Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
37/21.6SXLSB-A.S1
Nº Convencional: 5.ª SECÇÃO
Relator: M. CARMO SILVA DIAS
Descritores: RECURSO PARA FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
DECLARAÇÕES PARA MEMÓRIA FUTURA
OPOSIÇÃO DE JULGADOS
RECUSA DE COOPERAÇÃO
DECLARAÇÕES
AUDIÊNCIA DE JULGAMENTO
Data do Acordão: 09/22/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO DE FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA (PENAL)
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO.
Sumário :

I- No caso do acórdão fundamento, verifica-se que apesar de existirem declarações para memória futura, a ofendida foi convocada para a audiência de julgamento, e usou da prorrogativa de não prestar declarações, o que foi aceite pelo tribunal, como se verifica pela própria fundamentação da sentença e também do acórdão da Relação de Lisboa de 15.09.2021; no caso do acórdão recorrido a ofendida, filha da arguida, não se recusou a prestar declarações, nem usou da prerrogativa de não prestar declarações (independentemente da discussão que se pode suscitar sobre se podia ou não fazer uso dessa prorrogativa, uma vez que anteriormente tinha prestado declarações para memória futura ou se antes se deve entender que essa prorrogativa é irrenunciável e, portanto, quem é titular dessa faculdade, deve ser advertido de que pode recusar o depoimento, sempre e em qualquer altura que tiver de prestar declarações ou depoimento).

II- O titular de prorrogativa legal (v.g. prevista no art. 134.º do CPP), tem de exprimir a faculdade de recusar o depoimento de forma clara e inequívoca, sendo para o efeito previamente advertido por quem recebe o depoimento, sob pena de nulidade (ver art. 134.º, n.º 2, do CPP). Portanto, nessas situações, tudo deve ficar bem esclarecido, para que não subsistam dúvidas sobre o exercício da faculdade do direito de recusa consagrado no art. 134.º, n.º 2, do CPP pelo respetivo titular ou sobre os incidentes que sobre essa matéria se tenham suscitado, os quais terão de ser decididos na altura própria.

III- Como se verifica do acórdão recorrido, ficou a constar da ata que “Perguntada sobre se queria prestar declarações pela menor BB foi afirmado que "eu não quero dizer nada, já disse tudo o que tinha a dizer, quanto mais rápido isto acaba melhor", o que (considerando que anteriormente prestara declarações para memória futura e que apenas fora convocada para a audiência de julgamento a fim de prestar esclarecimentos excecionalmente), apenas se pode concluir que a mesma prestou declarações, remetendo para o que já havia dito anteriormente, não querendo que a incomodassem mais e pretendendo que tudo acabasse o mais rápido possível (resposta que, diríamos que era de esperar, neste tipo de vítima - menor - em crime de violência doméstica, em que era a própria mãe a arguida, sendo conhecidas as fragilidades destas vítimas, ainda para mais quando são menores e são submetidas a vários interrogatórios, que as obrigam a recordar, mais uma vez, tudo o que passaram, o que não é fácil de vivenciar e de ultrapassar).

IV- Assim, não havendo identidade, semelhança ou equivalência nas situações analisadas no acórdão recorrido e no acórdão fundamento, mostram-se justificadas as diferentes/opostas soluções jurídicas que foram dadas e, na medida em que não é possível estabelecer uma comparação entre as duas situações descritas (ou seja, não há identidade de situações de facto) que constam do acórdão recorrido por um lado e do acórdão fundamento por outro lado, está inviabilizada a conclusão da verificação do requisito substantivo ou material, quanto à mesma questão de direito, de decisões opostas, o que leva à rejeição deste recurso extraordinário.

Decisão Texto Integral:



Proc. n.º 37/21.6SXLSB-A.S1

Rec. para fixação de jurisprudência

           

Acordam, em conferência, no Supremo Tribunal de Justiça

I. Relatório

1. A arguida AA veio, em 20.05.2022, interpor recurso extraordinário para fixação de jurisprudência, nos termos dos artigos 437.º, n.º 2 e 438.º do CPP, do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 20.04.2022 proferido nestes autos n.º 37/21.SXLSB, invocando que se encontrava em oposição com o acórdão do TRL de 15.09.2021, proferido no processo nº 20/21.1SXLSB.L1.

2. Para o efeito, nas conclusões do recurso apresentou os seguintes fundamentos:

a) A Arguida entende que existe contradição entre o Acórdão proferido nos presentes autos e o Acórdão proferido no processo nº 20/21.1SXLSB.L1-3 quanto à valoração, ou não, das declarações para memoria futura quando a testemunha se recusa a depor em julgamento.

b) Efectivamente nos presentes autos o Venerando Tribunal da Relação entendeu que a testemunha não se recusou propriamente a depor, mas declarou que não tinha mais nada a acrescentar.

c) Com o devido respeito pela opinião vertida no douto Acordão, entende a Arguida que quando uma testemunha se recusa, legitimamente, a responder às perguntas dos sujeitos processuais, se está a recusar a depor.

d) Pelo que se entende que resulta claro que uma testemunha que se recuse a responder às perguntas dos sujeitos processuais se está a recusar a depor.

e) Pelo que se entende que nos termos do nº 6 do artigo 356º do CPP as declarações da testemunha não podem ser reproduzidas e consequentemente valoradas.

f) Entende a Arguida que a interpretação vertida no processo nº 20/21.1SXLSB.L1-3 é a que manifesta a intenção do legislador.

g) Entende a Arguida que o legislador foi bastante claro, porquanto não pode uma interpretação sistemática colocar em causa a intenção do legislador.

h) Porquanto, resulta clara a contradição entre o Acórdão proferido nos presentes autos e o Acórdão proferido no processo nº 20/21.1SXLSB.L1-3, pelo que se requer que o presente Acórdão seja revogado e substituído por um Acórdão que considere que as declarações para memória futura não podem ser reproduzidas e consequentemente valoradas quando a testemunha se recusa a depor sob pena de violação clara do nº 6 do artigo 356º do CPP.

i) Pelo que deverá ser revogado o Acórdão Recorrido e substituído por um Acórdão que mantenha a decisão do Tribunal de Primeira Instância.

3. O Sr. PGA no TRL respondeu ao recurso interposto pela referida arguida sustentando, em resumo, nas conclusões, o seguinte:

1a A questão de direito discutida nos presentes autos e no Acórdão do Tribunal da Relação de 15/09/2021 prende-se com saber se, após válida recusa em depor em audiência de julgamento, as declarações para memória futura prestadas em fase anterior do processo podem ser valoradas autonomamente como meio de prova ou se, pelo contrário, estará vedado ao Tribunal considerá-las como prova válida.

2a Aqueles dois acórdãos são proferidos no âmbito da mesma legislação, aludem a uma situação de facto idêntica e concluem diferentemente relativamente à questão de direito.

3a Deste modo, entende-se verificada oposição de julgados, nos termos e para os efeitos dos artigos 437º, n.ºs 2 e 3 do Código de Processo Penal.

4a No que respeita à resolução da questão de direito em apreço, considera-se que as declarações para memória futura, não tendo de ser reproduzidas ou lidas em audiência de julgamento, devem ser livremente valoradas pelo Tribunal, nos termos que decorrem do princípio da livre apreciação da prova (artigos 127º e 355º, n.º 2 do Cód. de Processo Penal).

5a De facto, tais declarações não se mostram abrangidas por qualquer proibição de prova, enquadrando-se, aliás, nas declarações cuja leitura é permitida (artigo 356º, n.º 2, alínea a) do Cód. de Processo Penal), pelo que, ainda que não pudessem ser lidas, em virtude de a ofendida se ter recusado validamente a depor (artigo 356º, n.º 6 do Cód. de Processo Penal), não significa que se verifique, quanto às mesmas, qualquer proibição de valoração, já que se tratam de prova pré-constituída.

4. Subiram os autos a este Supremo Tribunal de Justiça e, o Sr. PGA emitiu parecer no sentido de acompanhar o entendimento do MP junto do TRL, concluindo estarem “reunidos todos os pressupostos da admissibilidade do recurso extraordinário de fixação de jurisprudência, incluindo o da oposição de julgados”, devendo em consequência os autos prosseguir (art. 441.º, n.º 1, in fine, do Código de Processo Penal).

5. Colhidos os vistos legais e realizada a conferência, incumbe, agora, decidir da admissibilidade ou rejeição deste recurso extraordinário (art. 441.º do CPP).

II. Fundamentação

6. O recurso extraordinário para fixação de jurisprudência tem por finalidade a obtenção de uma decisão do Supremo Tribunal de Justiça que fixe jurisprudência, “no interesse da unidade do direito”, resolvendo o conflito suscitado (art. 445.º, n.º 3, do CPP), relativamente à mesma questão de direito, quando existem dois acórdãos com soluções opostas, no domínio da mesma legislação, assim favorecendo os princípios da segurança e previsibilidade das decisões judiciais e, ao mesmo tempo, promovendo a igualdade dos cidadãos.

O que se compreende, até tendo em atenção, como se diz no ac. do STJ n.º 5/2006, publicado no DR I-A Série de 6.06.2006, que «A uniformização de jurisprudência tem subjacente o interesse público de obstar à flutuação da jurisprudência e, bem assim, contribuir para a certeza e estabilidade do direito.»

Ora, a admissibilidade do recurso extraordinário para fixação de jurisprudência depende do preenchimento de requisitos formais e de requisitos materiais, que se extraem dos artigos 437.º e 438.º do CPP.

 Assim, a jurisprudência deste Tribunal tem entendido, como é clarificado em variada jurisprudência[1], que são requisitos formais, a legitimidade do recorrente, a tempestividade da interposição do recurso (prazo de 30 dias a contar do trânsito em julgado do acórdão recorrido), a identificação do acórdão fundamento (com o qual o acórdão recorrido se encontra em oposição), incluindo se tiver sido publicado, o lugar da publicação e o trânsito em julgado do acórdão fundamento e, por sua vez, são requisitos materiais, que os dois acórdãos respeitem à mesma questão de direito, tenham sido proferidos no “domínio da mesma legislação”, “assentem em soluções opostas”, partindo de idêntica situação de facto, importando que as decisões em oposição sejam expressas.

Quanto a estes últimos dois requisitos, a saber, que sejam proferidas “soluções opostas a partir de idêntica situação de facto e que as decisões em oposição sejam expressas”, assinala-se no acórdão do STJ de 21.10.2021 citado, que “constitui jurisprudência assente deste Supremo Tribunal que só havendo identidade de situações de facto nos dois acórdãos é possível estabelecer uma comparação que permita concluir, quanto à mesma questão de direito, que existem soluções jurídicas opostas, bem como é necessário que a questão decidida em termos contraditórios seja objeto de decisão expressa, isto é, as soluções em oposição têm de ser expressamente proferidas (ac. STJ 30.01.2020, proc. n.º 1288/18.6T8CTB.C1-A.S1, 5.ª, ac. STJ 11.12.2014, proc. 356/11.0IDBRG.G1-A.S1, 5.ª) acrescendo que, de há muito, constitui também jurisprudência pacífica no STJ que a oposição de soluções entre um e outro acórdão tem de referir-se à própria decisão, que não aos seus fundamentos (ac. STJ 30.01.2020, proc. n.º 1288/18.6T8CTB.C1-A.S1, 5.ª, ac. de 13.02.2013, Proc. 561/08.6PCOER-A.L1.S1).”

7. Posto isto, vejamos se, neste caso concreto, estão ou não preenchidos todos os requisitos acima apontados.

Assim.

Analisados os autos não há dúvidas que a arguida tem legitimidade para interpor o presente recurso extraordinário para fixação de jurisprudência (art. 437.º, n.º 2 e n.º 5, do CPP) dado o seu interesse em agir (era arguida/recorrida, sendo o MP/recorrente), tendo-o apresentado tempestivamente, em 20.05.2022, uma vez que foi interposto dentro do prazo de 30 dias a contar do trânsito em julgado do acórdão proferido em último lugar, ou seja, do ac. do TRL proferido em 20.04.2022 nestes autos, do qual foi notificada por via eletrónica em 21.04.2022, enquanto o MP/recorrente foi notificado, por termo nos autos, em 22.04.2022.

Para além disso, neste seu recurso extraordinário, a recorrente identificou o acórdão fundamento, ou seja, o acórdão que invocou estar em oposição com o acórdão recorrido do TRL, (Ac. do TRL de 15.09.2021, proferido no processo nº 20/21.1SXLSB.L1), indicando o local da sua publicação, no site do ITIJ, juntando aos autos uma cópia do mesmo, sendo suposto que tenha transitado.

Dir-se-á que estão preenchidos os pressupostos formais do recurso extraordinário para fixação de jurisprudência.

Resta, agora, apurar, se igualmente se mostram preenchidos os seus pressupostos materiais.

Analisando o circunstancialismo fáctico que esteve na base de cada uma das opostas soluções que constam quer do acórdão recorrido (que concluiu pela revogação da sentença proferida, a qual deve ser substituída por outra na qual se analisem e valorem as declarações para memória futura prestadas nos autos pela ofendida BB, em conjugação com as restantes provas produzidas, de harmonia e à luz das regras de experiência comum), quer do acórdão fundamento (que concluiu por negar provimento ao recurso interposto pelo MP, que pretendia, em resumo, que a decisão recorrida tivesse em conta as declarações para memória futura prestadas pela ofendida, que em audiência usou da prerrogativa de não prestar declarações), verificamos que não há identidade de circunstâncias subjacentes a ambas as decisões, o que justifica os diferentes enquadramentos jurídicos.

Vejamos.

É certo que, em ambos os processos (quer no relativo ao acórdão recorrido, quer no relativo ao acórdão fundamento), os respetivos arguidos estavam acusados por um crime de violência doméstica e foram absolvidos na 1ª instância.

Também é verdade que nos dois referidos processos (quer no relativo ao acórdão recorrido, quer no relativo ao acórdão fundamento) existem declarações para memória futura, prestadas pelas respetivas vítimas, anteriormente à audiência de julgamento.

Apesar de existirem essas declarações para memória futura nos dois referidos processos, cada uma das vítimas foi convocada para comparecer também aos respetivos julgamentos.

E, nas respetivas sentenças da 1ª instância foi entendido que, em audiência de julgamento, cada uma delas se recusou a prestar declarações validamente, o que inviabilizava a valoração das declarações para memória futura prestadas anteriormente e, na falta de prova, foram os respetivos arguidos absolvidos.

Portanto, pelas interpretações feitas na 1ª instância até nem havia soluções opostas.

O que sucede é que as circunstâncias que estão na base do acórdão recorrido e do acórdão fundamento não são as mesmas, nem podem ser equiparadas.

Nestes autos, a requerimento do defensor da arguida, a ofendida (menor BB) foi convocada para comparecer em audiência de julgamento a fim de prestar esclarecimentos, conforme despacho proferido em ata de 12.11.2021, transitado em julgado. Isso é o que resulta do acórdão recorrido de 20.04.2022, onde (além do mais) se esclarece o seguinte:

«Na sessão da audiência de julgamento realizada no dia 12 de novembro, pela arguida, através do seu defensor, atenta a prova produzida naquele dia, foi requerida a audição da ofendida BB em audiência, a qual havia prestado declarações para memória futura nos autos, para que a mesma prestasse esclarecimentos, como aliás consta da acta da respetiva sessão.

O MP e o assistente não se opuseram ao requerido.

Na mesma sessão da audiência, após a produção de prova, foi proferido despacho, o qual se mostra gravado no sistema de gravação, no qual se decidiu "(..) tendo em conta a prova produzida até ao momento nos termos e pelos fundamentos expressos pela Digna magistrada do MP, a prestação de declarações em audiência de julgamento por parte de BB, filha da arguida, revela-se importante para a descoberta da verdade e boa decisão da causa e a tal não se opõem as razões que contendam designadamente com a saúde psíquica daquela, pelo que se defere ao requerido e como tal designa-se para continuação da presente audiência de julgamento ...

Perguntada sobre se queria prestar declarações pela menor BB foi afirmado que "eu não quero dizer nada, já disse tudo o que tinha a dizer, quanto mais rápido isto acaba melhor".»

Portanto, aqui a diferença está na interpretação feita pela Relação da posição da ofendida BB quando foi chamada a prestar esclarecimentos em audiência de julgamento no processo a que se refere o acórdão recorrido (que além do mais entendeu que “a menor BB não se recusou a prestar declarações tout court. A menor BB afirmou que não tinha mais nada a dizer para além do que já havia dito. Ou seja, reafirmou o que disse nas declarações para memória futura, como nos impõem as regras da experiência e da lógica que se conclua”) que é distinta da situação descrita no processo a que se refere o acórdão fundamento, em que a respetiva ofendida, convocada para a audiência de julgamento, usou da prerrogativa de não prestar declarações, o que significou, segundo a fundamentação da sentença, que “à partida ficou muito comprometida a prova produzida em sede de audiência uma vez que seria a única testemunha de grande parte dos factos indiciariamente praticados pelo arguido.”

Ora, uma vez que se tratam de situações ou circunstâncias distintas, compreende-se que não se podem equiparar ou afirmar que tratam da mesma questão de forma oposta (sendo uma a encontrada pelo acórdão recorrido e a outra encontrada pelo acórdão fundamento).

É que os pressupostos para cada uma das soluções encontradas num caso e noutro são diferentes.

No caso do acórdão fundamento, verifica-se que apesar de existirem declarações para memória futura, a ofendida foi convocada para a audiência de julgamento, e usou da prerrogativa de não prestar declarações, o que foi aceite pelo tribunal, como se verifica pela própria fundamentação da sentença e também do acórdão da Relação de Lisboa de 15.09.2021.

No caso do acórdão recorrido a ofendida não se recusou a prestar declarações, nem usou da prerrogativa de não prestar declarações (independentemente da discussão que se pode suscitar sobre se podia ou não fazer uso dessa prerrogativa, uma vez que anteriormente tinha prestado declarações para memória futura ou se antes se deve entender que essa prerrogativa é irrenunciável e, portanto, quem é titular dessa faculdade, deve ser advertido de que pode recusar o depoimento, sempre e em qualquer altura que tiver de prestar declarações ou depoimento).

De qualquer modo, é conveniente esclarecer que, o titular de prerrogativa legal (v.g. prevista no art. 134.º do CPP), tem de exprimir a faculdade de recusar o depoimento de forma clara e inequívoca, sendo para o efeito previamente advertido por quem recebe o depoimento, sob pena de nulidade (ver art. 134.º, n.º 2, do CPP).

Portanto, nessas situações, tudo deve ficar bem esclarecido, para que não subsistam dúvidas sobre o exercício da faculdade do direito de recusa consagrado no art. 134.º, n.º 2, do CPP pelo respetivo titular ou sobre os incidentes que sobre essa matéria se tenham suscitado, os quais terão de ser decididos na altura própria.

Ora, não foi isso o que se passou neste caso; antes pelo contrário, como se verifica do acórdão recorrido, ficou a constar da ata que “Perguntada sobre se queria prestar declarações pela menor BB foi afirmado que "eu não quero dizer nada, já disse tudo o que tinha a dizer, quanto mais rápido isto acaba melhor".

Perante este tipo de declarações da menor/vítima que constam da ata (considerando que anteriormente prestara declarações para memória futura e que apenas fora convocada para a audiência de julgamento a fim de prestar esclarecimentos excecionalmente), apenas se pode concluir que a mesma prestou declarações, remetendo para o que já havia dito anteriormente, não querendo que a incomodassem mais e, pretendendo, que tudo acabasse o mais rápido possível (resposta que, diríamos que era de esperar, neste tipo de vítima - menor - em crime de violência doméstica que estava a ser julgado, em que era a própria mãe a arguida, sendo conhecidas as fragilidades destas vítimas, ainda para mais quando são menores e são submetidas a vários interrogatórios, que as obrigam a recordar, mais uma vez, tudo o que passaram, o que não é fácil de vivenciar e de ultrapassar).

Não se pode sustentar, como o faz a recorrente, que a mesma menor com aquelas declarações que constam da ata se recusou a prestar depoimento e que, portanto, esta situação é equiparada à do acórdão fundamento.

A recusa a prestar depoimento tem de ser inequívoca e não é isso o que resulta das declarações prestadas pela referida menor testemunha.

A argumentação da recorrente no sentido de a não resposta da testemunha a perguntas dos sujeitos processuais equivaler ou corresponder a uma recusa a depor (por não permitir ser confrontada pelos vários sujeitos processuais com o que as demais testemunhas teriam dito, nem permitir esclarecer pormenores), até é contraditória por pressupor precisamente que a ofendida prestou depoimento (embora não a todos os sujeitos processuais), o que mais diferencia a situação analisada no acórdão recorrido daquela que foi avaliada no acórdão fundamento.

É que se, por exemplo, uma testemunha recusa-se a depor no âmbito de uma prerrogativa legal isso pressupõe que o depoimento nem sequer é prestado, enquanto que, se uma testemunha presta depoimento, respondendo a determinados sujeitos processuais e recusando a resposta a perguntas a outros sujeitos processuais, nesse caso está a prestar depoimento mas, já se coloca então outra questão, que se relaciona com a valoração da prova.

De qualquer modo, neste caso, nem sequer consta da ata, que tivessem sido feitas perguntas à menor e que esta se tivesse recusado a responder; mas mesmo que isso se tivesse passado, hipótese académica que aqui se coloca, mais uma vez se verificava que a situação de que tratava o acórdão recorrido era distinta da do acórdão fundamento.

Temos, assim, que no caso do acórdão recorrido, em audiência de julgamento, quando convocada para prestar esclarecimentos, foram prestadas declarações, ainda que singelas, por remissão (quando reafirmou o que tinha dito anteriormente), pela testemunha/ofendida (sendo a não análise e valoração das declarações para memória futura pela 1ª instância, que levou a Relação a determinar que fosse realizada essa análise e valoração em falta, à luz das regras da experiência comum e proferida nova sentença), enquanto que no acórdão fundamento, em audiência de julgamento, quando convocada para a audiência de julgamento, a testemunha/ofendida fez uso da prerrogativa de não prestar declarações e, por isso, não foi ouvida, e, foi confirmada a decisão de não valoração das declarações para memória futura que prestara anteriormente, tendo em atenção nomeadamente o disposto no art. 356.º, n.º 6, do CPP.

Não há, assim, identidade, semelhança ou equivalência nas situações analisadas no acórdão recorrido e no acórdão fundamento, o que justificou as diferentes/opostas soluções jurídicas que foram dadas.

Portanto, não é possível estabelecer uma comparação entre as duas situações descritas (ou seja, não há identidade de situações de facto) que constam do acórdão recorrido por um lado e do acórdão fundamento por outro lado, o que inviabiliza que se possa concluir pela verificação do requisito substantivo ou material da existência, quanto à mesma questão de direito, de decisões opostas.

Assim, por falta do apontado requisito material, rejeita-se o presente recurso extraordinário.

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III - Decisão

Pelo exposto, acordam os juízes desta Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em rejeitar o recurso extraordinário para fixação de jurisprudência interposto pela arguida AA.

Custas pela arguida/recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC`s.

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Processado em computador e elaborado e revisto integralmente pela Relatora (art. 94.º, n.º 2 do CPP), sendo assinado pela própria e pelos Senhores Juízes Conselheiros Adjuntos.

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Supremo Tribunal de Justiça, 22.09.2022

Maria do Carmo Silva Dias (Relatora)

Cid Geraldo (Juiz Conselheiro Adjunto)

Leonor Furtado (Juíza Conselheira Adjunta)

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[1] Entre outros, Ac. do STJ de 21.10.2021, proferido no proc. n.º 613/95.0TBFUN-A.L1-C.S1 (relatado por António Gama), consultado no site da dgsi.