofridos pelo autor no crânio.

Decorre do exposto que não merece censura a sentença neste segmento.


Também quanto a esta parte o acórdão da Relação não merece censura, acolhendo-se na íntegra, não só a sua fundamentação como o que decidiu sobre a matéria.

Resta salientar que a fixação da redução em 30% - por ser essa a percentagem de culpa atribuída ao autor na produção/agravamento dos danos por ele sofridos - está em perfeita harmonia com o que vem sendo decidido em casos factualmente similares por este STJ, como resulta dos acórdãos citados no aresto recorrido[11] e, ainda, nos proferidos em 30.04.2014[12] e em 29.01.2008[13].


IV – Pelo exposto, negando-se a revista, confirma-se o acórdão recorrido.


Lisboa, 18.10.2018


Rosa Maria M. C. Ribeiro Coelho (Relator)

Bernardo Domingos

João Bernardo

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[1] De quem foi nomeada curadora
[2] Perdas salariais
[3] Diploma a que respeitam as normas de ora em diante referidas sem menção de diferente proveniência.
[4] Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5ª edição, pág. 406 e 407
[5] Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Volume 2º, 3ª edição, pág. 208.
[6] Cfr. Acórdão deste STJ de 22.10.2015, relator Conselheiro Tomé Gomes, processo nº 212/06, acessível em www.dgsi.pt
[7] Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5ª edição, pág. 296
[8] Ibidem
[9]  Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, vol. I, pág. 484
[10]  http://www.circulaseguro.pt/instituicoes-e-legislacao/a-importancia-do-capacete-e-a-abrangencia-da-legislacao-por-pais.
[11] Ambos acessíveis em www.dgsi.pt, o primeiro relatado pelo Conselheiro João Bernardo e o segundo relatado pelo Conselheiro Fernandes do Vale
[12] Relator Conselheiro Fernando Bento, proc. nº 856/07-6TVPRT.P1.S1, acessível em www.dgsi.pt
[13] Relator Conselheiro Fonseca Ramos, proc. 07A 3014, acessível em www.dgsi.pt