Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
18965/17.1T8LSB.L1.S2
Nº Convencional: 4ª SECÇÃO
Relator: CHAMBEL MOURISCO
Descritores: AÇÃO DE RECONHECIMENTO DA EXISTÊNCIA DE CONTRATO DE TRABALHO
EMPRESA DO SECTOR EMPRESARIAL PÚBLICO
NULIDADE DO CONTRATO
DESISTÊNCIA DA INSTÂNCIA
Data do Acordão: 06/27/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL DO TRABALHO – PROCESSOS ESPECIAIS / PROCESSO DO CONTENCIOSO DAS INSTITUIÇÕES DE PREVIDÊNCIA, ABONO DE FAMÍLIA, ASSOCIAÇÕES SINDICAIS, ASSOCIAÇÕES DE EMPREGADORES OU COMISSÕES DE TRABALHADORES / ACÇÃO DE ANULAÇÃO E INTERPRETAÇÃO DE CLÁUSULAS DE CONVENÇÕES COLECTIVAS DE TRABALHO / VALOR DO ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA.
Doutrina:
-João Correia, Código de Processo do Trabalho, anotado à luz da reforma do processo civil, 2015, Almedina, p. 319.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO DO TRABALHO (CPT): - ARTIGO 186.º, N.º 8.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 21-03-2018, PROCESSO N.º 17082/17.9T8LSB.L1.S1;
- DE 21-03-2018, PROCESSO N.º 20416/17.2T8LSB.L1.S1.


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ACÓRDÃO DO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL:


- ACÓRDÃO N.º 94/2015, PROCESSO N.º 822/14, IN WWW.TRIBUNALCONSTITUCIONAL.PT.
Sumário :
I. A ação de reconhecimento da existência de contrato de trabalho é uma ação de cariz publicista que resulta da atividade da Autoridade para as Condições do Trabalho, com uma tramitação muito simplificada, cujo objeto consiste em apurar a factualidade relevante para qualificar o vínculo existente, e caso se reconheça a existência de um contrato de trabalho fixar a data do início da relação laboral, como impõe o n.º 8 do art.º 186.º-O do Código de Processo do Trabalho.

II. Caso se reconheça a existência de um contrato de trabalho está, então, aberto o caminho para se poder, eventualmente, discutir uma série de questões que poderão ser suscitadas, como por exemplo a validade do contrato, a responsabilidade de quem procedeu à contratação e os direitos do trabalhador.

III. Atento o cariz publicista da ação, admitir que o prestador da atividade pudesse pôr termo à mesma, desistindo da instância, seria frustrar os objetivos da lei que consistem em combater eficazmente a utilização indevida do contrato de prestação de serviço em relações de trabalho subordinado.
Decisão Texto Integral:

Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça:



                                                           I

Relatório:

1. O Ministério Público intentou a presente ação especial de Reconhecimento da Existência de Contrato de Trabalho contra Rádio Televisão de Portugal, S.A., pedindo que seja declarada a existência de um contrato de trabalho por tempo indeterminado entre a ré e AA.

2. A ré contestou alegando, em síntese, e no que releva para apreciação do presente recurso, que está vedado às entidades do sector público empresarial constituir relações de trabalho subordinado sem autorização governamental, cuja omissão gera a nulidade originária e insuprível do contrato de trabalho, pelo que está impedida de celebrar tal contrato, o que constituiu uma exceção perentória que impede o efeito pretendido na ação.

3. O Ministério Público respondeu pugnando pela improcedência das exceções e pela condenação da Ré no pedido.

4. O interessado AA requereu a sua intervenção principal nos autos e aderiu à petição inicial do Ministério Público.

5. O Tribunal relegou para final o conhecimento da nulidade, tendo designado data para julgamento.

6. Aberta a audiência de julgamento, o interveniente declarou desistir da instância.

7. Perante a não oposição da ré e a oposição do Ministério Público, o Tribunal decidiu homologar a desistência da instância.

8. Inconformado, o Ministério Público interpôs recurso de apelação, tendo o Tribunal da Relação decidido que o prestador da atividade não pode pôr termo à ação de reconhecimento da existência de contrato de trabalho desistindo da instância, pelo que revogou a decisão recorrida e determinou o prosseguimento da ação.

9. Inconformada com esta decisão, a ré interpôs recurso de revista, tendo formulado as seguintes conclusões:

1. O Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa - que revogou a douta Sentença de l.ª instância e determinou que os autos prosseguissem - não ponderou minimamente as consequências dessa decisão, fazendo uma errada interpretação e aplicação do Direito.

2. É reconhecido, quer pelas partes quer pelas instâncias, que, caso se conclua que o contrato existente com a Recorrente configura um contrato de trabalho, o mesmo será nulo, por não ter sido precedido da indispensável autorização governamental exigida pela legislação orçamental aplicável à Recorrente.

3. Do prosseguimento dos autos poderá resultar uma decisão prejudicial ao Interessado e contrária ao fito da própria ARECT, pois, em vez de se proceder à regularização da situação de errado enquadramento contratual (caso tal se justifique, no que não se concede), o Interessado ficará colocado numa posição pior daquela em que se encontra. Pior ainda, ficará impossibilitado de conseguir a regularização da situação através do único meio que o permite, ou seja, através do PREVPAP, que presentemente se encontra plenamente aprovado e em execução, como resulta da publicação do último diploma legal que o enquadra normativamente, a Lei n.º 112/2017, de 29 de dezembro.

4. Por isso, nas mais de duas centenas de decisões dos Tribunais do Trabalho que julgaram ações iguais à presente, considerou-se que o processo não devia prosseguir para julgamento.

5. Os Tribunais do Trabalho perceberam que o que está em discussão nestas ações não é saber, em abstrato e sem atender aos especiais contornos das situações sub judice, se a nulidade do contrato de trabalho obsta à utilização da ARECT. A necessidade de ponderar as consequências da decisão obriga a que se atenda à circunstância de, no caso dos autos como nos demais idênticos, a eventual declaração da existência de um contrato de trabalho conduzir à inevitável cessação da relação contratual, impedindo que se regularize a situação através do PREVPAP (que não pode ser desconsiderado, no contexto factual e jurídico em que os presentes autos se inserem).

6. E como nesta ação não é possível tratar dos efeitos decorrentes da declaração de existência de contrato de trabalho (válido ou inválido), o Interessado não obterá qualquer consequência favorável com o prosseguimento dos autos.

7. A decisão sob recurso, ao não permitir a desistência da instância e ordenar o prosseguimento dos autos, fez errada aplicação das regras legais que disciplinam a ARECT, em especial da norma vertida no artigo 186.º-N do CPT, que manda o Tribunal conhecer e julgar das nulidades de que obstam ao prosseguimento da ação.

8. O não prosseguimento dos autos para julgamento não impede a possibilidade de a ACT sancionar eventuais violações da legislação laboral que se venham a demonstrar ter existido, desde que, naturalmente, se verifiquem os pressupostos e requisitos da responsabilidade contraordenacional.

9. Por seu turno, o Interessado não só manterá a relação contratual com a Recorrente, como poderá ver corrigido, no âmbito do PREVPAP, o enquadramento contratual que lhe foi dado, considerando-se que existe um contrato de trabalho válido e eficaz com os direitos e deveres inerentes.

10. E na eventualidade de a conclusão apurada em sede do PREVPAP ser no sentido de o vínculo com a Recorrente não constituir um contrato de trabalho, nem por isso o Interessado fica impedido de, caso não concorde com a qualificação, fazer valer a sua posição em tribunal, propondo uma ação judicial com processo comum, onde peticionará que o tribunal declare a natureza laboral da relação e a condenação da Recorrente nos efeitos daí decorrentes.

11. O Tribunal da Relação, para além de desatender injustificadamente às consequências da sua própria decisão, desconsidera ainda a vigência e os objetivos do PREVPAP, que no presente se afigura como o mecanismo de combate à precaridade (definido pelo Estado) adequado à regularização da presente situação, ao qual deve ser dado prioridade.

12. E a interpretação que plasmou no Acórdão que proferiu nos presentes autos mostra-se até contrária ao artigo 202.º da Constituição da República Portuguesa, na medida em que em nada contribui para a justa composição do litígio e agrava a posição do Interessado retirando-lhe a possibilidade de regularizar a sua situação.

13. Para além de violar o princípio da limitação dos atos processuais (cfr. artigo 130.º do Código de Processo Civil), destinado a evitar a prática de atos processuais (a audiência de discussão e julgamento) que se revelam, não tanto desnecessários mas sobretudo perniciosos, bem como de se mostrar incompatível com o princípio ínsito no artigo 9.º, n.º 3, do Código Civil.

14. Acresce que a solução maioritariamente seguida pelos tribunais e pela doutrina, no sentido de não admitir a desistência da instância na ARECT, não deve ser transposta, sem mais, para a situação presente, pois essa transposição implica desconsiderar as especialidades que no caso ocorrem e, por inerência, as consequências perniciosas que a solução terá para todos os interesses em jogo.

15. E nem se diga que ao aceitar a desistência da ação se está a pôr nas mãos do Interessado uma faculdade que a lei não lhe concede, permitindo-lhe obstar a que a ação prossiga contra a vontade de quem afinal a intentou. Na verdade, a desistência da instância só procede porque é objeto de uma decisão judicial homologatória, isto é, porque o Tribunal entende, ponderadas todas as circunstâncias e tendo presente as consequências da decisão, que essa é a solução que melhor serve todos os interesses em presença e que, assim, assegurar a realização da Justiça.

10. O Ministério Público contra-alegou, defendendo a improcedência do recurso interposto pela ré, formulando as seguintes conclusões:

1. Faz sentido olhar para a crescente «proletarização» que muitos pequenos empresários em nome individual (eletricistas, canalizadores, serralheiros, marceneiros, etc.,), bem como profissões do sector terciário que habitualmente eram exercidas em regime liberal (advogados, médicos, arquitetos, etc.) têm vindo a sofrer (e que, por exemplo, para a nossa anterior Lei dos Acidentes de Trabalho, desde que houvesse uma efetiva situação de dependência económica, implicava um tratamento jurídico para efeitos da sua aplicação equiparado ao do trabalho subordinado), com a integração exclusiva ou quase exclusiva do trabalho autónomo por aqueles prestado numa estrutura mais vasta e de carácter empresarial e a sua consequente «dependência económica» relativamente a tal estrutura.

2. O art.º 122.º n.º 1 do Código do Trabalho tem como fim ressalvar os efeitos jurídicos decorrentes da execução do contrato mas nunca o de «converter» em válido um vínculo que, desde a sua génese, se apresentaria como nulo.

Mas também a ação de reconhecimento da existência de contrato de trabalho não tem em vista tal propósito; com esta visa-se reconhecer a existência de um contrato de trabalho que se manifestou durante um determinado período, sob outra veste e não converter um eventual contrato de trabalho nulo num contrato válido.

3. Tal declaração e reconhecimento não contende com a nulidade do próprio contrato, caso esta se verifique, na medida em que o seu objeto se atém a esse reconhecimento, do que resulta que a alegada nulidade da contratação de BB, contrariamente ao que entendeu o Tribunal de 1.ª Instância, não o impedia de declarar a existência de um contrato de trabalho entre aquela e a Ré, caso este tivesse resultado provado, nem legitimava, só por si, a absolvição da Ré, como veio a suceder.

4. Não estava vedado ao Tribunal da 1.ª Instância o reconhecimento do contrato em causa, sendo certo que a admitir-se que esta ação não se aplica a contratos nulos ab initio estar-se-ia, seguramente, a esvaziar o seu conteúdo e a proceder a uma limitação do seu âmbito de aplicação que dela não resulta e que redundaria na impunidade da situações de utilização indevida de contratos de prestação de serviço em relações de cariz laboral.

5. Também se impõe afirmar que a interpretação do artigo 58.º da Lei n.º 82-B/2014 de 31/12, não afasta, de todo, a aplicabilidade do regime de invalidade do contrato de trabalho e que, mesmo que afastasse, tendo a

Presente ação por finalidade apenas reconhecer a existência de um contrato não visando, conforme refere o Recorrente, a discussão do procedimento a seguir pela Ré para contratação de um trabalhador, a verdade é que a análise da validade ou invalidade do contrato não mereceria destaque no âmbito da presente ação. Resta concluir que se impõe o prosseguimento da ação com designação de data para a audiência de julgamento.

6. As regras e objetivos do PREVPAP são completamente distintos da ARECT como resulta do respetivo procedimento.

7. Não existe qualquer moratória de aplicação do Código do Trabalho no programa do PREVPAP, nem a existência deste obsta ao exercício pelos tribunais das funções que lhes cabem quanto ao reconhecimento de relações jurídicas.

11. Nas suas conclusões, a recorrente suscita a questão de saber se o prestador da atividade pode ou não pôr termo à ação desistindo da instância, questionando o prosseguimento da ação para julgamento, atenta a natureza da mesma e perante a impossibilidade de a ré poder proceder à, eventual, regularização da situação.

                                                           II

A) Fundamentação de facto:

As instâncias não fixaram a matéria de facto.

B) Fundamentação de Direito:

B1) Os presentes autos respeitam a uma ação de reconhecimento da existência de contrato de trabalho instaurada em 2017, tendo o acórdão recorrido sido proferido em 7/2/2018.

Assim sendo, o regime processual aplicável é o seguinte:

- O Código de Processo do Trabalho, na versão operada pela Lei n.º 63/2013, de 27 de agosto;

- O Código de Processo Civil, na versão conferida pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho.

B2) Como já se referiu, a recorrente suscita a questão de saber se o prestador da atividade pode ou não pôr termo à ação desistindo da instância, questionando o prosseguimento da ação para julgamento, atenta a natureza da mesma e perante a impossibilidade de a ré poder proceder à, eventual, regularização da situação.

O Tribunal da 1.ª Instância, perante a posição do prestador da atividade que declarou pretender desistir da instância, decidiu homologar a desistência, pondo assim termo à ação, aduzindo os seguintes argumentos:

Não desconhecemos que a presente ação é bem distinta de uma ação comum nos interesses que a regem e não apenas na forma de processo. E desde logo, quem é parte processual nos autos é de facto o Ministério Público e não o trabalhador. No entanto, o digno magistrado não se encontra a agir em nome próprio mas em defesa de um trabalhador e do interesse público de ver reconhecida a situação de direito de um contrato de trabalho alegadamente encoberto por uma prestação de serviços. O interesse em agir, pressuposto processual necessário a qualquer ação judicial existe apenas porque um determinado trabalhador tem uma situação laboral que tem de ser defendida ao abrigo da lei. Ora, a lei vigente, nomeadamente as imposições dos vários orçamentos de estado, é a própria a impedir que a ação possa lograr vencimento, pois a existir uma realidade de contrato de trabalho é a própria lei de orçamento de estado que comina a sanção com a sua nulidade.

Temos pois neste tipo de ação uma situação criada pelo Estado (leia-se ACT representada pelo MP), contra o próprio Estado (sector empresarial do estado), para que reconheça uma situação – contrato de trabalho – que o próprio Estado (na suas leis de orçamento de estado) não permite reconhecer. E no meio da situação jurídica trabalhadores que pretendem continuar a trabalhar e temem pelas consequências de uma eventual declaração de nulidade de um contrato de trabalho.

Cremos que neste tipo de ações o trabalhador não poderá desistir do pedido, por o seu direito ser indisponível (na medida em que valores de alegado interesse público se sobrepõem), mas não lhe pode estar vedado desistir da instância, pois o interesse público e do trabalhador não é posto em causa, não se estará a dispor sem retrocesso de um direito indisponível mas sim apenas a suspendê-lo, na medida em que qualquer uma das partes pode mais tarde intentar nova ação exatamente idêntica.

E o porquê de o trabalhador precisar de uma desistência da instância salta a olhos vistos.

Foi noticiado na comunicação social que existe uma negociação no âmbito do PREVPAP com vista a integrar todos os trabalhadores nestas situações na RTP e não será o reconhecimento de um contrato de trabalho ferido de nulidade (nulo por força da lei de orçamento de estado) que pode facilitar a posição do trabalhador nessa negociação.

Compreende-se assim que o trabalhador queira relegar o conhecimento da sua relação contratual com a R. para momento ulterior, e a desistência da instância permite fazê-lo sem o prejudicar.

Por fim, importa ter presente que o que se pretende com a presente ação é combater a utilização indevida do contrato de prestação de serviços nas situações em que existe uma verdadeira relação laboral. E o próprio trabalhador tem de poder ter uma palavra sobre o assunto.

A este propósito veja-se o acórdão do Tribunal constitucional n.º 94/2015, relator Cura Mariano, proc. 822/14, in www.tribunalconstitucional.pt, onde se pode ler o seguinte:

Nas situações problematizadas na decisão recorrida (os casos em que uma pessoa não quer estar sujeita a nenhuma relação de subordinação jurídica ou em que está vinculada a uma relação jurídica de um especifico tipo contratual que não lhe permite ter uma ou outra relação jurídica de natureza laboral), não se verifica um caso de utilização indevida do contrato de prestação de serviço, visto que, nenhuma das partes (e concretamente, quem presta a outrem determinada atividade remunerada) pretende que a relação jurídica em causa esteja sujeita ao regime laboral.

Nestas situações, o referido regime contém suficientes garantias de essa vontade do trabalhador poder ser expressa nos autos e levada em conta, de modo a que tal situação não seja tratado como sendo um caso de trabalho subordinado.

Isto significa, segundo o Tribunal Constitucional que a vontade do trabalhador pode e deve ser atendida. O que ora se faz aceitando a desistência da instância, de uma instância que visa apreciar a sua situação contratual junto da RTP numa altura em que o Estado encontra-se em negociações publicamente noticiadas para resolver a situação jurídica dos mesmos, e numa altura em que vigorou no ano da sua contratação uma lei do orçamento de estado que cominava com nulidade a existência de um contrato de trabalho celebrado entre a RTP e algum trabalhador, motivos mais do que suficientes para tal desistência da instância ser homologada.

E com tais fundamentos, respeitando esta liberdade do trabalhador e do facto de não se encontrar a dispor de um direito indisponível, nem prejudicar o interesse público subjacente (porque não desiste do pedido) homologo a desistência da instância manifestada por este e, em consequência, declaro extinta a presente instância cessando o processo instaurado (art.ºs 283.º, 285.º n.º 2, 286.º n.º 1, todos do Código do Processo Civil, aplicáveis ex vi art.º 1.º n.º 2 al. a) do Código de Processo do Trabalho).

Por seu turno, o Tribunal da Relação decidiu que o prestador da atividade não pode pôr termo à ação de reconhecimento da existência de contrato de trabalho desistindo da instância, pelo que revogou a decisão recorrida e determinou o prosseguimento da ação, estribando-se na seguinte argumentação:

Dos termos da lei resulta que a interposição da ação não depende do prestador da atividade, que pode não intervir nos autos sem que a sua omissão ou ausência impeça ou dificulte de qualquer modo (não interessa a ótica da produção da prova) a tramitação da ação: quem tem o encargo de a propor e de a impulsionar é o Ministério Publico. Sendo assim, é o MP o titular da ação, o autor, a parte principal a par do réu; e não o prestador da atividade. Sempre se poderá questionar se pode haver tentativa de conciliação entre o prestador e o credor da atividade e em que termos, e se, transigindo poderão, como é próprio, confessar e desistir parcialmente, nos termos do art.º 1248, n.º 1, Código Civil; e, se assim for, se poderá o prestador da atividade desistir quando lhe aprouver. Cremos que não: dados os termos da lei, e agora por maioria de razão, alterado que foi o art.º 186-O do CPT, que previa a dita tentativa de conciliação. Confiando a lei a ação ao MP, no escopo de instituir mecanismos de combate à utilização indevida do contrato de prestação de serviços em relações de trabalho subordinado, deixa claro que, qualquer que seja o interesse predominante na ação, existem suficientes motivos de interesse público que justificam a intervenção de tal magistratura; não mera intervenção fiscalizadora, ou de acompanhamento, mas como verdadeiro autor da ação. O que significa que o acordo entre prestador e credor da atividade que pode ser acolhido como fundamento de extinção da ação é aquele que admite a existência de contrato de trabalho subordinado. Os precisos termos do contrato podem variar, havendo aqui, porventura, margem para discussão; mas não a existência de contrato de trabalho. Repare-se, aliás, que nos termos do artigo 4.º da Lei 63/2013, que aditou à Lei n.º 107/2009, de 14 de setembro o art.º 15-A, pode a ação não ser proposta se a situação for regularizada. Como? Assumindo o credor a existência de um contrato de trabalho (cfr. n.º 2 e 3). O que significa que, subsistindo os indícios de prestação da atividade em condições análogas ao contrato de trabalho, o facto de o credor proceder de modo diverso (v.g. juntando cópia de um contrato de prestação de serviços) não terá como efeito que a situação seja tida por regularizada (...).

Desta sorte, ainda que estejamos aqui perante uma mera desistência da instância, que não obsta à propositura de nova ação, é óbvio que tal extravasa dos poderes do prestador da atividade na ação, erigindo-o em parte principal e dando-lhe a disponibilidade da relação processual. Com efeito, se ele, que não propôs a ação nem a impulsionou, pudesse desistir da instância, estaria encontrado o mecanismo para porventura a lide nunca chegar substancialmente ao seu termo: no início do julgamento o prestador e o credor da atividade colocariam deste modo fim à demanda até se reencontrarem novamente em Tribunal. E então teríamos a situação processual inusitada de um sujeito processual ter a obrigação de propor uma ação e um outro ter o poder de lhe pôr termo, não obstante subsistirem os motivos que levaram à sua obrigatória interposição pelo primeiro. O princípio da unidade do ordenamento jurídico bem como o axioma de que o legislador soube consagrar as soluções logicamente mais acertadas (art.º 9.º, n.º 1 e 3, do Código Civil) repudiam energicamente uma tal leitura.

A ação de reconhecimento da existência de contrato de trabalho está inserida no Título VI do Código de Processo do Trabalho, referente aos processos especiais, encontrando-se regulada nos artigos 186.º-K a 186.º-R.

            Estamos perante uma alteração ao Código de Processo do Trabalho introduzida pela Lei n.º 63/2013, de 27 de agosto, com início de vigência em 1 de setembro de 2013.

            Trata-se de uma ação de cariz publicista que resulta da atividade da Autoridade para as Condições do Trabalho, como se pode observar pelo teor do art.º 186.º-K, que se estriba no procedimento previsto no art.º 15.º-A da Lei n.º 107/2009, de 14 de setembro, que aprovou o regime processual aplicável às contraordenações laborais e de Segurança Social.

            O artigo 15.º-A, da referida Lei, versa sobre o procedimento a adotar em caso de inadequação do vínculo que titula a prestação de uma atividade em condições correspondentes às do contrato de trabalho, e tem a seguinte redação:

1 - Caso o inspetor do trabalho verifique, na relação entre a pessoa que presta uma atividade e outra ou outras que dela beneficiam, a existência de características de contrato de trabalho, nos termos previstos no n.º 1 do artigo 12.º do Código do Trabalho, aprovado pela Lei n.º 7/2009, de 12 de fevereiro, lavra um auto e notifica o empregador para, no prazo de 10 dias, regularizar a situação, ou se pronunciar dizendo o que tiver por conveniente.

2 - O procedimento é imediatamente arquivado no caso em que o empregador faça prova da regularização da situação do trabalhador, designadamente mediante a apresentação do contrato de trabalho ou de documento comprovativo da existência do mesmo, reportada à data do início da relação laboral.

3 - Findo o prazo referido no n.º 1 sem que a situação do trabalhador em causa se mostre devidamente regularizada, a ACT remete, em cinco dias, participação dos factos para os serviços do Ministério Público junto do tribunal do lugar da prestação da atividade, acompanhada de todos os elementos de prova recolhidos, para fins de instauração de ação de reconhecimento da existência de contrato de trabalho.

4 - A ação referida no número anterior suspende até ao trânsito em julgado da decisão o procedimento contraordenacional ou a execução com ela relacionada.

Como refere João Correia (Código de Processo do Trabalho, anotado à luz da reforma do processo civil, 2015, Almedina, pág. 319 - Obra em coautoria com Albertina Pereira), «A ação para reconhecimento da existência de contrato de trabalho, foi projetada para combater eficazmente a utilização indevida (e abusiva) do contrato de prestação de serviços em relações de trabalho subordinado, sendo o seu escopo de índole marcadamente pública. Com efeito, a falsa contratação em regime de contratação em regime de contrato de prestação de serviços constitui um grave problema social, que não somente afeta os trabalhadores envolvidos, que veem assim aumentar a sua precaridade e insegurança laboral, como também a própria sociedade no seu conjunto, uma vez que o Estado, por essa via, se vê impedido de cobrar as devidas contribuições à segurança social, bem como os pertinentes impostos, com os inerentes prejuízos no que toca, quer à sustentabilidade do próprio sistema de segurança social, quer à salvaguarda do bem comum. Tal situação consubstancia também uma modalidade de concorrência desleal entre empresas, pois que ao invés das outras que cumprem tais obrigações, não suportam as prevaricadoras os encargos referentes aos trabalhadores subordinados, como são os relativos a férias, feriados e demais acréscimos retributivos, indemnizações ou compensações pela cessação do contrato, prémios de seguros e os demais encargos devidos pela implementação das medidas de segurança e saúde no trabalho, traduzindo, ainda, tal atuação um desvio às regras da União Europeia e ao prescrito a nível internacional, no que se refere, nomeadamente, à livre concorrência e à salvaguarda do trabalho digno».

Estamos pois perante uma ação de carácter oficioso que se inicia sem a intervenção processual do trabalhador, que pode, em fase posterior, aderir aos factos apresentados pelo Ministério Público, apresentar articulado próprio e constituir mandatário, como está previsto no n.º 4, do art.º 186.º-L, do Código de Processo do Trabalho.

Atento o cariz publicista da ação, admitir que o prestador da atividade pudesse pôr termo à mesma, desistindo da instância, seria frustrar os objetivos da lei que consistem em combater eficazmente a utilização indevida do contrato de prestação de serviço em relações de trabalho subordinado.

A recorrente, pugnando pela manutenção da decisão da 1.ª instância que admitiu a desistência da instância, questiona o prosseguimento da ação, atenta a natureza da mesma e perante a impossibilidade de a ré poder proceder à, eventual, regularização da situação.

Quanto a esta questão a Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça já tomou posição, nomeadamente nos acórdãos datados de 21/03/2018, proferidos nos processos números 17082/17.9T8LSB.L1.S1 e 20416/17.2T8LSB.L1.S1, nos quais se referiu: (i) antes de mais, importa apurar a factualidade relevante para qualificar o vínculo existente, e caso se reconheça a existência de um contrato de trabalho fixar a data do início da relação laboral; (ii) a discussão atinente à validade do contrato, bem como a alegada impossibilidade de a empregadora poder proceder à regularização da situação da trabalhadora, só poderá, eventualmente, ter lugar em momento posterior; (iv) o mesmo se diga quanto às consequências da eventual nulidade do contrato, que só faz sentido serem discutidas caso se chegue à conclusão de que estamos perante uma relação laboral. 

            Nesta linha, devem os autos prosseguir para julgamento.

           

                                                           III

            Decisão:

            Face ao exposto acorda-se em negar a revista, confirmando-se o acórdão recorrido.

Custas a cargo da recorrente.

Anexa-se sumário do acórdão.

Lisboa, 27/06/2018

Chambel Mourisco (Relator)

Pinto Hespanhol

Gonçalves Rocha