Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
862/11.6TAPFR.S1
Nº Convencional: 5ª SECÇÃO
Relator: SANTOS CARVALHO
Descritores: ABUSO SEXUAL
ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS
ABUSO SEXUAL DE MENORES DEPENDENTES
CONCURSO DE INFRACÇÕES
COACÇÃO
VIOLAÇÃO
Data do Acordão: 11/29/2012
Votação: MAIORIA COM VOTO DE VENCIDO E VOTO DE DESEMPATE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO PARCIALMENTE
Área Temática: DIREITO PENAL - CONSEQUÊNCIAS JURÍDICAS DO FACTO / ESCOLHA E MEDIDA DA PENA / PUNIÇÃO DO CONCURSO DE CRIMES - CRIMES CONTRA AS PESSOAS / CRIMES CONTRA A LIBERDADE E AUTODETERMINAÇÃO SEXUAL
Doutrina: - Eduardo Correia, 1968, pp. 201 e 202, citado no “Código Penal anotado” de P. P. Albuquerque.
- Figueiredo Dias, in “Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime”, p. 291, § 421.
- Taipa de Carvalho, Comentário Conimbricense, Tomo I, pp. 551 e 552.
Legislação Nacional: CÓDIGO PENAL (CP): - ARTIGOS 77.º, N.ºS 1 E 2, 164.º, N.º1, AL. A), 177.º, N.º6.
Sumário :

I - Quando os crimes sexuais são atos isolados, não é difícil saber qual o seu número. Mas, quando os crimes sexuais envolvem uma repetitiva atividade prolongada no tempo, torna-se difícil e quase arbitrária qualquer contagem.

II - O mesmo sucede com outro tipo de crimes que, tal como o sexo, facilmente se transformam numa “atividade”, como, por exemplo, com o crime de tráfico de droga. Pergunta-se, por isso, se nesses casos de “atividade criminosa”, o traficante de rua que, por exemplo, se vem a apurar que vendeu droga diariamente durante um ano, recebendo do «fornecedor» pequenas doses de cada vez, praticou, «pelo menos», 200, 300 ou 365 crimes de tráfico [o que aparenta ser uma contagem arbitrária ou, pelo menos, “imaginativa”] ou se praticou um único crime de tráfico, objetiva e subjetivamente mais grave, dentro da sua moldura típica, em função do período de tempo durante o qual se prolongou a atividade.

III - A doutrina e a jurisprudência têm resolvido este problema, de contagem do número de crimes, que de outro modo seria quase insolúvel, falando em crimes prolongados, protelados, protraídos, exauridos ou de trato sucessivo, em que se convenciona que há só um crime – apesar de se desdobrar em várias condutas que, se isoladas, constituiriam um crime - tanto mais grave [no quadro da sua moldura penal] quanto mais repetido. 

IV - Ao contrário do crime continuado [cuja inserção doutrinária também nasceu, entre outras razões, da dificuldade em contar o número de crimes individualmente cometidos ao longo de um certo período de tempo], nos crimes prolongados não há uma diminuição considerável da culpa, mas, antes em regra, um seu progressivo agravamento à medida que se reitera a conduta [ou, em caso de eventual «diminuição da culpa pelo facto», um aumento da culpa enquanto negligência na formação da personalidade ou de perigosidade censurável»]. Na verdade, não se vê que diminuição possa existir no caso, por exemplo, do abuso sexual de criança, por atos que se sucederam no tempo, em que, pelo contrário, a gravidade da ilicitude e da culpa se acentua [ou, pelo menos, se mantém estável] à medida que os atos se repetem.

V - O que, eventualmente, se exigirá para existir um crime prolongado ou de trato sucessivo será como que uma «unidade resolutiva», realidade que se não deve confundir com «uma única resolução», pois que, «para afirmar a existência de uma unidade resolutiva é necessária uma conexão temporal que, em regra e de harmonia com os dados da experiência psicológica, leva a aceitar que o agente executou toda a sua atividade sem ter de renovar o respetivo processo de motivação» (Eduardo Correia, 1968: 201 e 202, citado no “Código Penal anotado” de P. P. Albuquerque).

VI - Para além disso, deverá haver uma homogeneidade na conduta do agente que se prolonga no tempo, em que os tipos de ilícito, individualmente considerados são os mesmos, ou, se diferentes, protegem essencialmente um bem jurídico semelhante, sendo que, no caso dos crimes contra as pessoas, a vítima tem de ser a mesma.

VII - Tendo em atenção que os factos se devem agrupar em três crimes de trato sucessivo, como se explicou, vejamos como agrupá-los:

- Factos de 1999 a 2000: coito oral com a menor B, confiada ao arguido para educação e assistência, «sob ameaças que lhe batia caso contasse a alguém» e entre os 10 e os 11 anos de idade da vítima;

- Factos de 2003 a 2004 (entre os 13 e 14 anos da menor B), retomada a anterior prática em cerca de 20 ocasiões distintas, durante a noite, o arguido dirigiu-se ao quarto da enteada e, depois de a despir, tentou, sem o conseguir, introduzir-lhe o pénis na vagina, voltando a ameaçá-la que lhe batia caso contasse a alguém;

- Factos de 2009, tentativas de coito vaginal com a filha de 11 anos de idade, seguidas de coito oral; pelo menos por duas vezes, acabou por introduzir o pénis, por completo, na vagina da filha, onde, após friccionar, ejaculou, sendo que arguido a coagia, asseverando-lhe que, se contasse o sucedido a terceiros, a agrediria.

VIII - Ora, no caso dos crimes de trato sucessivo, a punição faz-se pelo ilícito mais grave entretanto cometido, agravada, nos termos gerais, pela sobreposição dos demais.

IX - Caso se seguisse a lógica subjacente à decisão do acórdão recorrido, ter-se-ia de fazer uma decomposição de cada um dos crimes de trato sucessivo de que foi vítima a menor B em dois crimes agravados de abuso sexual de criança, acrescidos de dois crimes de coação, e, quanto à menor C, de um crime agravado de abuso sexual de criança e de outro de coação. Todavia, o Código Penal configura um tipo específico (o de violação) que tem como elemento típico a cópula vaginal ou oral forçada pelo agente através da coação grave, penalmente agravado, nos seus limites mínimo e máximo, quando a vítima seja menor de 16 ou de 14 anos de idade.

X - A questão que agora se põe é a de saber se a punição, em relação a cada um dos crimes de trato sucessivo em causa, se há-de fazer como a de um crime agravado de abuso sexual de crianças em concurso efetivo com um crime de coação ou como um crime agravado de violação, pois as molduras penais não são as mesmas, para além de que o tipo de crime de violação protege a liberdade sexual da vítima enquanto o tipo de crime de abuso sexual de crianças a sua autodeterminação sexual.

XI - Como se vê pelo “Comentário Conimbricense” (Tomo I, págs. 551 e 552), a questão tem sido muito controversa na doutrina e refletiu-se na elaboração do projeto do CP e depois na redação final, tendo o legislador optado pela punição pelo “crime sexual violento ou análogo, enquanto o crime contra a criança, qua tale, se transmuda em uma agravação daquele».   

XII - Atentas estas considerações e atendendo a que o crime de trato sucessivo é punido pelo facto mais grave, considera-se, em suma, que o arguido cometeu três crimes de violação agravada, de trato sucessivo, ps. ps. nos art.ºs 164.º, n.º 1, al. a) e 177.º, n.º 6, do CP (cujas redações atuais foram conferidas pela Lei n.º 65/98, de 2 de Setembro, anterior, portanto, aos factos em apreço), a cada um dos quais corresponde a pena abstrata de 4 anos e seis meses a 15 anos de prisão.

Decisão Texto Integral:

Acordam, em conferência, no Supremo Tribunal de Justiça:

1. A, nascido em 18/01/1964, foi julgado no 2º juízo do Tribunal Judicial da comarca de Paços de Ferreira, no âmbito do processo 862/11.6TAPFR, em julgamento de processo comum com intervenção do tribunal coletivo e, por acórdão de 10/07/2012, foi condenado pelos seguintes crimes e nestas penas:

- 5 anos de prisão, por cada um de 20 crimes de abuso sexual de crianças, p. e p. pelos art.ºs 171.º, n.ºs 1 e 2, e 177.º, n.º 1, alínea a), do CP (ofendida B);

- 2 anos de prisão, por cada um de 2 crimes de abuso sexual de menores dependentes p. e p. pelos art.ºs 172º, n.º 1, e 177.º, n.º 1, alínea a), do CP (ofendida B);

- 5 anos de prisão, por cada um de 2 crimes de abuso sexual de crianças, p. e p. pelos art.ºs 171.º, n.ºs 1 e 2, e 177.º, n.º 1, alínea a), do CP (ofendida C);

- 5 anos e 6 meses de prisão, por cada um de 2 crimes de abuso sexual de crianças, p. e p. pelos art.ºs 171.º, n.ºs 1 e 2, e 177.º, n.º 1, alínea a), do CP (ofendida C);

- 6 anos e 6 meses de prisão, por cada um de 2 crimes de abuso sexual de crianças p. e p. pelos art.ºs 171.º, n.ºs 1 e 2, e 177.º, n.º 1, alínea a), do CP (ofendida C);

- 2 anos de prisão, por cada um de 2 crimes de coação agravada, p. e p. pelos art.ºs 154.º, n.º 1, e 155.º, n.º 1, alínea b), do CP (ofendidas C e B); e, em cúmulo jurídico,

- na pena única de 14 anos de prisão.

2. O arguido, em 27/07/2010, interpôs recurso direto para o Supremo Tribunal de Justiça, concluindo assim a sua motivação:

«1. Vem o presente recurso interposto do douto Acórdão proferido a final nos autos, nos termos do qual foi o ora Recorrente condenado em cúmulo jurídico na pena de catorze anos de prisão.

2. O referido cúmulo jurídico resulta da aplicação de diversas penas parcelares, concretamente, em relação à ofendida B, pela prática de vinte crimes de abuso sexual de crianças, e pela prática de dois crimes de abuso sexual de menores dependentes, agravados.

3. Em relação à ofendida C, pela prática de seis crimes de abuso sexual de crianças, agravado, e em relação a ambas as ofendidas, pela prática de dois crimes de coação agravada.

4. Pretende-se com o presente recurso o reexame da matéria de direito, designadamente, no que respeita ao concurso de crimes, bem como à medida concreta da pena aplicada.

5. No que toca à matéria do concurso de crimes, e concretamente quanto ao de abuso sexual de crianças agravado, e de abuso sexual de menores dependentes agravado, entendeu o Tribunal a quo, não estarmos perante uma situação subsumível à figura do crime continuado, mas antes, que o arguido praticou tais ilícitos em concurso efetivo real.

6. Para chegar à conclusão a que chegou, argumenta o Tribunal a quo que, não obstante os crimes serem cometidos contra a mesma pessoa e da mesma forma, não existem fatores exteriores ao próprio indivíduo que o levaram a cometer o crime mais que uma vez, uma vez que foi antes o próprio abusador que providenciou as condições para perpetrar o crime.

7. Porém, conforme se pode ler no próprio Acórdão recorrido, em relação à ofendida B os factos “ocorriam quase todos os dias e por vezes dia sim, dia não, sempre que a sua mãe se ausentava, ou à noite quando a sua mãe já se encontrava a dormir (…)“.

8. E, por sua vez, no que tange aos factos relativos à ofendida C, os mesmos ocorreram nas (...) “tardes em que a menor não tinha aulas, encontrando-se sozinha com o seu pai e o irmão mais pequeno, já que a mãe estava ausente por estar a frequentar um curso para tirar a 4ª classe (...).

9. Portanto, é inequívoco que se verificam fatores exógenos ao Arguido, que facilitaram as recaídas, e em termos que não poderão deixar de ser valoradas como diminuidores da sua culpa.

10. Deveria, por conseguinte, o Tribunal a quo, ter antes concluído estarmos perante a figura do crime continuado relativamente aos invocados tipos legais de crime.

11. Ao assim não o ter feito, violou o disposto nos artigos 30.º, n.º 2, 77.º e 79.º do Código Penal, devendo, por conseguinte, ser nesta parte revogado, e alterado o douto Acórdão sob recurso.

12. E, uma vez efetuada esta alteração, ser fixada a medida da pena em obediência ao plasmado nos artigos 71.º e 79.º do Código Penal, tendo-se em devida atenção as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do Arguido,

13. Nomeadamente, o facto de ser primário, bem como as suas condições pessoais e a sua situação económica, que supra se deixaram vertidas nos citados pontos n° 39 e 41 da matéria de facto dada como provada,

14. Fixando-se então a pena junto dos limites mínimos da respetiva moldura abstrata, e com isso, reduzir-se, finalmente, a pena única resultante, igualmente para junto dos limites mínimos da respetiva moldura abstrata, o que ora se peticiona.

Sem prescindir,

15. Caso não venha a ser atendido, quanto ante se deixou vertido e peticionado, ainda assim deverá, igualmente, ser reduzida a concreta pena única a aplicar em cúmulo ao Arguido, porquanto a que lhe foi fixada de 14 anos de prisão, é manifestamente exagerada.

16. Os factos dados como provados justificam a diminuição da necessidade da pena, impondo assim a aplicação de uma pena de duração, substancialmente, mais curta do que aquela que lhe foi decretada.

17. A determinação da pena é feita essencialmente atendendo à culpa do agente, o que impõe uma retribuição justa, sem esquecer a ilicitude, as exigências de prevenção geral, exigências do fim preventivo especial ligadas à reinserção social do delinquente, e demais circunstâncias que deponham a favor e contra o mesmo.

18. A este respeito, e no que à concreta situação e personalidade do Arguido tange, há que devidamente atentar, entre o mais, nos factos que supra melhor se acham explanados nos pontos 39 e 41 da matéria dada como provada, e para a qual, por brevidade se remete, que claramente abonam em seu favor.

19. A medida da pena há-de ser dada pela medida da necessidade de tutela dos bens jurídicos face ao caso concreto, sendo a prevenção especial de socialização que a vai determinar, em último termo.

20. Ponderando as circunstâncias concretas da atuação do Recorrente, as suas circunstâncias de vida e personalidade, não poderá deixar de considerar-se que tanto a ilicitude como a culpa do arguido, in casu, nunca justificaria a concreta pena de prisão efetiva que lhe foi aplicada,

21. Mas antes uma pena menos gravosa, que se situasse próxima do limite mínimo da moldura abstrata aplicável (quatro anos) por forma a adequar-se à efetiva culpa do seu agente, à ilicitude dos factos e às concretas necessidades de prevenção.

22. Ao não decidir assim, violou o douto Acórdão recorrido o disposto nos artigos 40° e 71° do C.P., impondo-se a revogação do douto Acórdão recorrido quanto à medida da pena de prisão aplicada, reduzindo-se esta, que se roga seja ora fixada próximo do limite mínimo da ante referida moldura abstrata…».

3. Respondendo, o MP junto do tribunal recorrido pronunciou-se no sentido de ser negado provimento ao recurso.

O recurso foi admitido.

No Supremo Tribunal de Justiça, o MP emitiu parecer, defendendo que:

- Não deverá ser mantida a condenação do recorrente pela prática de dois crimes de abuso sexual de menor dependente do art.º 172.º, n.º 1, agravados nos termos do art.º 177.º, n.º 1, alínea a), do CP, por não se terem provado factos que preencham esse ilícito;

- Será de proceder a pretensão do recorrente de haver cometido dois crimes continuados de abuso sexual de crianças p. e p. pelo art.º 171.º, n.ºs 1 e 2, e 177.º, n.º 1, alínea a), 30º, n.º 2 e 79º do mesmo código.

Foi cumprido o art.º 417.º, n.º 2, do CPP.

Não foi requerida a realização de audiência.

4. Colhidos os vistos e realizada a conferência com o formalismo legal, foi necessário proceder a mudança do relator, pois o designado inicialmente não logrou vencimento no projeto que apresentou.

Porém, nos termos do art.º 424.º, n.º 3, do CPP, o arguido foi notificado para, querendo, se pronunciar “sobre a projetada alteração da qualificação jurídica dos factos, no sentido de integrarem apenas três crimes de violação agravada, de trato sucessivo, ps. ps. art.ºs 164.º, n.º 1, al. a) e 177.º, n.º 6, do CP».

O arguido nada disse após a notificação.

Cumpre decidir.

As principais questões a decidir são as que se prendem:

- Qualificação jurídica dos factos, designadamente, entre outras, as colocadas pelo recorrente e pelo MP no STJ, isto é, se há ou não crimes continuados e se a ofendida B deve ser considerada menor dependente para o efeito dos art.ºs 172.º, n.º 1, e 177.º, n.º 1, alínea a), do CP, ou então se os factos se devem qualificar juridicamente de modo completamente diferente ao adotado pelo tribunal recorrido;

- Medida das penas parcelares e da pena única.

5. Foram dados com provados os seguintes factos (transcrição):

1. A ofendida B, nascida a 22 de Maio de 1990, é filha de D e da arguida E.

2. Contudo, meses após o nascimento desta ofendida, a arguida E passou a residir com o arguido A, com quem se casou.

3. Assim, desde os seus oito meses de idade e até, pelo menos, aos quinze anos de idade, a ofendida B residiu apenas com a sua mãe e o marido desta, o arguido A.

4. A ofendida C, nascida a 16 de Dezembro de 1997, é filha dos arguidos A e E, com quem sempre residiu até Outubro de 2011.

5. Desde 1991 e até 1998/1999, os arguidos A e E residiram, com os seus filhos e com a ofendida B, na freguesia de ....

6. A partir de 1998/1999, os arguidos A e E e as ofendidas B e C passaram a residir em ..., sendo que cerca de um ano depois, ou seja em 1999/2000, passaram todos a residir em ....

7. A partir de data não concretamente apurada do ano de 2009 e até Outubro de 2011, os arguidos e a ofendida C passaram a residir na F, na cidade de ....

8. Ora, desde data não concretamente apurada, mas que se reporta ao ano de 2000/2001, o arguido A passou a procurar a ofendida B, para com ela manter relações sexuais, não obstante esta menor estivesse à sua guarda e o tratasse como pai.

9. Assim, em data não concretamente apurada, mas que se reporta ao ano de 2000/2001, o arguido A aproximou-se da sua enteada B e obrigou-a a meter o seu pénis na boca.

10. A partir desta altura, o arguido A repetiu tal comportamento inúmeras vezes, contando sempre com o silêncio da ofendida B, pois ameaçava-a que lhe batia caso contasse a alguém.

11. Contudo, como a ofendida B acabasse por relatar tais comportamentos à sua avó G, o arguido A deixou temporariamente de assim proceder.

12. No entanto, face ao arquivamento do processo de promoção e proteção então instaurado em prol da defesa dos direitos da ofendida B, instaurado devido à iniciativa de G, o arguido decidiu retomar a prática dos atos referidos nos pontos 8 e 9.

13. Assim, a partir de 2003, o arguido A voltou a obrigar a ofendida B a manter consigo sexo oral, voltando a ameaçá-la que lhe batia caso contasse a alguém.

14. Em concretização de tal desiderato, desde data não concretamente apurada, mas que se reporta a meados do ano de 2003 e até, pelo menos, meados de 2004, ou seja até a ofendida B completar 14 anos, o arguido A obrigou, por um número indeterminado de vezes, esta sua enteada a colocar o seu pénis na boca.

15. Após, o arguido A friccionava o seu pénis na boca desta menor, retirando-o momentos antes de ejacular, o que fazia sobre o exterior do corpo desta sua enteada.

16. Na verdade, desde data não concretamente apurada do ano de 2003 e até a ofendida B atingir os 14 anos de idade, em pelo menos 20 ocasiões distintas, durante a noite, o arguido A dirigiu-se ao quarto desta sua enteada e, após a despir, tentava introduzir o pénis na sua vagina, não o conseguindo.

17. Em todas estas ocasiões, sempre após tentar introduzir o pénis na vagina da ofendida B, ainda com a intenção de satisfazer a sua libido através do corpo desta menor, o arguido A exigia então que esta menor colocasse então o seu pénis no interior da boca, onde o friccionava, acabando por ejacular sobre o corpo desta menor.

18. A ofendida B denunciou, em data não concretamente apurada, mas após o decurso de um ano sobre os factos referidos no ponto 9, a ocorrência de tais abusos à arguida E, sua mãe, tendo aquela representado a possibilidade dos mesmos terem ocorrido mas não se conformou com tal possibilidade, menosprezando tal queixa.

19. Após a ofendida B perfazer os 14 anos de idade, o arguido A exigiu ainda, em mais que uma ocasião, que esta sua enteada voltasse a suportar o coito oral, agindo sempre da forma descrita, ou seja, após tentar meter o pénis na vagina da ofendida B, sempre com a intenção de satisfazer a sua libido através do corpo desta menor, o arguido A exigia que esta menor colocasse então o seu pénis no interior da boca, onde o friccionava, acabando por ejacular sobre o corpo desta menor.

20. Em 2005/2006, ainda antes de completar os dezasseis anos de idade, a menor B deixou a residência da sua mãe e do seu padrasto, por motivos não concretamente apurados.

21. Ora, em data não concretamente apurada, mas que se reporta ao ano de 2009, o arguido A decidiu passar a manter relações sexuais com a sua filha C, então com 11/12 anos de idade.

22. Assim, no decurso desse mesmo ano de 2009, em pelo menos duas ocasiões distintas, o arguido A passou a exigir que a ofendida C colocasse o seu pénis na boca, local onde, após friccionar o pénis, acabava por ejacular.

23. De igual forma, nas ocasiões descritas, o arguido A coagia a sua filha C, afirmando-lhe que se contasse os factos descritos a terceiras pessoas a agrediria.

24. Confiando sempre que a ofendida C não revelasse tais factos, pelo temor de ser agredida, o arguido A passou então a manter com a sua filha C relações de cópula completa.

25. Assim, ainda em 2009, o arguido A, em mais que uma ocasião, passou a exigir que a menor C se deitasse numa das camas da residência do casal e que permitisse a introdução do seu pénis na vagina desta.

26. Contudo, como inicialmente o arguido A não conseguiu introduzir, por completo, o seu pénis na vagina desta menor, acabou por desistir dos seus intentos.

27. Também nestas ocasiões, o arguido A obrigava ainda a menor C a introduzir o seu pénis na boca, local onde o friccionava e acabava por ejacular.

28. No entanto, insistindo sempre em tais intentos, em data não concretamente apurada de 2009, o arguido A, pelo menos uma vez, acabou por introduzir o seu pénis, por completo, na vagina da ofendida C, onde, após friccionar, ejaculou.

29. Nesta ocasião, o arguido A lesou o hímen da ofendida C, sua filha, quando esta não tinha mais de 12 anos de idade.

30. No decurso do ano de 2010, o arguido A, pelo menos uma vez, introduziu o seu pénis na vagina da menor C, onde, após friccionar, acabou por ejacular.

31. Em cada uma das ocasiões descritas, o arguido A advertia a ofendida C para não contar o que acontecera porque, caso contrário, a agrediria.

32. As ofendidas B e C recearam que o arguido viesse a concretizar os males referidos nos pontos 10, 13, 23 e 31, e, por tal motivo, não relataram o ocorrido.

33. O arguido A, em cada uma das datas atrás descritas, tinha conhecimento da idade e relação de parentesco de cada uma das ofendidas, as quais se encontravam à guarda e cuidados de ambos os arguidos.

34. A menor C, em data não concretamente apurada mas quando já residia na morada referida no ponto 7, relatou à mãe/arguida E os factos descritos, tendo aquela representado a possibilidade de tais abusos terem ocorrido mas não se conformou com tal possibilidade, menosprezando tal queixa.

35. O arguido A acuou da forma acima descrita, com intenção de, por meio do corpo de cada uma delas, se satisfazer sexualmente, comprometendo dessa forma o desenvolvimento, a formação e a liberdade de autodeterminação destas crianças.

36. Não obstante, o arguido A sabia ainda que a sua conduta era suscetível de pôr em causa o são desenvolvimento e liberdade de determinação de cada uma das ofendidas, quer como pessoas quer como mulheres.

37. O arguido A ao ameaçar cada uma das menores ofendidas, nos moldes descritos, agiu com a intenção concretizada de as intimidar e humilhar e dessa forma as coagir a comportar-se de acordo com as suas determinações de não relatarem a outras pessoas os factos ocorridos, o que conseguiu, permitindo-lhe manter durante anos a prática dos factos atrás descritos, sem que inicialmente B e, posteriormente, C, denunciassem publicamente tais atos.

38. O arguido A tinha ainda conhecimento de que a sua conduta era proibida e punida por lei como crime.

39. O arguido A não tem antecedentes criminais.

40. A arguida E não tem antecedentes criminais.

41. O arguido A frequentou a formação escolar até à conclusão do 4° ano de escolaridade, aos treze anos.

- A inserção laboral concretizou-se imediatamente a seguir, como aprendiz de polidor, depois como entalhador, com mudança que se verificou definitiva para a área da construção civil, aos quinze anos, primeiro como pedreiro e depois em acabamentos como trolha.

- Cumpridos dezoito meses de serviço militar obrigatório, retomou a vida laboral, que incluiu deslocações para a zona do Algarve, cerca de ano e meio, e um ano na Suíça, país de onde regressou em Agosto de 1990, realizando um percurso regular na área da construção civil.

- Em 29 de Março de 1992 casou com a arguida E.

- No período de 2000/2001 o agregado constituído do arguido era então composto pelo próprio, o cônjuge, a enteada B, dois filhos do casal, e ficou ampliado em 2004 com o nascimento do filho mais novo.

- A dinâmica familiar era caracterizada pela disfuncionalidade a vários níveis, respeitantes à inatividade laboral do cônjuge e dependência de subsídios estatais da família, à má gestão dos recursos financeiros e consequente incumprimento de compromissos contratuais, à deficiente supervisão parental e às dificuldades comunicacionais e relacionais, quer do casal, quer dos filhos entre si e destes com os pais.

- A B acabou por se afastar do agregado aos 15 anos, tendo iniciado uma união de facto.

- Por outro lado, ao longo dos anos, o arguido e o grupo familiar alteraram várias vezes o local de residência, nomeadamente pela incapacidade de fazer face ao pagamento das rendas.

- Ao nível laboral, A manteve um desempenho regular até 2007, na entidade empregadora onde trabalhava desde 1996, tendo naquela data cessado funções por problemas de saúde, a nível cervical e lombar, pelos quais foi sujeito a tratamento. Após ter recuperado a nível de saúde, procurou e obteve trabalho ainda em 2008, que exerceu até Março de 2009, quando a obra foi concluída e ele foi dispensado pelo empregador, permanecendo na situação de inativo, ocasionalmente interrompida para prestação de alguma tarefa remunerada.

- Em 2010 teve uma oferta de trabalho, prestada de Julho a final de Setembro, quando o empregador entrou em processo de falência. Nesse período, o filho mais velho do arguido também trabalhou como aprendiz para o mesmo empregador. Desde então A quase permaneceu em inatividade laboral.

- Desde Outubro de 2010, a economia familiar dependia do montante de 650 € do Rendimento Social de Inserção atribuído ao cônjuge, embora ele ocasionalmente executasse trabalhos remunerados, o que sucedeu nas duas semanas anteriores à reclusão, pago ao dia, 70/80 € consoante as horas realizadas na construção de uma cavalariça, encomenda de um emigrante.

- Atualmente, estes familiares manifestam indisponibilidade quer para apoiar o arguido na situação privativa de liberdade, quer para o receber e ajudar quando ele puder regressar ao meio livre, censurando o seu atual confronto com o sistema de administração da justiça, atendendo á natureza dos factos pelos quais está acusado.

- O arguido não foi visitado no estabelecimento prisional e não tem recebido apoio algum.

- Atualmente o arguido aparenta uma atitude conformada com a situação em que se encontra e com a ausência de apoio por parte dos elementos do seu agregado de origem, salientando a solidariedade de alguns reclusos em termos de vestuário para seu uso e de outros bens de primeira necessidade de que não dispõe e não tem meios económicos para adquirir.

- No cumprimento da medida de coação tem apresentado uma postura global de respeito pelo normativo institucional e adaptada no relacionamento com os funcionários e os pares.

- O arguido está alojado em sector específico como medida de segurança e proteção, estando suspensa a possibilidade de desempenhar uma catividade com carácter laboral, conforme solicitou, prevenindo-se a eventual reação hostil e agressiva de alguns reclusos relativamente a arguidos acusados por práticas da tipologia criminal subjacente aos presentes autos.

- No relatório social elaborado sobre o arguido foi proferida a seguinte conclusão: “O processo de crescimento de A decorreu num ambiente familiar controlado pela severidade paterna apoiada na punição física dirigida aos elementos da numerosa fratria, modelo que o arguido enquanto pai avalia que conscientemente não imitou, como também perceciona ter-se relacionado com o cônjuge durante os vinte anos de casamento sem replicar os comportamentos agressivos que viu o pai dirigir à sua progenitora. O arguido realizou desde a fase da adolescência um percurso laboral regular, interrompido por motivo de saúde e retomado com a intermitência decorrente da dificuldade em conseguir colocação laboral. A apresenta um nível de discurso e de conteúdo que o distingue por indiciar conhecimentos e capacidade de análise, avaliação e crítica superiores à baixa escolaridade que apresenta. O arguido avalia ter implementado com o cônjuge, apesar de lhe atribuir limitações ao nível das suas competências pessoais e sociais, uma dinâmica familiar equilibrada, apenas prejudicada ultimamente pela carência económica decorrente da sua inatividade laboral. Entende não ter um padrão de consumo excessivo de bebidas alcoólicas, nem ter características pessoais que possam ter contribuído para qualquer disfuncionalidade familiar. O arguido reconhece em abstrato o significado penal da matéria que constitui a acusação e o valor do bem jurídico em causa, percecionando como injusta a situação privativa de liberdade em que se encontra e as circunstancias que a determinaram. Assim, caso o arguido seja condenado, afigura-se emergir a necessidade de sujeição a intervenção psicoterapêutica dirigida à consciencialização dos crimes praticados, do valor do bem desrespeitado e da existência de vítimas, nomeadamente pela aquisição de valores fundamentais como o respeito pela autodeterminação sexual”.

42. A arguida E (…).

6. QUALIFICAÇÃO JURÍDICA DOS FACTOS - CRIME CONTINUADO?

No projeto apresentado pelo relator a quem foi distribuído o presente recurso, dizia-se o seguinte (transcrição):

«Não estando assente que qualquer dos factos tenha tido lugar após a entrada em vigor da norma do n.º 3 do art.º 30.º do CP, na redação dada pela Lei n.º 40/2010, de 3 de Setembro, que exclui a figura do crime continuado relativamente a crimes desta natureza, que são praticados contra bens eminentemente pessoais – o livre desenvolvimento da personalidade do menor na esfera sexual (cf. Figueiredo Dias e Maria João Antunes, Comentário, páginas 442 e 554), e sendo a nova lei inaplicável a situações ocorridas anteriormente à sua vigência, por ser desfavorável ao arguido, a pretensão deste procederá se estiverem verificados os requisitos do n.º 2 daquele preceito.
            De acordo com essa norma, constitui um crime continuado:
I) “a «realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico»
II) se for «executada por forma essencialmente homogénea e no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior»
III) «que diminua consideravelmente a culpa do agente».
            No caso, em relação à menor C houve realização plural do mesmo tipo de crime. E em relação à menor B houve realização plural de dois tipos de crime que fundamentalmente protegem o mesmo bem jurídico, tendo um como ponto de partida o art.º 171.º, n.ºs e 2, e o outro o art.º 172º, n.º 1. E essa realização ocorreu de forma essencialmente homogénea, visto ter havido similitude no modo de atuar do arguido.

Há agora que decidir se foi no quadro de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do recorrente.
            Este, com o apoio da senhora procuradora-geral-adjunta, defende que sim, argumentando que «se verificam fatores exógenos ao arguido que facilitaram as recaídas, e em termos que não poderão deixar de ser valorados como diminuidores da sua culpa». Essa conclusão retirar-se-ia do acórdão recorrido na parte em que afirma:
            - Em relação à ofendida B, os factos “ocorriam quase todos os dias e por vezes dia sim, dia não, sempre que a sua mãe se ausentava, ou à noite quando a sua mãe já se encontrava a dormir”;
            - Em relação à ofendida C, os factos ocorreram nas “tardes em que a menor não tinha aulas, encontrando-se sozinha com o seu pai e o irmão mais pequeno, já que a mãe estava ausente por estar a frequentar um curso para tirar a 4ª classe”.
            Mas estas passagens do acórdão, constantes da fundamentação da decisão de facto, não traduzem afirmações de factos que o tribunal tenha considerado provados, sendo apenas a reprodução de declarações de cada uma das ofendidas.
            Relativamente à menor B, o que os factos afirmam é que o arguido a «obrigava» a suportar os atos praticados sobre ela, designadamente o coito oral, e contava com o seu silêncio, pois ameaçava-a de que lhe batia se contasse a alguém.
            Iniciou esses comportamentos em 2000 ou 2001, tendo-os interrompido em resultado da instauração de um processo de promoção e proteção da menor. Recomeçou-os em 2003, após o arquivamento desse processo. Entre esse ano e a altura em que a ofendida completou 14 anos de idade, o arguido «obrigou-a», em pelo menos 20 ocasiões distintas, a voltar a suportar coito oral, introduzindo-lhe o seu pénis na boca, onde o friccionava, acabando por ejacular sobre o corpo dela, o que ocorreu durante a noite, no quarto da menor, onde a procurou. Nas mesmas circunstâncias, após a ofendida completar os 14 anos, obrigou-a ainda, em mais de uma ocasião, a meter o seu pénis na boca, onde o friccionava, acabando por ejacular sobre o corpo dela.

E, em relação à ofendida C, dizem os factos que, em data indeterminada de 2009, «pelo menos em duas ocasiões distintas», o arguido «exigiu» que essa sua filha colocasse o seu pénis na boca, onde ele o friccionou, acabando por ejacular. Posteriormente, ainda em 2009, «em mais que uma ocasião», «obrigou» a menor a introduzir o seu pénis na boca, onde o friccionou, acabando por ejacular. Depois disso, ainda em 2009, o arguido, na casa onde residiam, «pelo menos uma vez, acabou por introduzir o pénis, por completo, na vagina da ofendida C, onde, após friccionar, ejaculou». E no ano de 2010, no mesmo local, «pelo menos uma vez, introduziu o seu pénis na vagina da ofendida, onde, após friccionar, acabou por ejacular». «Em cada uma das ocasiões», o arguido advertiu a ofendida «para não contar o que acontecera porque, caso contrário, a agrediria».

A última parte do n.º 2 do art.º 30º exige que o agente seja solicitado à repetição criminosa por uma mesma situação exterior «que facilite de maneira apreciável a reiteração criminosa», nas palavras de Eduardo Correia (A Teoria do Concurso em Direito Penal, Almedina, 1983, página 250), tornando menos exigível outro comportamento e, por isso, diminuindo consideravelmente a sua culpa.

Referindo as situações que, «preparando as coisas para a repetição da atividade criminosa, diminuem sensivelmente o grau da culpa do respetivo agente», este autor apontava em primeiro lugar a «circunstância de se ter criado, através da primeira atividade criminosa, uma certa relação, um acordo entre os seus sujeitos», que seria própria de alguns crimes sexuais (ob. cit., página 246).

No caso, não houve acordo de nenhuma das ofendidas, que foram «obrigadas» pelo arguido a suportar os atos que sobre cada uma levou a cabo, ameaçando-as mesmo de agressão física, se dissessem a alguém o que se tinha passado.
            Uma outra situação que, segundo o mesmo autor, «pode também justificar e frequentemente justifica a continuação criminosa, é voltar a verificar-se a mesma oportunidade que já foi aproveitada ou que arrastou o agente para a primeira conduta criminosa». Como hipótese típica desta situação indica, entre outras, «a descoberta de uma porta falsa que dá acesso a uma casa ou recinto, e o seu aproveitamento sucessivo para subtração de diversos objetos lá depositados» (ob. cit., páginas 246 e 247).
            Parece ser uma situação deste tipo que o recorrente pretende ver reconhecida no caso presente.
            Mas sem razão.
            Aqui não se pode dizer que houve repetição da mesma oportunidade que já foi aproveitada ou que arrastou o arguido para a primeira conduta criminosa. O recorrente praticou os atos provados na casa onde residia com as ofendidas, certamente em circunstâncias que lhe permitiram atuar sem que as suas condutas fossem observadas por terceiros. Mas o facto de um pai se encontrar em casa com uma filha ou um padrasto com uma enteada, sem a presença ou a vigilância de terceiros, não se pode considerar circunstância que facilita a prática de quaisquer crimes, designadamente de cariz sexual, sobre essa filha ou enteada, muito menos de «maneira apreciável». Estar sozinho em casa com uma filha ou uma enteada menor é uma situação normalíssima da vida de um homem, que não pode ser considerada oportunidade facilitadora para fazer o que quer que seja de mal a essa filha ou enteada, a quem tem obrigação de fazer bem.

As condutas do arguido não foram, pois, levadas a cabo no quadro da solicitação da mesma situação exterior que, facilitando de maneira apreciável a reiteração, diminuiu consideravelmente a sua culpa, antes a reiteração foi devida a fatores endógenos, a qualidades desvaliosas da sua personalidade, ou seja, a uma propensão para prática de atos desta natureza, revelada no elevado número de episódios, na circunstância de serem dirigidos contra duas menores e terem tido início quando uma tinha 10/11 anos e a outra 11/12 anos de idade.»

Estas considerações, que se acolhem (salvo quanto à tipificação dos crimes, como adiante veremos), conduzem à conclusão de que não estamos perante um ou mais crimes continuados.

Aliás, a repetição de condutas ilícitas por parte do arguido resultou muito mais da sua manifesta compulsão para a prática de atos sexuais com crianças, ainda que com recurso a ameaças intimidatórias, do que pela facilidade em aceder ao convívio a sós com elas, que possa ter resultado de circunstâncias exteriores.

O arguido apresenta um desvio da sua personalidade no domínio sexual e os seus atos não surgiram por causa de uma suposta existência de fatores exógenos que lhe facilitaram a abordagem sexual às crianças. Não há, pois, que se considerar verificada a existência de crimes continuados.

Como assinala Cristina Líbano Monteiro, (Crime Continuado e Bens Pessoalíssimos - A conceção de Eduardo Correia e a revisão de 2007 do Código Penal, Estudos de Homenagem ao Professor Figueiredo Dias, p. 732 e ss)., «Eduardo Correia chama as doutrinas da «não exigibilidade» e da «culpa pela não formação da personalidade» para fundamentar a solução que quer dar ao crime continuado. Contrapõe a influência do lado exógeno e do lado endógeno no juízo de culpa, restringindo a culpa diminuída própria da figura em apreço à resultante do primeiro dos aspetos. Se a influência de circunstâncias exteriores pode tornar menos exigível ao agente normal um comportamento conforme ao direito, já uma tendência endógena para o crime, não contrariada, diminuindo embora a culpa pelo facto, pode aumentá-la enquanto negligência na formação da personalidade, enquanto perigosidade censurável. E esta última situação não se mostra compatível com a benevolência punitiva própria do crime continuado. Por outras palavras: o lado endógeno da culpa, a existir como tendência criminosa, neutraliza uma eventual circunstância exógena que parecesse determinante. Para Eduardo Correia, e por assim dizer, ou a culpa foi das circunstâncias ou do agente. Se o acento tónico do caso estiver neste segundo domínio, desaparece a razão decisiva a continuação».

  

7. OS CRIMES PROLONGADOS OU DE TRATO SUCESSIVO

Os crimes sexuais são muitas vezes atos isolados, fruto de circunstâncias irrepetíveis. É assim no caso de violações durante um assalto a uma residência, ou na sequência de um rapto, ou num encontro em local ermo.

Mas, outras vezes seguem um percurso que se prolonga no tempo, isto é, em vez de um ato ou de vários atos ilícitos, há uma atividade sexual ilícita.

É próprio da natureza humana a junção dos mesmos parceiros sexuais por períodos prolongados no tempo. O mesmo se passa, muitas vezes, nos crimes sexuais, sempre que as circunstâncias o proporcionam e a diferença entre estes e as uniões sexuais mais correntes entre as pessoas, é a circunstância de nos casos criminosos existir uma vítima, alguém a quem o agente retira [ou condiciona] a liberdade ou a autodeterminação sexual.

Na “atividade sexual criminosa” o agente aproveita-se sexualmente de outra pessoa que é acessível ao seu contato, por ser da família, ou do seu círculo de amizades, ou do seu local de trabalho, ou por outra circunstância similar, fazendo-o pela força, ou pela intimidação, ou pela incapacidade da vítima em se defender, por exemplo, por ser menor. Nesses casos, os crimes sexuais tendem a ter uma frequência por um período prolongado no tempo e a juntar os mesmos «parceiros», um deles vitimizado sucessivamente.

Ora, quando os crimes sexuais são atos isolados, não é difícil saber qual o seu número. Mas, quando os crimes sexuais envolvem uma repetitiva atividade prolongada no tempo, torna-se difícil e quase arbitrária qualquer contagem.

O mesmo sucede com outro tipo de crimes que, tal como o sexo, facilmente se transformam numa “atividade”, como, por exemplo, com o crime de tráfico de droga. Pergunta-se, por isso, se nesses casos de “atividade criminosa”, o traficante de rua que, por exemplo, se vem a apurar que vendeu droga diariamente durante um ano, recebendo do «fornecedor» pequenas doses de cada vez, praticou, «pelo menos», 200, 300 ou 365 crimes de tráfico [o que aparenta ser uma contagem arbitrária ou, pelo menos, “imaginativa”] ou se praticou um único crime de tráfico, objetiva e subjetivamente mais grave, dentro da sua moldura típica, em função do período de tempo durante o qual se prolongou a atividade.

A doutrina e a jurisprudência têm resolvido este problema, de contagem do número de crimes, que de outro modo seria quase insolúvel, falando em crimes prolongados, protelados, protraídos, exauridos ou de trato sucessivo, em que se convenciona que há só um crime – apesar de se desdobrar em várias condutas que, se isoladas, constituiriam um crime - tanto mais grave [no quadro da sua moldura penal] quanto mais repetido.  

Ao contrário do crime continuado [cuja inserção doutrinária também nasceu, entre outras razões, da dificuldade em contar o número de crimes individualmente cometidos ao longo de um certo período de tempo], nos crimes prolongados não há uma diminuição considerável da culpa, mas, antes em regra, um seu progressivo agravamento à medida que se reitera a conduta [ou, em caso de eventual «diminuição da culpa pelo facto», um aumento da culpa enquanto negligência na formação da personalidade ou de perigosidade censurável»]. Na verdade, não se vê que diminuição possa existir no caso, por exemplo, do abuso sexual de criança, por atos que se sucederam no tempo, em que, pelo contrário, a gravidade da ilicitude e da culpa se acentua [ou, pelo menos, se mantém estável] à medida que os atos se repetem.

O que, eventualmente, se exigirá para existir um crime prolongado ou de trato sucessivo será como que uma «unidade resolutiva», realidade que se não deve confundir com «uma única resolução», pois que, «para afirmar a existência de uma unidade resolutiva é necessária uma conexão temporal que, em regra e de harmonia com os dados da experiência psicológica, leva a aceitar que o agente executou toda a sua atividade sem ter de renovar o respetivo processo de motivação» (Eduardo Correia, 1968: 201 e 202, citado no “Código Penal anotado” de P. P. Albuquerque).

Para além disso, deverá haver uma homogeneidade na conduta do agente que se prolonga no tempo, em que os tipos de ilícito, individualmente considerados são os mesmos, ou, se diferentes, protegem essencialmente um bem jurídico semelhante, sendo que, no caso dos crimes contra as pessoas, a vítima tem de ser a mesma.

A propósito desta faceta no crime de tráfico de droga, diz-se no Ac. do STJ de 12-07-2006, proc. 1709/06-3ª, que «o crime exaurido é uma figura criminal em que a incriminação da conduta do agente se esgota nos primeiros atos de execução, independentemente de corresponderem a uma execução completa do facto, e em que a imputação dos atos múltiplos e sequentes é imputada a uma realização única. Mas a incidência do tempo naquela unicidade não pode deixar de se tomar em apreço, e até comprometê-la mesmo, se decorrer um largo hiato de tempo entre as múltiplas condutas; não já se interceder um momento volitivo a despoletá-las todas, que aglutine as primeiras e subsequentes, ainda dentro daquela volição, hipótese que exclui o concurso real de infrações, nos termos do art.º 30.º, n.º 1, do CP».

E a propósito de um caso de crime de abuso sexual de crianças, o Ac. do STJ de 23-01-2008, proc. n.º 4830/07-3ª, resume do seguinte modo o que aqui temos vindo a expor:

«I - O fundamento da unificação criminosa consiste na diminuição da culpa do agente, resultante da “cedência” a uma solicitação exterior, e não na unidade de resolução criminosa ou na homogeneidade da atuação delitiva. Esta última, assim como a proximidade temporal das condutas, é um elemento meramente indiciário da continuação criminosa, que deverá ser confirmado pela verificação de uma solicitação exterior mitigadora da culpa. Por sua vez, a unidade de resolução criminosa nem sequer existe no crime continuado, pois o que caracteriza esta figura é precisamente a renovação de tal resolução perante as solicitações externas exercidas sobre o agente. Por isso, sempre que a repetição da conduta criminosa seja devida a uma tendência da personalidade do agente, a quaisquer razões de natureza endógena, que ocorra independentemente de qualquer solicitação externa, ou que decorra de oportunidade provocada ou procurada pelo próprio agente, haverá pluralidade de crimes e não crime continuado.

II - Estando em causa um crime de abuso sexual de crianças agravado, não pode aceitar-se que o «êxito» da primeira «operação» e das seguintes possa determinar a diminuição da culpa do arguido: este agiu determinado pela vontade de satisfazer os instintos libidinosos, como se diz no acórdão recorrido, e, para tanto, aproveitou as situações mais favoráveis para esse efeito, nomeadamente a ausência da sua mulher e mãe da ofendida. O aproveitamento calculado de situações em que a reiteração é mais propícia exclui, porque não diminui a culpa, o crime continuado. É, de resto, notório, que o arguido agiu determinado por uma única resolução, por ela levado a aproveitar todas as situações que facilitassem a prática dos atos ilícitos, e não formando sucessivamente novas resoluções perante circunstâncias favoráveis entretanto surgidas.

III - Da mesma forma, a não resistência da ofendida, embora certamente tenha facilitado a repetição do comportamento do arguido, também não pode atenuar a culpa, pois a atitude da ofendida terá normalmente resultado do ascendente que, como pai, o arguido tinha sobre ela, e não de um «acordo» entre ela e o arguido, que não se provou.

IV - Nem sequer se podem considerar homogéneas todas as condutas imputadas ao arguido, uma vez que uma delas, a descrita inicialmente na matéria de facto, assume claramente uma gravidade maior do que as restantes. Quando muito, poderia admitir-se a unificação num crime continuado das três condutas que consistiram em o arguido acariciar e chupar os seios da ofendida, condutas inteiramente homogéneas. Contudo, a homogeneidade não é condição suficiente da continuação criminosa, sendo essencial, como já se disse, que haja uma efetiva diminuição da culpa do agente, o que não sucede, pois que a repetição criminosa ficou a dever-se à persistente vontade do arguido em satisfazer os seus desejos, vontade essa que superou as normais inibições que estão ligadas às relações entre pais e filhos.

V - Em todo o caso, essas três condutas, se não podem ser unificadas em termos de continuação criminosa, podem sê-lo como crime de trato sucessivo, que se caracteriza pela repetição de condutas essencialmente homogéneas unificadas por uma mesma resolução criminosa, sendo que qualquer das condutas é suficiente para preencher o tipo legal de crime. Contrariamente ao que acontece no crime continuado, não há aqui qualquer diminuição de culpa, antes a reiteração criminosa, revelando uma persistência da resolução criminosa, encerra uma culpa agravada, que será medida de acordo com o número de condutas e respetiva ilicitude.

8. No caso dos autos, esquematizando-se o essencial dos factos provados, pode fazer-se o seguinte quadro:

2000/2001 (entre os 10 e os 11 anos de BB (22 de Maio de 1990) enteadaSexo oral «sob ameaças que lhe batia caso contasse a alguém»Durante um ano (até ao relato à mãe – que não acreditou - e à avó que denunciou o caso à Comissão)
2003 (arquivamento do processo de promoção e proteção entretanto instaurado em prol da defesa dos direitos da ofendida B B 2003 -2004 (entre os seus 13 e 14 anos)Retomada da anterior prática, em 20 ocasiões distintas, durante a noite, o arguido dirigia-se ao quarto da enteada e, após a despir, tentava introduzir-lhe o pénis na vagina, não o conseguindo.Até 2004, ano em que B completou 14 anos

Voltando a ameaçá-la que lhe batia caso contasse a alguém.

Após os 14 anos de BB O arguido exigiu ainda, em mais que uma ocasião, que esta sua enteada voltasse a suportar o coito oral, agindo sempre da forma descrita, ou seja, após tentar meter o pénis na vagina de B, o arguido exigia que esta menor colocasse então o seu pénis no interior da boca, onde o friccionava, acabando por ejacular sobre o corpo da menor.
Em 2005/2006, ainda antes de B completar dezasseis anos de idade,BB deixou a residência da mãe e do padrasto
2009 (11 anos da C)C

(16 de Dezembro de 1997)

No decurso do ano de 2009, em pelo menos duas ocasiões distintas, o arguido passou a exigir que a ofendida C colocasse o seu pénis na boca, local onde, após o friccionar, acabava por ejacular.Nas ocasiões descritas, o arguido coagia a sua filha, afirmando-lhe que se contasse os factos descritos a terceiras pessoas a agrediria
2009CO arguido, em mais que uma ocasião, passou a exigir que a menor C se deitasse numa das camas da residência do casal e que permitisse a introdução do seu pénis na vagina desta. Contudo, como inicialmente o arguido não conseguiu introduzir, por completo, o seu pénis na vagina da menor, acabou por desistir dos seus intentos, mas também nestas ocasiões, o arguido obrigava a menor a introduzir o seu pénis na boca, local onde o friccionava e acabava por ejacular.
2009CInsistindo sempre em tais intentos, o arguido, pelo menos uma vez, acabou por introduzir o seu pénis, por completo, na vagina da ofendida, onde, após friccionar, ejaculou.Nesta ocasião, o arguido lesou o hímen da filha, quando esta não tinha mais de 12 anos de idade.
2009CO arguido, pelo menos uma vez, introduziu o seu pénis na vagina da menor C, onde, após friccionar, acabou por ejacularEm cada uma das ocasiões descritas, o arguido advertia a ofendida para não contar o que acontecera porque, caso contrário, a agrediria

Ora, quanto à menor B (enteada do arguido) há um «dolo inicial», suficientemente intenso para dar cobertura aos factos que, de um modo homogéneo, ocorreram entre 2000 e 2001. Assim, provou-se que «desde data não concretamente apurada, mas que se reporta ao ano de 2000/2001, o arguido A passou a procurar a ofendida B, para com ela manter relações sexuais, não obstante esta menor estivesse à sua guarda e o tratasse como pai».

Depois, ainda em relação a essa menor, houve uma interrupção de cerca de um ano, motivada pelo receio do arguido quanto ao desfecho e consequências do processo de promoção e proteção, entretanto instaurado em prol da defesa dos direitos da ofendida.

Mas, entre 2003 e 2004, «face ao arquivamento do processo de promoção e proteção então instaurado em prol da defesa dos direitos da ofendida B, instaurado devido à iniciativa de G, o arguido decidiu retomar a prática dos atos referidos nos pontos 8 e 9». Donde que, na ação desencadeada, possa detetar-se uma renovação do «dolo inicial» e, na sua sequência, uma prática de atos homogéneos durante cerca de um ano.

Em relação à enteada B, o arguido terá pois cometido não apenas um mas dois crimes de trato sucessivo, na medida em que, por um lado, a interrupção dos atos criminosos durante um ano não autoriza a sua unificação e em que, por outro, o arguido, da segunda vez, teve, como resulta dos factos provados, de renovar a resolução criminosa inicial. Veremos adiante que crimes foram esses.

Já no que respeita à filha C, há uma unidade de resolução criminosa em relação aos factos que, de um modo homogéneo, ocorreram durante o ano de 2009 («…em data não concretamente apurada, mas que se reporta ao ano de 2009, o arguido A decidiu passar a manter relações sexuais com a sua filha C, então com 11/12 anos de idade»).

Haverá aqui, portanto, um único crime de trato sucessivo, cuja tipificação adiante se determinará.

9. TIPIFICAÇAÇÃO DOS CRIMES COMETIDOS PELO ARGUIDO

O recorrente foi condenado pela prática de três tipos de crime: abuso sexual de crianças, p. e p. pelos art.ºs 171.º, n.ºs 1 e 2, e 177.º, n.º 1, alínea a), do CP (26 crimes, 20 na pessoa da enteada B, 6 na da filha C), abuso sexual de menores dependentes, p. e p. pelos art.ºs 172º, n.º 1, e 177.º, n.º 1, alínea a), do CP (2 crimes na pessoa da enteada B) e coação agravada, p. e p. pelos art.ºs 154.º, n.º 1, e 155.º, n.º 1, alínea b), do CP (2 crimes, um quanto à enteada, outro quanto à filha).

O MP no STJ pronunciou-se no sentido de que os factos não integram o ilícito de abuso sexual de menores dependentes, por deles não resultar que a ofendida fora confiada ao arguido para educação e assistência.

Como se disse – e bem – no projeto do primitivo relator, «o preenchimento do tipo objetivo do crime do art.º 172.º, n.º 1, exige que os atos aí considerados sejam relativos a menor entre 14 e 18 anos que tenha sido «confiado» ao agente «para educação ou assistência».

A decisão recorrida considerou verificado este elemento, na medida em que a menor B se encontrava «numa relação de dependência pessoal em relação ao arguido, residindo com ele desde os oito meses de idade (ponto 3), encontrando-se à guarda e cuidados de ambos os arguidos (ponto 33), pelo que a menor estava de facto confiada ao agente para educação ou assistência».

Esta situação de o ofendido estar «confiado» ao agente «para educação ou assistência» pode resultar de uma relação de facto, como afirma a decisão recorrida e defendem Maria João Antunes, em Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, página 556; e Paulo Pinto de Albuquerque, em Comentário do Código Penal, 2ª edição atualizada, página 541.

O arguido é marido da mãe da ofendida, que vivia com eles desde os 8 meses de idade (facto n.º 3), encontrando-se «à guarda e cuidados de ambos» (facto n.º 33), ou seja, estava dependente da economia conjunta do casal. Esses cuidados só podiam ser os compreendidos no âmbito do poder paternal, nos termos do art.º 1878º do Código Civil, designadamente, de segurança, saúde, sustento e educação.

Cabendo os três primeiros no conceito de assistência, tem de concluir-se que a ofendida estava confiada, de facto, ao casal constituído pela mãe e pelo arguido para educação e assistência. Estava-o como o estão os filhos aos pais que exercem o poder paternal».

Tendo em atenção que os factos se devem agrupar em três crimes de trato sucessivo, como se explicou, vejamos como agrupá-los:

- Factos de 1999 a 2000: coito oral com a menor B, confiada ao arguido para educação e assistência, «sob ameaças que lhe batia caso contasse a alguém» e entre os 10 e os 11 anos de idade da vítima;

- Factos de 2003 a 2004 (entre os 13 e 14 anos da menor B), retomada a anterior prática em cerca de 20 ocasiões distintas, durante a noite, o arguido dirigiu-se ao quarto da enteada e, depois de a despir, tentou, sem o conseguir, introduzir-lhe o pénis na vagina, voltando a ameaçá-la que lhe batia caso contasse a alguém;

- Factos de 2009, tentativas de coito vaginal com a filha de 11 anos de idade, seguidas de coito oral; pelo menos por duas vezes, acabou por introduzir o pénis, por completo, na vagina da filha, onde, após friccionar, ejaculou, sendo que arguido a coagia, asseverando-lhe que, se contasse o sucedido a terceiros, a agrediria.

Ora, no caso dos crimes de trato sucessivo, a punição faz-se pelo ilícito mais grave entretanto cometido, agravada, nos termos gerais, pela sobreposição dos demais.

Caso se seguisse a lógica subjacente à decisão do acórdão recorrido, ter-se-ia de fazer uma decomposição de cada um dos crimes de trato sucessivo de que foi vítima a menor B em dois crimes agravados de abuso sexual de criança, acrescidos de dois crimes de coação, e, quanto à menor C, de um crime agravado de abuso sexual de criança e de outro de coação. Todavia, o Código Penal configura um tipo específico (o de violação) que tem como elemento típico a cópula vaginal ou oral forçada pelo agente através da coação grave, penalmente agravado, nos seus limites mínimo e máximo, quando a vítima seja menor de 16 ou de 14 anos de idade:

Artigo 164.º

Violação

    1 - Quem, por meio de violência, ameaça grave, ou depois de, para esse fim, a ter tornado inconsciente ou posto na impossibilidade de resistir, constranger outra pessoa:

 a) A sofrer ou a praticar, consigo ou com outrem, cópula, coito anal ou coito oral;

(…) é punido com pena de prisão de três a dez anos.

Artigo 177.º

   Agravação

5 - As penas previstas nos artigos 163.º, 164.º, 168.º, 174.º, 175.º e no n.º 1 do artigo 176.º são agravadas de um terço, nos seus limites mínimo e máximo, se a vítima for menor de 16 anos.

6 - As penas previstas nos artigos 163.º, 164.º, 168.º, 175.º e no n.º 1 do artigo 176.º são agravadas de metade, nos seus limites mínimo e máximo, se a vítima for menor de 14 anos.

Ora, a questão que agora se põe é a de saber se a punição, em relação a cada um dos crimes de trato sucessivo em causa, se há-de fazer como a de um crime agravado de abuso sexual de crianças em concurso efetivo com um crime de coação ou como um crime agravado de violação, pois as molduras penais não são as mesmas, para além de que o tipo de crime de violação protege a liberdade sexual da vítima enquanto o tipo de crime de abuso sexual de crianças a sua autodeterminação sexual.

Note-se que as ameaças graves que o arguido exerceu sobre as duas menores, embora aparentemente posteriores a ter-lhes imposto alguns dos atos sexuais descritos, foram-lhe, verdadeiramente, anteriores, pois que se provou que as “obrigou” a sofrer e lhes “exigiu” que sofressem os comportamentos em causa. De qualquer modo, estes - na situação descrita no n.º 1, al. a), do art.º 164.º do CP - serviram não só para as silenciar em relação ao que já se passara mas também para as constranger severamente quanto aos múltiplos atos idênticos que se lhes seguissem e efetivamente se lhes seguiram.   

Como se vê pelo “Comentário Conimbricense” (Tomo I, págs. 551 e 552), a questão tem sido muito controversa na doutrina e refletiu-se na elaboração do projeto do CP e depois na redação final. Porém, Figueiredo Dias afirma, a finalizar a nota respetiva: «Cedendo porém a pressões de uma opinião pública desinformada - desinformação que, em muitos casos, mal pôde deixar de imputar-se ou a uma lamentável ignorância ou a propósito politicamente condicionado -na sua a sua redação final o preceito em comentário, nos n.ºs 1 e 2, consagrou molduras penais exatamente iguais às dos art.ºs 163.º-1 e 164.º-1, dando assim argumentos (ironicamente, contra os seus mais veementes propósitos) à tese do concurso aparente! A dificuldade foi ultrapassada (como então não podia deixar de o ser) considerando a lei expressamente que em todos os casos aqui em preço (dos art.ºs 163.º, 164.º, 165.º e 166.º) punido é só o crime sexual violento ou análogo, enquanto o crime contra a criança, qua tale, se transmuda em uma agravação daquele (cf. art.º 177.º § 11 ss.). Dogmaticamente é esta, de toda a evidência, uma solução - pelo menos - claudicante e tortuosa. Político-criminalmente ela acaba por conduzir, repete-se, a uma atenuação relativamente à solução do concurso efetivo suposta pelo Projeto 1991, mas que é ainda suportável dadas as molduras penais legalmente cominadas para os crimes sexuais violentos ou análogos».    

Atentas estas considerações e atendendo a que o crime de trato sucessivo é punido pelo facto mais grave, considera-se, em suma, que o arguido cometeu três crimes de violação agravada, de trato sucessivo, ps. ps. nos art.ºs 164.º, n.º 1, al. a) e 177.º, n.º 6, do CP (cujas redações atuais foram conferidas pela Lei n.º 65/98, de 2 de Setembro, anterior, portanto, aos factos em apreço), a cada um dos quais corresponde a pena abstrata de 4 anos e seis meses a 15 anos de prisão.

10. MEDIDA DAS PENAS PARCELARES

A finalidade essencial e primordial da aplicação da pena reside na prevenção geral, o que significa “que a pena deve ser medida basicamente de acordo com a necessidade de tutela de bens jurídicos que se exprime no caso concreto...alcançando-se mediante a estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma jurídica violada...” (Anabela Miranda Rodrigues, “A Determinação da Medida da Pena Privativa de Liberdade”, Coimbra Editora, pág. 570).

“É, pois, o próprio conceito de prevenção geral de que se parte que justifica que se fale aqui de uma «moldura» de pena. Esta terá certamente um limite definido pela medida de pena que a comunidade entende necessária à tutela das suas expectativas na validade das normas jurídicas: o limite máximo da pena. Que constituirá, do mesmo passo, o ponto ótimo de realização das necessidades preventivas da comunidade. Mas, abaixo desta medida de pena, outras haverá que a comunidade entende que são ainda suficientes para proteger as suas expectativas na validade das normas - até ao que considere que é o limite do necessário para assegurar a proteção dessas expectativas. Aqui residirá o limite mínimo da pena que visa assegurar a finalidade de prevenção geral; definido, pois, em concreto, pelo absolutamente imprescindível para se realizar essa finalidade de prevenção geral e que pode entender-se sob a forma de defesa da ordem jurídica (mesma obra, pág. seguinte).

A prevenção especial, por seu lado, é encarada como a necessidade de socialização do agente, embora no sentido, modesto mas realista, de o preparar para no futuro não cometer outros crimes.

“Resta acrescentar que, também aqui, é chamada a intervir a culpa a desempenhar o papel de limite inultrapassável de todas e quaisquer considerações preventivas...” (ainda a mesma obra, pág. 575). “Sendo a pena efetivamente medida pela prevenção geral, ela deve respeitar o limite da culpa e, assim, preservar a dignidade humana do condenado” (pág. 558).

O Código Penal espelhou estas preocupações nos artigos 70º e 71º.

Dá-se preferência às penas não privativas da liberdade, mas tal tem de ser feito de uma forma fundamentada, pois há que apurar criteriosamente se a pena não detentiva realiza de forma adequada e suficiente as finalidades da punição (art.º 70º).

E «1. A determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção.

2. Na determinação da pena, o tribunal atenderá a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, considerando nomeadamente:

a) O grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente;

b) A intensidade do dolo ou da negligência;

c) Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram;

d) As condições pessoais do agente e a sua situação económica;

e) A conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime;

f) A falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena» (art.º 71º, n.ºs 1 e 2, do CP).

Ora, no primeiro crime de trato sucessivo (temporalmente falando), agrava a ilicitude do crime o facto de a menor estar sob sua dependência, de o arguido ter persistido nas suas condutas durante cerca de um ano, em número que não se pode concretizar, mas que somado ao número de vezes do segundo caso, é de, pelo menos, 20 vezes, antes da menor perfazer 14 anos de idade.

No segundo caso, o arguido retomou a anterior prática por mais cerca de outro ano e, depois de a menor perfazer 14 anos de idade, praticou os factos, pelo menos, mais duas vezes.

No terceiro caso, agrava a conduta do arguido o facto de a ofendida ser sua filha, de ter persistido na conduta por cerca de um ano, de ter praticado, pelo menos, seis factos ilícitos e de, em dois deles, ter introduzido o seu pénis, por completo, na vagina da filha, onde, após friccionar, ejaculou.

Sob o ponto de vista da gravidade da ilicitude, sempre muito elevada, o terceiro caso será o mais grave (por a vítima ser sua filha e ter havido cópula vaginal completa em menor virgem). Segue-se o primeiro caso, pela diminuta idade da vítima. Será o segundo caso o que assume menor gravidade relativa.

O arguido agiu sempre com um dolo muito intenso e com um grande desprezo pelos valores inerentes aos seus deveres jurídicos e sociais, como pai e/ou encarregado de educação.

A exigência de prevenção geral é, assim, muito elevada.  

Quanto à prevenção especial, verifica-se que existe uma manifesta tendência do arguido para cometer crimes, desta natureza, perpetrados em crianças. Embora se apresente sem antecedentes criminais, tal só se deverá ao facto de ter agido impunemente durante cerca de 9 anos, contando com o silêncio dos familiares.

Tem um passado laboral irregular e agora já não conta com o apoio da família.

Tudo ponderado, o ponto ótimo de realização das necessidades preventivas da comunidade situar-se-á nos 9 anos de prisão pelos factos de 2009 (ofendida C), nos 8 anos de prisão pelos factos de 2000-2001 (ofendida B) e 7 anos de prisão pelos factos de 2003-2004 (ofendida B).

Mas, abaixo destas medidas, como dissemos, outras haverá que a comunidade entende que são ainda suficientes para proteger as suas expectativas na validade das normas - até ao que considere que é o limite do necessário para assegurar a proteção dessas expectativas. Será o caso de se retirar um ano a cada uma daquelas medidas ótimas de pena, pois o arguido contou com a «colaboração» silenciosa da sua mulher, pelo que se fixarão as penas parcelares em 8 anos de prisão pelos factos de 2009 (ofendida C), nos 7 anos de prisão pelos factos de 2000-2001 (ofendida B) e 6 anos de prisão pelos factos de 2003-2004 (ofendida B).

11. MEDIDA DA PENA ÚNICA

Conforme decorre do art.º 77.º, n.ºs 1 e 2, do CP, a pena aplicável ao concurso de crimes tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos de prisão e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes. Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente.

No caso, portanto, os limites abstratos da pena única variam entre o mínimo de 8 anos de prisão (pena parcelar mais grave) e o máximo de 21 anos de prisão (soma das duas penas).

Para fixar a pena única dentro desses limites tem-se entendido que na «avaliação da personalidade - unitária - do agente relevará, sobretudo, a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência (ou mesmo, como no caso, a uma «carreira») criminosa, ou tão só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade, só no primeiro caso sendo cabido atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta» (Figueiredo Dias, in “Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime”, pág. 291, § 421).

Ora, já vimos que há uma tendência do arguido para a prática dos crimes de abuso sexual de crianças, se necessário, com uso de coação.

Contudo, essa circunstância já foi valorada na fixação das penas parcelares e, portanto, não deve ser considerada novamente nesta sede.

Importa, por isso, considerar que os factos em concurso se reportam a cerca de 9 anos de atividade criminosa, embora com uma interrupção por um ano, forçada por circunstâncias alheias à vontade do arguido. Mas também há que ter em atenção que a enorme gravidade do conjunto de factos imputados ao arguido tem de ser contextualizada por comparação com as molduras penais que se encontram no Código Penal para outros crimes, pois, por mais grave que pareça a conduta em causa – e seguramente que o é – não deve equiparar-se a um caso de homicídio qualificado, cuja pena se fixaria entre os 12 e os 25 anos de prisão.

Tudo ponderado, considerando ainda a medida das penas que, em regra, têm sido aplicadas a outros casos similares no STJ, entende-se adequada a pena conjunta de 11 (onze) anos de prisão.    

12. Em face do exposto, acordam os juízes do Supremo Tribunal de Justiça em conceder provimento parcial ao recurso e condenar o recorrente do seguinte modo:

- Por um crime de violação agravada, de trato sucessivo, p. e p. nos art.ºs 164.º, n.º 1, al. a) e 177.º, n.º 6, do CP, por factos de 2009 (ofendida C), na pena de 8 (oito) anos de prisão; - Por um crime de violação agravada, de trato sucessivo, p. e p. nos art.ºs 164.º, n.º 1, al. a) e 177.º, n.º 6, do CP, por factos de 2000-2001 (ofendida B), na pena de 7 (sete) anos de prisão; - Por um crime de violação agravada, de trato sucessivo, p. e p. nos art.ºs 164.º, n.º 1, al. a) e 177.º, n.º 6, do CP, por factos de 2003-2004 (ofendida B), na pena de 6 (seis) anos de prisão; - Em cúmulo jurídico destas penas parcelares, na pena única de 11 (onze) anos de prisão.

 Não há lugar a tributação (art.º 513.º, n.º 1, do CPP).

Supremo Tribunal de Justiça, de 29 novembro de 2012

Os Juízes Conselheiros

(SANTOS CARVALHO)

(MANUEL BRAZ, vencido nos termos da declaração que junta)

(CARMONA DA MOTA, Presidente da Secção, com voto de desempate)

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                        Declaração de voto:

1. Os factos provados não preenchem o tipo de crime de violação do artº 164º, nº 1, do CP («Quem, por meio de violência, ameaça grave, ou depois de, para esse fim, a ter tornado inconsciente ou posto na impossibilidade de resistir, constranger outra pessoa: …»). A posição vencedora considerou que o arguido constrangeu as menores a sofrer ou a praticar consigo os actos sexuais de relevo em causa «por meio de ameaça grave». Esse meio típico estaria em tê-las ameaçado de que as agrediria fisicamente se relatassem a alguém os actos que praticara com elas. Como se vê dos factos, essa «ameaça», que se provou, não foi meio de constranger as ofendidas a suportarem aqueles actos, tendo antes e apenas sido o meio pelo qual procurou garantir o seu silêncio após a execução de tais actos. Com ela visou o arguido não ser descoberto, e não vencer a resistência das menores.

            Na decisão proferida sobre matéria de facto pelo tribunal recorrido afirma-se, em relação à B, que o arguido a «obrigou» ou «exigiu» que ela colocasse o pénis dele na boca (factos nºs 9, 13, 14, 17 e 19) e, em relação à C, que a «obrigou» ou «exigiu» que ela colocasse o seu pénis na boca e se deitasse numa cama e permitisse a introdução do pénis na vagina (factos nºs 22, 25 e 27). Mas estes termos não passam de conclusões, sem quaisquer factos que permitam a integração do conceito típico «ameaça grave».

            Defendi por isso que a prática dos actos sexuais de relevo praticados pelo arguido com as ofendidas preenche os tipos de abuso sexual de crianças do artº 171º, nºs 1 e 2, agravado nos termos do 177º, nº 1, alínea a), e de abuso sexual de menor dependente do artº 172º, nº 1, com a mesma agravação, este em relação à menor B após concluir 14 anos de idade.

2. Quanto ao número desses crimes, manteria a decisão recorrida, que considerou haver o recorrente praticado:

-20 crimes de abuso sexual de crianças agravados p. e p. pelos artºs 171º, nºs 1 e 2, e 177º, nº 1, alínea a), do CP (ofendida B);

            -2 crimes de abuso sexual de menor dependente agravados p. e p. pelos artºs 172º, nº 1, e 177º, nº 1, alínea a), do CP (ofendida B);

            -6 crimes de abuso sexual de crianças agravados p. e p. pelos artºs 171º, nºs 1 e 2, e 177º, nº 1, alínea a), do CP (ofendida C).

            O entendimento maioritário foi de que nesta parte o recorrente cometeu 3 crimes:

            -um consubstanciado nas condutas levadas a cabo pelo arguido sobre a enteada B nos anos de 2000/2001;

            -outro realizado pelas condutas sobre a mesma ofendida entre 2003 e 2004;

            -e um outro concretizado nas condutas sobre a filha C.

            Como fundamento da unificação de cada um desses grupos de actos num só crime apontou-se a unidade de resolução.

A unidade de resolução foi vista nas afirmações contidas nos factos nºs 12 («No entanto, face ao arquivamento do processo de promoção e protecção então instaurado em prol da defesa dos direitos da ofendida B, instaurado devido à iniciativa de G, o arguido decidiu retomar a prática dos actos referidos nos pontos 8 e 9») e 21 («Ora, em data não concretamente apurada, mas que se reporta ao ano de 2009, o arguido A decidiu passar a manter relações sexuais com a sua filha C, então com 11/12 anos de idade»).

A decisão aí referida reporta-se apenas aos dois últimos grupos de factos, não cobrindo o primeiro grupo, em relação ao qual por isso não existe qualquer fundamento para afirmar a unidade de resolução.

Para além disso, a decisão criminosa afirmada naqueles números não passa de um propósito vago que não dispensou a tomada da verdadeira resolução que veio a presidir a cada uma das concretas condutas posteriores do arguido, designadamente a decisão sobre quando e onde agir, como, de resto, é próprio neste tipo de situações. Veja-se, por exemplo, que, no segundo caso, o que se deu como provado foi que o recorrente «decidiu passar a manter relações sexuais com a sua filha C», o que nem sequer identifica o tipo de actos que se propôs praticar, podendo a expressão «relações sexuais» ser reportada a várias realidades.

A categoria de crime de trato sucessivo, a que a posição maioritária faz apelo, não vem, com essa designação, contemplada na lei, que prevê o crime permanente [artº 119º, nº 2, alínea a), do CP], o crime continuado [artºs 119º, nº 2, alínea b), 30º, nºs 2 e 3, e 79º] e o crime habitual [artº 119º, nº 2, alínea b)], bem como o crime que se consuma por actos sucessivos ou reiterados [artº 19º, nº 2, do CPP].

O crime de trato sucessivo será reconduzível à figura do crime habitual, como refere Lobo Moutinho (Da unidade à pluralidade dos crimes no direito penal português, página 620, nota 1854).

Este autor, depois de definir o crime contínuo como o «crime cuja consumação se protrai mediante a prática de uma pluralidade de actos sucessivos (no sentido de praticados em imediata sequência temporal)», correspondendo «basicamente àquilo que Eduardo Correia chamou o crime único com pluralidade de actos», caracteriza assim o crime habitual:

«O crime habitual, no sentido que à expressão confere a actual legislação, é um crime em que a consumação se protrai no tempo (dura) por força da prática de uma multiplicidade de actos “reiterados”.

Que a persistência temporal na consumação se não dá mediante a prática de um só acto, mas de uma multiplicidade deles – eis o que distingue o crime habitual do crime permanente; que os actos que vão consumando o crime são, não sucessivos, mas reiterados – eis o que distingue o crime habitual do crime contínuo.

O ponto central da definição do crime habitual é, por isso, o que deve entender-se por “actos reiterados”.

É seguro que, por “actos reiterados”, se deve entender, pelo menos, a pluralidade de actos homogéneos. Actos diversos não são reiterados.

(…) apenas se pode admitir a “consumação por actos reiterados” (um crime habitual) em casos especiais – o mesmo é dizer, nos casos e termos em que isso é expressamente possibilitado pelo tipo de crime.

Na verdade, embora a caracterização legal não se esgote nisso, os “actos reiterados” são opostos, pela própria lei, aos “actos sucessivos” no sentido de praticados em acto seguido. Isso indica um certo distanciamento temporal – pelo menos suficiente para se não admitir a existência de um crime contínuo – o que faz o crime perder o cariz episódico, para passar a estruturar-se numa actividade que se vai verificando, multi-episodicamente, ao longo do tempo.

Mas se em relação a todos os crimes fosse de admitir esta forma habitual de perpetração, as restantes figuras a que nos referimos ficariam em crise, se é que lhes sobraria qualquer espaço de aplicação.

Assim se compreende que, como a doutrina indica, os crimes “habituais” (seja qual for o entendimento a dar à “habitualidade” do crime, o mesmo é dizer, à “reiteração” dos actos de que se compõe) correspondem a casos especiais em que a estrutura do facto criminoso se apresenta ou, pelo menos, pode apresentar mais complexa do que habitualmente sucede e se desdobra numa multiplicidade de actos semelhantes que se vão praticando ao longo do tempo, mediante intervalos entre eles. Exemplos apontados são o crime de maus-tratos e infracção às regras de segurança (art. 152º), o crime de lenocínio (art. 170º)».

Admite o autor outros casos, como o crime de tráfico de estupefacientes, que considera desdobrar-se ou poder desdobrar-se numa multiplicidade de actos semelhantes, «como claramente resulta da previsão da agravação por diversas circunstâncias, a começar pela da destinação ou entrega a “menores” ou da distribuição “por um grande número de pessoas” (art. 24º, nº 1, als. a) e b), do Dec.-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro)» (ob. cit., páginas 604-620).

Mais incisivo, Figueiredo Dias define crimes habituais como sendo «aqueles em que a realização do tipo incriminador supõe que o agente pratique determinado comportamento de uma forma reiterada», dando como exemplo os crimes de lenocínio e de aborto agravado do artº 141º, nº 2, do CP (Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 2ª edição, página 314).

Não é, pois, a unidade de resolução que pode conferir a uma reiteração de actos homogéneos o cariz de crime de trato sucessivo, que se identifica com a categoria legal do crime habitual, mas somente a estrutura do respectivo tipo incriminador, que há-de supor a reiteração.

Parece claro que tanto os tipos de crime de abuso sexual de crianças e de abuso sexual de menores dependentes como o de violação não contemplam aquela «multiplicidade de actos semelhantes» que está implicada no crime habitual nem, por isso, a sua realização supõe um comportamento reiterado.

Cada um dos vários actos do arguido foi levado a cabo num diverso contexto situacional, necessariamente comandado por uma diversa resolução e traduziu-se numa autónoma lesão do bem jurídico protegido. Cada um desses actos não constituiu um momento ou parcela de um todo projectado nem um acto em que se tenha desdobrado uma actividade suposta no tipo, mas um “todo”, em si mesmo, um autónomo facto punível. Deve por isso entender-se que, referentemente a cada grupo de actos, existe, usando palavras de Figueiredo Dias, «pluralidade de sentidos de ilicitude típica» e, portanto, de crimes (ob. cit., página 989).

Em termos de pena, aplicaria 5 anos de prisão, por cada um dos 20 crimes de abuso sexual de criança agravado, sendo ofendida B, 2 anos de prisão, por cada um dos 2 crimes de abuso sexual de menor dependente agravado e 5 anos e 6 meses de prisão, por cada um de 6 crimes de abuso sexual de criança agravado, com referência à ofendida C. E, em cúmulo jurídico, fixaria a pena única de 13 anos de prisão.