Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 6ª SECÇÃO | ||
Relator: | CATARINA SERRA | ||
Descritores: | PROCESSO ESPECIAL DE REVITALIZAÇÃO APRESENTAÇÃO À INSOLVÊNCIA PRAZO SUSPENSÃO QUALIFICAÇÃO DA INSOLVÊNCIA CULPA PRESUNÇÃO JURIS TANTUM CONSTITUCIONALIDADE | ||
Data do Acordão: | 10/23/2018 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
Meio Processual: | REVISTA | ||
Decisão: | NEGADA A REVISTA | ||
Área Temática: | DIREITO FALIMENTAR – DECLARAÇÃO DA SITUAÇÃO DE INSOLVÊNCIA / PEDIDO DE DECLARAÇÃO DE INSOLVÊNCIA / INCIDENTES DE QUALIFICAÇÃO DA INSOLVÊNCIA. | ||
Doutrina: | - Alexandre de Soveral Martins, Um Curso de Direito da Insolvência, Coimbra, Almedina, 2016, 2.ª Edição, p. 422-423; - Ana Prata, Jorge Morais Carvalho e Rui Simões, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, Almedina, Coimbra, 2013, p. 512; - Catarina Serra, Revitalização, A designação e o misterioso objecto designado. O processo homónimo (PER) e as suas ligações com a insolvência, situação e processo, e com o ..., in: Catarina Serra , coordenação , I Congresso de Direito da Insolvência, Coimbra, Almedina, 2013, p. 93-94 ; Lições de Direito da Insolvência, Coimbra, Almedina, 2018, p. 156 e ss. e 299 e ss. ; Decoctor ergo fraudator?, A insolvência culposa, esclarecimentos sobre um conceito a propósito de umas presunções, Anotação ao Acórdão do TRP de 07-01-2008, Processo n.º. 4886/07, p. 66 e ss.; - Luís Menezes Leitão, Direito da Insolvência, Almedina, 2017, 7.ª Edição, p. 283; - Manuel Carneiro da Frada, A responsabilidade dos administradores na insolvência, Revista da Ordem dos Advogados, 2006, Volume 66, p. 692; - Nuno Manuel Pinto Oliveira, Responsabilidade civil dos administradores por violação do dever de apresentação à insolvência, Coimbra Editora, 2015, p. 204, 207 e 533 e ss.; - Ribeiro de Faria, Da prova na responsabilidade civil médica, Reflexões em torno do Direito alemão, in Revista da Faculdade de Direito da Universidade do Porto, 2004, p. 115 e ss.; - Sinde Monteiro, Responsabilidade por conselhos, recomendações ou informações, Almedina, Coimbra, 1990, p . 296-297. | ||
Legislação Nacional: | CÓDIGO DA INSOLVÊNCIA E DA RECUPERAÇÃO DE EMPRESAS (CIRE): - ARTIGOS 18.º, N.º 1 E 186.º, N.º 3, ALÍNEA A); CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA (CRP):- ARTIGOS 30.º, N.º 4, 47.º, 58.º, N.ºS 1 E 2, ALÍNEA B), 61.º, 62.º; 165.º, N.ºS 1, ALÍNEA B) E 2 E 198.º, N.º 1, ALÍNEA B). | ||
Jurisprudência Nacional: | ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA: -DE 06-10-2011, PROCESSO N.º 46/07.8TBSVC-0.L1.S; -DE 10-10-2017, PROCESSO N.º 1855/13.4TBVRL-A.G1.S2. -*- ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA: -DE 14-12-2010, PROCESSO N.º 46/07.8TBSVC-O.L1-7, -*- ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA: -DE 12-07-2017, PROCESSO N.º 370/14.3TJCBR-A.C1; -DE 12-07-2017, PROCESSO N.º 60/16.2T8PNH-B.C1; -*- ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO: -DE 17-11-2008, PROCESSO N.º 0855650; -DE 05-02-2009, PROCESSO N.º 0837835; -DE 07-12-2016, PROCESSO N.º 262/15.9T8AMT-D.P1. -*- ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA: -DE 07-01-2016, PROCESSO N.º 583/13.5TBABT-B.E1, IN WWW.DGSI.PT. -*- ACÓRDÃOS DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES: -DE 11-05-2017, PROCESSO N.º 1775/15.8T8VNF-A.G1; -DE 14-09-2017, PROCESSO N.º 7165/15.5T8VNF-A.G1, TODOS IN WWW.DGSI.PT. -*- ACÓRDÃO DO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL: -DE 13-11-2007, ACÓRDÃO N.º 564/2007; -ACÓRDÃO N.º 230/07; | ||
Sumário : | I. O recurso ao PER não suspende (justificadamente) o prazo para a apresentação à insolvência previsto no artigo 18.º, n.º 1, do CIRE. II. Por força do disposto no artigo 186.º, n.º 3, al. a), do CIRE, o incumprimento do dever de apresentação à insolvência dá origem a uma presunção (relativa ou juris tantum) de insolvência culposa, que abrange a culpa grave bem como o nexo de causalidade. III. Relativamente ao disposto no n.º 3 do artigo 186.º do CIRE não procede a alegação de inconstitucionalidade orgânica por violação dos artigos 165.º, n.º 1, al. b), e n.º 2, e 198.º, n.º 1, al. b), da CRP nem de inconstitucionalidade material por violação dos artigos 30.º, n.º 4, 47.º, 58.º, n.º 1 e n.º 2, al. b), 61.º, 62.º da CRP. | ||
Decisão Texto Integral: |
ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Recorrentes: AA Lda. e BB Recorridos: CC e DD
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CC e DD requereram a qualificação da insolvência como culposa de AA Lda. O incidente de qualificação de insolvência foi declarado aberto. Tanto o administrador da insolvência como o Ministério Público se pronunciaram no sentido da qualificação da insolvência como fortuita. Apesar disso, o Tribunal mandou notificar a sociedade devedora e o gerente da mesma, BB, para se oporem, querendo, à qualificação da insolvência como culposa. A sociedade devedora e o gerente opuseram-se. O incidente de qualificação da insolvência prosseguiu os seus termos e, após a audiência final, foi proferida sentença em que se decidiu: - qualificar a insolvência como culposa; - declarar BB inibido, pelo período de dois anos, para o exercício do comércio e para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa; e - condenar BB a pagar aos credores da insolvente indemnização correspondente ao valor dos créditos não satisfeitos até às forças do seu património.
Inconformados, BB e AA apelaram para o Tribunal da Relação de Coimbra. O Tribunal da Relação de Coimbra confirmou, por Acórdão proferido em 20.03.2018, a decisão recorrida.
Continuando inconformados, BB e AA interpuseram recurso de revista excepcional para o Supremo Tribunal de Justiça. Fundamentaram o seu pedido no facto de o objecto do recurso ser a interpretação da alínea a) do n.º 3 do artigo 186.º do CIRE e: - estar em causa uma questão cuja apreciação, pela sua relevância jurídica, é claramente necessária para uma melhor aplicação do Direito, sendo aplicável o disposto no artigo 672.º, n.º 1, al. a), do CPC; - estarem em causa interesses de particular relevância social, sendo aplicável o disposto no artigo 672.º, n.º 1, al. b), do CPC; e - existir contradição entre o Acórdão recorrido e outros Acórdãos já transitados em julgado, designadamente os Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 10.02.2011 (Proc. 1283107.0TJPRT-AG.P1) e 13.09.2007 (Proc. 0731516) e o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 12.07.2011 (Proc. 503/10.9TBPTL-H.G1), sendo aplicável o disposto no artigo 672.º, n.º 1, al. c), do CPC.
A Formação, que é quem, de acordo com o artigo 672.º, n.º 3, do CPC, tem a seu cargo a apreciação liminar sumária dos pressupostos da revista excepcional, pronunciou-se, por Acórdão de 28.06.2018, em sentido favorável à admissão do recurso, “pela relevância jurídica da questão em debate, tornando inútil a apreciação dos outros fundamentos de tal revista”.
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Como é sabido, para lá das questões de conhecimento oficioso, o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões dos recorrentes. Em tais conclusões, os recorrentes alegam, essencialmente, que: 1.º) não se verifica violação do dever de apresentação à insolvência, uma vez que a recorrida se encontrava em PER e, portanto, estava suspenso o prazo legalmente previsto para aquela apresentação; 2.º) ao abrigo do artigo 186.º, n.º 3, al. a), do CIRE, a violação do dever de apresentação à insolvência desencadeia apenas uma presunção de culpa grave e não também do nexo de causalidade, pelo que é aos interessados na qualificação da insolvência como culposa que cabe provar este último; e 3.º) as normas dos n.ºs 2 e 3 do artigo 186.º do CIRE padecem de inconstitucionalidade, tanto orgânica como material.
A questão que os recorrentes identificam expressamente como sendo o objecto do presente recurso (cfr. ponto F. das conclusões) é a de saber como deve ser interpretado o disposto na alínea a) do n.º 3 do artigo 186.º do CIRE, ou, mais precisamente, de saber se nesta norma se consagra uma presunção (relativa ou juris tantum) de insolvência culposa ou somente uma presunção (relativa ou juris tantum) de culpa grave. Neste caso em particular (de revista excepcional), a questão vem, aliás, igualmente (muito bem) enunciada no Acórdão da Formação que admitiu a revista excepcional. Assim sendo, e sem prejuízo do sentido do dever de pronúncia sobre as outras alegações dos recorrentes, expostas tanto nas alegações propriamente ditas como nas conclusões, é esta a questão central do presente recurso.
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II. FUNDAMENTAÇÃO
OS FACTOS
Vêm provados os seguintes factos:
Vêm julgados como não provados os seguintes factos:
O DIREITO
Como se viu atrás, as questões de Direito a apreciar neste recurso reconduzem-se, fundamentalmente, a três: 1.ª) se o recurso ao PER produz a suspensão do prazo para a apresentação à insolvência, caso em que não existiu violação do dever de apresentação; 2.ª) se o artigo 186.º, n.º 3, al. a), do CIRE consagra uma presunção (relativa ou juris tantum) de insolvência culposa ou somente uma presunção (relativa ou juris tantum) de culpa grave. 3.ª) se o disposto nos n.ºs 2 e 3 do artigo 186.º do CIRE padece de inconstitucionalidade orgânica e material, por violação das normas dos artigos 165.º, n.º 1, al. b), e n.º 2, e 198.º, n.º 1, al. b), e das normas dos artigos 30.º, n.º 4, 47.º, 58.º, n.º 1 e n.º 2, al. b), 61.º, 62.º, todos da CRP.
1. Quanto à primeira questão, ela é de simples resolução desde que mantenha presente / nunca se perca de vista as distintas finalidades do PER e do processo de insolvência, ou seja, que o primeiro processo, ao contrário do segundo[1], é pré-insolvencial, portanto, aplicável apenas aos casos em que não se verifica a insolvência actual (não se “actualiza” a insolvência) e enquanto a insolvência actual não se verificar (enquanto a insolvência não se “actualizar”). Disse-se, por isso, logo em 2012, comentando o PER recém-criado, que não era compreensível (justificado) que o legislador previsse uma norma suspendendo o prazo para o cumprimento do dever de apresentação à insolvência. Disse-se, então, que “[u]ma disposição sobre esta matéria […] seria, aliás, incoerente com a intenção do legislador, que é – repete-se – a de circunscrever o PER aos casos de pré-insolvência”[2]. Se assim é, menos compreensível é a tentativa de retirar tal suspensão do silêncio (justificado) do legislador. Admite-se – como se admitia já na altura – que fique ressalvado deste (subsistente) dever de apresentação à insolvência um único grupo de casos: os casos “em que, não obstante a superveniente insolvência, o processo negocial permita alcançar acordo de recuperação, [sendo] impensável entender que o devedor está vinculado a um dever de apresentação à insolvência. Não poderia pôr-se em causa uma possibilidade concreta de resgate do devedor. Por mais que o PER tenha sido pensado para situações de pré-insolvência, verificando-se um caso destes, à insolvência do devedor sobrepõe-se (tem de sobrepor-se) a ideia de que, por vias travessas ou tortas, se encontrou uma solução que concita o acordo da maioria dos sujeitos envolvidos e logo aquela insolvência deixou de ser um problema a resolver” [3]. Ora, o caso dos autos não se integra neste grupo excepcional de casos. Ao invés, consta dos factos provados que não foi aprovado o plano de recuperação apresentado pela devedora porque não foram obtidos os quóruns deliberativos exigidos pelo artigo 17º-F, nº 3, als. a) e b), do CIRE. Assim sendo, uma vez que, ainda que durante o PER, se verificou a insolvência, tal como descrita no artigo 3.º, n.º 1, do CIRE, da ora recorrente, AA, estava esta constituída no dever de se apresentar à insolvência dentro dos trinta dias seguintes à data do conhecimento daquela situação ou da data em que devesse conhecê-la (cfr. artigo 18.º, n.º 1, do CIRE), cabendo a iniciativa da apresentação ao seu administrador, BB, aqui também recorrente (cfr. artigo 19.º do CIRE). Não tendo cumprido este dever, os recorrentes incorreram na sua violação, o que, sem margem para discussão, configura uma omissão contrária à lei ou ilícita. Não assiste, em conclusão, razão às recorrentes quando afirmam que dos autos resulta a inexistência de ilicitude e de culpa grave neste incumprimento (ponto 21 das Alegações). Existe, como se demonstrou, ilicitude, relacionada com a violação de um dever legalmente previsto (o dever de apresentação à insolvência previsto no artigo 18.º, n.º 1, do CIRE). E, existindo ilicitude por violação deste dever jurídico em particular, funciona ainda a presunção consagrada no artigo 186.º, n.º 3, al. a), do CIRE, cujo alcance será esclarecido adiante mas que, no mínimo, respeita à culpa grave, como os recorrentes também reconhecem. E nem se diga, como fazem os recorrentes, que a viabilidade económica da empresa afasta, por si só, esta presunção de culpa grave e que não se pode considerar culposa a prestação de quem sempre esteve sempre a procurar salvaguardar a recuperação da empresa (cfr. pontos R e S das conclusões). Como é sabido, a insolvência consiste na impossibilidade de cumprir pontualmente obrigações (cfr. artigo 3.º, n.º 1, do CIRE) e esta ocorre independentemente da recuperabilidade ou da viabilidade económica da empresa. Para a recuperação das empresas insolventes dispõe a lei, mal ou bem, que o caminho a seguir é o processo de insolvência e que o instrumento adequado é, dentro deste, o plano de insolvência (com fim de recuperação). Não procedem, portanto, os argumentos da recuperabilidade ou da viabilidade económica da empresa nem da intenção de recuperação detida pelo administrador para afastar a culpa grave na omissão do dever de apresentação à insolvência. 2. A segunda questão a apreciar é a questão central do presente recurso. Incide ela sobre o alcance das presunções consagradas na norma do artigo 186.º, nº 3, do CIRE, em particular, sobre o alcance da presunção consagrada na sua al. a). Deve reconhecer-se, antes de mais, que está em causa uma questão controvertida, que tem originado posições divergentes no seio tanto da doutrina como da jurisprudência, e, portanto, importa aqui tomar posição, de forma clara e fundamentada. As teses em confronto são, essencialmente, duas: uma que reduz as presunções (juris tantum) do artigo 186.º, n.º 3, do CIRE à culpa grave e outra que as estende a todos os requisitos da insolvência culposa, enunciados na cláusula geral do artigo 186.º, n.º 1, do CIRE, designadamente, a culpa grave e o nexo de causalidade[4]. Na interposição de recurso, adoptam os recorrentes, naturalmente, a primeira tese, sustentando que, para a insolvência ser qualificada como culposa, é sempre necessária a prova, pelos interessados na qualificação da insolvência como culposa, do nexo de causalidade entre o facto e o dano (a criação ou o agravamento da situação de insolvência). Segundos os recorrentes, cabia, por conseguinte, aos requerentes da qualificação da insolvência (aqui recorridos) a demonstração do nexo de causalidade “entre a situação que a empresa apresentava à data da declaração de insolvência e a que poderia existir se a recorrente tivesse requerido a apresentação à insolvência”. Convictos de que esta prova não foi produzida, concluem que o Tribunal recorrido cometeu um erro de interpretação do disposto naquela norma. Vejamos se os argumentos aduzidos procedem e se assiste razão aos recorrentes. Seguindo de perto a síntese feita noutra ocasião[5], o regime de qualificação da insolvência regulado nos artigos 185.º e s. do CIRE, é uma novidade introduzida no código por influência do Direito espanhol, mais precisamente, da calificación del concurso, consagrada na Ley Concursal, de 9 de Julho de 2003 (cfr. artigos 163 e s.). O objectivo do regime é o de apurar se a insolvência é fortuita ou culposa (cfr. artigo 185.º do CIRE). Será culposa quando a situação de insolvência tiver sido criada ou agravada em consequência da actuação dolosa ou com culpa grave do devedor ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência (cfr. artigo 186.º, n.º 1, do CIRE). Será fortuita nos restantes casos. A admitir-se – como se admite – que é esta a interpretação mais correcta da norma do artigo 186.º, n.º 3, do CIRE, na hipótese (como a do caso) de incumprimento do dever de apresentação à insolvência, caberá aos interessados no afastamento da qualificação da insolvência como culposa (no caso, os recorrentes) provar a ausência dos requisitos da insolvência culposa exigidos pela norma do artigo 186.º, n.º 1, do CIRE, sendo suficiente a prova da ausência de qualquer deles (por exemplo, a culpa grave) para que a insolvência tenha de ser qualificada como fortuita.
3. Alegam, por último, os recorrentes que o disposto nos n.ºs 2 e 3 do artigo 186.º do CIRE é orgânica e materialmente inconstitucional, por violação das normas dos artigos 165.º, n.º 1, al. b), e n.º 2, e 198.º, n.º 1, al. b), e dos artigos 30.º, n.º 4, 47.º, 58.º, n.º 1 e n.º 2, al. b), 61.º, 62.º, todos da CRP. Não obstante não ser a este Tribunal que cabe a pronúncia decisiva sobre a conformidade das normas à Constituição, não deixa de se observar, em cumprimento do artigo 204.º da CRP, o seguinte. Em primeiro lugar, o disposto no n.º 2 do artigo 186.º do CIRE não é de todo relevante para o caso em apreço, pelo que não há que o invocar e, portanto, tão-pouco que apreciar a sua (in)constitucionalidade. Em segundo lugar, o n.º 3 do artigo 186.º do CIRE não versa sobre direitos, liberdades e garantias, pelo que não existe violação dos artigos 165.º, n.º 1, al. b), e n.º 2, e 198.º, n.º 1, al. b), da CRP e, portanto, é de rejeitar a alegação de inconstitucionalidade orgânica com tal fundamento. Por fim, o disposto no n.º 3 do artigo 186.º do CIRE não envolve como efeito automático a perda de direitos civis, profissionais ou políticos nem de direitos económicos, pelo que não existe violação dos artigos 30.º, n.º 4, 47.º, 58.º, n.º 1 e n.º 2, al. b), 61.º, 62.º da CRP e, portanto, é de rejeitar a alegação de inconstitucionalidade material com tal fundamento. Dito isto, o n.º 3 do artigo 186.º do CIRE – insiste-se – consagra tão-só uma presunção relativa / juris tantum / ilidível, não estando o interessado impedido de alegar e provar que não se verificaram os factos que, pela sua gravidade, indiciam a insolvência culposa e de, assim, se eximir aos efeitos desta. Ou seja: nem sequer se levantam aqui as dúvidas que podem levantar-se, em abstracto, à luz do princípio constitucional do acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva (cfr. artigo 20.º da CRP), as presunções absolutas / juris et jure / inilidíveis e que só são dissipadas, em concreto, quando se conclua que as mesmas visam atingir um fim legítimo e não se revelam desproporcionadas. 4. Volte-se agora, por fim, ao Douto Acórdão recorrido. Adopta-se aí o entendimento de que a norma do artigo 186.º, n.º 3, al. a), do CIRE consagra uma presunção (juris tantum), não de (mera) culpa grave, mas de insolvência culposa ou de culpa (grave) na insolvência. Argumenta-se que esta interpretação do artigo 186.º, n.º 3, al. a), do CIRE é aquela que, desde logo, tem cabimento na letra da lei, depois, mais bem corresponde ao pensamento legislativo, reconstituído a partir do preâmbulo do diploma que aprovou o CIRE (Decreto-Lei n.º 53/2004, de 18 de Março) e de outras normas do CIRE, designadamente dos n.ºs 1, 2 e 5, do artigo 186.º, e, por fim, mais bem preserva a unidade do sistema jurídico, designadamente a relação do n.º 3 com as normas antecedentes. E, para reforçar, evoca-se o argumento do Direito comparado, mais precisamente, a lei da insolvência espanhola e a interpretação que foi feita da norma-modelo da norma portuguesa pelo Supremo Tribunal espanhol. Considerando o que se disse atrás, o Douto Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra constitui um excelente exemplo do labor interpretativo que compete aos tribunais desenvolver para uma aplicação mais satisfatória do Direito – do dever que todos têm de, resistindo à solução (fácil) de confinamento ao texto positivo, “revolver” o sistema jurídico à procura da leitura mais adequada das normas.
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Pelo exposto, nega-se provimento à revista e confirma-se o Acórdão recorrido.
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Custas pelos recorrentes, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficiem.
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LISBOA, 23 de Outubro de 2018
Catarina Serra (Relatora)
Salreta Pereira
Fonseca Ramos
_____________________ [1] Veja-se, no entanto, a hipótese prevista no n.º 4 do artigo 3.º do CIRE (possibilidade de o devedor se apresentar à insolvência no caso de insolvência iminente). |